quinta-feira, 30 de abril de 2015

Senhor de Matosinhos 2015


Festas da Cidade de Matosinhos. De 8 de Maio a 1 de Junho. Informação e programa completo, aqui.

José de Alencar 3

Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela.
Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a rainha dos salões.
Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade.
Era rica e formosa.
Duas opulências, que realçam como a flor em vaso de alabastro; dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante.
Quem não se recorda da Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento da corte como brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento que produzira o seu fulgor?
Tinha ela dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade. Não a conheciam; e logo buscaram todos com avidez informações acerca da grande novidade do dia.
Dizia-se muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos a verdade, sem os comentos malévolos de que usam vesti-la os noveleiros.
Aurélia era órfã; e tinha em sua companhia uma velha parenta, viúva, D. Firmina Mascarenhas, que sempre a acompanhava na sociedade.
Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina.
Guardando com a viúva as deferências devidas à idade, a moça não declinava um instante do firme propósito de governar sua casa e dirigir suas ações como entendesse.
Constava também que Aurélia tinha um tutor; mas essa entidade desconhecida, a julgar pelo caráter da pupila, não devia exercer maior influência em sua vontade, do que a velha parenta.
A convicção geral era que o futuro da moça dependia exclusivamente de suas inclinações ou de seu capricho; e por isso todas as adorações se iam prostrar aos próprios pés do ídolo.
Assaltada por uma turba de pretendentes que a disputavam como o prêmio da vitória, Aurélia, com sagacidade admirável em sua idade, avaliou da situação difícil em que se achava, e dos perigos que a ameaçavam.
Daí provinha talvez a expressão cheia de desdém e um certo ar provocador, que eriçavam a sua beleza aliás tão correta e cinzelada para a meiga e serena expansão da alma.

"Senhora", José de Alencar

(José de Alencar nasceu no dia 1 de Maio de 1829. Morreu em 1877.) 

Lugares-comuns 219

Foto Hernâni Von Doellinger

LeV de volta, de 8 a 11 de Maio

O festival LeV Literatura em Viagem está de volta a Matosinhos. O mote desta nona edição: "Conflito, ontem e hoje". A conferência inaugural, pelas 21h30 do dia 8 de Maio, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, estará a cargo de Jorge Sampaio, ex-Presidente da República.
Falarão também, até dia 11, Richard Zimler, Kim Young-Há, Paolo Giordano, Paloma Díaz-Mas, Tessa de Loo, Cătălin Dorian Florescu, Marc Pastor, Llucia Ramis, Artur Domoslawski, Joan Miquel Oliver, Pedro Abrunhosa, Luís Represas, Gonçalo M. Tavares, Francisco José Viegas, Rui Tavares, Joel Neto, Dulce Maria Cardoso, Rui Cardoso Martins, Rui Vieira Nery e João Pereira Coutinho. O escritor Mário Cláudio será entrevistado.
Debates, música, exposições e lançamento de livros fazem o resto, na Biblioteca Municipal Florbela Espanca. Não esquecer, portanto: de 8 a 11 de Maio, em Matosinhos. Programa completo e mais informação, aqui.

A ver navios 45

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Jaime Cortesão 3

Ode à liberdade

Quero-te, como quero ao ar e à luz
Porque não sou a ovelha do rebanho,
Nem vendi ao pastor alma e a grei;
E onde não haja mais do que o redil,
És tu a minha pátria e a minha Lei.


Leva-me onde as estradas me pertençam.
Porque as vozes viris que me conduzem
Ninguém, melhor do que eu, sabe dizê-las;
Porque eu não temo as livres solidões,
Onde habitam os ventos e as estrelas.


Leva-me ao teu sopro, éter divino,
Porque me queima a sede das alturas
E o meu amor se oferece sem limite;
E és tu que abres as asas aos condores,
És tu que ergues os astros ao zénite.


Toma-me nas tuas mãos de sagitário,
Faze de mim o arco retesado
Pelo teu braço e a tua força inquieta,

Pois, quando o meu desejo atinge o alvo,
És tu o impulso que dispara a seta.


É lá, sempre mais longe, além do Oceano,
Nos limites do mundo conhecido,
Em plena selva e onde há que abrir a senda,
Que eu quero devorar os frutos novos
E erguer à beira de água a minha tenda.


Torna-me ágil e ardente, alma do Fogo,
Porque tu és a inspiradora inquieta
Dos bailados da morte e da alegria;
E eu prefiro ao aprisco a vida heróica,
A que devora o ser, mas alumia.


Queima-ma, embora custes, quando negas,
Quer o ódio fanático dos bonzos,
Quer o ciúme vil dos fariseus.
Sou dos que amam demais a Divindade
Para poder acreditar num deus.


Não és a flor da beira do caminho.
Bem sei que é preciso conquistar-te
A cada novo dia e duro preço.
Por ti tenho sofrido quanto os homens
Podem sofrer. Por isso te mereço.


Por ti sofri os transes da agonia,
Desde a fome da alma no deserto
Ao pão que, por amargo, se recusa.
E, náufrago da grande tempestade,
Cá vou sobre a jangada da Medusa!


Gerou-te, lentamente, com revolta
E dor, a consciência dos escravos;
Renasce mais perfeita a cada idade;
E, sempre, com as dores cruéis do parto,
Dá-te de novo à luz a Humanidade.


Querem mãos assassinas sufocar-te
Nas entranhas maternas. Mas em vão.
Virás como a torrente desprendida,
Porque és o sopro e a lei da Criação
E não há força que detenha a Vida.


Jaime Cortesão

(Jaime Cortesão nasceu no dia 29 de Abril de 1884.  Morreu em 1960.)

João Penha

O fim

Já não tenho inspirações:
Debalde na tinta banho
A minha nervosa pluma!
Era pastor de ilusões,
E de todo o meu rebanho
Já não me resta nenhuma!

"Ecos do Passado", João Penha

(João Penha nasceu no dia 29 de Abril de 1838. Morreu em 1919.)

terça-feira, 28 de abril de 2015

Alberto de Oliveira 2

A janela e o sol

"Deixa-me entrar, - dizia o sol - suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trêmulo ver que o sonho acende
Em seu sereno virginal sorriso.


Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende...
E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende."


E, fechando mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: "Tem-te, ousado!
Não te deixo passar! Eu, néscia, abri-me!


E esta que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?!"


