Foto Hernâni Von Doellinger |
quarta-feira, 30 de setembro de 2015
Vicente Risco 3
U... ju... juu...
(poema futurista)
Terra
Vicente Risco
(poema futurista)
Terra
Duas áas diagonaladas d’azur baten no mar
Sóbor do Atlántico a diástole imensa da raza
Vapor en todol-os motores do mundo
Añudadol-os nosos nervos á todol-os fíos eléctricos
Terra
A Cruña fita as brétemas d’Irlanda
Vigo os raña-ceos de Nova York
GALICIA FOR EVER
CRUÑA
Puntos de tensión maxima da vida
VIGO
Terra.
Nudo de todol-os fíos
Enfiando todal-as vilas do mundo
Todal-as sirenas a un tempo a sonar
Trés pintados de sol furando a terra
No cabo de todol-os paralelos
Terra
As flechas das arelas solagadas da Atlántida
Nas nosas espadañas
Onde repican ó bautizo dos séculos novos
Antenas pra radiografial-os nosos himnos ás estrelas
Terra
Folgos de millós de peitos
Mañan
Brinco de todal-as vontades
Estralar de todol-os miolos
Terra
N. S. E. W.
Terra
Chuvia d’estrelas
Alborada
Lóstrego
Rayos X
Profecía
Terra
O ceo rachou d’arriba abaixo
Terra
HIP HIP HIP
HURRA
Vicente Risco
(Vicente Risco nasceu no dia 1 de Outubro de 1884. Morreu em 1963.)
terça-feira, 29 de setembro de 2015
Mais uma para Guilherme Pinto
Foto Hernâni Von Doellinger |
E, pronto, a segunda antena aí está, ainda mais firme e hirta do que a outra, mas igualmente enfiada nas traseiras daquele empreendimento muito jeitoso e razoavelmente exclusivo sito em Matosinhos-Sul, mesmo em frente ao mar e à praia. O braço-de-ferro entre a autarquia e os refinados moradores vinha pelo menos desde Maio do ano passado, parecendo agora que Guilherme Pinto ganhou mais uma vez. São, portanto, 3-0 a favor do presidente da Câmara. A nova e alva antena de telecomunicações apareceu lá hoje de manhã, como que por artes mágicas. Não sei se a coisa vai ficar assim. Na minha terra, e para estes casos, diz-se que incha, desincha e passa. Seja como for, espero em pulgas pelos próximos capítulos.
(Os anteriores episódios desta apaixonante novela podem ser lidos aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.)
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
Burro velho não toma andadura
- Desculpa-me que te diga, mas sempre foste infantil. Toda a tua vida te portaste como uma criança. Também não será agora, aos 93 anos, que te vais armar em homenzinho, pois não?...
domingo, 27 de setembro de 2015
António Jacinto 2
Oração
Mãe
Agora que tu partiste que será do teu menino?
Quem rirá da minhas partidas
e travessuras?
Quem terá indulgências aos erros meus
e sentirá as minhas amarguras?
Quem me contará histórias de encantar
das fadas e do fantástico
- ainda preciso delas, Mãe -
Quem me ensinará as primeiras letras da Cartilha Maternal
me falará das estrelas
da África
da Europa do Atlântico do Universo
me ensinará amor pelas andorinhas e pelos humildes
e me ensinará humanidade?
Quem?
Agora que te foste embora
(quantas lágrimas por mim choraste,
e choraste por ti à partida?)
onde um regaço para pousar minha cabeça de cansaços?
Mãe
agora que partiste
o teu menino está perdido na floresta de gigantes maus
Escuta Mãe
o teu menino será forte
como quiseste
("come Antoninho"
"come Antoninho")
e saberá pelas estrelas
encontrar o caminho da nossa casa
Mãe
Agora que tu partiste
ainda estamos sempre juntos
(cordão umbilical inquebrável nos ligou)
ainda estamos juntos
a cada raio de sol
a cada revérbero de Lua no mar
a cada murmuro lamento da floresta no Golungo
- sempre juntos
Mãe.
"Sobreviver em Tarrafal de Santiago", António Jacinto
(António Jacinto nasceu no dia 28 de Setembro de 1924. Morreu em 1991.)
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Sobreviver em Tarrafal de Santiago
sábado, 26 de setembro de 2015
O homem-máquina
O homem-máquina gripou. Foi ao centro de saúde. Mandaram-no para a oficina. Obviamente.
sexta-feira, 25 de setembro de 2015
Lugares-(in)comuns 120
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Rua de Brito e Cunha,
série Lugares-(in)comuns
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
Daniel Pernas Nieto
Salaios
Por qué chora, preguntas a un bardo,
d´a terra galega;
pois choro porque levo n-o peito
un feixe de penas;
porque as casas d´a miña terriña
inda non fumegan,
que soliñas, soliñas quedaron
n-o bico d´aldea,
i-agora non hai quen desbrave
as irtas restrebas;
miña terra, terriña querida,
pois choro porque levo n-o peito
un feixe de penas;
porque as casas d´a miña terriña
inda non fumegan,
que soliñas, soliñas quedaron
n-o bico d´aldea,
i-agora non hai quen desbrave
as irtas restrebas;
miña terra, terriña querida,
que soia te quedas,
que os homes que inda non te conocen
así te desprécean
vindo logo de terras extrañas
sin sangue nas venas;
por qué choro, preguntas filliño,
porque non fumegan,
¡ai!, as casas da nosa terriña
n-o bico d´aldea.
