terça-feira, 31 de março de 2020

Pode o peido ser mentira?

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando o flato era uma acto cultural
Parece que não, mas hoje é Dia dos Enganos. Dia das Mentiras. Com isto da política, das redes sociais, dos jornais à rasca e das televisões sensacionalistas, que são todas, todos os dias são dia das mentiras, que agora se dizem em estrangeiro fake news, e quase passa despercebida a velhinha efeméride residente do primeiro de Abril. E olhem:
O Dia dos Enganos era celebrado em Fafe com pompa e circunstância. Era uma tradição, um acto manifestamente cultural. Na minha terra, naquele tempo, festas assim familiares como por exemplo o Entrudo tinham as suas normas, liturgia própria. Pelo Entrudo, se me dão licença, eram os peidos-engarrafados no Cinema. Uma lixeira de confetes e serpentinas, mas sobretudo peidos-engarrafados, um fedor que eu sei lá mas uma grande risota, ou se calhar um grande risoto, como hoje em dia será mais fino dizer. Durante o resto do ano, no Cinema, só peidos biológicos, caseiros, que, não desfazendo, também eram uma categoria. Eram peidos subversivos, contra o governo, que nos alimentava a couves e tínhamos de as comprar, porque nem os ricos as davam - vendiam-nas como se precisassem ou preferiam deitá-las aos porcos, que infelizmente não éramos nós, os pobres, no caso em apreço. Mas o Dia dos Enganos, que foi ao que vim, e ia-me perdendo: no Dia dos Enganos saíamos para a rua, ali no Santo Velho, estrategicamente colocados entre os tascos do Paredes e do Zé Manco, e dizíamos a quem passava: - Ó senhor, olhe o que lhe caiu!...
- Foi um peido que me fugiu... - levávamos logo de resposta, que também fazia parte, e ficávamos todos contentes.
É, bons tempos: pobretes mas alegretes. Os peidos eram o nosso escape natural, o epítome do divertimento que se podia...


O peido é uma insofismável verdade da vida, tal como a morte e dois mais dois serem quatro, e quem disser o contrário é néscio. Ou mentiroso. Ou néscio e mentiroso. Ou mentiroso e néscio. E infeliz.
Infelizes, sim, os que nunca ouviram o Moisés a peidar-se pelo soleno da noite, ali para os lados da Feira das Galinhas, hoje parece-me que parque de estacionamento e Praceta Egas Moniz. Aquilo é que era um artista, um verdadeiro predestinado. O Moisés. Os peidos do Moisés, impõe-se que aqui se diga, eram poderosos como pragas, abriam mares, incendiavam sarças, escreviam lei na pedra, abanavam os alicerces da Igreja Nova, mesmo em frente, Deus nos perdoe. Os peidos do Moisés seriam hoje considerados e explorados e exportados como energia alternativa. Mas também eram mansos, melodiosos, trinados, sin-co-pa-dos, contidos, meditabundos, quase confidenciais. O Moisés solfista trabalhava, com efeito, em vários registos, um dos quais, de execução particularmente exigente, mezzo piano, chamava-se "rasgar chita" e costumava encerrar o concerto, com mais dois ou três encores. (O Moisés aceitava pedidos.) Os peidos do Moisés eram um tremendo êxito, embora infelizmente nunca tenha gravado e apenas actuasse para plateias restritas e altamente seleccionadas. Cumpre-me finalmente fazer notar que o sintetizador, tal como actualmente o conhecemos, ainda não tinha sido inventado...

Sinceramente 
"Mente-me, que eu gosto", disse ela. "Por isso é que te amo tanto", disse ele.

Arreganha a tacha!
Era um mentiroso compulsivo. E mentia com quantos dentes tinha. Exactamente trinta e dois simetricamente divididos por duas falsas gengivas enfiadas de tacha arreganhada num copo de água choca em cima da mesinha-de-cabeceira.

Tectos falsos genuínos
- Estes tectos são mesmo falsos?
- Como judas...

Eu seja ceguinho!, disse o cego
Na política não há mentirosos. Há inverdadeiros. Porque os políticos não dizem mentiras - declaram inverdades. Porque os políticos não mentem - faltam à verdade. Mas justificam a falta. Porque, na política, a verdade é alternativa tal qual a corrente pode ser alternada. Porque na política moderna há narrativas e há desenhos, quer-se dizer: há ficção, fingimento, dissimulação, invenção, sugestão, engodo, engano. Mentira, não.

Cyclin' in the rain

Foto Hernâni Von Doellinger

A Guerra de 68-48

No dia de hoje, em 1572, no âmbito da Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), que se verificou não sem alguns sobressaltos entre os futuros holandeses e Espanha, os Watergeuzen (Mendigos do Mar) capturaram Brielle aos espanhóis, e ali estabeleceram a primeira base de apoio em terra para o que viria a ser a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos. A Guerra dos Oitenta Anos ostenta este curioso e inusitado nome, Guerra dos Oitenta Anos, para não ser confundida com a Guerra dos Dez Anos, entre cubanos e espanhóis evidentemente, com a Guerra dos Treze Anos, entre prussianos e teutónicos, com a Guerra dos Trinta Anos, entre a Alemanha e quem lhe aparecesse à frente, com a Guerra dos Sete Anos, entre França mais aliados e Inglaterra mais aliados (incluindo Portugal), com a Guerra dos Cem Anos, outra vez entre ingleses e franceses, com a Guerra dos Seis Dias, entre árabes e israelitas, e até com a Guerra das Audiências, entre a SIC e a TVI. A História, assim maiusculada, não se compadece realmente com confusões.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 163

Foto Hernâni Von Doellinger

Constâncio Cloro e Constâncio Flúor

Caio Flávio Valério Constâncio ou Constâncio I, mais conhecido como Constâncio Cloro, derivado à sua proverbial palidez, nasceu no dia 31 de Março de 250 e foi imperador romano do Ocidente entre 305 e 306. Não confundir com Constâncio Flúor, referido também como Vítor Constâncio, que foi praticamente líder do PS, ministro das Finanças e governador do Banco de Portugal sem memória, abastecendo-se actualmente como vice-presidente do Banco Central Europeu.

Bons tempos...

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 30 de março de 2020

Onde é que eu vou?