"Sonetos e Poemas", Alberto de Oliveira

(Alberto de Oliveira nasceu no dia 28 de Abril de 1857. Morreu em 1937.)

segunda-feira, 27 de abril de 2015

domingo, 26 de abril de 2015

Condutora inteligentíssima

Um casal de idosos num daqueles carrinhos portáteis, os papa-reformas, como alguém teve a feliz ideia de lhes chamar. Nas calmas, obviamente. Atrás, uma condutora de um veículo a sério (à séria, se lido em Lisboa), uma verdadeira automobilista. A condutora, jovem e dinânima, tem óculos de sol de trabalho e pressa de ambulância: apita, buzina, assobia, gesticula, grita através da janela aberta:
- A passear!?...
Era domingo, duas da tarde, na ensolarada estrada à beira-mar. Condutora inteligentíssima: sim, às tantas os velhos iam mesmo a passear.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

José Ángel Valente

Esmorecen os soños,
cae a noite na noite.
Non hai luz que non sexa
o brancor dos teus seios.


Aíllame no alento.

Que eu poida ouvir aínda,
como Alexander Blok,
o chío das galaxias
cando brile no ceo a cauda acesa
do cometa Halley e cando todos
os sinais fo fin
teñen sido xuntados.

                      Imos
cara ó serán, amor, do século
sin saber si aínda hai
ventura saecula
ou si a face do enigma non será
nosa face no espello
e si tódalas verbas
non te serán,
sin sabérmolo nós, de seu comprido.


"Cántigas de Alén", José Ángel Valente

(José Ángel Valente nasceu no dia 25 de Abril de 1919. Morreu em 2000.)

Os putativos 4

"Era hipócrita se dissesse que não penso nas presidenciais", disse Rui Rio, no Porto, e compreendo-o perfeitamente. Eu próprio seria hipócrita se dissesse que não penso nas presidenciais.

Lugares-comuns 218

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Jorge de Lima

A mão enorme

Dentro da noite, da tempestade,
a nau misteriosa lá vai.
O tempo passa, a maré cresce,
O vento uiva.
A nau misteriosa lá vai.
Acima dela
que mão é essa maior que o mar?
Mão de piloto?
Mão de quem é?
A nau mergulha,
o mar é escuro,
o tempo passa.
Acima da nau
a mão enorme
sangrando está.
A nau lá vai.
O mar transborda,
as terras somem,
caem estrelas.
A nau lá vai.
Acima dela
a mão eterna
lá está.


"Tempo e Eternidade", Jorge de Lima

(Jorge de Lima nasceu no dia 23 de Abril de 1893. Morreu em 1953.)

Valentín Paz-Andrade 3

Tríadas do vento no mar

Verde vento polas leiras
e vento azul polo mar,
panos da mesma bandeira.
Quen fora vento, meu mar
e sobre o teu lombo brando
puidera o corpo deitar!
Quen fora o vento poboado
de polen e de cantigas
e malvises namorados!
Quen fora o vento que rube
a refrescar as estrelas
despois de folgar coa nube!
Quen fora xinete alado
de ardor e de vidro feito
sobre das olas montado!

"Sementeira do Vento", Valentín Paz-Andrade

(Valentín Paz-Andrade nasceu no dia 23 de Abril de 1898. Morreu em 1987.)

Caminho 12

Foto Hernâni Von Doellinger

Victoriano Taibo

¡Loitadores da Terra…!

¡Loitadores da Terra,
xa comeza a batalla!


As campás, a rebato,
por cumios e chanzadas,
aos bos e xenerosos
con irtas voces chaman.


Nas estreitas congostras
e largacías gándaras,
no pinal fungadore
e nas soantes praias,
óese o batido tráxico
das fouces e bisarmas,
e aqueles laios doridos
das gorxas abafadas,
triunfais himnos son xa
que a nova ceifa xubilosos cantan.


¡Loitadores da Terra,
xa comeza a batalla!


A voz afouta e rexa
que por nosoutros chama
é o berro punxente, arelante e guerreiro
da terra asoballada.


Os tempos son chegados
das esgrevias cruzadas,
van comezare os feitos
que os bardos anunciaran,
a loita será longa,
a contenda afiuzada,
nela caeran os corpos,
mais, triunfarán as almas.


¡Ai daqueles traidores
xordos á voz da Raza!
¡E tamén ai daqueles
inimigos da Patria,
que covardes deserten
no balbor estrondoso da xornada!


¡Loitadores da Terra,
xa comeza a batalla!


¡Contade coa miña vida!


¡Oh se soa abondara
para facere unha terra ceibe e rica
da miña pobre terra asoballada!


"Abrente", Victoriano Taibo

(Victoriano Taibo nasceu no dia 22 de Abril de 1885. Morreu em 1966.)

terça-feira, 21 de abril de 2015

Ary na Biblioteca de Fânzeres


"Ary, Poeta e Cidadão de Abril e Maio". Evocação do autor de "As portas que Abril abriu" pelo jornalista Soares Novais. Leitura de poemas por Cidália Santos e Lourdes dos Anjos e pelo actor Júlio Cardoso. Depois de amanhã, quinta-feira, dia 23 de Abril, a partir das 21h30, na Biblioteca de Fânzeres. Ary dos Santos, sempre!

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Hilda Hilst 3

Obriga-me

E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo, prazer, lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro.

E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.


"Do Desejo", Hilda Hilst

(Hilda Hilst nasceu no dia 21 de Abril de 1930. Morreu em 2004.)

Lugares-comuns 217

Foto Hernâni Von Doellinger

Rosa Lobato de Faria 3

Um dia virá

Um dia virá
em que a minha porta
permanecerá fechada
em que não atenderei o telefone
em que não perguntarei
se querem comer alguma coisa
em que não recomendarei
que levem os casacos
porque a noite se adivinha fresca.

Só nos meus versos poderão encontrar
a minha promessa de amor eterno.

Não chorem; eu não morri
apenas me embriaguei
de luz e de silêncio.


"A Noite Inteira Já Não Chega", Rosa Lobato de Faria

(Rosa Lobato de Faria nasceu no dia 20 de Abril de 1932. Morreu em 2010.)

Augusto dos Anjos 2

Último credo

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro - este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!


"Eu", Augusto dos Anjos 

(Augusto dos Anjos nasceu no dia 20 de Abril de 1884. Morreu em 1914.)