"Fala das Musas e Outros Poemas", Daniel Pernas Nieto
(Daniel Pernas Nieto nasceu no dia 25 de Setembro de 1884. Morreu em 1946.)
"Fala das Musas e Outros Poemas", Daniel Pernas Nieto
(Daniel Pernas Nieto nasceu no dia 25 de Setembro de 1884. Morreu em 1946.)
quarta-feira, 23 de setembro de 2015
O homem-estátua
Porto. Ao fim de 35 anos de inabalável serviço na ex-libríssima Avenida dos Aliados, o homem-estátua chamou o fiscal da Câmara num pst! muito bem disfarçado. "Ó colega, isto aqui já não dá nada. Vou-me embora, provavelmente para Moçambique e levo um guarda-sol. Lembras-te do Relvas? Sabias que sempre que os portugueses emigram têm uma visão universalista que lhes traz sucesso?", disse o homem-estátua ao fiscal camarário, por entre dentes e sem perder a pose. Era efectivamente um homem-estátua muito profissional e filósofo. "Além disso, estou farto de que me caguem em cima", acrescentou, descendo finalmente do banco de cozinha e arrumando os tarecos em dois sacos plásticos do Pingo Doce do tempo em que os sacos plásticos eram de borla. "As pombas?", perguntou o fiscal da Câmara, que era um bocado lento. "Os pombos, Pedro e o Paulo", respondeu o homem-estátua.
Antonio Tabucchi 3
Pensei: o gajo nunca mais chega. E depois pensei: não posso chamar-lhe "gajo", é um grande poeta, talvez o maior poeta do século vinte, morreu há muitos anos, tenho de o tratar com respeito, ou melhor, com respeitinho. Mas entretanto começava a aborrecer-me, o sol dardejava, o sol do fim de Julho, e pensei ainda: estou de férias, estava tão bem lá em Azeitão, na quinta dos meus amigos, por que é que aceitei este encontro aqui no cais?, tudo isto é absurdo. E olhei aos meus pés a silhueta da minha sombra, e também me pareceu absurda, incongruente, não tinha sentido, era uma silhueta curta, esmagada pelo sol do meio-dia, e foi então que me lembrei: ele tinha marcado às doze, mas talvez quisesse dizer doze da noite, porque os fantasmas aparecem à meia-noite. Levantei-me e percorri o cais. Na avenida, o trânsito tinha parado, passavam poucos carros, alguns com chapéus-de-sol no porta-bagagem, era tudo gente que ia para as praias da Caparica, estava um dia quentíssimo, pensei: o que faço eu aqui no último domingo de Julho?, e acelerei o passo para ver se chegava o mais rapidamente possível a Santos, talvez no jardim estivesse um pouco mais fresco.
O jardim estava deserto, estava só o homem dos jornais em frente da sua banca. Aproximei-me e o homem sorriu. O Benfica ganhou, disse radiante, já viu as notícias? Fiz sinal que não, que ainda não tinha visto e o homem disse: foi um jogo nocturno em Espanha, um jogo de beneficência. Comprei A Bola e escolhi um banco para me sentar. Estava a ler como se tinha passado o lance do jogo que tinha levado o Benfica a marcar o golo da vitória contra o Real Madrid, quando ouvi dizer: bom dia, e levantei a cabeça. Bom dia, repetiu o jovem de barbas que estava na minha frente, precisava da sua ajuda. Ajuda para quê?, perguntei eu. Ajuda para comer, disse o rapaz, há dois dias que estou sem comer. Era um rapaz dos seus vinte anos, de blue-jeans e camisa, que me estendia timidamente a mão como se me pedisse esmola. Era loiro e tinha duas grandes olheiras. Dois dias sem tomar droga, disse eu instintivamente, e o jovem replicou: é a mesma coisa, também é comida, pelo menos para mim. Em princípio sou a favor de todas as drogas, disse eu, leves e pesadas, mas só em princípio, na prática sou contra, desculpe, sou um intelectual burguês cheio de preconceitos, não posso aceitar que você faça uso de drogas neste jardim público oferecendo uma imagem desoladora do seu corpo, desculpe mas é contra os meus princípios, talvez eu pudesse admitir que você se drogasse na sua casa como se fazia antigamente, na companhia de amigos inteligentes e cultos ouvindo Mozart ou Erik Satie. A propósito, acrescentei, gosta do Erik Satie? O Rapaz Drogado olhou para mim com ar espantado. É um amigo seu?, perguntou.
"Requiem - Uma Alucinação", Antonio Tabucchi
(Antonio Tabucchi nasceu no dia 24 de Setembro de 1943. Morreu em 2012.)
O homem-bala
Cabisbaixo e de mala na mão, o homem-bala apresentou-se logo de manhãzinha na rulote da gerência. Ia-se embora, para casa. Tinha descoberto durante a noite que era objector de consciência.