A minha mulher vestiu o meu roupão, vi-a sair mansamente do quarto, e pensei: - Porra!, onde é que eu vou, assim pequenino, que estava tão bem aqui na cama?...

Também faço isto muito bem 355

Foto Hernâni Von Doellinger

Fermín Bouza Brey 6

Tópico no porto

- "Ai amor; ai amor; ai amor!..."
Na amura, o rapaz de abordo
soletrêa no escordeão.

O mar devala, devala...
Panos de limão do sol
mandam-lhe adeuses à praia.

- "Ai amor; ai amor; ai amor!..."
Um marinheiro assanhado
mata ao longe ua canção.

Cara à Estrela da Fartura
arregala os olhos teixos
o remador da falua.

Bate à noite o coração
lembranças, saudades, bágoas...
- "Ai amor; ai amor; ai amor!..."


"Seitura", Fermín Bouza Brey

(Fermín Bouza Brey nasceu no dia 31 de Março de 1901. Morreu em 1973.)

Caminho 791

Foto Hernâni Von Doellinger

Pura Vázquez 6

Nas bagas do pasado 

Eran outras as árbores cando outono chegaba
cos ventos, follas lábiles, cotidiáns salmodías. 
 
A nosa adolescencia fervía perfilándose
dentro de nós cos grises, pequenas rebeldías. 
 
Entre os áulicos mármores do adral líamos nomes.
Exhumábamos ledas lendas e paganías. 
 
Inventábamos xades coas pedriñas brillantes
entre os tallados vidros nas areas das rías. 
 
Que confusión extraña coas liturxias naceron
de mitos, contramitos, sagas, mitoloxías. 
 
Na contraluz das sestas. Na espesura das horas
navegaban os soños por idoiras bahías.

"Desmemoriado Río", Pura Vázquez

(Pura Vázquez nasceu no dia 31 de Março de 1918. Morreu em 2006.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 162

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 29 de março de 2020

Falava mais rápido do que a própria sombra

O Tatu está de volta. Perguntar-me-ão: mas qual Tatu?, e eu poderia dar uma certa e determinada resposta, rimada e bem conhecida aí por uns tantos, porém, pessoa educada que sou, digo simplesmente: o Tatu da "Ilha da Fantasia", que a RTP Memória em boa hora, dezanove em ponto, resolveu pôr a arejar. O Tatu (Tattoo) era o francês Hervé Villechaize, um excelente anão mas fracativo actor. Ainda assim, gosto mais de o ver trabalhar do que, por exemplo, ao ultrafamoso Tyrion Lannister (Peter Dinklage) da "Guerra dos Tronos", essa tão aclamada série de culto que a mim não me assiste. Exactamente. Se andavam à procura do gajo que, a nível mundial, nunca viu um episódio da "Guerra dos Tronos", spoilers tampouco, podem mandar suspender as buscas - c'est moi.
Anões e o mundo do espectáculo - assunto menor? Não creio. Falo primeiro por mim, que, perguntado ainda na escola primária acerca das minhas perspectivas de futuro, respondi que quando fosse grande queria ser anão para ir para o circo. E antes de mim já havia o Peter Pan e depois de mim saiu da cartola aquela improvável linha média - Adelino Teixeira, Alves, Vítor Martins e Octávio - com que mestre José Maria Pedroto calou Wembley-o-Velho e empatou a arrogante Inglaterra, no nosso mítico ano de 1974. Parece que ainda os estou a ouver, em Dolby 4-4-2, subindo em passinhos curtos a estrada dos tijolos amarelos: The house began to pitch. The kitchen took a slitch. It landed on the Wicked Witch in the middle of a ditch, Which was not a healthy situation for the Wicked Witch.
Dos pequenos, sim, reza a História. Coloquemos pois os anões em cima da mesa, porque merecem. Se me pedissem uma shortlist dos mais famosos, sendo que a fama se mede em televisão e cinema, eu escolheria:
Talvez a Thumbelina (Debbie Lee Carrington), de "Desafio Total". Talvez o Mini Me (Verne Troyer), de "Austin Powers: O Espião Irresistível". Talvez o múltiplo Oompas Loompas (Deep Roy)", em "A Fantástica Fábrica de Chocolate". Talvez o duende Marcus (Tony Cox), em "Um Pai Natal para Esquecer". Talvez o professor Filius Flitwick (Warwick Davis), na saga "Harry Potter". Talvez o Mickey Abbott (Danny Woodburn), na série "Seinfeld". Talvez o "Arnold" Gary Coleman. Talvez o R2-D2 (Kenny Baker), da "Guerra das Estrelas". Talvez o Wee-Man (Jason Acuña), do "Jackass" da MTV. Talvez o munchkin Karl Slover, do "Feiticeiro de Oz". Talvez James Cagney, Mickey Rooney, Edward G. Robinson ou o apalpador Dustin Hoffman. Evidentemente poderia juntar à lista o Danny DeVito e o Tom Cruise, mas estes, peço desculpa, dizem-me muito pouco. Talvez...
Ou talvez o fogoso Nelson Ned, que era de outras artes e me dava cabo da cabeça aos domingos à tarde, nos castigadores altifalantes dos Comandos, da Amadora a Santa Margarida. Ou talvez o anão do Multibanco. Ou talvez, porque não?, o Sr. José Nogueira, de Fafe, que, em meados do século passado, esteve quase a ir para Lisboa e ser famoso. Ou ainda talvez, puxando ao sentimento, as minhas duas queridas avós, a Bó de Basto e a Bó da Bomba, pequerrichas também, ou o senhor Flórido Engraxador ou o César da Recta ou o senhor Clemente que fazia pipas e escadas para as vindimas e decilitrava aguardente como um alambique. Talvez...
Mas que fique registado que o meu anão favorito é uma anã. Chama-se Cadence Roth, Cady para os amigos, e chegou a ser a mulher mais pequena do mundo, se tivesse de facto existido. Conheci-a num livro, "Talvez a Lua", de Armistead Maupin. Procurem o livro. Descubram a Cady.

(P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Dezembro de 2017, então sob o título "De volta ao Tatu". James Cagney, o durão bailarino de Hollywood que falava mais rápido do que a própria sombra, morreu no dia 30 de Março de 1986.)