Caminho 11

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 19 de abril de 2015

Podia acontecer

A madama tinha um cão ao colo e, entre as pernas mas ao nível dos sapatos de tacão altíssimo, uma bolsa com rede e design. Era uma madama jovem, bela e produzida, esperável ao volante de um Porsche Cayenne e a lamber o telemóvel, e não ali, no banco do autocarro e a ser lambida pelo cão. O cão era a condizer: sucinto, peludo, de marca, transpirando pedigree por todos os poros. Uma fofura.
Sentia-se-lhes um orgulho mútuo, percebia-se uma relação muito bonita. Que ternura! A madama babada beijava o lingrinhas barbudo e o lingrinhas barbudo e babado beijava a madama babada. Beijavam-se na boca. Lambiam-se, se não me engano. A madama falava xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã e o xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã não dizia nada mas apenas por ser cão e por gostar de festas nos genitais e não querer interromper a coisa. Realmente só lhe faltava falar, ao cão, como muito bem observou o autocarro em coro, era o 500, e até eu me comovi, eu que, como sabem, mantenho um ancestral e desagradável contencioso com os canídeos de uma forma geral, e cuido que a culpa não é minha. A cena deu-me também um bocado de tesão.
A madama apeou-se na Foz, na paragem do Molhe, sempre com o cão ao colo, sempre xi-qui-pi-ri-qui-ti-nhu-nhu-nhu-meu-querido-mais-beijinho-mais-beijinho-mais-beijinho-da-mamã. Com a mão de vago, pousou no passeio a bolsa com rede e design, abriu-a e retirou um bebé de meses. Menino, vestia azul. Também era giro. E só lhe faltava falar.

Os putativos 3

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 18 de abril de 2015

Manuel Bandeira 3

Poética 

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare


- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

"Poesia Completa e Prosa", Manuel Bandeira

(Manuel Bandeira nasceu no dia 19 de Abril de 1886. Morreu em 1968.)

Lugares-comuns 216

Foto Hernâni Von Doellinger

Monteiro Lobato 3

Manuelita Rosas, a filha única de Don Juan Manuel Ortiz de Rosas, esse homem de gênio, o mais belo, o mais forte, o mais hábil do seu tempo na América (para nós ainda hoje apenas o "tirano Rozas", com "z", da História do Brasil com "z", de Lacerda), foi um caso notável de reequilíbrio biológico. De Vries, Mendel e outros entendidos em hereditariedade veriam nele uma resultante lógica do ardente punzó materno e do frio azul paterno, formando o mais suave e tranqüilo lilás, graças a um salto regressivo aos avós, Dona Agustina e Don Léon, tipos de fidalgos do século dezoito.
Para definir o caráter e a finura destes ancestrais basta um trecho de carta do pai ao filho, reeleito para uma função governativa: "Amado filho, é de necessidade que venhas ver tua mãe e trates com teus melhores meios de desimpressioná-la dos efeitos que tem causado em sua imaginação a notícia da tua reeleição para o governo. Seus suspiros contínuos me cortam a alma"...
É um "nec plus ultra" de finura século dezoito, suspirar a velha porque o filho subiu ao governo, e alegar o velho, como razão decisiva, esses suspiros que lhe traspassavam a alma...

"Na Antevéspera", Monteiro Lobato 

(Monteiro Lobato nasceu no dia 18 de Abril de 1882. Morreu em 1948.) 

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Guerra Colonial em debate no Flor de Infesta

Foto do arquivo pessoal de ÁLVARO MAGALHÃES (ex-pára-quedista em Angola)

Sessão sobre a Guerra Colonial, esta noite, a partir das 21h30, no Flor de Infesta. Palestra/debate com o jornalista Jaime Froufe Andrade, que foi alferes ranger em Moçambique e é autor do livro "Não sabes como vais morrer". Música com Manmgal e poesia com Irene Lamolinairie e Duarte Lima. Rua Padre Costa, 18, São Mamede de Infesta.

Antero de Quental 3

Divina comédia

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: - "Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor, na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?"
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - "Homens! por que é que nos criastes?"


"Sonetos Completos", Antero de Quental 

(Antero de Quental nasceu no dia 18 de Abril de 1842. Morreu em 1891.)  

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Os putativos 2

Henrique Neto, Marcelo Rebelo de Sousa, Sampaio da Nóvoa, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Morais, Marcelo Rebelo de Sousa, Paulo Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa, Manuel Carvalho da Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Santana Lopes, Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Rio, Marcelo Rebelo de Sousa, Orlando Cruz, Marcelo Rebelo de Sousa.
Ora bem: eu sei que Aníbal Cavaco Silva rebaixou tanto as funções que, agora, qualquer um se acha competente para o emprego de supremo-magistrado-da-nação. E é um emprego jeitoso. Mas não se arranjará ninguém a sério para o lugar?

Max Nunes

A galinha fuzilada

Naquele tempo era coronel. Hoje, passados que são uns anos, deve ser muito mais. Declaro, em seu favor, que foi o militar mais militar que conheci. Morava em Jacarepaguá, em frente à minha casa, e sua família, muito numerosa, era sua tropa, perfeitamente instruída e disciplinada. Na rua, mesmo em passeio, andavam todos de passo certo, mulher, filhos e cachorro. Seu ardor patriótico fazia-o acordar às cinco da manhã e, no banheiro, cantava todos os hinos que conhecia. Apenas reservava o Hino Nacional, com introdução e tudo, para os dias santos e feriados. A farda era seu invólucro: nunca o vi na rua à paisana.
Esperava o bonde perfeitamente empertigado, quase em posição de sentido, e continência, apenas para as senhoras e superiores. A roupa (a farda) era sempre impecável, de vinco firme, com botas que poderiam servir de espelhos. No tempo da guerra, que acompanhou todinha pelo Repórter Esso, redobrou de austeridade. Aí já não cumprimentava os vizinhos, e as continências às senhoras, como tudo na época, foram drasticamente racionadas. No bairro, todos o respeitavam e não havia ladrão que se atrevesse a passar na esquina daquela rua. As filhas é que não olhavam com bons olhos aquele excesso de austeridade. Embora jeitosas, corriam o risco de ficar solteiras, pois nenhum mancebo se atrevia a aproximar-se da casa, ou melhor, do quartel.
Tinha um hobby: criar galinhas. Possuía umas cinqüenta cabeças, algumas de boa raça. Todo domingo, num espetáculo inédito, soltava as galinhas na rua e, de pijama e cinturão - com um bruto revólver do lado -, ficava vigiando o piquenique. Passados uns trinta minutos, bastava que fizesse um "Xô, galinha" para que as cinqüenta, uma a uma, fossem voltando para o jardim da casa e, finalmente, ao galinheiro. Era uma prova eloqüente de que a disciplina naquela casa era igual para todos.
Até que um domingo não foi bem assim. Lembro-me bem de uma galinha preta que não atendeu ao primeiro "xô", provocando, com esse ato de rebeldia, uma repetição do mesmo, em tom menos amigo. Ocorreu uma nova desobediência, seguida de novo "xô".
Mas a doida, naturalmente julgando-se uma galinha civil, novamente desatendeu a ordem. Considerando-a insubmissa, e passível de crime militar, uma vez que estávamos em guerra, o valente coronel sacou de sua arma e fez partir um balaço que deve ter ido direto ao coração da galinha. Que nem estrebuchou. Ficou o dia inteiro por ali mesmo, gelando o sangue, até que foi encontrada por um mulato que, à noite, na encruzilhada, ao lado do corpo de penas pretas, fez acender sete velas de cera. Até hoje, porém, não se sabe se foi macumba ou velório. E a única testemunha do crime foi este seu criado que, a respeito, nunca prestou declarações, mesmo porque, até agora, nada lhe foi perguntado.

