A senhora estranhou, na última vez que estivemos juntos, a minha excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizam a sociedade com a ostentação do seu luxo e extravagâncias.
Quis responder-lhe imediatamente, tanto é o apreço em que tenho o tato sutil e esquisito da mulher superior para julgar de uma questão de sentimento. Não o fiz, porque vi sentada no sofá, do outro lado do salão, sua neta, gentil menina de 16 anos, flor cândida e suave, que mal desabrocha à sombra materna. Embora não pudesse ouvir-nos, a minha história seria uma profanação na atmosfera que ela purificava com os perfumes da sua inocência; e - quem sabe? - talvez por ignota repercussão o melindre de seu pudor se arrufasse unicamente com os palpites de emoções que iam acordar em minha alma.
Receei também que a palavra viva, rápida e impressionável não pudesse, como a pena calma e refletida, perscrutar os mistérios que desejava desvendar-lhe, sem romper alguns fios da tênue gaza com que a fina educação envolve certas idéias, como envolve a moda em rendas e tecidos diáfanos os mais sedutores encantos da mulher. Vê-se tudo; mas furta-se aos olhos a indecente nudez.
Calando-me naquela ocasião, prometi dar-lhe a razão que a senhora exigia; e cumpro o meu propósito mais cedo do que pensava. Trouxe no desejo de agradar-lhe a inspiração; e achei voltando a insônia de recordações que despertara a nossa conversa. Escrevi as páginas que lhe envio, as quais a senhora dará um título e o destino que merecerem. É um perfil de mulher apenas esboçado.
"Lucíola", José de Alencar
(José de Alencar nasceu no dia 1 de Maio de 1829. Morreu em 1877.)
sábado, 30 de abril de 2016
Paulo Varela Gomes (1952-2016)
As ilhas, sussurra para si mesma Anna W. com a alma cheia de culpa e de
impotência, as ilhas são os lugares dos obsessivos e dos obstinados,
sítios onde voltam a germinar manias mortas como líquenes em pátios onde
não bate o sol. Nas ilhas há horizonte mas não há saída.
"Passos Perdidos", Paulo Varela Gomes
Enrique Alvarellos
Meus avós foron de Ourense.
Meus pais son pontevedreses.
Eu xa nacín na Coruña
e a Lugo fun... e caseime...
Se podo ser máis galego que
mo diga a miña xente.
"Cen Anacos", Enrique Alvarellos
(Enrique Alvarellos nasceu no dia 30 de Abril de 1931. Morreu em 2004.)
Meus pais son pontevedreses.
Eu xa nacín na Coruña
e a Lugo fun... e caseime...
Se podo ser máis galego que
mo diga a miña xente.
"Cen Anacos", Enrique Alvarellos
(Enrique Alvarellos nasceu no dia 30 de Abril de 1931. Morreu em 2004.)
sexta-feira, 29 de abril de 2016
Carlos Lacerda
A rua descia para os dois lados. Correndo, tomou o lado contrário ao habitual. Dobrando esquinas desconhecidas, com um galope no coração, foi parar numa praça enorme. Aí sentiu o primeiro vento da aventura e da liberdade fustigando o rosto. Sentia-se herói, sem exagero nenhum. Um bonde, lento, pesado, rinxando, o trouxe à cidade. Foi ver os cartazes dos cinemas, as vitrinas das lojas, as caras dos passantes. Visitou uma exposição de automóveis, donde levou prospectos com condições de comprar uma soberba limusine que nem em sonhos o tentava. Era apenas o prazer dos prospectos.
"21 Contos Inéditos de Carlos Lacerda", Carlos Lacerda
(Carlos Lacerda nasceu no dia 30 de Abril de 1914. Morreu em 1977.)
"21 Contos Inéditos de Carlos Lacerda", Carlos Lacerda
(Carlos Lacerda nasceu no dia 30 de Abril de 1914. Morreu em 1977.)
quinta-feira, 28 de abril de 2016
Jaime Cortesão 4
O casamento da Franga
Diz o Galo
para a Galinha:
Quando casaremos
a nossa filhinha?
Casaremos
Ou não casaremos:
Agora o noivo
Donde o arranjaremos?
Salta o Gato
Do seu mural:
"Eu estou pronto
Para me ir casar."
- Agora o noivo
já nós cá temos;
Agora a madrinha
Donde arranjaremos?
Diz o Galo
para a Galinha:
Quando casaremos
a nossa filhinha?
Casaremos
Ou não casaremos:
Agora o noivo
Donde o arranjaremos?
Salta o Gato
Do seu mural:
"Eu estou pronto
Para me ir casar."
- Agora o noivo
já nós cá temos;
Agora a madrinha
Donde arranjaremos?
Salta a Cabra
Da sua casinha:
"Eu estou pronta
Pra ser a madrinha."
- Agora a madrinha
já nós cá temos;
Agora o padrinho
Donde o arranjaremos?
Salta o Rato
Do seu buraquinho:
"Eu estou pronto
Pra ser o padrinho."
- Agora padrinho
Já nós cá temos;
Agora o padre
Donde o arranjaremos?
Salta o escaravelho
Do seu escaravelhar:
"Eu estou pronto
Para os ir casar."
- Agora o padre
Já nós cá temos;
Agora o chibo
Donde o arranjaremos?
Salta o Lobo
Do seu lobal:
"Eu estou pronto
Prò chibo dar."