Formação ordenada

Foto Hernâni Von Doellinger

Lucila Nogueira 4

Mas não demores tanto

O corpo - dizem - já não será mais o mesmo
em seu reflexo exterior,
mas alguma coisa se diga das cavernas fosforescentes
que navegam a fome do demônio
na hora do seu resplendor.


Olha o meu corpo antigo na curva do chafariz
ou no leme do navio.
Eu sou um pássaro noturno perturbado.
Eu te ofereço os meus seios muito brancos
numa escada secreta do mar Cáspio.


Alguém falou de um modo descuidado
e as gárgulas de Notre Dame
contornaram os mamilos
como breves e clandestinos fogo-fátuos.


O corpo - dizem - já não será o mesmo,
desesperadamente eu te desejo
enquanto navego rochas subterrâneas
à beira da consciência humana
e o racha da atmosfera interfere na faixa luminosa
bem no centro da tela da televisão que se quebrou.


Porque naquele tempo
o amor era como um príncipe bêbado e forçosamente hindu
ele era como a voz rouca de Dioniso
fazendo soar as teclas do piano austríaco
abandonado na passarela vermelha
de um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus.


Saí pelo ancoradouro embriagada
arrastando candelabros escarlates
no rio de letreiros luminosos
enquanto a chuva batia no bico duro daqueles seios
ardendo sempre de tanto amor.


Todos eram demais e não sabiam
mas quando tu me pegaste forte
eu me surpreendi tímida
e até hoje estou fugindo entre palmeiras
pelas estradas líquidas do vinho e do neon.


Digo que continua urgente a ilusão desse momento
acometido de inenarráveis confissões.
Utopia presa na cartilagem úmida,
quando tua boca recobrir o seio
seremos então as duas outras faces
de uma mesma única possessão,
como uma estória colada na outra
enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância
que uma água subitamente morna quase apagou.


Como dizer, sem te estranhar: recusa-me
que a dama nua ao telefone pode estar no transe
a que tanto aspiras sob o vermelho das lanternas
enquanto a chuva cobre os telhados à beira-mar.
Tudo agora se tornou tão urgente
que dói a espera imemorial das bonecas
sobre a madeira escura
imóveis mas não inertes
a aguardar seu número de magia
quebrando a banalidade dos noticiários da televisão.


A blusa de cetim verde tem um decote de princesa judia
assassinada nua em campo de concentração
esplêndido violinista, vamos enlouquecendo devagar.
A blusa de cetim verde deixa entrever
a parte morta da carne branca
sob a luz do globo fosforescente
girando sobre os dançarinos
amanhã invisíveis do bar Royal.


Fecha os olhos e pensa no que quiseres
enquanto as mãos e as bocas
cumprem roteiros de miragens desérticas,
enquanto eu toco novamente
o meu piano austríaco na calçada do cais
e o mar quase arrebenta as janelas dalinianas
do Armazém XIV.


Porque o espírito há-de ser sempre o mesmo
eu desafio a tua preferência
e a blusa de cetim verde sem meu corpo dentro
tem ainda um oceano de lantejoulas
refletindo a vibração da pele
que por alguns momentos a habitou.


Dragão gigante
língua demoníaca
união clandestina
avesso encantamento
abismo vulcânico
onde a partitura se desfez em notas a cobrir a pauta
que guia o violoncelista ao Palácio de Cristal.


Fecha os olhos e beija-me de modo frágil
porque tudo se tornou mais urgente
desde o Museu Serralves
e os desenhos rosa do mármore
revelam caminhos recifenses da pele emparedada
sonhando o êxtase da ressurreição.


O teu olhar tem o mesmo brilho de um atirador de facas
enquanto giro na roda sobre mim mesma
dramaticamente presa nas cordas
ao som de Tchaicovski na Abertura 1812.


O teu olhar é como um sino milenarmente gigante
rondando os patamares da Régua
até a calçada de Copacabana,
o teu olhar é como um barco viking pedindo enseada
desde os coqueiros do Recife
até os verdes pinheiros galegos
que deram sombra ao romance dos meus bisavós.


Sei que hás de vir sob a neve enluarada
conduzindo lanterna no pescoço do cavalo branco
e me tomarás a galope em tua capa de veludo escuro
enquanto no circo abandonado
a trapezista continuará dormindo
completamente nua
na jaula dos leões.


Sei que hás de vir ferozmente enfeitiçado
nesse rapto anunciado para cruzar as águas do Capibaribe ao Douro
e dançaremos à luz de um candelabro de sete braços
até o sol secar as sete saias
tiradas ao som de sete violinos
durante as sete noites da encantação.


Mas não demores tanto.
Que amar é a arte
de se fazer presente
e tudo aquilo que precisamos
é de poesia
loucura e ênfase
no ato heróico de reabrir as portas
da carne mansa que se equivocou.


Que o corpo - dizem - já não será o mesmo
e o que era assédio pode retemperar-se em fuga
e até nós- dizem - não seremos os mesmos
no estranho instante de raio laser
em que chegar sem aviso o prazer da manhã.

 
"Mas Não Demores Tanto", Lucila Nogueira 

(Lucila Nogueira nasceu no dia 30 de Março de 1950. Morreu em 2016.)

E quando o cão faz ão ão?

Foto Hernâni Von Doellinger

Ilha do Coral

A Ilha do Coral, no Brasil, é mundialmente conhecida sobretudo por causa do seu magnífico orfeão.

Isto, sim, é protecção! Só falta a máscara...