Max Nunes

(Max Nunes nasceu no dia 17 de Abril de 1922. Morreu em 2014.)

Lugares-(in)comuns 104

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Emilio Álvarez Blázquez

É noso pai quen chama.
Vén triste, esfarrapado,
e nós non temos nada.

 - Vaia con Dios, mi vida,
dícelle a nosa nai.
¡Cómo chora a probiña!

- Eu non pido, María,
que só veño onda vós
a dar a despedida,

que me levan á morte
os infames, os tortos,
os sañudos traidores.

Cando desperte o día
morrerei sen máis culpa
que ter a ialma limpa,

que amar a luz, o ar,
as palabras da paz,
a voz da libertade...

- Vaia con Dios, mi alma,
vaia com Dios, mi vida...!
¡Cómo chora a coitada,

cómo chora a pobriña,
cómo se lle parte o triste
corazón a María...!

"O Tempo Desancorado", Emilio Álvarez Blázquez

(Emilio Álvarez Blázquez nasceu no dia 16 de Abril de 1919. Morreu em 1988.)

terça-feira, 14 de abril de 2015

Os putativos

Acabado de chegar de Alcácer Quibir, Rui Rio disse em Gondomar: "Eu não sou nenhum D. Sebastião".

Fernando Namora 3

A vila é uma rua. Vem do alto dos eucaliptos pedindo licença à planície para lhe interromper o sono, atravessa uma encruzilhada de estradas por onde corre o aceno de Espanha ou do mar e, bruscamente, num ímpeto de ousadia, trepa o planalto ao encontro de uma igreja que foi covil de moiros e abades, e ali se fica, arrogante, a desafiar o pasmo da campina. À volta da igreja, as casinhas brancas, com altas chaminés que lhes furam o dorso atarracado, fecham-se num reduto que a voracidade calma do trigo não consegue romper. As mulheres vêm ansiosas às portas saber quem chegou, caçar uma novidade em primeira mão ou inventá-la, se for preciso; os homens vestem samarrões de pele de ovelha e falam e caminham lentos, austeros; os garotos correm aos sítios em que a bolota cai das árvores no regaço do mato, pela graça de Deus. Ao longo da rua há tabernas, onde o rumor brando da vida se encrespa, às vezes, em redemoinhos. Muitas tabernas. Os camponeses, depois do trabalho, sentam-se junto do balcão, apoiam os cotovelos no mármore da mesa, e ouvem. As palavras fatigam. E, por isso, um homem que saiba atirar com uma frase bem recheada e oportuna preenche uma boa hora de cogitações. Às vezes, à vila, chega gente vária. São pedras atiradas a um lago adormecido.

"O Trigo e o Joio", Fernando Namora

(Fernando Namora nasceu no dia 15 de Abril de 1919. Morreu em 1989.) 

Vida de cão 78

Foto Hernâni Von Doellinger

Soeiro Pereira Gomes 2

Quando entrou no quarto, o seu refúgio, atirou-se para cima da cama, satisfeito. Ainda desta vez, escapara! Apesar de haver perdido a noite anterior, não tinha sono; apenas lhe doíam os pés, com certeza cheios de bolhas rebentadas sob as meias coladas à carne, como de costume. Há três meses naquela tarefa - ir buscar o material de propaganda, distribuí-lo -, ainda não calejara os pés, como os outros camaradas, que aguentavam muitos quilómetros. É verdade. Há três meses que mergulhara na vida clandestina! Noventa dias de luta, fugido aos esbirros fascistas, partilhando dum lar estranho, embora amigo, ali no quarto estreito que era todo o seu mundo de repouso, de estudo e de sonho, às vezes. Gostava bem daquele quarto de tecto baixo e paredes manchadas pela humidade, com a cama de ferro a um lado, sem colcha; uma mesa tosca, no outro, além da mala; e uma janela que dava para as traseiras dos prédios, mas da qual se via, ao fundo, uma nesga do rio.
De tarde, quando o sol emprestava reflexos de espelho aos vidros sujos ou partidos das traseiras, à hora em que os inquilinos regressavam do trabalho, pejando as ruas da cidade, Abel encostava-se ao peitoril da sua janela e ficava-se a partilhar da vida alegre ou triste dos vizinhos. Os homens, em mangas de camisa, entretinham-se a consertar velhas capoeiras, ou regavam com desvelo uma nespereira raquítica que nunca daria frutos, enquanto as mulheres punham a mesa nas estreitas varandas, se havia bom tempo, e os cachopos saltitavam como pássaros famintos.

"Contos Vermelhos e Outros Escritos", "Refúgio Perdido", Soeiro Pereira Gomes 

(Soeiro Pereira Gomes nasceu no dia 14 de Abril de 1909. Morreu em 1949.)

Lugares-comuns 215

Foto Hernâni Von Doellinger

Aluísio Azevedo 3

Seriam onze horas da manhã.
O Campos, segundo o costume, acabava de descer do almoço e, a pena atrás da orelha, o lenço por dentro do colarinho, dispunha-se a prosseguir no trabalho interrompido pouco antes. Entrou no seu escritório e foi sentar-se à secretária.

Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo de água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta, muito alto, via-se o Diário deitado de costas e aberto de par em par.
Tratava-se de fazer a correspondência para o Norte. Mal, porém, dava começo a uma nova carta, lançando cuidadosamente no papel a sua bonita letra, desenhada e grande, quando foi interrompido por um rapaz, que da porta do escritório lhe perguntou se podia falar com o Sr. Luís Batista de Campos.
- Tenha a bondade de entrar, disse este.
O rapaz aproximou-se das grades de cedro polido, que o separavam do comerciante.
Era de vinte anos, tipo do Norte, franzino, amornado, pescoço estreito, cabelos crespos e olhos vivos e penetrantes, se bem que alterados por um leve estrabismo.
Vestia casimira clara, tinha um alfinete de esmeralda na camisa, um brilhante na mão esquerda e um grossa cadeia de ouro sobre o ventre. Ao pés, coagidos em apertados sapatinhos de verniz, desapareciam-lhe casquilhamente nas amplas bainhas da calça.
- Que deseja o senhor, perguntou o Campos, metendo de novo a pena atrás da orelha e pousando um pedaço de papel mata-borrão sobre o trabalho.
O moço avançou dois passos, com ar muito acanhado; o chapéu de pêlo seguro por ambas as mãos; a bengala debaixo do braço.
- Desejo entregar esta carta, disse, cada vez mais atrapalhado com o seu chapéu e a sua bengala, sem conseguir tirar da algibeira um grosso maço de papéis que levava.
Não havia onde pôr o maldito chapéu, e a bengala tinha-lhe já caído no chão, quando o Campos foi em seu socorro.


"Casa de Pensão", Aluísio Azevedo 

(Aluísio Azevedo nasceu no dia 14 de Abril de 1857. Morreu em 1913.)  

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O que um velho faz para ter razão

- Estou um velho - disse o velho.
- Não está nada - disse a visita.
- Um caco - disse o velho.
- Está cada vez mais novo - disse a visita.
- Já não duro muito - disse o velho.
- Daqui a vinte anos ainda nos havemos de rir - disse a visita.
- Estou fodido, estou como hei-de ir - insistiu o velho.
- Por acaso até o acho com muito bom aspecto, melhor do que da outra vez - insistiu a visita.
- Dói-me tudo - disse o velho.
- Pois também é da idade, quem andou não tem para andar, o que é que queria? - disse a visita.
- É o que eu digo, caralho: estou um velho - insistiu o velho.
- Por acaso não acho nada, quem me dera a mim - insistiu a visita.

Para acabar com a conversa de merda, o velho resolveu morrer. E morreu.

- Olha, o filho da puta do velho tinha razão - disse a visita, e comeu-lhe a maçã assada.

Fafe e a Primeira Guerra Mundial


Artur Magalhães Leite apresenta na próxima sexta-feira, dia 17 de Abril, a seu novo livro, "Fafe e a Primeira Guerra Mundial". A partir das 21h30, na Biblioteca Municipal de Fafe.

Aqui há gato 12

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 12 de abril de 2015

Raul Pompeia 2

Nas ocasiões de aparato é que se podia tomar o pulso ao homem. Não só as condecorações gritavam-lhe do peito como uma couraça de grilos: Ateneu! Ateneu! Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um rei - o autocrata excelso dos silabários; a pausa hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público; o olhar fulgurante, sob a crispação áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as almas circunstantes - era a educação da inteligência; o queixo, severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das consciências limpas - era a educação moral. A própria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem... não veem os côvados de Golias?! Retorça-se sobre tudo isto um par de bigodes, volutas maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios, fecho de prata sobre o silêncio de ouro, que tão belamente impunha como o retraimento fecundo do seu espírito, - teremos esboçado, moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. Em suma, um personagem que, ao primeiro exame, produzia-nos a impressão de um enfermo, desta enfermidade atroz e estranha: a obsessão da própria estátua.

"O Ateneu", Raul Pompeia

(Raul Pompeia nasceu no dia 12 de Abril de 1863. Morreu em 1895.)

sábado, 11 de abril de 2015

Inaugurem-no, porra!

                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger
                                                                                        Foto Hernâni Von Doellinger
                                                                                          Foto Hernâni Von Doellinger
                                                                                        Foto Hernâni Von Doellinger
                                                                                         Foto Hernâni Von Doellinger
                                                                                        Foto Hernâni Von Doellinger

O novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões. A inauguração do novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões esteve prevista para o ano de 2013. A inauguração do novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões foi-me prometida (a mim, pessoalmente e por escrito - porque eu perguntei, também por escrito) para meados do primeiro semestre de 2014. A inauguração do novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões foi agendada para o primeiro trimestre de 2015. A inauguração do novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões passaria a ser possível a partir de Março, anunciou em Janeiro o presidente da APDL, Brogueira Dias. A inauguração do novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões ia mesmo ser em Março, garantiu, sem deixar cair, a Câmara de Matosinhos, numa evidente jogada de pressão alta.
Mas Março passou e ela não voltou. Estamos portanto em Abril, o novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões está pronto e funciona, certamente à revelia e atrapalhado por um inexorável porém: as eleições são só em Setembro ou Outubro.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

A ignorância é óptima para a pele

Fui tratar da renovação do cartão do cidadão e, é preciso ter azar, despacharam-me em menos de um quarto de hora. Eu contava passar a tarde inteira refastelado nas instalações de Alferes Malheiro, embora tivesse marcado para as catorze um encontro com o Lopes e com as bifanas da Conga, mas ainda não era meio-dia e já me despejava no meio da rua sem saber o que fazer com os seguintes cento e vinte e tal minutos da minha vida. É isto, desabituei-me de ir à Baixa...
Ameaçava ameaçar chover. Vi uma daquelas livrarias de campanha montada mesmo à frente do meu nariz e entrei. Lá dentro, o refugo do costume ao habitual preço da uva mijona, nada de razoavelmente interessante, mas às vezes nunca se sabe...
Uma simpática funcionária, diria entre os trinta e os quarenta e, abeirou-se-me e perguntou, de sorriso engatilhado:
 
- Posso ajudá-lo?
- Ando só a ver, muito obrigado. Mas, já agora, diga-me, por favor: tem alguma coisa do Montalbán?
- De quem?
- Do Vázquez Montalbán, histórias do Pepe Carvalho...
- Quem?
- Pepe Carvalho.
- Saiu este ano?
- Não. No geral, são livros já com uns anitos...
- E o género?
- Policial, talvez. Mas dizer policial é dizer muito pouco. Policial literário e gastronómico, se for possível, e de repente não sei dizer melhor...
- Pepe Carvalho? Esse autor acho que não temos.
- Desculpe. O autor é Manuel Vázquez Montalbán. O herói dos livros é que se chama Pepe Carvalho, detective privado, uma espécie de Sherlock Holmes espanhol, mas versão séculos XX-XXI.
- Então é conhecido em Espanha...
- Acredito que sim, e em Portugal também. E no resto do mundo, se calhar. Não é que seja abonatório por aí além, mas até já fizeram filmes de um ou dois livros do Montalbán, quer ver?