Chibo já nós cá temos;
Agora o vinho
Donde o arranjaremos?
Salta o Mosquito
Do seu mosquital:
"Eu estou pronto
Prò vinho dar."
- Agora o vinho
Já nós cá temos;
Agora o trigo
Donde o arranjaremos?
Salta o Pardal,
Do seu ninho estar:
"Eu Estou pronto
Pra trigo dar."
Acabou-se a boda
Com tal desatino;
Veio o noivo
Engoliu o padrinho.
Jaime Cortesão
(Jaime Cortesão nasceu no dia 29 de Abril de 1884. Morreu em 1960.)
Da sua casinha:
"Eu estou pronta
Pra ser a madrinha."
- Agora a madrinha
já nós cá temos;
Agora o padrinho
Donde o arranjaremos?
Salta o Rato
Do seu buraquinho:
"Eu estou pronto
Pra ser o padrinho."
- Agora padrinho
Já nós cá temos;
Agora o padre
Donde o arranjaremos?
Salta o escaravelho
Do seu escaravelhar:
"Eu estou pronto
Para os ir casar."
- Agora o padre
Já nós cá temos;
Agora o chibo
Donde o arranjaremos?
Salta o Lobo
Do seu lobal:
"Eu estou pronto
Prò chibo dar."
Chibo já nós cá temos;
Agora o vinho
Donde o arranjaremos?
Salta o Mosquito
Do seu mosquital:
"Eu estou pronto
Prò vinho dar."
- Agora o vinho
Já nós cá temos;
Agora o trigo
Donde o arranjaremos?
Salta o Pardal,
Do seu ninho estar:
"Eu Estou pronto
Pra trigo dar."
Acabou-se a boda
Com tal desatino;
Veio o noivo
Engoliu o padrinho.
Jaime Cortesão
(Jaime Cortesão nasceu no dia 29 de Abril de 1884. Morreu em 1960.)
João Penha 2
Sermão na montanha
Frei Bernardo, de pé sobre uma dorna,
Empina a canjirão, que o desafia,
E sobre o povo, que o admira, entorna
O mar enorme da oratória pia.
Prega, sinistra: textos mil aponta;
Aos abismos descendo do profundo,
Agarra Belzebu por uma ponta
E com ele verbera o dorso ao mundo.
Chega à peroração, que a povo chora:
Vem ao trono buscá-lo a confraria;
Lança a benção final e, sem demora,
Empina o canjirão que o desafia.
"Viagem por Terra ao País dos Sonhos", João Penha
(João Penha nasceu no dia 29 de Abril de 1838. Morreu em 1919.)
Frei Bernardo, de pé sobre uma dorna,
Empina a canjirão, que o desafia,
E sobre o povo, que o admira, entorna
O mar enorme da oratória pia.
Prega, sinistra: textos mil aponta;
Aos abismos descendo do profundo,
Agarra Belzebu por uma ponta
E com ele verbera o dorso ao mundo.
Chega à peroração, que a povo chora:
Vem ao trono buscá-lo a confraria;
Lança a benção final e, sem demora,
Empina o canjirão que o desafia.
"Viagem por Terra ao País dos Sonhos", João Penha
(João Penha nasceu no dia 29 de Abril de 1838. Morreu em 1919.)
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Viagem por Terra ao País dos Sonhos
Sardinhamente falando (em honra da Dona Dina)
Foi um mau ano. Em tempo de balanço, há que dizer com toda a frontalidade que as sardinhas, em 2011, foram uma merda. Eu ainda tive a sorte de as apanhar três ou quatro vezes mais ou menos ajeitadas (uma dessas vezes, felizmente, pelo São João), mas de resto foi um annus horribilis sardinhamente falando. Nem durante os famosos meses sem "r" as sardinhas assadas alcançaram o patamar de excelência exigido pelo apreciador, apresentando-se, mesmo nessa época, tendencialmente secas e desenxabidas, como se fossem o Cavaco Silva. Uma desgraça, portanto.
É. A sabedoria popular ensina, e bem, que Maio, Junho, Julho e Agosto são os melhores meses para comer sardinha assada. É quando ela pinga no pão. Mas a Dona Dina, que Deus tem, dizia-me que de Junho a Dezembro eu podia comer as suas sardinhas à confiança, e eu comia e ela tinha razão. A Dona Dina era uma pessoa muito boa e a melhor assadeira de sardinhas do mundo. As sardinhas assadas da Dona Dina eram não mais do que douradas e traziam sempre o mar dentro.
Ontem, na peixaria, uma senhora perguntava se "As sardinhas..." e foi logo interrompida pela peixeira, que lhe respondeu "Estão muito boas, as sardinhas ainda estão boas". É claro que não estão, e logo neste ano de colheita medíocre, mas a peixeira tem que fazer pela vida. Eu trouxe biqueirão.
Já experimentaram, decerto já, tirar a cabeça aos biqueirões, abri-los pela barriga retirando-lhes a espinha, que sai muito facilmente, temperar estas "costeletas" com sal, pimenta preta moída na hora, limão e um quase-nada de alho picado, e deixá-los neste preparo aí umas quatro horas, duas para cada lado? E depois passá-los por ovo e pão ralado e fritá-los sem deixar queimar? E fazer entretanto um arrozinho de bacalhau com trocinhos de tronchuda? Arroz carolino, já se sabe, que se transforma com o peixinho num verdadeiro manjar de deuses. Mas decerto já experimentaram.
