segunda-feira, 4 de agosto de 2025

A sagrada liturgia das sardinhas

Estamos fritos
Comprou três quarteirões de sardinha miúda. Passou a manhã na sertã. E a tarde em Figueiró dos Vinhos.

Eu costumava ter pena das pessoas que comem sardinhas assadas pelos santos populares, tão cedo, em pleno mês de Junho. Deixei-me disso, porque, depois dos meus sucessivos avisos, só cai nessa quem quer. Por aquela maré do ano, as sardinhas geralmente ainda não prestam, são secas, estupidamente caras e amiúde do dia anterior, pelo menos, quando não (mal) descongeladas. Mas as pessoas gostam, dizem que é tradição, e eu realmente não tenho nada com isso. Seja! Posso é informar que elas andam razoáveis agora, com Agosto à porta, já maduras, e em Setembro, se Deus quiser, é que hão-de estar perfeitas. A seguir, se correr bem, ainda lhes dou mais dois meses de vida, aqui fica o lamiré para quem estiver interessado.
Aquilo dos antigos de que as melhores sardinhas são as dos meses sem "r" e que pelo São João pinga a sardinha no pão, não ligueis: os antigos, a verdade também é só uma, fartavam-se de dizer asneiras e mandar encaixilhar. Não. A melhor época para comer sardinhas assadas, sardinhas inequivocamente saborosas, se quereis saber, insisto, ainda ides a tempo, estamos a um mês dela, Setembro e Outubro e às vezes até Novembro. As sardinhas são analfabetas, não diferenciam vogais de consoantes nem lês de rês. E até metem raiva de boas, como diria o meu sogro quando era vivo e elas também. Sardinhas "do nosso mar", cá de cima, mais torneirinhas, que quer dizer pequenas e cheias, batoques, de olho esperto, limpo, e, chegadas à brasa, a esvaírem-se no seu próprio "azeite".
Trago de Fafe a sagrada liturgia das sardinhas. Assadas e, normalmente, comidas no quintal, ao finzinho da tarde, partilhadas com os vizinhos em cima de um bom naco de broa, que se passava para o outro lado da rede, e isto assim dito até parece ténis, coisa de ricos, mas não, era apenas a pobreza a ser honrada. No Assento, à roda do fogareiro, a família inteira reunida, noras e genros incluídos, primos e primas, ninguém faltava à chamada, porque eram sardinhas, tinha saído edital, e a minha mãe, que não era para brincadeiras, marcava faltas. As crianças não gostavam de sardinhas e portavam-se mal - comiam uns calduços e ficava o assunto resolvido.
Na segunda metade do ano, cá em casa, todas as sextas-feiras são dia de sardinhada para a Mi e para mim, dia santo. Vantagem de morar em Matosinhos, a dois passos do porto de pesca, vou buscar as sardinhas praticamente ao barco, acabadas de chegar, trago-as vivinhas da silva, como se ainda rabiassem, e acomodo-as debaixo de um pano molhado, à espera da hora para serem assadas por quem sabe, isto é, eu próprio, passe a imodéstia. Sardinhas de prata e com mar dentro, salada de pimento assado, vermelho e carnudo, azeitonas pretas e azedas, broa fresca e vinho tinto, mais nada. Em memória do tempo antigo.

(Versão revista e aumentada, publicado originalmente no meu blogue Mistérios de Fafe)

sábado, 2 de agosto de 2025

Ah, fanecas!

O sedutor
Ele era um sedutor de mão cheia. Adorava apalpar rabos.

Bem boas que elas andam, as fanecas. Gosto delas fritas. Temperadas só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, isto é, à Fafe, ou então mais à minha moda, tratadas também com um pouco de pimenta e bastante limão e depois envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há derivas que aceito e consumo, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Peixe, em Fafe, era uma trilogia, uma santíssima trindade: sardinha, faneca e chicharro, que se dizia chucharro, carregando generosamente nos "ches" como se fossem tempero, azeite do bom. Era o peixe que se podia, peixinho de pobres. Às vezes lá apareciam também uns verdinhos, umas marmotinhas para enfiar o rabo na boca, e claro que ouvíamos falar de pescada, sabíamos que a pescada existia, que antes de ser já o era, mas que era só para os ricos, ou para os pobres oferecerem aos ricos, como peita, os tolos. O peixinho andadeiro, o nosso, comprava-se à Mocha e à D. Filomena, marralhando com todo o afinco, à face da estrada, no Santo Velho, sítio estratégico por onde passava o povo das fábricas. A pescada, quem lhe pudesse chegar, amiúde para acudir à aflição de uma doença e satisfazer a recomendação médica, só vinha por encomenda, de um dia para o outro. E era como se fosse à farmácia.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, eu já no Porto, deixei que me metessem num barco nevoento e fui à pesca da faneca com o bando do saudoso Adélio Santos, velho repórter-fotográfico com quem acamaradei no Janeiro e noutras lides mais ou menos profissionais. Quer-se dizer: eles foram à pesca, à linha, e eu fui lançar ao mar os restos de uma noitada sem passagem pela cama. Não sei se servi de engodo, mas o certo é que apanhámos peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela companha de ocasião, e toda a gente teve direito a um ou dois baldes cheios de fanecas e cavalas, até eu, que, pelos vistos, também tinha feito a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo, ainda que bissexto, na minha exigente lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como eu, afirma, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito (ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do século vinte: quem é desse tempo e não se lembra dos rapazolas ou velhos tarados que, aproveitando a barafunda das quartas-feiras, passavam por elas, pelas moças, em Cima da Arcada, roçando-lhes o cotovelo pelas mamas, como quem não quer a coisa, atirando-lhes, entredentes, "Ah, faneca, comia-te toda!", broeiros, e levando de resposta um lampeiro estalo na cara, que acabava logo ali com todos os tesões? Realmente, quem não se lembra?...
Entretanto o piropo foi criminalizado em Portugal, e até poder dar cadeia. E os apalpões, já se sabe, dão artigos de jornal, o que ainda é pior. A mim, por acaso, não me faz diferença. Gosto muito de fanecas e de mamas, confesso, mas seduzo apenas por telepatia.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe honesto. Depois, evidentemente, como em tudo na vida, há fanecas mais honestas do que outras. Na minha cozinha, por exemplo, só entram fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez extraordinária com o Adélio, mas agora sacadas do mar por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense, reservada a quem mora ao pé da doca e conhece um bocadinho. São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda, "do nosso mar". Madrugo também, compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado pelo castigo do gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e estragativas, trago-as íntegras para casa, amanho-as eu, eu é que sei como é que as quero. Não menos importante: comemo-las no próprio dia. Exactamente. Elas andam bem boas, isso nem se discute, mas é preciso saber dar-lhes as voltas...