O homem-sanduíche
O homem-sanduíche chegou a casa mais uma vez sem dinheiro. E finalmente deu-se de comer aos filhos esqueléticos e esfomeados.
terça-feira, 22 de setembro de 2015
Abel Botelho 3
Naquela noite de Março, desabrida e húmida, uma grande animação fervilhava alacremente ao fundo da Rua do Salitre. Era em 1867. Frente a frente, as Variedades e o Circo Price alinhavam os seus bicos de gás festeiros, a que as vergastadas do noroeste impunham um tremelilhar inquieto. Quinta-feira - noite de cabriolas com sobrescrito à fina sociedade. Enchente certa no Circo. De cada lado do portal da entrada, um semicírculo compacto de gente se agitava, tendo por centro cada um seu postigo de bilheteiro, e ambos por igual colados, premidos sofregamente contra a parede verdoenga do barracão, e arredondando pela rua fora, numa irregularidade gritada e confusa, a toda a largura do macadame. Tudo queria bilhete. Havia chapéus tombados, ombros que penetravam à cunha, braços arpoando vigorosamente os alizares castanhos dos postigos, mãos retirando triunfantes, muito erguidas, com um papelinho azul ao vento.
A cada minuto a agitação crescia. Pregoava-se água fresca, pastelinhos, tâmaras. Dum primeiro andar, com tabuinhas verdes, logo abaixo do Circo, meninas de batas brancas convidavam: - Psiu! não sobes, ó catitinha? - aos janotas que passavam. Rodopiava no ar, a cada estocada de vento, um cheiro pelintra a iscas e a refogado. A iluminação profusa dos dois teatros doirava, remoçava, erguia as caliças octogenárias das Variedades, acendia espelhamentos fulvos no basalto húmido da calçada, e fazia entrever na penumbra, pela rua acima, o renque tortuoso dos prédios que subiam. A espaços, um trem rodava; e, no seu rápido passar entre os dois teatros, uma dupla fita de fogo lhe corria na fluidez do polimento.
Um homem vagueava ali, contudo, que não parecia dar-se grande pressa em entrar. la e vinha, parava, esquadrinhava a multidão, passava automaticamente de grupo a grupo, nesta ansiedade tortuosa de quem procura com aferro alguém. No olhar, dilatado e teimoso, duma secura inflamada e vítrea, fulgurava a obstinação dum desejo; ao passo que na boca a brasa do charuto, num labirinto febril de pequeninos movimentos bruscos, denotava que os lábios e as maxilas eram nervosamente sacudidos por uma forte preocupação animal.
"O Barão de Lavos", Abel Botelho
(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)
A cada minuto a agitação crescia. Pregoava-se água fresca, pastelinhos, tâmaras. Dum primeiro andar, com tabuinhas verdes, logo abaixo do Circo, meninas de batas brancas convidavam: - Psiu! não sobes, ó catitinha? - aos janotas que passavam. Rodopiava no ar, a cada estocada de vento, um cheiro pelintra a iscas e a refogado. A iluminação profusa dos dois teatros doirava, remoçava, erguia as caliças octogenárias das Variedades, acendia espelhamentos fulvos no basalto húmido da calçada, e fazia entrever na penumbra, pela rua acima, o renque tortuoso dos prédios que subiam. A espaços, um trem rodava; e, no seu rápido passar entre os dois teatros, uma dupla fita de fogo lhe corria na fluidez do polimento.
Um homem vagueava ali, contudo, que não parecia dar-se grande pressa em entrar. la e vinha, parava, esquadrinhava a multidão, passava automaticamente de grupo a grupo, nesta ansiedade tortuosa de quem procura com aferro alguém. No olhar, dilatado e teimoso, duma secura inflamada e vítrea, fulgurava a obstinação dum desejo; ao passo que na boca a brasa do charuto, num labirinto febril de pequeninos movimentos bruscos, denotava que os lábios e as maxilas eram nervosamente sacudidos por uma forte preocupação animal.
"O Barão de Lavos", Abel Botelho
(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
Para bom entendedor
- Então já soubeste do gajo...
- Oh!, pá...
- O gajo...
- É sempre o mesmo...
- Diz-me ele...
- Tem a mania...
- Mas eu...
- Fizeste bem...
- Sabes como é que eu sou...
- És...
- Ele ainda começou...
- Mas tu...
- Havias de ter visto...
- Faço ideia...
- Um gajo tem...
- A quem o dizes...
- Gostei de falar contigo.
- Ainda bem que resolveste o assunto.
- Qual assunto?
- O teu assunto com o gajo.
- Qual gajo?
- Oh!, pá...
- Oh!, pá...
- O gajo...
- É sempre o mesmo...
- Diz-me ele...
- Tem a mania...
- Mas eu...
- Fizeste bem...
- Sabes como é que eu sou...
- És...
- Ele ainda começou...
- Mas tu...
- Havias de ter visto...
- Faço ideia...
- Um gajo tem...
- A quem o dizes...
- Gostei de falar contigo.
- Ainda bem que resolveste o assunto.
- Qual assunto?
- O teu assunto com o gajo.
- Qual gajo?
- Oh!, pá...
Weather report
- Isto é que tem estado!...
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.
domingo, 20 de setembro de 2015
Herberto Sales 3
Quando, revolvendo as gavetas de velhas cômodas, e os baús e as arcas de guardados da minha família, acumulados com o tempo no depósito do sobrado, comecei a recolher, em Andaraí, muitos anos depois da morte de tio Marcelino, aquele esparso material evocativo da sua vida, a ressurgir do desbotado antigo e grave de fotografias, álbuns, cartas, e dos postais enviados do estrangeiro à minha mãe - considerei, nas boas lembranças suscitadas por aquelas relíquias de intimidade familiar, o sombrio contraste daqueles anos de solidão no palacete, culminados num episódio tão dramático para todos nós. Sim: nunca hei de me esquecer. Estava em aula, absorvido nos meus apontamentos, quando o Professor Costa Pereira irrompeu na sala, transtornado, e me pediu que o acompanhasse sem me deixar sequer recolher os livros e os cadernos:
- Deixe isso aí; depois você apanha. Vamos!