Resolvi ser eu a ajudar a solícita porém desinformada funcionária. Ando exactamente a reler a Série Pepe Carvalho que as Edições ASA em boa hora começaram e em má hora interromperam, após a eucaliptal intervenção da Leya. Fui à mochila e saquei o "Assassinato no Comité Central", que por acaso acabei ainda na espera desse princípio de tarde. Expliquei à senhora:

- Vê?
- Ah! Montalbán é que é o autor. Eu estava a perceber que Pepe Carvalho é que...
- Esta era uma belíssima colecção da ASA que infelizmente...
- Ah! Livros da ASA não tenho.
- Mas Montalbán já foi publicado em português por outras editoras, pelo menos pela falecida Regra do Jogo e pela Caminho, se não me engano, há até uns livrinhos de bolso, tenho um, "As Termas"...
- "Assassinato no Comité Central", esse aí... 
- Olhe, foi um dos que deram filme. Neste, quem faz de Pepe Carvalho no cinema é, veja lá, o Patxi Andión...
- Quem?
- O Patxi Andión, o famoso cantor espanhol, o cantautor, o poeta, o escritor...
- Não estou a ver...
- Então, o Patxi Andión, ainda outro dia esteve aqui na Casa da Música...
- Não, não conheço. E até gosto de música espanhola, mas não da música pimba...
- Minha senhora, o Patxi Andión...

Ia gastar mais um pouco do meu atamancado latim para explicar à gentil funcionária quem é Patxi Andión, mas desisti. Preferi ser agradável e mentir com quantos dentes tenho, e são todos menos os sisos inferiores. Disse:

- ... Pois, evidentemente a menina é nova demais para conhecer o Patxi, o Pepe e o Montalbán. A menina é de uma geração tipo mais... tipo.
- Ai não se deixe enganar pela aparência. Estou é muito bem conservada... - devolveu-me a amável funcionária, enfim sorrindo, e corando de satisfação e vaidade.

Cientificamente provado: a ignorância faz bem à pele. Por outro lado, as bifanas estavam di-vi-nais. E o Lopes, que parece que é bruxo, trouxe-me "O Seminarista", de Rubem Fonseca. "O Seminarista"! Só tenho quem me goze...

*ó! ! $á!?)v(í 5c+ _//*0"áblna" ö %(f, of course

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Só para ter a certeza

- É pá, estás todo empenado. O que é que foi isso?
- Um torcicolo...
- Onde?

Manuel Lueiro Rey

Remeiro son
 

Quixera racha-la auga como un vidro,
fuxindo de todo o que apodrece
no fondo da cobiza.

Quixera racha-los peitos
dos monstros que aínda petan
nas portas das casas onde aniñan
as facianas dos nenos
famentos da verdade do soño e das surrisas.

Quixera racha-las ameazas
dos que medren co cheiro da calunia
e ao lombo levan cen máscaras de espellos.

Quixera ollar seráns escurecidos
sen sombras incertas, sen feridas,
co recendo sinxelo de homes ceibes
que aínda non morreron.

Canle do meu río,
suor do rosto humán do pensamento:
Son remeiro que ergo o remo na memoria
co meu cabelo solto,
i o corazón carregado de relembros.

Inútil é a lenda
do heroe que se esquence.

Inútil a embestida
da espranza dando voltas
no ardís da bulra da imaxe que non chega.

Os deuses non teñen calivera.
Están xordos e cegos.

¡Ou, Hamlet!
Deus Padre sen memoria,
sen raigañas,
morto no tempo.

"Nova Escolma Ferida", Manuel Lueiro Rey

(Manuel Lueiro Rey nasceu no dia 9 de Abril de 1916. Morreu em 1990.)  

Lugares-comuns 214

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 7 de abril de 2015

Felizmente dispensa apresentações

O anúncio da rádio Smooth FM atira à queima-roupa: "Um dos maiores guitarristas contemporâneos, dispensa apresentações. Al Di Meola ao vivo. [blá... blá... blá...] Al Di Meola, uma extraordinária fusão de sons latinos e jazz. Al Di Meola. Ao vivo."
"Dispensa apresentações". Al Di Meola! Exactamente o grande Al Di Meola. Tomem nota: o extraordinário Al Di Meola,"um dos maiores guitarristas contemporâneos", alquimista do riff, sumo-sacerdote da "fusão de sons latinos e jazz". Ainda bem que Al Di Meola não precisa de apresentações...

O anúncio é como o outro, o que diz "Não há palavras" e depois passa meia hora a perorar sobre o assunto. E ai de quem lhe tente tirar o microfone das unhas!...

(Moral da história: quando não se quer falar, o ideal é estar calado.)

Lugares-comuns 213

Foto Hernâni Von Doellinger

Basílio da Gama 2

Ao Marquês de Pombal

Não temas, não, marquês, que o povo injusto,
De teus grandes serviços esquecido,
Pelos gritos da inveja enfurecido,
Solicite abolir teu nobre busto.


Para ser imortal, teu nome augusto
Não depende do bronze derretido;
Em mais firmes padrões fica insculpido
Teu nome excelso, teu valor robusto.


Lisboa restaurada, o Reino ornado
De ciência, de indústria e de cultura,
De política e comércio apropriado;


A tropa regulada, a fé segura,
O Tesouro provido, o mar guardado:
Eis aqui do teu gênio a cópia pura.


Basílio da Gama 

(Basílio da Gama nasceu no dia 8 de Abril de 1741. Morreu em 1795.) 

A ver navios 44

Foto Hernâni Von Doellinger

O Público às vezes...