Foto Hernâni Von Doellinger

Ando a ficar parecido comigo

Devo andar a ficar parecido com alguém. São cada vez mais as pessoas que olham para mim na rua, e eu não estava habituado a que me vissem. Sempre achei que tinha cara de ninguém, tão incógnito e invisível fui durante toda a minha vida, e não me estou a queixar, constato apenas, porque senstato ainda podia ser pior, se não me engano. Dou um exemplo, por exemplo: chovesse a cântaros e corresse eu em coiro a subir e a descer desalmada e inutilmente as escadas da Arcada, no centríssimo de Fafe, e a verdade é que nem a polícia municipal tomava conta da ocorrência. Era como se eu não existisse, mesmo com o pirilau ao léu. De acordo com as detalhadas notas da minha agenda de 1911, que agora mesmo compulso e sentornozelo, pratiquei esta patusca habilidade duas ou três vezes, talvez quatro ou cinco, os apontamentos estão um bocado esborratados, e só abandonei a modalidade por indicação médica. O médico da caixa sempre me chamou Sr. Serafim porque nunca tomou razoável sentido a quem eu era. Eu próprio quantas e quantas vezes passei por mim sem me conhecer de lado nenhum, não serei portanto o primeiro nem o último a atirar a primeira ou a derradeira pedra à autoridade distraída ou ao serviço nacional de saúde relapso, respectivamente. Serei, por uma questão de princípio, o do meio.
Mas ao que interessa: agora, na rua, espreitam-me de cima a baixo. Faço imediatamente o teste da braguilha, porque a braguilha não engana, mas há muito que eu retirei a braguilha de cotio, só a uso ao fim-de-semana com hífenes e eu ao fim-de-semana com hífenes não saio. Ando portanto intrigado, diria até assaz incomodado, mas estaria a mentir se o dissesse, e eu só minto às quintas-feiras dos anos bissextos, e por isso hoje não digo. Por outro lado, a palavra assaz é particularmente parva.
Fui ao espelho ver o que se passava. Há coisa de dez minutos, fui ao espelho. E faço questão de informar que não me via ao espelho desde 1879, mais ou menos no dia do São Francisco de Regadas, ou desde 1901, por alturas da Senhora das Neves da Lagoa, não tenho bem presente. Fui ao espelho (sei que é a terceira vez que digo que fui ao espelho, e com esta já é a quarta) e aconteceu o seguinte: encontrei-me realmente com um tipo vagamente parecido comigo, e comecei a pensar: já vi esta cara em algum lado. Será isso?


(Publicado originalmente no dia 21 de Dezembro de 2014)

Quarenta e um, quarenta e dois, quaren... tena

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Antônio Pimentel 4

Haicai

Velho caquizeiro
pinta seus frutos maduros
com o sol do outono...

Pesados de cana
rangem os carros de boi
moendo as estradas...


Luís Antônio Pimentel 

(Luís Antônio Pimentel nasceu no dia 29 de Março de 1912. Morreu em 2015.)

Glicinheiro

Foto Hernâni Von Doellinger

Duelo à sombra

"Ainda nos havemos de rir disto tudo", disse o duelista com bigode ao duelista sem suíças, e puxou o gatilho.

sábado, 28 de março de 2020

Em casa... 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Serei o próprio?

O entregador de encomendas toca à porta, abro, bom-dia!, passa-me a caixa para as mãos e pergunta: - É o próprio?
- Da última vez que me vi ao espelho, sou! - respondo, com uma segurança já bem ensaiada e fingida.
Mas fico à rasca, na dúvida, e, depois de, obrigado!, com licença..., fechar a porta delicadamente, corro como um tolo para a casa de banho, exigindo mais provas ao espelho.

Posando

Foto Hernâni Von Doellinger

Armando Silva Carvalho 4

O cobridor

À entrada do metro está o cobridor de damas
e cavalheiros
de pé perna cruzada a coçar os testículos
e a fumar para o chão em escarros
pouco límpidos.
O metro pede que chova em cima
do cobridor
que encena a sua rábula cinéfila
e leva aos tomates uma estranha fome
de afecto,
melancólica.
Já viajei de metro
e eu próprio
já supus que nos meus testículos
o mundo vinha adormecer
com as mãos suadas.
Às vezes
trocávamos de papel,
e ninguém sabia quem cobria quem,
cobertos éramos todos
por uma tristeza
austera
que o metro punha no ar
irrespirável.
Hoje, tomates são só de importação ou virtuais.
E os cobridores
uma espécie em vias de extinção
na esquina fluorescente do dia descaído
e na cabeça da noite que já nem dá por nada.


"Lisboas", Armando Silva Carvalho

(Armando Silva Carvalho nasceu no dia 28 de Março de 1938. Morreu em 2017.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 161

Foto Hernâni Von Doellinger

O Oliveira

O Oliveira foi chamado de urgência à gerência. Ordens: mudança de secção e de funções. Quer-se dizer: mobilidade. Deram-lhe um martelo. - Um martelo!? - protestou -, mas toda a gente sabe que eu sou o Oliveira da serra...

Marabalista

Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito

Estou como diz o outro.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Quarentena, quarentena e um, quarentena e dois...

Foto Hernâni Von Doellinger

Em álcool

Ele explicava: conservava-se em álcool derivado ao coronavírus. E sentia-se muito bem. Bêbado de manhã à noite, de segunda a sexta-feira, e ao fim-de-semana ainda era pior. Quer-se dizer, melhor...

Também faço isto muito bem 354

Foto Hernâni Von Doellinger

Ernesto Penafort 4

Momento no bar

A rota azul do teu peito
Guindou-se para o teu ventre
Em certa noite de vento.
Abrigo um sonho perfeito,
Tendo como lastro um  leito,
Que agasalha a noite e o dia.
Nesta hora e em bar ausente
Eu guardo um sonho desfeito
Para o milagre da hora,
Cada instante mais presente
- caravela tendo em frente
O mar azul da agonia. 

Ernesto Penafort

(Ernesto Penafort nasceu no dia 27 de Março de 1936. Morreu em 1992.)

Só destes, tenho sete 133

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 26 de março de 2020

Da estupidez

Incomoda-me a estupidez. Sobretudo a minha.

Stop!

Foto Hernâni Von Doellinger

Dia do Livro Português

O Mola-Partida levantou-se a contragosto e acompanhei-o ao Mercedes, seguindo os seus movimentos de sobe-e-desce amenizados pelo enorme sapatorro direito. Fez-me lembrar a Orora, a prostituta manquinha que há muitos anos aviava os clientes, em pé, ali numa viela que circundava o campo de futebol do Salgueiros, em Paranhos. À falta de sapato tipo Nemésio, apoiava o pé esquerdo num tijolo durante a função. Em chegando o clímax, os especialistas davam um pontapé no tijolo e era vê-la a espernear, para grande prazer e gozo do mais exigente putanheiro. 

"Que Puta de Vida!", Luís Lopes

(Hoje, 26 de Março, comemora-se o Dia do Livro Português. No Brasil é Dia do Cacau.)