Dica: as espinhas saem ainda mais facilmente se os biqueirões forem do dia anterior. Mas, para mim, peixe ou é do dia ou já não é peixe. Em miúdo, muito gostava eu de ouvir às peixeiras de Fafe o pregão "É da biba, olha a bibinha", e ficava-se logo também a saber que as sardinhas nesse dia seriam mais caras. Mas eram "como prata". Hoje tenho a sorte de morar em Matosinhos, a dois passos do porto de pesca e da lota. O mais das vezes trago para casa peixe vivo, literalmente vivo, que os pescadores dos barcos pequenos estão a acabar de entregar. O que me levanta alguns problemas, operacionais e... de consciência. Um dia tive com uma solha uma luta cujos pormenores não conto nem quero lembrar. Ganhei, mas portei-me mal. E só à mesa é que me perdoei.
(Texto escrito e publicado no dia 23 de Dezembro de 2011. Junto-lhe hoje uma fotografia da Dona Dina que aqui atrasado encontrei por acaso num novo restaurante de familiares da querida e saudosa senhora, também na Apúlia. Já nos livrámos do Cavaco, graças a Deus, mas, quanto ao demais, nada mudou nos últimos cinco anos em Portugal: as sardinhas continuam substantivamente fracativas e nunca mais apareceu ninguém que lhes saiba dar as voltas e a volta como a Dona Dina sabia. A verdade é esta: a Dona Dina faz-nos falta.)
quarta-feira, 27 de abril de 2016
Xosé Iglesias Roura
Tras do arado
¡Outra volta máis! - Volve, Gallardo;
tente ó rego, Cardón.
Nobres almallos meus, case ampeades
con tan brava labor.
Hanvos dar da ferraña que fresquiña
colleron para vós.
Fire abafante o Sol, a terra é un forno.
non se atura a calor.
Se é que o pan me dá - Dios mo perdoe
¡ben ganadiño foi...!
Mais aínda outra volta. - Za, Gallardo;
vente ó rego, Cardón.
Parésceme que acoro, atafegado
coa poeira e o suor.
Hei de fenderte, terra; has de ser miña;
hei de faguerte pó;
hasme dar, das entrañas, pan pros fillos...
Mentras na vida estou,
hei de sacarte os zumes canto poida,
¡que xa mos sacarás a min despois!
Xosé Iglesias Roura, "A Nosa Terra"
(Xosé Iglesias Roura nasceu no dia 28 de Abril de 1879. Morreu em 1930.)
¡Outra volta máis! - Volve, Gallardo;
tente ó rego, Cardón.
Nobres almallos meus, case ampeades
con tan brava labor.
Hanvos dar da ferraña que fresquiña
colleron para vós.
Fire abafante o Sol, a terra é un forno.
non se atura a calor.
Se é que o pan me dá - Dios mo perdoe
¡ben ganadiño foi...!
Mais aínda outra volta. - Za, Gallardo;
vente ó rego, Cardón.
Parésceme que acoro, atafegado
coa poeira e o suor.
Hei de fenderte, terra; has de ser miña;
hei de faguerte pó;
hasme dar, das entrañas, pan pros fillos...
Mentras na vida estou,
hei de sacarte os zumes canto poida,
¡que xa mos sacarás a min despois!
Xosé Iglesias Roura, "A Nosa Terra"
(Xosé Iglesias Roura nasceu no dia 28 de Abril de 1879. Morreu em 1930.)
Alberto de Oliveira 3
Cheiro de espádua
Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava,
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.
Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Hauri sequiosa toda a essência dela!
Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.
E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que, à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!
"Poesias, 3.ª série", Alberto de Oliveira
(Alberto de Oliveira nasceu no dia 28 de Abril de 1857. Morreu em 1937.)
Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava,
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.
Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Hauri sequiosa toda a essência dela!
Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.
E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que, à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!
"Poesias, 3.ª série", Alberto de Oliveira
(Alberto de Oliveira nasceu no dia 28 de Abril de 1857. Morreu em 1937.)
Fafe apresenta Ciclo de Cantautores 2016
A segunda edição do projecto 48/20 - Ciclo de Cantautores é apresentada amanhã em Fafe, pelas 21h30, com um concerto da britânica Kristin McClement. A iniciativa, que se prolonga Verão adiante, contará ainda, numa primeira fase, com a participação de Márcia e Samuel Úria, em dueto, B Fachada e Éme, o dinamarquês Il Tempo Gigante e a dupla brasileira Bárbara Eugénia e Andreia Dias. Mais informação, aqui.
Diz o povo e com razão (recapitulação e 2 extras)
Ménage à trois
- Das duas, uma - disse o malandro, cansado de ménages à trois.
A realidade é inexorável, sobretudo se for fresca
- Mais vale tarde que nunca - disse o pragmático. Já passava do meio-dia e não havia volta a dar.
As pombinhas da catrina
As pombinhas da catrina andaram de mão em mão. Acabaram por casar, é certo, mas nunca mais se livraram da fama.
A gota de água (quando cai é para todos)
- Agora é que foi a gota de água - disse o brincalhão, pousando desajeitadamente o copo vazio do seu décimo terceiro uísque. Posto isto, vomitou com assinalável pertinácia em cima do excelentíssimo público.
Evasão
- Mais vale só do que mal acompanhado - disse o recluso n.º 14.112. E fugiu.