Título na edição online do jornal Público, notícia das 12h58: "Gertrude Weaver morreu e perdeu o título da pessoa mais velha do mundo". Pois perdeu...

Gregório de Matos 2

Epílogos

Que falta nesta cidade?… Verdade.
Que mais por sua desonra?… Honra.
Falta mais que se lhe ponha?… Vergonha.


O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.


Quem a pôs neste rocrócio?… Negócio.
Quem causa tal perdição?… Ambição.
E no meio desta loucura?… Usura.


Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.


Quais são seus doces objetos?… Pretos.
Tem outros bens mais maciços?… Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?… Mulatos.


Dou ao demo os insensatos,
Dou ao demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.


Quem faz os círios mesquinhos?… Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?… Guardas.
Quem as tem nos aposentos?… Sargentos.


Os círios lá vêm aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.


E que justiça a resguarda?… Bastarda.
É grátis distribuída?… Vendida.
Que tem, que a todos assusta?… Injusta.


Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.


Que vai pela clerezia?… Simonia.
E pelos membros da Igreja?… Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?… Unha.


Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.


E nos frades há manqueiras?… Freiras.
Em que ocupam os serões?… Sermões.
Não se ocupam em disputas?… Putas.


Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.


O açúcar já acabou?… Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?… Subiu.
Logo já convalesceu?… Morreu.


À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.


A Câmara não acode?… Não pode.
Pois não tem todo o poder?… Não quer.
É que o Governo a convence?… Não vence.


Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.


Gregório de Matos

(Gregório de Matos nasceu no dia 7 de Abril de 1636. Morreu em 1696.)

Lugares-(in)comuns 103

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Almada Negreiros 3

Canção da saudade

Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gémea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva na minha idade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longíssimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim do dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemitérios - as lajes são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.

"Frisos - Revista Orpheu n.º 1", Almada Negreiros

(Almada Negreiros nasceu no dia 7 de Abril de 1893. Morreu em 1970.)

Caminho 10

Foto Hernâni Von Doellinger

Uma Páscoa em cheio

Foi uma Páscoa em cheio. "Quo Vadis", "As Sandálias do Pescador", "A Bíblia", "Barrabás", papei-os a todos, como de costume. Desta vez não me apercebi do "Ben-Hur", dos "Dez Mandamentos" e da "Túnica", não me importava nada de ter levado também com "Sete Noivas para Sete Irmãos", mas não me posso queixar.
Ainda por cima, morreram o poeta Herberto Helder, o cineasta Manoel de Oliveira e o economista Silva Lopes. Foi uma barrigada, uma festa. E, antecipando a discussão que há-de vir, digo já: Panteão com eles!

domingo, 5 de abril de 2015

O azar da gaivota é não ter nascido lince

                                                                                        Foto Hernâni Von Doellinger

"As câmaras do Porto, Matosinhos e Gaia colocaram em curso medidas para travar a proliferação de gaivotas naquelas cidades, com destaque para a proibição de alimentar as aves, colocação de pinos em edifícios e falcões no rio Douro", conta-me a agência Lusa neste domingo de Páscoa, copiada urbi et orbi pelos jornais de redacções vazias.
Duas das medidas a aplicar pelo Porto - que, entre Gaia e Matosinhos, é sempre o paradigma - são "a georreferenciação de pedidos de intervenção relacionados com gaivotas para estabelecer um plano de controlo do sucesso das medidas preventivas e a realização de acções de sensibilização quando se identificam situações irregulares de alimentação dos animais com entrega de brochuras". Não percebo o que este palavreado quer dizer, mas gosto muito da "georreferenciação", gosto sobretudo de "brochuras" e... cheira-me a Eichmann.
A Protectora terá decerto uma salomónica palavra a dizer sobre o assunto. Talvez: devemos amar e respeitar os animais; se forem muitos (e mesmo animais) é que não. Que se lixem os garranos de Paredes de Coura, salvemos os gatos lambe-cricas e os cães zicos, choremos os simbas. Orwell já tinha avisado: todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros.
Como os meus caros três leitores sabem, eu tenho duas gaivotas. Era uma mas agora são duas, tal qual os amores do Marco Paulo eram dois.
Um destes dias a minha mulher põe-me fora de casa por causa das gaivotas, que me cagam generosamente a varanda e enxovalham a roupa a secar. Porque a verdade é esta: apesar de cagonas, eu quero-as; mas a minha mulher enxota-as. Serão ciúmes? É preciso que se note que as minhas são as duas mais belas gaivotas de Matosinhos - vejam só o retrato lá em cima. Eu, por mim, ficava com elas...
Há muita gente a falar de gaivotas sem perceber do assunto. Eu já aqui revelei o tanto que sei, e (desculpem-me a imodéstia da repetição) então é assim:

Gaivotas é comigo. Tenho até uma que faz questão de me vir cagar à varanda. Estou agora a escrever e estou a ouvi-las, a vê-las à minha frente, do lado de lá da janela. Eu e as gaivotas somos inseparáveis. Cúmplices. Somos um para as outras. Fui o primeiro a alertar para os perigos que corre o extraordinário gaivotal da Riguinha e Carcavelos, orgulho e emblema da Praia de Matosinhos. As gaivotas interessam-me. Cagam-me em cima, é certo, mas muito menos do que o Portas e o Passos Coelho, e eu não os conheço de lado nenhum e não me interessam para nada. Gaivotalmente falando, levo já mais de 25 anos de trabalho no terreno, eu e elas, contra a vontade da minha mulher, por causa da limpeza da varanda. Estou portanto em condições de afirmar, sem temer desmentidos, que sei de gaivotas como se fosse gaivoto. Houvesse um presidente da república das gaivotas e seria eu.
Ora bem. Outro especialista, mas este da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, disse hoje às notícias que as gaivotas andam a mudar-se do mar para a cidade. Pois andam. O caro colega afiança também que o "fenómeno" começou exactamente há dez anos, mas que, atenção, está a aumentar com "o calor elevado que se faz sentir neste momento".
Não sei se o "fenómeno" começou mesmo há dez anos - não os contei, não sei sequer se o "fenómeno" é fenómeno realmente, mas afirmar que a vaga de calor dos últimos dias puxou as gaivotas ainda mais para terra é ciência de atirar à sorte a ver se acerta. E não acertou. Ou então as gaivotas de Matosinhos são umas desalinhadas, só para chatear.
Explico. Hoje há um nevoeirinho manso ali na praia, uma brisazinha de norte passa aqui pela rua como quem não quer a coisa, e elas aí andam, as minhas gaivotas, nos telhados, na varanda, conversadeiras e cagonas, aproveitando a fresca como eu. Mas nos dias de brasa da última semana, não. Pelo contrário. A canícula devolveu-as ao mar e estragou a teoria de sofá do ilustre ecologista. Quem as quisesse ver, era na água, bandos imensos, uns cem metros para dentro da linha de rebentação. Porque não são parvas. É. Já escrevi e repito: as gaivotas têm merda na barriga, não na cabeça.