No corredor, andando apressado à minha frente, deixou escapar, nervoso, esta breve frase:
- Seu tio sofreu um acidente.
Quase a correr, transpôs o portão do colégio, e ganhou a rua, sem chapéu, o paletó a descair-lhe dos ombros, desabotoado, e rumou para a Avenida Bastos, que ficava perto. Eu me esforçava por emparelhar-me com ele, ao longo da calçada, sem o conseguir; no meu aturdimento, estranhava que o bom Costa Pereira, homem de morosidades e de estudo, perdido nos seus vagares, se agitasse tanto, naquele ímpeto inusitado. Hoje, compreendo os motivos da sua grande pressa, determinada por uma aflição de espírito que, naquela época, certamente escapava à minha percepção de menino. Ao chegarmos ao palacete, havia alguns curiosos estacionados no passeio; uma ambulância se afastava, branca e veloz. Não era, como as atuais, provida de sirene. Fazia soar uma estridente campainha, a pedir passagem, num alarido de urgência e desespero, amortecido aos poucos na distância, entre o rumor dos bondes, no fim da rua. Ainda com aquele agoniado toque a vibrar nos ouvidos, atravessamos o jardim; e, ao aproximarmo-nos da varanda, senti no ar, como a desprender-se das palmeiras, um cheiro abafado de fumaça. Curioso, lancei os olhos ao recanto onde meu tio habitualmente se entregava ao trato dos seus adubos, na ideia de encontrá-lo ali. O que vi, entretanto, foram uns estranhos sinais de desordem - terra espalhada no chão, vasos quebrados, e em meio àquilo uma peneira chamuscada. Sem dúvida, lavrara no local um começo de incêndio, de que havia vestígios mais evidentes nuns sacos de aniagem enegrecidos pelo fogo. Devia ter sido apagado com a mangueira da rega, a esguichar ainda um fio de água nos ladrilhos, enquanto o velho Alfredo fechava precipitadamente a torneira. Não me foi difícil então localizar o cheiro: todo aquele trecho da varanda cheirava a queimado. E, como primeiro indício de que algo muito mais grave ocorrera no palacete, a cozinheira, trêmula, a um canto, enxugava com o avental os olhos marejados de lágrimas. Um indício mais claro surgiria logo depois: fomos encontrar tia Edite na sala, derreada numa cadeira, chorando, e o Vilela a seu lado, muito pálido, a dar-lhe a beber num copo um calmante. Ia pela casa uma desolação. Havia como um vazio, a indicar, naquela atmosfera pesada, de reposteiros e candelabros, a mudança, o fim de alguma coisa imponderável. Erguendo os braços, na sua aflição, Costa Pereira correu para Vilela:
- Acabo de ser avisado do acidente. Mas que houve?
E Vilela, inda com o copo de remédio na mão:
- Uma desgraça! Uma desgraça! A ambulância acaba de levar Marcelino para o hospital. Vamos para lá agora mesmo.
"Dados Biográficos do Finado Marcelino", Herberto Sales
(Herberto Sales nasceu no dia 21 de Setembro de 1917. Morreu em 1999.)
- Deixe isso aí; depois você apanha. Vamos!
No corredor, andando apressado à minha frente, deixou escapar, nervoso, esta breve frase:
- Seu tio sofreu um acidente.
Quase a correr, transpôs o portão do colégio, e ganhou a rua, sem chapéu, o paletó a descair-lhe dos ombros, desabotoado, e rumou para a Avenida Bastos, que ficava perto. Eu me esforçava por emparelhar-me com ele, ao longo da calçada, sem o conseguir; no meu aturdimento, estranhava que o bom Costa Pereira, homem de morosidades e de estudo, perdido nos seus vagares, se agitasse tanto, naquele ímpeto inusitado. Hoje, compreendo os motivos da sua grande pressa, determinada por uma aflição de espírito que, naquela época, certamente escapava à minha percepção de menino. Ao chegarmos ao palacete, havia alguns curiosos estacionados no passeio; uma ambulância se afastava, branca e veloz. Não era, como as atuais, provida de sirene. Fazia soar uma estridente campainha, a pedir passagem, num alarido de urgência e desespero, amortecido aos poucos na distância, entre o rumor dos bondes, no fim da rua. Ainda com aquele agoniado toque a vibrar nos ouvidos, atravessamos o jardim; e, ao aproximarmo-nos da varanda, senti no ar, como a desprender-se das palmeiras, um cheiro abafado de fumaça. Curioso, lancei os olhos ao recanto onde meu tio habitualmente se entregava ao trato dos seus adubos, na ideia de encontrá-lo ali. O que vi, entretanto, foram uns estranhos sinais de desordem - terra espalhada no chão, vasos quebrados, e em meio àquilo uma peneira chamuscada. Sem dúvida, lavrara no local um começo de incêndio, de que havia vestígios mais evidentes nuns sacos de aniagem enegrecidos pelo fogo. Devia ter sido apagado com a mangueira da rega, a esguichar ainda um fio de água nos ladrilhos, enquanto o velho Alfredo fechava precipitadamente a torneira. Não me foi difícil então localizar o cheiro: todo aquele trecho da varanda cheirava a queimado. E, como primeiro indício de que algo muito mais grave ocorrera no palacete, a cozinheira, trêmula, a um canto, enxugava com o avental os olhos marejados de lágrimas. Um indício mais claro surgiria logo depois: fomos encontrar tia Edite na sala, derreada numa cadeira, chorando, e o Vilela a seu lado, muito pálido, a dar-lhe a beber num copo um calmante. Ia pela casa uma desolação. Havia como um vazio, a indicar, naquela atmosfera pesada, de reposteiros e candelabros, a mudança, o fim de alguma coisa imponderável. Erguendo os braços, na sua aflição, Costa Pereira correu para Vilela:
- Acabo de ser avisado do acidente. Mas que houve?