Justiça
- Mais vale uma pomba na mão do que duas a voar - defendeu-se o pedófilo, em tribunal. Mandaram-no para casa.
Puxem pelo Saci-Pererê e depois queixem-se
Querem ver o Saci-Pererê completamente passado? É mandá-lo ir num pé e vir no outro. Ui!, leva a mal, ninguém o atura...
O bem-mandado
Mandaram-no abaixo de Braga e ele foi. Há dois anos e meio que mora em Vila Nova de Famalicão.
Os antigos sabiam tudo e morriam muito
Laranja. "De manhã ouro, à tarde prata e à noite mata". Desde os meus dezassete, dezoito anos que tento regularmente a suicídio antes de me deitar. Às vezes também com tangerinas.
Pragmatismo à portuguesa
Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que qualquer dia tem de se meter água da companhia em casa.
Burro velho não toma andadura
- Desculpa-me que te diga, mas sempre foste infantil. Toda a tua vida te portaste como uma criança. Também não será agora, aos 93 anos, que te vais armar em homenzinho, pois não?...
Breve ensaio de lesbofobia
Maria vai com as outras. Depois que não se queixe das más-línguas.
Vendo pontos de vista para o mar
Eu tenho uma certa maneira de ver as coisas, isso é verdade. Mas não tenho um prisma, uma óptica, sequer um ângulo que se diga. Tivesse-os eu, e vendia-os.
A felicidade agarra-se pelos tomates
Jasmina era uma mulher feliz. Fazia o que queria do marido. Em casa mandava ela, e mandava nele também. O homem gostava assim. As vizinhas e amigas de Jasmina - à qual, pelas costas, chamavam Felismina - perguntavam-se, roídas de inveja: "Como é que ela consegue, como é que ela consegue?!..."
E um dia Jasmina explicou: "Trago-o bem preso pelos tomates, um bocadinho mais acima..."
Frigorífico
De boas intenções está o frigorífico cheio. Depois, evidentemente, é preciso saber cozinhar.
Tomai e comei todos (é um bocado relativo)
Então, depois de dar graças a Deus, o pai tomou o pão, partiu-o e distribuiu-o por metade dos seus filhos, dizendo: Laide, Ruca, ide comer a casa da avó, que a broa não chega para todos.
O importante é a honradez, mas depende
- O mais importante, meu querido filho, é a honradez. Podes ser pobre, mas sempre honesto. Pobrezinho mas honrado, como diz o nosso povo nos seus mansinhos diminutivos. Sobretudo, agora a sério, nunca faças nada que te envergonhe quando te vires ao espelho.
- E se for quando não me vir ao espelho, meu amado pai?...
- Nesse caso estás à vontade: mete a mão quanto mais possas, que és meu filho mas também és filho de Deus.
Os requisitos necessários
Passou o dia inteiro a reunir os requisitos necessários. Chegou a casa e contou-os: faltavam-lhe quatro. É de um homem desesperar...
Aberração da natureza
Tinha o coração ao pé da boca. Era uma aberração da natureza, uma atracção de feira.
Saia mais um galo
Freguês assíduo das bifanas da Conga e produtos correlativos nomeadamente codornizes, tinha uma filosofia de vida a que nunca se exima, por mais adversas que fossem as condições. E essa filosofia essencial era - Mais vale um pássaro no prato do que duas mãos a voar. E mais dois fininhos, se faz favor.
- Das duas, uma - disse o malandro, cansado de ménages à trois.
A realidade é inexorável, sobretudo se for fresca
- Mais vale tarde que nunca - disse o pragmático. Já passava do meio-dia e não havia volta a dar.
As pombinhas da catrina
As pombinhas da catrina andaram de mão em mão. Acabaram por casar, é certo, mas nunca mais se livraram da fama.
A gota de água (quando cai é para todos)
- Agora é que foi a gota de água - disse o brincalhão, pousando desajeitadamente o copo vazio do seu décimo terceiro uísque. Posto isto, vomitou com assinalável pertinácia em cima do excelentíssimo público.
Evasão
- Mais vale só do que mal acompanhado - disse o recluso n.º 14.112. E fugiu.
Justiça
- Mais vale uma pomba na mão do que duas a voar - defendeu-se o pedófilo, em tribunal. Mandaram-no para casa.
Puxem pelo Saci-Pererê e depois queixem-se
Querem ver o Saci-Pererê completamente passado? É mandá-lo ir num pé e vir no outro. Ui!, leva a mal, ninguém o atura...
O bem-mandado
Mandaram-no abaixo de Braga e ele foi. Há dois anos e meio que mora em Vila Nova de Famalicão.
Os antigos sabiam tudo e morriam muito
Laranja. "De manhã ouro, à tarde prata e à noite mata". Desde os meus dezassete, dezoito anos que tento regularmente a suicídio antes de me deitar. Às vezes também com tangerinas.
Pragmatismo à portuguesa
Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que qualquer dia tem de se meter água da companhia em casa.
Burro velho não toma andadura
- Desculpa-me que te diga, mas sempre foste infantil. Toda a tua vida te portaste como uma criança. Também não será agora, aos 93 anos, que te vais armar em homenzinho, pois não?...
Breve ensaio de lesbofobia
Maria vai com as outras. Depois que não se queixe das más-línguas.