Fiel até ao fim do mundo

Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito!

Olha uma coisa.

Droga 790

Foto Hernâni Von Doellinger

Os livros

Gosto de afagar os livros que leio. Cheiro-os. Protejo-os. Guardo-os com mil cuidados.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Em casa...

Foto Hernâni Von Doellinger

O bom ladrão

Fafe, algures pelos finais da década de sessenta do século passado. Na sala de aula da agora desaparecida Escola da Feira Velha, no meio da parede, por cima do quadro negro, um Cristo crucificado. Carmona à direita da cruz, Salazar à esquerda. Eu, que naquela altura já tinha umas luzes bíblicas, nunca percebi qual destes dois era o bom ladrão...

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Julho de 2018. Hoje, 25 de Março, é o dia dedicado pela Igreja Católica a São Dimas, o bom ladrão.

Offshore, se fashavore 287

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 197

O Capitão Gancho e o Capitão Iglo
Discutia-se se o Capitão Gancho era pirata ou era corsário. Conversa vai, conversa vem, uns que corsário, outros que pirata, alguns até que contrabandista, ladrão, gatuno, filhodaputa, ó corno!, como num normal jogo de futebol à porta aberta, mas não havia maneira de se chegar a uma conclusão ou, vá lá, como remedeio, a um consenso - e era precisa uma maioria qualificada, isto é: dois terços mais pelo menos uma via-sacra. O animado debate mudou bruscamente de rumo quando alguém recém-entrado a bordo alvitrou que o Capitão Gancho se chamava Capitão Gancho para não ser confundido com o Capitão Iglo dos douradinhos mas sobretudo porque comandava o seu navio, o Jolly Roger, com mão de ferro e vencia o Capitão Iglo quantas vezes lhe apetecesse. Aprovado por unanimidade e aclamação, e ali se fez história.
Bebia-se verde tinto, e era uma rica pinga.

Vida dupla
Tinha realmente uma vida dupla. Já ia nos 103 anos.

Chama o antónimo
Se era uma pessoa sensata? Não. Pelo contrário. Era uma pessoa até bastante consata.

Um homem bem apetrechado
Tinha uma panóplia de argumentos, uma panela de pressão, uma visão estratégica, uma caixa de pandora e carradas de razão. Era realmente um homem muito bem apetrechado.

O pão
Quando a nossa padaria, o sítio onde todos os dias compramos o pão que nos alimenta há mais de trinta anos, quando a nossa padaria, insisto, nos diz "Olhe, a partir de amanhã estamos fechados", então, se não soubéssemos, ficaríamos a saber: o coronavírus é mesmo a sério. 

Levantamento das Caldas
O Levantamento das Caldas, tentativa de golpe militar contra o Estado Novo caetanista, ocorreu no dia 16 de Março de 1974 e, apesar de falhado, serviu de rastilho para a Revolução de 25 de Abril. É também chamado Intentona das Caldas, Revolta das Caldas ou Golpe das Caldas - tudo nomes bem menos sugestivos e mais ajuizados. É. Deixem-se de malandrices! Levantamento e Caldas, na mesma expressão, trazem logo à conversa fradinhos malacuecos...

Também faço isto muito bem 353

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 24 de março de 2020

Meu rico menino

Uma noite, altas horas, saíamos da casa de má fama ali para os lados da Estação e resolvemos passear descalços pelas ruas desertas e geladas da cidade. Não sei de quem foi a peregrina ideia, mas, de tão tola, decerto foi minha. Confesso que não me lembro do que pretendíamos exactamente provar, mas gosto de pensar naquele momento insólito como um ritual de fraternidade, a celebração de uma amizade antiga e inoxidável que nos ligava desde miúdos, apesar da evidente diferença de "estatuto social" entre as nossas duas famílias. Frequentara-lhe a casa - "de rico". Dava-me o lanche, apresentou-me ao pão com manteiga e ao café com leite. Ensinou-me os Queen. Emprestou-me "A Night at the Opera". Eu e a minha mãe deliciávamo-nos a ouvir "Bohemian Rhapsody" uma e outra vez, mais de vinte ou trinta vezes ao dia, no pequeno gira-discos francês que nos sobrara do meu pai.
Ali íamos, portanto. E, sim, era realmente liturgia, era festa. Glorificávamos a camaradagem desinteresseira e fiel. Éramos irmãos. Ali íamos afinal iguais, ambos de pés descalços, com as botas e as meias pela mão, trocando memórias e partilhando o riso. Passávamos em frente à Câmara e parámos - éramos, penso-o agora, uma procissão. Se naquele precioso instante soltassem revoadas de pombas brancas por sobre as nossas cabeças, creio que não nos espantaríamos...
Chamava-me "meu rico menino", e eu gostava. Eu gostava, meu rico menino!

Pergunto-te, mar, e tu não respondes

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu cão

Eu tenho um cão imaginário. Chama-se Parkinson, porque quando quero chamar por ele nunca me lembro do seu verdadeiro nome - Alzheimer. A raça do meu cão tem dias, vantagem de ser imaginário: às segundas é perdigueiro, às terças é labrador, às quartas é são bernardo, às quintas é pastor alemão, às sextas é dálmata e aos fins-de-semana é sobretudo rafeiro. O meu cão nasceu no país certo.
O meu cão fica-me muito em conta. Não come mas cala, dispensa vacinas e vitaminas, nunca vai ao veterinário, não precisa de casota nem de agasalhos para o Inverno, e só me custa o preço da trela. O meu cão conhece o dono e não morde a mão que não o alimenta. Se todos fôssemos cães assim, vínhamos mesmo a calhar ao Governo da Nação.
O meu cão faz-se muito bem de morto e corre atrás de qualquer merda que lhe atire. Só lhe falta falar. O meu cão não ladra às pernas das pessoas, não abocanha, não caga no passeio, não mija nos pneus do carro do vizinho, não tem pulgas nem chatos, nem anda por aí a emprenhar cadelas mais ou menos vadias e oferecidas. É como se não existisse. O meu cão é um exemplo de cidadão.
Já mo quiseram comprar e eu não o vendi. Foi um vendedor de empregos imaginários. Oferecia-me dois empregos bem bons em troca do meu cão. Nã! Antes quero o cão.

