Todas as manhãs, depois de espreitar a primeira página de O Jogo, Quitério arranca para o Parque da Cidade, bloco de notas, lápis e maçã em punho. A maçã é muito importante, porque às vezes dá-lhe fome.
Quitério olha e vê com olho clínico, regista, compara, assinala as diferenças e as similitudes, escreve 60 vezes a palavra similitudes porque gosta muito dela, desenha gráficos e tabelas, depois deita tudo fora e remata com a inconfidência da notazinha pessoal. E sempre em horário completo. Por isso, ele é hoje em dia e sem favor a voz mais autorizada para dissertar sobre a problemática do coelho nacional, ao qual (fruto de uma lamentável confusão fonético-etimológia) atribuiu o nome científico de Cunnilingus Lusitannus, exactamente para o diferenciar do chamado coelho comum, que os especialistas denominam de Laparus Normallissimus. Os especialistas são só ele.
É preciso que se note: “Com os coelhos, como em tudo na vida, há dias e dias”. A frase não é minha, saiu da sábia pena de Quitério, que às vezes fecha a loja sem ter visto um coelho que seja, ou uma coelha, vá lá, para na vez seguinte ter que se desunhar com os verbetes de mais de 20 avistamentos no breve espaço de um quarto de hora.
"A ciência tudo explica”, costuma dizer Quitério, batendo com o lápis no bloco de apontamentos. “Está aqui tudo”...
Segundo Quitério, aos sábados de manhã ninguém põe a vista em cima do CL – passemos a chamar-lhe CL, afrontando embora o rigor da ciência, mas precatando compreensíveis susceptibilidades. O especialista defende que “esta é a prova provada de que o coelho nacional costuma passar a noite de sexta-feira nos copos e/ou no sexo”. E sexo, com os coelhos, já se sabe como é...
Outro resultado do estudo, ainda segundo Quitério: “O coelho nacional almoça em casa. Entre o meio-dia e a hora e meia da tarde, não há nem um para amostra em campo aberto. O Lusitannus, como também é tratado entre amigos, está à mesa com a família, não tem graveto para mais. Ou então foi para a praia, que é de borla e ali ao pé”.
Mas atenção: com mau tempo, chuva principalmente, o coelhame vem todo cá para fora. “Conclusão a tirar: as casas metem água”. Um reparo que Quitério já antecipou em relatório prévio enviado há coisa de três semanas ao presidente da Câmara.
Quitério tem tudo registado. Ele conhece-lhe os hábitos, as suas idiossincrasias (e escreve idiossincrasias mais 59 vezes), ele até já traçou o perfil psicológico do CL, bicho assustadiço e campeão de atletismo. E, no entanto, não há dia em que o nosso cientista não se apanhe surpreendido por um novo ângulo, pelo nunca visto.
Ainda anteontem, por exemplo: estava Quitério analisando, de perto, o comportamento de um belo exemplar, preto e branco, malhadinho, quando...
(o melhor é ser o próprio Quitério a contar)
... "a minha atenção se desfocou por uns milésimos de segundo na pista de um par de mamas que passava por mim todo saltitão. Foi coisa de milésimos de segundos, palavra de honra! Quando torno à procura do láparo, já ele lá não está. Bateu asas e voou”...
(Ora bem: impõe-se aqui um novo entre parênteses, desde logo para pedir desculpa ao leitor acidental por esta contumaz fraqueza de Quitério pelos feminis seios, a que o autor do texto é obviamente alheio, mas também para dar nota da camada de cepticismo com que esta inesperada revelação foi acolhida na mesa de café onde ele costuma calistar. Foi um torcer de nariz geral e o mete-nojo do Silveira ainda torceu um tornozelo, só para dar nas vistas.)
E Quitério, ofendidíssimo: “Mas estão a pôr em dúvida a seriedade do meu trabalho? Também me querem mandar para as Misericórdias? Eu lido com as hipóteses, eu verifico as evidências. Então como é que explicam o desaparecimento do coelho? O coelho evaporou-se, não? Ridículo! Toda a gente sabe que os coelhos não se evaporam. Bateu asas e voou, foi o que foi”.