Vendo pontos de vista para o mar
Eu tenho uma certa maneira de ver as coisas, isso é verdade. Mas não tenho um prisma, uma óptica, sequer um ângulo que se diga. Tivesse-os eu, e vendia-os.
A felicidade agarra-se pelos tomates
Jasmina era uma mulher feliz. Fazia o que queria do marido. Em casa mandava ela, e mandava nele também. O homem gostava assim. As vizinhas e amigas de Jasmina - à qual, pelas costas, chamavam Felismina - perguntavam-se, roídas de inveja: "Como é que ela consegue, como é que ela consegue?!..."
E um dia Jasmina explicou: "Trago-o bem preso pelos tomates, um bocadinho mais acima..."
Frigorífico
De boas intenções está o frigorífico cheio. Depois, evidentemente, é preciso saber cozinhar.
Tomai e comei todos (é um bocado relativo)
Então, depois de dar graças a Deus, o pai tomou o pão, partiu-o e distribuiu-o por metade dos seus filhos, dizendo: Laide, Ruca, ide comer a casa da avó, que a broa não chega para todos.
O importante é a honradez, mas depende
- O mais importante, meu querido filho, é a honradez. Podes ser pobre, mas sempre honesto. Pobrezinho mas honrado, como diz o nosso povo nos seus mansinhos diminutivos. Sobretudo, agora a sério, nunca faças nada que te envergonhe quando te vires ao espelho.
- E se for quando não me vir ao espelho, meu amado pai?...
- Nesse caso estás à vontade: mete a mão quanto mais possas, que és meu filho mas também és filho de Deus.
Os requisitos necessários
Passou o dia inteiro a reunir os requisitos necessários. Chegou a casa e contou-os: faltavam-lhe quatro. É de um homem desesperar...
Aberração da natureza
Tinha o coração ao pé da boca. Era uma aberração da natureza, uma atracção de feira.
Saia mais um galo
Freguês assíduo das bifanas da Conga e produtos correlativos nomeadamente codornizes, tinha uma filosofia de vida a que nunca se exima, por mais adversas que fossem as condições. E essa filosofia essencial era - Mais vale um pássaro no prato do que duas mãos a voar. E mais dois fininhos, se faz favor.
terça-feira, 26 de abril de 2016
Era um homem muito antigo 4
Era um homem muito antigo e vivia agarrado a coisas que já não se usam. Vejam lá que ainda dizia obrigado quando o senhor empregado lhe servia o cafezinho e bagaço.
O pesado sacrifício - Guerra Colonial
"O pesado sacrifício - Guerra Colonial", palestra/debate com o jornalista Jaime Froufe Andrade, que foi alferes ranger em Moçambique e é autor do livro "Não sabes como vais morrer". Haverá música, na guitarra e na voz de Orlando Mesquita - o do Bando do Rei Pescador. Próxima sexta-feira, pelas 21 horas, no Clube Gondomarense, Rua Monte Crasto, n.º 19, Gondomar.
Basta um raio de sol
Ui o que aí vai de mulheres grávidas, passeantes e orgulhosas. Será do abono? Será do tempo?
Senhor de Matosinhos 2016
segunda-feira, 25 de abril de 2016
Shakespeare vs. Camões
O inglês Guilherme Shakespeare escreveu tubi ornotubi detesdaquestcham.
Ornotubi. O nosso Luís Vaz escreveu, e certamente antes do bife, al
maminha gentil quetepartiste. Maminha. Para mim, Shakespeare 0 - Camões
1.
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 1 de Novembro de 2014. Continuo a gostar muito mais de maminha, e evidentemente não estou a falar de carne para churrasco. Na altura, um leitor anónimo mas de óbvia costela anglófila comentou que "Shakespeare é maior que Camões". Eu respondi: "Mas Hrtdfsgnkgetrfdcçygetñtecho é maior do que Shakespeare". Mantenho.)
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 1 de Novembro de 2014. Continuo a gostar muito mais de maminha, e evidentemente não estou a falar de carne para churrasco. Na altura, um leitor anónimo mas de óbvia costela anglófila comentou que "Shakespeare é maior que Camões". Eu respondi: "Mas Hrtdfsgnkgetrfdcçygetñtecho é maior do que Shakespeare". Mantenho.)
José Ángel Valente 2
Escoita, mai, voltei.
Estou no adro
onde aquel día o grande corpo
de meu avó ficou.
Inda oio o pranto.
Voltei. Nunca partira.
Alongarme somente foi o xeito
de ficar para sempre.
"Cántigas de Alén", José Ángel Valente
(José Ángel Valente nasceu no dia 25 de Abril de 1919. Morreu em 2000.)
Estou no adro
onde aquel día o grande corpo
de meu avó ficou.
Inda oio o pranto.
Voltei. Nunca partira.
Alongarme somente foi o xeito
de ficar para sempre.
"Cántigas de Alén", José Ángel Valente
(José Ángel Valente nasceu no dia 25 de Abril de 1919. Morreu em 2000.)
domingo, 24 de abril de 2016
Andante con moto
Foto Hernâni Von Doellinger |
O segundo andamento da 5.ª Sinfonia de Beethoven, dita Sinfonia do Destino, ou, só para complicar, melhor chamada Sinfonia n.º 5 em Dó menor Op. 67, deve ser tocado em Andante con moto. Isto é, pede-se um ritmo lento, como se fôssemos nós apenas a caminhar, naturalmente, um passo e depois outro, mas com o cuidado de não adormercermos de pé. Andante, sim, porém con moto. E isto é apenas um por exemplo.