P.S. - Publicado originalmente no dia 28 de Setembro de 2011, num certo contexto. E sabem que mais? Ainda bem que não me desfiz do raio do bicho. Tem-me sido de uma utilidade extrema. Levo o cão a passear todos os dias, pelo cedinho, e é ele o meu salvo-conduto para furar a quarentena coronaviral. 

Caminho 789

Foto Hernâni Von Doellinger

Gonzalo López Abente 6

Decrúa

Xa non hai sol, foise a lúa,
xa non cantan os poetas...
¡Hai que facer a decrúa
nas estradas dos planetas!

O río da noite fonda
os seus cabelos destrenza,
con duro balbor que estronda
nos abisos da fervenza.

Os perdidos viaxeiros
buscan daquel río os vaos.
Andan chorando os luceiros
extraviados no caos.

As chorimas amarelas,
homildosiñas de seu,
van, belidas e sinxelas,
ascendendo cara o ceu.

Po de estrelecer, lixeiras
bagullas de ouro, velliñas
abalando nas toxeiras
de feridoras espiñas.

Xa non hai sol, foise a lúa,
xa non cantan os poetas...
¡Hai que facer a decrúa
nas estradas dos planetas!

As chorimas amarelas
soben desde o monte seu
e ás irmanciñas estrelas
abren camiños no ceu.


"Decrúa", Gonzalo López Abente

(Gonzalo López Abente nasceu no dia 24 de Março de 1878. Morreu em 1963.)

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Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito!

Digo-lhe uma coisa.

Empresta-me as asas, gaivota

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 23 de março de 2020

O mistério dos ovos de coelha

As coelhas, como se sabe, são malucas por truca-truca. Passam a vida naquilo. E no entanto só põem ovos por alturas da Páscoa. É um mistério...

Na minha rua passa o mar 74

Foto Hernâni Von Doellinger

Cai neve, cai neve, cai neve no jardim

O tempo para hoje
Os especialistas do tempo prevêem para hoje um dia com 24 horas.

O Neves foi ver a neve
O Neves pegou na família e foi ver a neve. Não viu. A estrada estava cortada. Por causa da neve. 

Goze a quarentena
Aproveite a bênção da quarentena, sobretudo se for realmente mais do que quinzena. Fique em casa, leia, escreva, pense, e durma um sono, ou dois, consoante a disposição e a companhia. E ouça a chuva a bater à janela. Mas não abra se bater leve, levemente, que a chuva não bate assim: é de certeza o Neves, e o Neves é um chato do caralho.

Branca e radiante
Branca de Neve brincava às casinhas com a casa dos sete anões. Com os anões brincava aos médicos, há quem diga. 

Weather report
- Isto é que tem estado!...
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.

Esta janela não é de fiar 
O telemóvel garante-me que lá fora, a esta hora, faz um rico dia de sol. Olho agora mesmo pela janela e chove copiosamente. Quando apanhar uma sombrinha, vou mandar arranjar a janela.

O tempo é o melhor remédio
Fui à farmácia e perguntei - O tempo é o melhor remédio?
- Com efeito, meu caro senhor - respondeu-me o solícito farmacêutico, sem sequer pestanejar.
- E o efeito é garantido? - insisti, pestanejando.
- Cinco anos ou 150 mil quilómetros.
- E tem genérico?


O tempo é o melhor remédio 2
 Fui à farmácia e perguntei - O tempo é o melhor remédio?
- Há quem diga...
- E é comparticipado?

 
O tempo é o melhor remédio 3
Entrei na farmácia e perguntei - O tempo é o melhor remédio?
- É. Mas já não há - respondeu-me o boticário, armado em vendedor de bombocas.


Céu geralmente
"Céu em geral pouco nublado, aumentando temporariamente de nebulosidade durante a tarde. Vento fraco a moderado (até 30 km/h) do quadrante leste, rodando para noroeste durante a tarde. Neblina ou nevoeiro matinal. Pequena subida da temperatura máxima. Ondas de noroeste com 1 a 2 metros. Temperatura da água do mar: 13/15ºC." - de acordo com a previsão do Instituto Português do Mar e da Atmosfera para hoje. E pronto: é dinheiro que poupo na farmácia. 

Será do tempo?
Dias esquisitos estes: tanto chove como faz sol. Será do tempo?


O calor dilata os copos
Praticante de fino durante três quartos do ano, chegava ao Verão e dedicava-se à caneca. Dizia: - O calor dilata os copos... 
 


P.S. - Hoje, 23 de Março, é Dia Mundial da Meteorologia. Viva o Anthímio!

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Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito!

Considero nomeadamente.

Janela de oportunidade

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 22 de março de 2020

Principalmente

- Sobretudo ou principalmente?
- Principalmente. Os dias já vão um bocadinho mais quentes...

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Foto Hernâni Von Doellinger

In vino veritas, in aqua sanitas

O Dia De
Hoje é o Dia da Água. Amanhã volto ao vinho. 

Das quentes e boas à fresca e doce 
"Quentes e boas" são as castanhas, assim chamadas derivado à própria cor. Este Inverno por acaso até só foram quentes, às vezes nem isso, de resto apresentaram-se geralmente uma boa merda - secas, bichosas, bolorentas até. Mas ao que interessa: o pregão era, e ainda é, "Quentes e boas!", ou, como se dizia em Fafe, "Castanhas assadas a vapor, ó que boas, ó que boas!..."
No Verão da minha terra já a conversa era outra. Umas abençoadas senhoras andavam pela caloraça das feiras e romarias vendendo copos de água de mina adoçada com açúcar amarelo e um remoto gosto a limão. Em cima da cabeça a rodilha e por cima da rodilha, consoante o uso dos sítios, uma bilha de barro ou um cântaro de lata revestido a cortiça. Anunciavam "Fresca e doce!", e desatavam a fugir, de socos na mão, mal se precatavam do fiscal da Câmara...

Fonte próxima
A dois passos de casa, a abençoada borla da água fresquinha escorrendo cristalina da bica. Um consolo nas tardes de Verão, lavagem do carro nas manhãs de sábado...