E Vilela, inda com o copo de remédio na mão:
- Uma desgraça! Uma desgraça! A ambulância acaba de levar Marcelino para o hospital. Vamos para lá agora mesmo.
"Dados Biográficos do Finado Marcelino", Herberto Sales
(Herberto Sales nasceu no dia 21 de Setembro de 1917. Morreu em 1999.)
sábado, 19 de setembro de 2015
E se o António e o Pedro fossem lamber sabão?
Havia o sabão azul, o sabão rosa e o sabão amarelo. O sabão azul era o sabão macaco, para lavar roupa de barba rija, o sabão rosa já naquele tempo era para peças mais delicadas e o sabão amarelo era para lavar as escadas e os soalhos, que, em muitas casas, depois seriam encerados. Para os ricos, havia também o sabão Clarim, que parecia uma barra de queijo e não faltou quem o comesse e cagasse bolhinhas, as famosas bolhinhas de sabão, que hoje em dia se fazem pela boca, basta ver os "debates" na televisão. Por falar em boca, havia também o sabão para lamber, que eu nunca soube de que cor era nem que sabor tinha, nem sequer se fazia bolhinhas, mas era o que a minha mãe me mandava fazer, "Vai lamber sabão", quando eu andava à roda dela a arengar conversa sem assunto.
Alberto de Lacerda 2
Ilha de Moçambique
Desfeitos um por um os nós sombrios,
Anulada a distância entre o desejo
E o sonho coincidente como um beijo,
Exalei mapas que exalaram rios.
Terra secreta, continentes frios,
Ardei à luz dum sol que é rumorejo
Para lá do que eu sou, do que eu invejo
Aos elementos, aos altos navios!
Trouxe de longe o palácio sepulto,
A cobra semimorta, a bandarilha,
E esqueci poços, prossegui oculto.
Desdém que envolve por completo a quilha,
Sou bem o rei saudoso do seu vulto,
Vulto que existe infante numa ilha.
Alberto de Lacerda
(Alberto de Lacerda nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 2007.)
Desfeitos um por um os nós sombrios,
Anulada a distância entre o desejo
E o sonho coincidente como um beijo,
Exalei mapas que exalaram rios.
Terra secreta, continentes frios,
Ardei à luz dum sol que é rumorejo
Para lá do que eu sou, do que eu invejo
Aos elementos, aos altos navios!
Trouxe de longe o palácio sepulto,
A cobra semimorta, a bandarilha,
E esqueci poços, prossegui oculto.
Desdém que envolve por completo a quilha,
Sou bem o rei saudoso do seu vulto,
Vulto que existe infante numa ilha.
Alberto de Lacerda
(Alberto de Lacerda nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 2007.)
sexta-feira, 18 de setembro de 2015
O poder do sabão
Quitério era muito cuidadoso com a ferramenta. Todos os dias, de manhã e à noite, lavava as intimidades com um bom naco de sabão azul. O sabão, se não me engano, é um poderoso desinfectante e antibacteriano. Um dia, faltando sabão azul em casa, Quitério lavou-se com sabão rosa. Nunca mais foi o mesmo homem.
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
"Quatro notas sobre o debate"
O título está entre aspas porque não é meu, é do João Miguel Tavares, no Público digital de hoje. Mas eu queria era falar das minhas quatro notas, as minhas: a de cinco euros, a de dez euros, a de vinte euros e a de cinquenta euros que me dá quase para mês e meio. São as quatro notas que eu conheço, as notas que, nunca pior, me passam pelas mãos. Muito raramente, é verdade, o que me desgosta sobremaneira, estando o País já tão bem menos eu. Se calhar isto é que é o "ponto de Arquimedes", que tinha a mania de jogar para o empate e fodeu-se. E sobre o "debate" é o que se oferece dizer.
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
José Régio 3
Fado português
O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Ai, que lindeza tamanha,
meu chão, meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.
Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.
Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.
Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
"Poemas de Deus e do Diabo", José Régio
(José Régio nasceu no dia 17 de Setembro de 1901. Morreu em 1969.)
O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Ai, que lindeza tamanha,
meu chão, meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.
Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.
Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.
Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
"Poemas de Deus e do Diabo", José Régio
(José Régio nasceu no dia 17 de Setembro de 1901. Morreu em 1969.)
Cuidado, o bocejo de cão pode ser contagioso
O dono do cão bocejou com toda a categoria, e o cão do dono não lhe ficou atrás - bocejou também, canicamente embora, mas num bocejar perfeito e que, se fossem a meças, não ficaria atrás do outro. E eu, que pensava que o contágio bocejal era coisa entre pessoas unicamente, sorri e depois ri, e, enquanto me ria, bocejei também, sem poder mandar em mim. Isto foi palavra de honra, no cruzamento da Rua de Brito Capelo com a Avenida da República, em Matosinhos, uma destas noites, tenho a minha mulher por testemunha. Moral possível da história: se verificarmos com cuidado, todos somos um bocadinho cães, não é?