Por outro lado, se o enxame de tuk tuk (ou auto-riquexós) que, uber dissimulados, tomaram conta das ruas do Porto e cidades adjacentes deixasse de ser só para turistas e fosse, não sei como, integrado no sistema de transportes públicos da chamada Área Metropolitana, e que jeito que daria, já tínhamos um nome para a coisa: Andante con moto, exactamente. Mas isto é apenas outro por exemplo dos meus.
P.S. - Sim, a Área Metropolitana, como todas as áreas, grandes e pequenas, localiza-se obviamente no último terço do terreno.
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sábado, 23 de abril de 2016
Era um homem muito antigo 3
Era um homem muito antigo e vivia agarrado a coisas que já não se usam. Vejam lá que tinha pêlos nas orelhas e limpava o nariz com um lenço de pano...
sexta-feira, 22 de abril de 2016
Jorge de Lima 2
Anjo daltônico
Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.
Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.
Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.
Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha.
Jorge de Lima
(Jorge de Lima nasceu no dia 23 de Abril de 1893. Morreu em 1953.)
Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.
Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.
Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.
Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha.
Jorge de Lima
(Jorge de Lima nasceu no dia 23 de Abril de 1893. Morreu em 1953.)
Valentín Paz-Andrade 4
Non escoitedes
Non escoitedes voz onde non trema
o vidro do seu tempo,
mainamente,
como na pel das aguas treme a brisa
tinguida no brancor dos amieiros.
Non escoitedes voz na que se esquezan
as raíces do barro que nos deu
feitío de criaturas,
amor pra repartir cos semellantes
quentor do noso sangue.
Non escoitedes ecos en retorno
dos paredóns da morte.
A vida virá sempre a sucos novos
pra se facer fecunda
no gran de cada espiga.
"Cen Chaves de Sombra", Valentín Paz-Andrade
Non escoitedes voz onde non trema
o vidro do seu tempo,
mainamente,
como na pel das aguas treme a brisa
tinguida no brancor dos amieiros.
Non escoitedes voz na que se esquezan
as raíces do barro que nos deu
feitío de criaturas,
amor pra repartir cos semellantes
quentor do noso sangue.
Non escoitedes ecos en retorno
dos paredóns da morte.
A vida virá sempre a sucos novos
pra se facer fecunda
no gran de cada espiga.
"Cen Chaves de Sombra", Valentín Paz-Andrade
(Valentín Paz-Andrade nasceu no dia 23 de Abril de 1898. Morreu em 1987.)
Gosto de palavras que são o que não parecem
Vou repetir-me, mas a vida é isto, a vida é feita de repetições. Ao contrário do que as pessoas em geral cuidam, quando as repetições acabam é que é uma chatice: fecham-nos os olhos à força, ajeitam-nos a boca com cola de colar cientistas ao tecto, vestem-nos um velho fato comido pela traça, põem-nos um terço nas mãos, acendem quatro velas, dizem que fomos muito boa pessoa, e realmente nunca mais. Portanto, vou repetir-me.
Eu não sei se já tinha dito que vou repetir-me, mas é essa, com efeito, a minha intenção: vou repetir-me. Gosto de nomes, gosto do falar antigo, gosto das palavras. Já aqui contei, gosto de palavras com piada fina, palavras como parreca, como esbraguilhado, como cachicha. Mas ainda gosto mais de palavras desalinhadas, subversivas, fora-da-lei. Matreiras. Aprecio especialmente as palavras que viram a norma de pernas para o ar e as abusam, como, por exemplo, e estas são cá das minhas, solhão, pontão ou estradão.
Cá está. Solhão, pontão e estradão, palavras rematadas com o famoso sufixo "ão", unanimemente considerado pelos mais reputados gramáticos como um dos sufixos por excelência para a formação de aumentativos. E, no entanto, para quem sabe das coisas, solhão é uma espécie de solha mais pequena, pontão é uma pontinha sobre um ribeiro e estradão é uma estrada estreita e geralmente em terra esburacada, conveniente para ralis. São excepções que confirmam a regra? Não, pelo contrário: são palavras que querem que as regras se fodam.
P.S. - Trouxe ontem para casa três solhões que me saíram uma categoria. Este texto é por isso.
Eu não sei se já tinha dito que vou repetir-me, mas é essa, com efeito, a minha intenção: vou repetir-me. Gosto de nomes, gosto do falar antigo, gosto das palavras. Já aqui contei, gosto de palavras com piada fina, palavras como parreca, como esbraguilhado, como cachicha. Mas ainda gosto mais de palavras desalinhadas, subversivas, fora-da-lei. Matreiras. Aprecio especialmente as palavras que viram a norma de pernas para o ar e as abusam, como, por exemplo, e estas são cá das minhas, solhão, pontão ou estradão.
Cá está. Solhão, pontão e estradão, palavras rematadas com o famoso sufixo "ão", unanimemente considerado pelos mais reputados gramáticos como um dos sufixos por excelência para a formação de aumentativos. E, no entanto, para quem sabe das coisas, solhão é uma espécie de solha mais pequena, pontão é uma pontinha sobre um ribeiro e estradão é uma estrada estreita e geralmente em terra esburacada, conveniente para ralis. São excepções que confirmam a regra? Não, pelo contrário: são palavras que querem que as regras se fodam.