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

Vai um mergulho?

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O incrível Zé Manel Carriço

Ouço Tiago Nacarato no rádio. Canta "A Dança". Diz: "Mesmo que se acabe o stock / Da tão bem-vinda Super Bock / A vida é boa / A vida é tão boa / A vida é mesmo boa de se levar."
E lembro-me do Verão de 1990, na ilha do Sal, Cabo Verde. Agosto passava para Setembro, e a Super Bock esgotou literalmente em toda a ilha. Fui eu.

O Zé Manel Carriço era um exagerado e provavelmente a pessoa mais extraordinária que conheci em toda a minha vida. O Zé Manel não comprava maços de tabaco, comprava volumes de tabaco, caixotes, camiões inteiros de tabaco, navios cheios da proa à popa, aviões bombardeiros prenhes de vício. Tradicionalista, conservador, teimoso, megalómano, melómano, músico - filho de maestro, tocava seis ou sete instrumentos, incluindo piano, contrabaixo ou harmónica com pistão, dizendo-se, neste caso, que teria sido o primeiro português a fazê-lo, antes até dos do Trio Harmonia -, polemista, projectista, designer, desenhador, pintor, artista, coleccionador, adorador de carros clássicos, excêntrico, reaccionariozinho apesar de inventor patenteado, mas também inteligente, polímata, empreendedor, visionário, elegante, disponível, paradoxal e controverso, verdade ou mentira de si próprio, melhor, verdade e mentira de si próprio, maior talvez do que a própria lenda, o Zé Manel até comprou um jornal falido que depois publicava uma vez por ano só para manter o título, até teve um campo de futebol, até comprou um teatro-cinema por pura vaidade, vejam lá, e manteve-o fechado só para ele. O Zé Manel comprava tudo, e a dinheiro, não acreditava no valor do plástico e desconfiava da honestidade dos cheques. Por isso ele andava sempre com a carteira grotescamente gorda e amarrecada por um enorme molho de notas de conto como se todos os dias tivesse de ir à feira mercar uma junta de bois. Ou duas. Ou três. Ou mais. As notas chegavam e sobravam para começar de raiz uma manada completa, e seria então o rei do gado. O Zé Manel fazia questão que fosse pública e notória a sua fartura. Ah!, e o Zé Manel Carriço era um homem amiúde generoso, mesmo muito generoso, mas essa parte da história ele preferia que não se soubesse, e por isso não vou contar.
Andei pelo mundo, dei as minhas voltas, e nunca mais encontrei ninguém como ele. Não descansei, aliás, enquanto não o apresentei aos meus novos amigos, do Porto, primeiro contando-lhes a lenda, dando-lhes uma ideia, e depois ao vivo e a cores, em encontros geralmente à mesa que se prolongavam muito para além do normal horário de expediente.
Às vezes, na minha juventude, o José Manuel, que de baptismo era Rodrigues, levava-me a umas noitadas privadas e filosóficas (ele, o Pimenta e eu) no Peludo antigo, mesmo em frente ao seu atafulhado ateliê, era só atravessar a rua, o que nos resultava de uma extrema comodidade. As noitadas entravam pela madrugada dentro, porque o Zé Manel tinha muito que contar e nós gostávamos muito de o ouvir. As estórias do Zé Manel eram como as rodadas de cerveja, umas atrás das outras. O Sr. Avelino fechava para nós. Comia-se um marisquito, que àquelas altas horas estava já nas últimas, e sobretudo bebiam-se finos, com tremoços, para fazer boca. Mais do que uma vez esgotámos o stock de copos, enchendo de vasilhame babujado sete ou oito mesas à nossa volta, o café inteiro, porque o Sr. Avelino gostava muito de fazer a conta no fim. Partiam-se alguns copos, por descuido ou malandrice, o Sr. Avelino afinava, engolia em seco e tomava nota para acrescentar ao rol. Mas o pior era o desbaste dado nos tremoços, que pedíamos repetidamente por uma questão de princípio.
Uma noite o Sr. Avelino não aguentou e queixou-se: - Sr. Zé Manel, assim não pode ser, já comeram mais de dez pires de tremoços. É um prejuízo muito grande. Os tremoços custam-me dinheiro, valha-me Deus!...
O Zé Manel foi ao bolso do casaco, sacou da carteira marreca, tirou uma mancheia de notas e disse, séria, calma e secamente: - Ó Avelino, traz-me cinco contos de tremoços! - e pousou o dinheiro como mão de póquer em cima da única mesa de vago, sem copos sujos, que por acaso era a nossa...

P.S. - Versão corrigida e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Cerveja.