Fonte segura
Após quatro braços, duas pernas, sete costelas, três cabeças e trinta e seis cântaros partidos, a Junta de Freguesia resolveu finalmente fazer obras de consolidação e requalificação. Agora sim, Leonor...

Fonte confidencial
Descobri-a sem querer aí num sitinho, dá-me setenta e três garrafões por dia, e mais não digo...

Fonte oficial
Era uma fonte de papel passado. Com alvará municipal e licença da Direcção-Geral da Saúde. 

Fonte limpa
Dois banhos por semana: à terça e à sexta.

Fonte geralmente bem informada
O aviso está lá: "Água imprópria para consumo". Às vezes desaparece... 

Fontes & fontes
Fonte baptismal, fonte de vida, fonte luminosa, fonte de alimentação, fonte de ignição, fonte da juventude, fonte de inspiração, fonte de transpiração, Fontes de Onor, Fonte Arcada, Fonte da Telha, Fonte das Sete Bicas, Fonte do Bastardo, Fonte do Santo, Fonte da Cana, José Fonte, Fontes Pereira de Melo, Fontes Rocha, Fontes de Alencar, Adios rios adios fontes.

Tanques para o Irão
Portugal está a mandar tanques para o Irão. Para além de tanques, Portugal está a vender também estendais, cestos e molas.

A gota de água (quando cai é para todos)
- Agora é que foi a gota de água - disse o brincalhão, pousando desajeitadamente o copo vazio do seu décimo terceiro uísque. Posto isto, vomitou com assinalável pertinácia em cima do excelentíssimo público. 

In vino veritas, in aqua planing
Compareceram todos. Ab Initio, Modus Operandi, Lapsus Linguae, Curriculum Vitae, Honoris Causa, In Dubio Pro Reo, E Pluribus Unum, Habeas Corpus, Ex Aequo, Ipso Facto, Mea Culpa, Per Capita, o casal Dura Lex, Sed Lex, Post Scriptum, Sine Die e Sine Qua Non, Ad Hoc, Statu Quo e Procol Harum, Sui Generis, Vade Retro, Totus Tuus e Deo Gracias, Data Venia, Ipsis Verbis e Ipsis Litteris, A Priori e A Posteriori, Apud, Carpe Diem, Grosso Modo, In Loco, In Memoriam e In Vitro, RIP, Dux Veteranorum, Alter Ego, Fac Simile, Verbi Gratia, Ibidem e os irmãos A Contrario Sensu, Lato Sensu e Stricto Sensu.
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de pedantismos?...

Presunção e água-benta
Entrou na pequena capela e persignou-se com toda a presunção. É que não havia água-benta... 

Cuidado com as constipações
Água vai! Mas vinho ainda vai melhor...

P.S. - Hoje, 22 de Março, é Dia Mundial da Água. Em Portugal é também Dia do Teatro Amador. Na mitologia grega o dia é consagrado a Hércules ou Herácles.

Só destes, tenho sete 132

Foto Hernâni Von Doellinger

Está dito!

Deixa-me que te diga.

sábado, 21 de março de 2020

E a cãorentena? (ou É assim que elas começam!)

Foto Hernâni Von Doellinger

Ovos de galo

A ciência ainda não encontrou uma resposta. Porque é que os ovos de galo são maiores do que os ovos de galinha?

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Foto Hernâni Von Doellinger

Valêncio Xavier 4

Caminharei tantas vezes por esta mesma rua, este mesmo bairro de prostituição. Quantas vezes sentirei na boca o gosto oleoso do gim que vendem por aqui. Algumas vezes fumarei haxixe, três ou quatro vezes deitarei num catre e acenderei o cachimbo do ópio. Uma vez comprei cocaína, não para meu uso, mas para conseguir do traficante uma informação que, conseguida, mostrou-se sem proveito. Muitas vezes dormi com outras prostitutas no mesmo quarto do hotelzinho barato, mas sei que nunca mais verei a prostituta japonesa, nem saberei se ela sentiu prazer comigo naquela noite escura. Às vezes penso que sim; às vezes, penso que não. Nunca encontrarei uma resposta que me satisfaça.

"O Mistério da Prostituta Japonesa", Valêncio Xavier

(Valêncio Xavier nasceu no dia 21 de Março de 1933. Morreu em 2008.)

Gaivota, vais e voltas

Foto Hernâni Von Doellinger

Dinis Machado 8

"Chegou uma esquadra", disse Austin, "e aqueles a quem chamavam os camones invadiram a cidade, tingindo-a com a brancura das suas fardas. Meia dúzia deles enfiou pela rua acima, passou pelos Vai ou Racha, estes cuspiram para o chão em sinal de desprezo, o Zuca foi atrás deles de braço estendido, esfregando o dedo polegar no indicador, eh, camone, money, money, um camone atirou um monte de moedas ao ar e a miudagem lutou bravamente para apanhar o dinheiro". "Essas excursões a bairros desconhecidos desvendam mundos novos", interrompeu Mister DeLuxe. "Fiz duas ou três desse género e tirei excelentes fotografias". Austin sorriu. "Bem", disse ele, "os camones continuaram a subir a rua, pararam junto ao Ângelo, que estava sentado no seu banco de madeira a experimentar a harmónica, um deles aproximou-se e disse girls, e fez com o braço o movimento respectivo, we want girls, o Ângelo disse girl é a tua mãezinha, estás a perceber ou precisas de explicador?, sim, a tua mãezinha, o camone riu-se para os outros, um deles avançou e fez uma espécie de passe à Fred Astaire, conta quem sabe, e de repente o Ângelo já tinha guardado os óculos e a harmónica no bolso, começou a despachar os camones, enfiou um pela loja de móveis do Ventura, outro foi cair numa das cadeiras da Barbearia Hollywood, exactamente em cima do Pimentel, que estava a ser escanhoado pelo Joaquim Navalhinhas, um terceiro mergulhou no tanque de roupa da Miquelina Fortes, outro ainda foi também remetido para a loja do Ventura, encontrou o primeiro no caminho, vinha de regresso, e estatelaram-se os dois numa cama de casal, o Ângelo com os pés, com as mãos, com a cabeça, vai disto, os camones enfiavam por tudo quanto era porta, positivamente distribuídos ao domicílio, o Zuca diria mais tarde que Ricardito entre Chamas e Bandidos, a sua fita número um, ao pé daquilo não era nada. [...]