P.S. - Trouxe ontem para casa três solhões que me saíram uma categoria. Este texto é por isso.
quinta-feira, 21 de abril de 2016
Victoriano Taibo 2
Ao comén era só Deus, xurdio e podente, a demorar na súa mesma eternidade.
E Deus creou o espazo e a materia, e esclareceu as tebras co milagre ollecente da luz.
E con falas secretas fixo xurdir da nada as cousas todas; a Vida, sempre vitoriosa da Morte; e a Morte, decote triunfante da Vida.
E con todas as cousas, entre a Vida e a Morte, sen que ninguén saiba quen é, de onde vén nin para onde vai, xurdiu o Tempo.
Entrou polas portas da existencia como quen entra por unha agra aberta, feito un garelo axexador e entremetido. Non fixo máis que saír do vurullo e emprendeuna a croio limpo coas estrelas; e aínda ben pequerrecho, e en canto Vulcano abriu a súa fragua, encargoulle unha afiada gadaña para se ir facendo cursario na sega, pois desde o berce sentía uns desexos incontidos de seitura.
Xa de mozo íase de ruada polos camiños siderais a cortexar as estreliñas novas e luminosas; pero facíanlle a figa e non lle daban creto, pois inda que o pretendente era aposto e falangueiro, aquel seu ollar feridor e destemido metíalles o medo no corpo, alporizándolles os longos cabelos escintilantes.
A Vida nunca o quixo, ollábao con xenreira; pero canto máis fuxía del, máis se enguedellaba entre as súas longas gadoupas raspiñeiras, máis a carón se achaba da Morte, a súa inimiga xurada. Desbotado de todos, o Tempo víase só. A única muller que o ollaba a xeito, coas súas concas escuradas, e lle sorría cos dentes fanados e amarelados, era a Morte, que camiñaba á súa beira como can de cego, apegada a el coma un lambizo.
Pero o Tempo era teimoso, xa andaba afeito a saír coa súa, e non meteu o rabo na silveira. Aló, nun currunchiño do espazo, a súa ollada espreitadora dexergou a Lúa, noviña e namoradeira, arrecendendo graza do seu brillar refulxente, coma un solciño azoso, pequerrechiño e feito, que se esfiaña en perfebas aloumiñantes de luz.
Vela, decatarse da súa inxenuidade e fermosura, e cobizala, foi todo un:
- A muller e a sardiña, pequeniña - díxose -. E como non hai cousa máis humilde que o amor cando pretende, feito un suíña riseiro e conquistador, dirixiuse a ela en falas solermiñas, tatexou tremente ao declararlle o seu cariño, e os seus ollos torvos, vidrados, afeitos só ás traidoras olladas de esguello, mirárona fite a fite, nun feble sorriso enchouchador e arelante.
"Da Agra Aberta", Victoriano Taibo
(Victoriano Taibo nasceu no dia 22 de Abril de 1885. Morreu em 1966.)
E Deus creou o espazo e a materia, e esclareceu as tebras co milagre ollecente da luz.
E con falas secretas fixo xurdir da nada as cousas todas; a Vida, sempre vitoriosa da Morte; e a Morte, decote triunfante da Vida.
E con todas as cousas, entre a Vida e a Morte, sen que ninguén saiba quen é, de onde vén nin para onde vai, xurdiu o Tempo.
Entrou polas portas da existencia como quen entra por unha agra aberta, feito un garelo axexador e entremetido. Non fixo máis que saír do vurullo e emprendeuna a croio limpo coas estrelas; e aínda ben pequerrecho, e en canto Vulcano abriu a súa fragua, encargoulle unha afiada gadaña para se ir facendo cursario na sega, pois desde o berce sentía uns desexos incontidos de seitura.
Xa de mozo íase de ruada polos camiños siderais a cortexar as estreliñas novas e luminosas; pero facíanlle a figa e non lle daban creto, pois inda que o pretendente era aposto e falangueiro, aquel seu ollar feridor e destemido metíalles o medo no corpo, alporizándolles os longos cabelos escintilantes.
A Vida nunca o quixo, ollábao con xenreira; pero canto máis fuxía del, máis se enguedellaba entre as súas longas gadoupas raspiñeiras, máis a carón se achaba da Morte, a súa inimiga xurada. Desbotado de todos, o Tempo víase só. A única muller que o ollaba a xeito, coas súas concas escuradas, e lle sorría cos dentes fanados e amarelados, era a Morte, que camiñaba á súa beira como can de cego, apegada a el coma un lambizo.
Pero o Tempo era teimoso, xa andaba afeito a saír coa súa, e non meteu o rabo na silveira. Aló, nun currunchiño do espazo, a súa ollada espreitadora dexergou a Lúa, noviña e namoradeira, arrecendendo graza do seu brillar refulxente, coma un solciño azoso, pequerrechiño e feito, que se esfiaña en perfebas aloumiñantes de luz.
Vela, decatarse da súa inxenuidade e fermosura, e cobizala, foi todo un:
- A muller e a sardiña, pequeniña - díxose -. E como non hai cousa máis humilde que o amor cando pretende, feito un suíña riseiro e conquistador, dirixiuse a ela en falas solermiñas, tatexou tremente ao declararlle o seu cariño, e os seus ollos torvos, vidrados, afeitos só ás traidoras olladas de esguello, mirárona fite a fite, nun feble sorriso enchouchador e arelante.