Fafe dos Brasileiros 2015 (o programa)
No próximo fim-de-semana, 18 a 20 de Setembro, Fafe dos Brasileiros 2015. A Câmara Municipal diz que, por esses dias, "Fafe vai tornar-se a cidade mais brasileira do país", com "recriações históricas, desfiles, bailes de época, chorinho, fado e muita animação". Programa, agora aqui.
terça-feira, 15 de setembro de 2015
Emilia Pardo Bazán 2
Que la boda no era de gentes del gran mundo, conocíase a tiro de ballesta, a la primer ojeada. No hay duda que los desposados podían alternar con la más selecta sociedad, al menos por su aspecto exterior; pero la mayoría del acompañamiento, el coro, pertenecía a la clase media, en el límite en que casi se funde con la masa popular. Había grupos curiosos y dignos de examen, ofreciendo el andén de la estación de León golpe de vista muy interesante para un pintor de género y costumbres.
Ni más ni menos que en los países de abanico cuyas mitológicas pinturas representan nupcias, se notaba allí que el séquito de la novia lo componían hembras, y sólo individuos del sexo fuerte formaban el del novio. Advertíase asimismo gran diferencia entre la condición social de uno y otro cortejo. La escolta de la novia, mucho más numerosa, parecía poblado hormiguero: viejas y mozas llevaban el sacramental traje de negra lana, que viene a ser como uniforme de ceremonia para la mujer de clase inferior, no exenta, sin embargo, de ribetes señoriles: que el pueblo conserva aun el privilegio de vestirse de alegres colores en las circunstancias regocijadas y festivas. Entre aquellas hormigas humanas habíalas de pocos años y buen palmito, risueñas unas y alborotadas con la boda, otras quejumbrosicas y encendidos los ojos de llorar, con la despedida. Media docena de maduras dueñas las autorizaban, sacando de entre el velo del manto la nariz, y girando a todas partes sus pupilas llenas de experiencia y malicia. Todo el racimo de amigas se apiñaba en torno de la nueva esposa, manifestando la pueril y ávida curiosidad que despierta en las multitudes el espectáculo de las situaciones supremas de la existencia. Se estaban comiendo a miradas a la que mil veces vieran, a la que ya de memoria sabían: a la novia, que con el traje de camino se les figuraba otra mujer, diversísima de la conocida hasta entonces. Contaría la heroína de la fiesta unos diez y ocho años: aparentaba menos, atendiendo al mohín infantil de su boca y al redondo contorno de sus mejillas, y más, consideradas las ya florecientes curvas de su talle, y la plenitud de robustez y vida de toda su persona. Nada de hombros altos y estrechos, nada de inverosímiles caderas como las que se ven en los grabados de figurines, que traen a la memoria la muñeca rellena de serrín y paja; sino una mujer conforme, no al tipo convencional de la moda de una época, pero al tipo eterno de la forma femenina, tal cual la quisieron natura y arte. Acaso esta superioridad física perjudicaba un tanto al efecto del caprichoso atavío de viaje de la niña: tal vez se requería un cuerpo más plano, líneas más duras en los brazos y cuello, para llevar con el conveniente desenfado el traje semimasculino, de paño marrón, y la toca de paja burda, en cuyo casco se posaba, abiertas las alas, sobre un nido de plumas, tornasolado colibrí. Notábase bien que eran nuevas para la novia tales extrañezas de ropaje, y que la ceñida y plegada falda, el casaquín que modelaba exactamente su busto le estorbaban, como suele estorbar a las doncellas en el primer baile la desnudez del escote: que hay en toda moda peregrina algo de impúdico para la mujer de modestas costumbres. Además, el molde era estrecho para encerrar la bella estatua, que amenazaba romperlo a cada instante, no precisamente con el volumen, sino más bien con la libertad y soltura de sus juveniles movimientos. No se desmentía en tan lucido ejemplar la raza del recio y fornido anciano, del padre que allí se estaba derecho, sin apartar de su hija los ojos. El viejo, alto, recto y firme, como un poste del telégrafo, y un jesuita bajo y de edad mediana, eran los únicos varones que descollaban entre el consabido hormiguero femenil.
"Un Viaje de Novios", Emilia Pardo Bazán
(Emilia Pardo Bazán nasceu no dia 16 de Setembro de 1851. Morreu em 1921.)