"O Que Diz Molero", Dinis Machado

(Dinis Machado nasceu no dia 21 de Março de 1930. Morreu em 2008.)

Vidas... 3

Foto Hernâni Von Doellinger

O bom racista

A olho nu não se percebe, mas ao microscópio (isto é, vestindo o olho) chega-se lá: o racismo divide-se em duas partes e há uma nanométrica diferença entre o racista bom e o racista mau. O bom racista começa as frases dizendo - Eu não sou racista, mas... 

P.S. - Hoje, 21 de Março, é Dia Nacional para a Eliminação da Discriminação Racial. É também, entre outros, Dia Mundial do Sono, Dia Internacional da Floresta e Dia Mundial da Árvore, Dia Internacional da Astrologia, Dia Universal do Teatro e Dia Mundial da Poesia.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Dia de ser feliz

Foto Hernâni Von Doellinger

Provemos então a Felicidade, mas não só
São os anúncios: mandam-nos provar a Felicidade. Porém. Organizações de defesa do consumidor recomendam que, antes da escolha final, provemos também a Clementina, a Adelaide, a Iracema, a Adosinda, a Felisberta, a Miquelina, a Leocádia, a Emerenciana, a Umbelina, a Hortênsia e a Perpétua. Pelo menos. Depois ficamos com a que nos soube melhor.

Eis a questão
A felicidade é questão de um gajo se habituar.

A felicidade agarra-se pelos tomates
Jasmina era uma mulher feliz. Fazia o que queria do marido. Em casa mandava ela, e mandava nele também. O homem gostava assim. As vizinhas e amigas de Jasmina - à qual, pelas costas, chamavam Felismina - perguntavam-se, roídas de inveja: "Como é que ela consegue, como é que ela consegue?!..."
E um dia Jasmina explicou: "Trago-o bem preso pelos tomates, um bocadinho mais acima..."

P.S. - Hoje, 20 de Março, é Dia Internacional da Felicidade, por ordem das Nações Unidas. No Brasil é também Dia da Agricultura.

Cada qual tem a cruz que merece

Foto Hernâni Von Doellinger

Reinaldo Ferreira 4

O futuro

Aos domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos domingos iremos ao jardim.
Diremos nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standardizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos

Na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses -,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvarios.

Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários.


"Um Voo Cego a Nada", Reinaldo Ferreira

(Reinaldo Ferreira nasceu no dia 20 de Março de 1922. Morreu em 1959.)

Vida de cão 499

Foto Hernâni Von Doellinger

Menotti del Picchia 6

Soneto

Soneto! Mal de ti falem perversos
que eu te amo e te ergo no ar como uma taça.
Canta dentro de ti a ave da graça
na gaiola dos teus quatorze versos.

Quantos sonhos de amor jazem imersos
em ti que és dor, temor, glória e desgraça?
Foste a expressão sentimental da raça
de um povo que viveu fazendo versos.

Teu lirismo é a nostálgica tristeza
dessa saudade atávica e fagueira
que no fundo da raça nos verteu

a primeira guitarra portuguesa
gemendo numa praia brasileira
naquela noite em que o Brasil nasceu...


Menotti del Picchia

(Menotti del Picchia nasceu no dia 20 de Março de 1892. Morreu em 1988.)

Também faço isto muito bem 348

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 19 de março de 2020

De tanga

Quando eu era pequeno queria ser grande. E quando fosse grande queria ser palhaço, maquinista de comboio, famoso, padre, polícia à paisana, pianista, advogado, jornalista, actor, bombeiro, jogador de futebol, tarzan, presidente da república, gangster, papa, escritor, pastorinho de fátima na reforma, herói, caruso, ciclista, santo e piloto de avião de guerra como o major alvega. Já há muito que sou grande e, francamente, sou tarzan e é um pau.

P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Dezembro de 2011. O a propósito da repetição: Edgar Rice Burroughs nasceu no dia 1 de Setembro de 1875 e morreu no dia 19 de Março de 1950. Pelo meio inventou o Tarzan.

Interlúdio fotográfico 233

Foto Tarrenego!

Pai só há um

"Pai só há um", lamentou-se o professor-ensaiador, espreitando pela cortina a plateia esgotada do teatrinho escolar. "O resto é tudo mães. Galinhas"...

Mobiliário urbano (propriamente dito) 160

Foto Hernâni Von Doellinger

Carteira profissional

Chamado à pedra, protestou: - Eu sou carpinteiro, e vou fazer queixa ao sindicato...

P.S. - Hoje, 19 de Março, é, pelo menos no Brasil, Dia do Carpinteiro ou Dia do Marceneiro ou Dia do Carpinteiro e do Marceneiro. É também Dia do Artesão, Dia do Pai e Dia de S. José, que armou esta confusão toda.

Também faço isto muito bem 347

Foto Hernâni Von Doellinger

Mauro Sampaio 4

Sonhos

Viajar sem partir.
Viajar caminhando por entre paisagens e pássaros
Por entre flores e catedrais, montanhas, rios e cidades
E chegar a lugar algum.

Viajar em minha casa, em minha rua, em meu jardim.
Viajar sem solidão, sem a saudade de mim.

"No Silêncio do Espelho", Mauro Sampaio

(Mauro Sampaio nasceu no dia 19 de Março de 1917)

La mère devant la mer

Foto Hernâni Von Doellinger

Com a mostarda no nariz

Estava piúrsico. Hercúleo. Ulíssico. Ben-húrico. Sansónico. Macístico. Spartáquico. Numa só palavra, estava ali o homem que domina a pantera.

Music was my first love 57

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 18 de março de 2020

Fazendo a mínima

A diferença entre uma colcheia e uma colmeia está na medida. Isto é: uma colmeia corresponde exactamente a uma semicolcheia. E deve servir-se de preferência numa seminfusa. Bem fresca...

Interlúdio fotográfico 232

Foto Hernâni Von Doellinger

O boleto

O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número na procissão mas "ainda não ganhavam".
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito.
Posso ter inventado esta memória, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E que se segue? Não sei porquê (sei, sei!), a minha cabeça começou então a ligar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango de churrasco, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

P.S. - Vinho, como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para disfarçar o pique a vinagre...