"Da Agra Aberta", Victoriano Taibo
(Victoriano Taibo nasceu no dia 22 de Abril de 1885. Morreu em 1966.)
Quando a ordem dos factores é preponderante
O pai: - Afinal como é que se chama esse teu namorado secreto? Tem nome, ao menos?
A filha: - Tem. Chama-se Mónica.
O pai: - Mónica?
A filha: - Mónica.
O pai: - Mónica, do género José da Silva Mónica?
A filha: - Não. Mónica, tipo Mónica da Silva José.
A filha: - Tem. Chama-se Mónica.
O pai: - Mónica?
A filha: - Mónica.
O pai: - Mónica, do género José da Silva Mónica?
A filha: - Não. Mónica, tipo Mónica da Silva José.
Fafe celebra a liberdade (25 de Abril 2016)
Comemorações do 42º. aniversário do 25 de Abril em Fafe. A partir de amanhã, sexta-feira 22, até à próxima segunda-feira, dia maior, em que destaco a Homenagem aos Combatentes da Guerra Colonial, pelas 10h30, junto ao monumento, na Avenida do Brasil. Mais informação e programa completo, aqui.
quarta-feira, 20 de abril de 2016
Hilda Hilst 4
Araras versáteis
Araras versáteis. Prato de anêmonas.
O efebo passou entre as meninas trêfegas.
O rombudo bastão luzia na mornura das calças e do dia.
Ela abriu as coxas de esmalte, louça e umedecida laca
E vergastou a cona com minúsculo açoite.
O moço ajoelhou-se esfuçando-lhe os meios
E uma língua de agulha, de fogo, de molusco
Empapou-se de mel nos refolhos robustos.
Ela gritava um êxtase de gosmas e de lírios
Quando no instante alguém
Numa manobra ágil de jovem marinheiro
Arrancou do efebo as luzidias calças
Suspendeu-lhe o traseiro e aaaaaiiiii...
E gozaram os três entre os pios dos pássaros
Das araras versáteis e das meninas trêfegas.
Hilda Hilst
(Hilda Hilst nasceu no dia 21 de Abril de 1930. Morreu em 2004.)
Araras versáteis. Prato de anêmonas.
O efebo passou entre as meninas trêfegas.
O rombudo bastão luzia na mornura das calças e do dia.
Ela abriu as coxas de esmalte, louça e umedecida laca
E vergastou a cona com minúsculo açoite.
O moço ajoelhou-se esfuçando-lhe os meios
E uma língua de agulha, de fogo, de molusco
Empapou-se de mel nos refolhos robustos.
Ela gritava um êxtase de gosmas e de lírios
Quando no instante alguém
Numa manobra ágil de jovem marinheiro
Arrancou do efebo as luzidias calças
Suspendeu-lhe o traseiro e aaaaaiiiii...
E gozaram os três entre os pios dos pássaros
Das araras versáteis e das meninas trêfegas.
Hilda Hilst
(Hilda Hilst nasceu no dia 21 de Abril de 1930. Morreu em 2004.)
A mulher que não acreditava na religião verdadeira
Bateram à porta e a D. Amélia abriu. Pensava que era o carteiro. Eram duas senhoras muito simpáticas com uma revista nas mãos. A revista chamava-se A Sentinela e as duas senhoras muito simpáticas queriam falar, mas a D. Amélia não as queria ouvir. Que não tinha vagar para revistas nem para jornais, que fizessem o favor de ir andando, que ela tinha mais que fazer. As pessoas com 84 anos e sós são mesmo assim, estão sempre muito ocupadas. As duas senhoras muito simpáticas, e pacientes, insistiam de pé na porta e revista em riste, falavam do mundo, da Bíblia, de profecias, do Reino de Deus, de Jesus Cristo, de religião, e aqui, alto e pára o baile, a D. Amélia arrebitou as orelhas e perguntou: - Ai vocês são da religião?...
- Somos Testemunhas de Jeová - responderam as duas senhoras muito simpáticas e pacientes.
- Olha, ainda por cima jeovás! Rua, andor daqui para fora! - mandou a D. Amélia, sacando do toco de vassoura, mais rápida que a própria sombra. - Eu não acredito nessas lérias. Eu não acredito na religião católica, que é a verdadeira, e ia agora... Xô, xô, xô, já disse!
- Somos Testemunhas de Jeová - responderam as duas senhoras muito simpáticas e pacientes.
- Olha, ainda por cima jeovás! Rua, andor daqui para fora! - mandou a D. Amélia, sacando do toco de vassoura, mais rápida que a própria sombra. - Eu não acredito nessas lérias. Eu não acredito na religião católica, que é a verdadeira, e ia agora... Xô, xô, xô, já disse!
terça-feira, 19 de abril de 2016
Rosa Lobato de Faria 4
Se eu morrer de manhã
Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.
Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a morte é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.
Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
- o único que sei.
Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.
Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.
Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei.
"Poemas Escolhidos e Dispersos", Rosa Lobato de Faria
(Rosa Lobato de Faria nasceu no dia 20 de Abril de 1932. Morreu em 2010.)
Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.
Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a morte é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.
Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
- o único que sei.
Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.
Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.
Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei.
"Poemas Escolhidos e Dispersos", Rosa Lobato de Faria
(Rosa Lobato de Faria nasceu no dia 20 de Abril de 1932. Morreu em 2010.)
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