Ni más ni menos que en los países de abanico cuyas mitológicas pinturas representan nupcias, se notaba allí que el séquito de la novia lo componían hembras, y sólo individuos del sexo fuerte formaban el del novio. Advertíase asimismo gran diferencia entre la condición social de uno y otro cortejo. La escolta de la novia, mucho más numerosa, parecía poblado hormiguero: viejas y mozas llevaban el sacramental traje de negra lana, que viene a ser como uniforme de ceremonia para la mujer de clase inferior, no exenta, sin embargo, de ribetes señoriles: que el pueblo conserva aun el privilegio de vestirse de alegres colores en las circunstancias regocijadas y festivas. Entre aquellas hormigas humanas habíalas de pocos años y buen palmito, risueñas unas y alborotadas con la boda, otras quejumbrosicas y encendidos los ojos de llorar, con la despedida. Media docena de maduras dueñas las autorizaban, sacando de entre el velo del manto la nariz, y girando a todas partes sus pupilas llenas de experiencia y malicia. Todo el racimo de amigas se apiñaba en torno de la nueva esposa, manifestando la pueril y ávida curiosidad que despierta en las multitudes el espectáculo de las situaciones supremas de la existencia. Se estaban comiendo a miradas a la que mil veces vieran, a la que ya de memoria sabían: a la novia, que con el traje de camino se les figuraba otra mujer, diversísima de la conocida hasta entonces. Contaría la heroína de la fiesta unos diez y ocho años: aparentaba menos, atendiendo al mohín infantil de su boca y al redondo contorno de sus mejillas, y más, consideradas las ya florecientes curvas de su talle, y la plenitud de robustez y vida de toda su persona. Nada de hombros altos y estrechos, nada de inverosímiles caderas como las que se ven en los grabados de figurines, que traen a la memoria la muñeca rellena de serrín y paja; sino una mujer conforme, no al tipo convencional de la moda de una época, pero al tipo eterno de la forma femenina, tal cual la quisieron natura y arte. Acaso esta superioridad física perjudicaba un tanto al efecto del caprichoso atavío de viaje de la niña: tal vez se requería un cuerpo más plano, líneas más duras en los brazos y cuello, para llevar con el conveniente desenfado el traje semimasculino, de paño marrón, y la toca de paja burda, en cuyo casco se posaba, abiertas las alas, sobre un nido de plumas, tornasolado colibrí. Notábase bien que eran nuevas para la novia tales extrañezas de ropaje, y que la ceñida y plegada falda, el casaquín que modelaba exactamente su busto le estorbaban, como suele estorbar a las doncellas en el primer baile la desnudez del escote: que hay en toda moda peregrina algo de impúdico para la mujer de modestas costumbres. Además, el molde era estrecho para encerrar la bella estatua, que amenazaba romperlo a cada instante, no precisamente con el volumen, sino más bien con la libertad y soltura de sus juveniles movimientos. No se desmentía en tan lucido ejemplar la raza del recio y fornido anciano, del padre que allí se estaba derecho, sin apartar de su hija los ojos. El viejo, alto, recto y firme, como un poste del telégrafo, y un jesuita bajo y de edad mediana, eran los únicos varones que descollaban entre el consabido hormiguero femenil.
"Un Viaje de Novios", Emilia Pardo Bazán
(Emilia Pardo Bazán nasceu no dia 16 de Setembro de 1851. Morreu em 1921.)
Entre piçada e pissada, que escolha quem puder
A palavra apareceu-me à esquina pela pena do cronista Ferreira Fernandes, que eu tando respeito e admiro, embora lastime que ele tenha amouchado perante o, por assim dizer, novo acordo ortográfico. A palavra é "pissada". Andei à procura dela e não a vi em sítio de respeito, em local de idoneidade gramatical que me obrigasse a pensar: sim, "pissada" é mesmo assim. Mas, pronto, que seja "pissada", porque, na verdade, encontrei duas ou três "pissas" em dicionários alternativos. Eu, pela parte que me toca, continuarei a piçar com toda a potência, sem medo de que me achem malcriado ou tarado da cedilha. Piçarei, aliás, até que a vós vos doa. Dar uma piçada, levar uma piçada, deixemo-nos de hipocrisias, bem sabemos de onde é que a coisa vem. De resto, confundir "pissada" com piçada pode, consoante as circunstâncias, ser até caso de extrema gravidez.
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
Bocage 3
Tendo o terrível Bonaparte à vista,
Novo Aníbal, que esfalfa a voz da Fama,
"Ó capados heróis!" (aos seus exclama
Purpúreo fanfarrão, papal sacrista):
"O progresso estorvai da atroz conquista
Que da filosofia o mal derrama?..."
Disse, e em férvido tom saúda, e chama,
Santos surdos, varões por sacra lista:
Deles em vão rogando um pio arrojo,
Convulso o corpo, as faces amarelas,
Cede triste vitória, que faz nojo!
O rápido francês vai-lhe às canelas;
Dá, fere, mata: ficam-lhe em despojo
Relíquias, bulas, merdas, bagatelas.
Bocage
(Bocage nasceu no dia 15 de Setembro de 1765. Morreu em 1805.)
Guerra Junqueiro 2
O Génesis
Jeová, por alcunha antiga - o Padre Eterno,
Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,
Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:
Pôs-se a esgaravatar co'o dedo no nariz,
Tirou desse nariz o que um nariz encerra,
Deitou isso depois cá baixo, e fez-se a Terra.
Em seguida tirou da cabeça o chapéu,
Pô-lo em cima da Terra e, zás, formou o céu.
Mas o chapéu azul do Padre-Omnipotente
Era um velho penante, um penante indecente,
Já muito carcomido e muito esburacado,
E eis aí porque o Céu ficou todo estrelado.
Depois o Criador (honra lhe seja feita!)
Achou a sua obra uma obra imperfeita,
Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,
Que nem um aprendiz de Deus assinaria,
E furioso escarrou no mundo sublunar,
E a saliva ao cair na Terra fez o mar.
Depois, para que a Igreja arranjasse entre os povos,
Com bulas da cruzada, alguns cruzados novos,
E Tartufo pudesse inda dessa maneira
Jejuar, sem comer de carne à sexta-feira,
Jeová fez então para a crença devota
A enguia, o bacalhau e a pescada-marmota.