sábado, 4 de abril de 2015

Carlos Queirós 2

Antissoneto

O nosso drama de portugueses,
O nosso maior drama entre os maiores
Dos dramas portugueses,
É este apego hereditário à Forma:
Ao modo de dizer, aos pontinhos nos ii,
Às vírgulas certas, às quadras perfeitas,
À estilística, à estética, à bombástica,
À chave de ouro do soneto vazio
- Que põe molezas de escravatura
Por dentro do que pensamos
Do que sentimos
Do que escrevemos
Do que fazemos
Do que mentimos.


Carlos Queirós

(Carlos Queirós nasceu no dia 5 de Abril de 1907. Morreu em 1949.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 3

                                                                                     Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Eu, que só quero ajudar

Era um rapaz dos seus 16-17 anos, se calhar 15 ou 18, ou 13, nunca fui bom nisto. Encarei o meu melhor sorriso e chamei o rapaz à atenção:
- O caro jovem fará o favor de me desculpar, não deve ter reparado, mas acontece que tem as calças a caírem-lhe, com licença, pelo cu abaixo. Vêem-se-lhe as cuecas inteiras, são de marca e ficam-llhe muito bem, é verdade. Às tantas, porém, se não lhes deita a mão, as calças arriam-se-lhe até aos artelhos, o caro jovem enrodilha-se nelas e ainda dá um tombo dos antigos, com consequências que lamentavelmente poderão redundar em consideráveis danos físicos e materiais.
O rapaz, talvez 19 anos, ou 12, não sei, olhou-me da cabeça aos pés com assinalável fastio, viu-me o cabelo branco e desorganizado, a barba grisalha de mês e meio, a mochila desengonçada às costas de uma T-shirt que há muito, muito tempo foi azul, as calças de fato-treino de cor incerta e largas como as dos palhaços, as sapatilhas brancas, a esquerda furada na biqueira, eram do meu filho, tentou adivinhar-me a idade e deve ter acertado em cheio, lançou o cigarro ao chão, o escarro seguiu o mesmo caminho, e respondeu-me um cagasésimo de segundo antes de me virar costas:
- Vai-te foder, ó velho do caralho...
Francamente, o que é que o rapaz pretenderia dizer com aquilo? Eu, que só quero ajudar...

(Moral da história: chama-se a atenção quando se pretende despertar interesse ou curiosidade, quando se quer dar nas vistas; chama-se à atenção quando se deseja fazer uma crítica ou algum reparo. É. Os acentos fazem uma certa e determinada diferença.)

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Mobiliário urbano (propriamente dito) 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís de Sttau Monteiro 2

Procuro com a mão o despertador que está a tocar há mais de meio minuto. Encontro-o entre um livro e o copo de água que me colocam todas as noites sobre a mesinha-de-cabeceira. Carrego num botão e o silêncio volta a entrar no meu quarto. Sei que já não posso readormecer. O meu despertador toca invariavelmente às oito da manhã, todos os dias, faça sol ou faça chuva.
É uma das invariáveis da minha vida, tão invariável como o amor da Fernanda, como os jantares de família nos dias santos, como o som do piano da vizinha aos domingos.
Não há nada a fazer. Atiro com a roupa ao chão e procuro, com o pé, o chinelo que deve estar algures ao lado da cama.
Lá fora a cidade começa a ser atacada pela luz, uma luz que não perdoa nada, nem a racha duma parede, nem uma rua mal varrida, nem as rugas nas caras das mulheres. As próprias sombras são atacadas mal saem das coisas e desfazem-se antes de chegar ao chão. Dentro duma hora as últimas sombras da cidade já estarão refugiadas debaixo das árvores da Avenida e atrás dos muros mais espessos dos bairros populares.
Começo o dia na casa de banho, em frente do espelho, fazendo a barba com uma "gillette" nova que me deu a inevitável Fernanda. 
Entorto a cara para a direita e para a esquerda em frente do espelho e observo, mais uma vez, que sou feio. Não há qualquer razão para que a Fernanda continue a gostar de mim. Por mais que tente, não consigo compreendê-la.

"Um Homem Não Chora", Luís de Sttau Monteiro

(Luís de Sttau Monteiro nasceu no dia 3 de Abril de 1926. Morreu em 1993.)

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Diz que o Metro do Porto está entregue aos bichos

Foto Hernâni Von Doellinger

Contam-me que a Linha Azul (A) do Metro do Porto (Estádio do Dragão-Senhor de Matosinhos) é cada vez mais o Expresso do Drogódromo do Viso. Porto, 1 - Lisboa, 0. Nem o Casal Ventoso, nos seus tempos de glória, esteve assim tão bem servido de transportes públicos.
A fauna toxicodependente tem de tudo, como as farmácias e as lojas dos chineses. Há os mansos, que vão no seu canto e querem é que os deixem em paz, e ninguém tem nada com isso, mas também há uma perigosa corja de rufias, provocadores e ameaçadores em plena luz do dia e em horas de ponta e mola. Dizem-me que a minoria não toxicodependente dos passageiros da Linha Azul (A) anda cheia de medo desta gente.
E os seguranças também. Consta que ninguém os vê na Linha Azul (A) do Metro do Porto desde o princípio do ano. Será um exagero, mas quer-se dizer: os drogados tomaram conta, e a segurança desertou.
Atenção, esta parte eu não critico. Eu se fosse segurança também me fazia de ceguinho, ou pelo menos olhava para o outro lado, ou saía quando eles entrassem, porque sou cobarde e não tenho músculos que se vejam nem corte de cabelo nazi, e por isso é que não sou segurança. Eu se fosse segurança, palavra de honra, nem sequer me metia com os gandulos que agora viajam na esplanada das traseiras do metro sem que uma farda qualquer os arranque dali para fora pelas orelhas e, já agora, com um par de estalos. E antes que se aleijem.