Em seguida meteu a mão pelo sovaco,
Mais profundo e maior que a caverna de Caco,
E, arrancando de lá parasitas estranhos,
De toda a qualidade e todos os tamanhos,
Lançou-os sobre a Terra, e deste modo insonte
Fez ele o megatério e fez o mastodonte.
Depois, para provar em suma quanto pode
Um Criador, tirou dois pêlos do bigode,
Cortou-os em milhões e milhões de bocados,
(Obra em que ele estragou quatrocentos machados)
Dispersou-os no globo, e foi desta maneira
Que nasceu o carvalho, o plátano e a palmeira.
......................................................................
......................................................................
Por fim, com barro vil, assombro da olaria!,
O que é que imaginais que o Criador faria?
Um pote? não; um bicho, um bípede com rabo,
A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao cabo,
O pobre Criador, sentindo-se já fraco,
(Coitado, tinha feito o universo e um macaco
Em seis dias!) pensou: - Deixemo-nos de asneiras.
Trago já uma dor horrível nas cadeiras,
Fastio... Isto dá cabo até duma pessoa...
Nada, toca a dormir uma soneca boa!
Descalçou-se, tirou os óc'los e o chinó,
Pitadeou com delícia alguns trovões em pó,
Abriu, para cair num sono repentino,
O alfarrábio chamado o Livro do Destino,
E enflanelando bem a carcaça caduca,
Com o barrete azul-celeste até à nuca,
Fez ortodoxamente o seu sinal da cruz
Como qualquer de nós, tossiu, soprou à luz,
E de pança prò ar, num repoiso bendito,
Espojou-se, estirou-se ao longo do infinito
Num imenso enxergão de névoa e luz doirada.
E até hoje, que eu saiba, inda não fez mais nada.
"A Velhice do Padre Eterno", Guerra Junqueiro
(Guerra Junqueiro nasceu no dia 15 de Setembro de 1850. Morreu em 1923.)
Manuel Curros Enríquez
As dúas pragas
Baixo dun ceo promizo e bretemoso,
unha negra montana;
baixo a montana negra, unha curtiña
de álbores decotada;
pacendo na curtiña, media ducia
de ovellas esfameadas;
e celosas gardando esas ovellas,
murchas, tristes, da aldea as catro casas.
Dentro de cada casa, unha cociña
escura i afumada;
dentro cada cociña, unha fogueira
que o vento frío apaga;
xunto cada fogueira, cavilosa,
unha testa incrinada;
dentro de cada testa, un pensamento
de próusima fuxida, ou de venganza...
¿Que acontece na aldea? Antes de agora
vina, i alegre estaba;
nela todo era festas e trouleos,
e bailes e fiadas:
nos campos escoitábanse as de grúas
dos sachos i as eixadas;
nos fogares as frescas armonías
das risas e dos bicos, que estralaban.
¿Que demos acontece nesa aldea?...
¿Cal foi das sete pragas
a que eiquí descargou, matando a súa
xovialidade sana?...
Cravado por tres cravos baixo a copa
do cipreste da entrada,
calquera pode leer este letreiro:
"Hai escribano e capellán en Cangas".
"Aires da Miña Terra", Manuel Curros Enríquez
(Manuel Curros Enríquez nasceu no dia 15 de Setembro de 1851. Morreu em 1908.)
Baixo dun ceo promizo e bretemoso,
unha negra montana;
baixo a montana negra, unha curtiña
de álbores decotada;
pacendo na curtiña, media ducia
de ovellas esfameadas;
e celosas gardando esas ovellas,
murchas, tristes, da aldea as catro casas.
Dentro de cada casa, unha cociña
escura i afumada;
dentro cada cociña, unha fogueira
que o vento frío apaga;
xunto cada fogueira, cavilosa,
unha testa incrinada;
dentro de cada testa, un pensamento
de próusima fuxida, ou de venganza...
¿Que acontece na aldea? Antes de agora
vina, i alegre estaba;
nela todo era festas e trouleos,
e bailes e fiadas:
nos campos escoitábanse as de grúas
dos sachos i as eixadas;
nos fogares as frescas armonías
das risas e dos bicos, que estralaban.
¿Que demos acontece nesa aldea?...
¿Cal foi das sete pragas
a que eiquí descargou, matando a súa
xovialidade sana?...
Cravado por tres cravos baixo a copa
do cipreste da entrada,
calquera pode leer este letreiro:
"Hai escribano e capellán en Cangas".
"Aires da Miña Terra", Manuel Curros Enríquez
(Manuel Curros Enríquez nasceu no dia 15 de Setembro de 1851. Morreu em 1908.)
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Fafe dos Brasileiros 2015
No próximo fim-de-semana, 18 a 20 de Setembro, Fafe dos Brasileiros 2015. A Câmara Municipal diz que, por esses dias, "Fafe vai tornar-se a cidade mais brasileira do país", com "recriações históricas, desfiles, bailes de época, chorinho, fado e muita animação". Coincidindo com o II Festival Gastronónimo da Vitela Assada à Moda de Fafe, é possível que Fafe dos Brasileiros tenha o seu próprio programa (elencando iniciativas, dias, horas e locais), mas não o encontro aqui, nem aqui. E não me admira.
Porém, não desgosto do cartaz.
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