sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Carlos Drummond de Andrade 2

Canção final

Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.


Carlos Drummond de Andrade

(Carlos Drummond de Andrade nasceu no dia 31 de Outubro de 1902. Morreu em 1987.)

Lugares-comuns 175

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Carvalho Calero

A maior parte desta poesia é hipocrisia

A maior parte desta poesia
é hipocrisia.
Nom quer nada dizer e nada di.
Se algo quiger dizer, algo diria.
Quer somente fingir que nom fingia
oferecendo enganos para ti,
que finges crer que é verdade
a mensagem que te envia,
e finges que tés saudade
da saudade que exprimia
alguém que nom a sentia,
mas que se enganava assi,
cúmplice da tua porfia
de enganar a ti e a si.
A ti fingindo entender.
A si fingindo saber
o que queria dizer,
ainda que nom o sabes;
pretendendo ter as chaves
para abrir
o que nunca se fechou,
porque nunca tivo portas,
e aquelas palavras mortas
ajuntavam-se ao achou,
nom por santa inspiraçom,
nem por subconsciente graça:
por rotineira trapaça
e vazia pretensom.
Assi, é feita desta arte,
com notória hipocrisia,
a maior parte
desta poesia.


"Reticências", Carvalho Calero

(Ricardo Carvalho Calero nasceu no dia 30 de Outubro de 1910. Morreu em 1990.)

Vida de cão 66

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Adalgisa Nery 2

Poesia entre o cais e o hospital

Geme no cais o navio cargueiro
No hospital ao lado, o homem enfermo.
O vento da noite recolhe gemidos
Une angústias do mundo ermo.
Maresia transborda do mar em cansaço,
Odor de remédios inunda o espaço.
Máquina e homem, ambos exaustos
Um, pela carga que pesa em seu bojo
Outro, na dor tomando o seu corpo.
Cais, hospital: Portos de espera
E começo de fim da longa viagem.
Chaminés de cargueiros gritando no mar,
Garganta do homem em gemidos no ar.
No fundo, o universo,
O mar infinito,
O céu infinito,
O espírito infinito.
Neblinados em tristezas e medos
Surgem silêncios entre os rochedos.
Chaminés de cargueiros gritando no mar
E a garganta do homem em gemidos no ar.


Adalgisa Nery

(Adalgisa Nery nasceu no dia 29 de Outubro de 1905. Morreu em 1980.)

Lugares-comuns 174

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Ramón del Valle-Inclán

La trae un cuervo

¡Tengo rota la vida!  En el combate
de tantos años ya mi aliento cede,
y al orgulloso pensamiento abate
la idea de la muerte, que lo obsede.

Quisiera entrar en mí, vivir conmigo,
poder hacer la cruz sobre mi frente,
y sin saber de amigo ni enemigo,
apartado, vivir devotamente.

¿Dónde la verde quiebra de la altura
con rebaños y músicos pastores?
¿Dónde gozar de la visión tan pura

que hace hermanas las almas y las flores?
¿Dónde cavar en paz la sepultura
y hacer místico pan con mis dolores?

"El Pasajero", Ramón del Valle-Inclán

(Ramón María del Valle-Inclán nasceu no dia 28 de Outubro de 1866. Morreu em 1936.)

Vida de cão 65

Foto Hernâni Von Doellinger

Vianna Moog 2

O que temos a fazer é separar o Rio Grande afirma o promotor, olhos postos no prefeito como a pedir aprovação. E como visse que o chefe aprovava com a cabeça, acrescentou: O Norte é o peso morto do Brasil: só dá seca, impaludismo e febre amarela. Mas lembrando-se de que Geraldo era amazonense, procurou suavizar: Aqui o amigo não repare. Que diabo! Já come churrasco e toma chimarrão.
Está bem disse Geraldo, sem jeito. Não se constranja. Fale com toda a franqueza. Mas que vantagem vê você na separação?
Ora, ficávamos livres...
Não, o Rio Grande só ficava muito pequeno interrompe o secretário. Podíamos incorporar Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Precisamos de São Paulo por causa do café e das indústrias.
Ruben Tauben queria também o Rio de Janeiro. Cidade bonita, a mais bonita do mundo. Tinha um tio que conhecia Constantinopla e não a achara tão bonita quanto o Rio. Ele mesmo podia dar o seu testemunho. No centenário tinha ido lá com o tiro-de-guerra.

"Um Rio Imita o Reno", Vianna Moog

(Vianna Moog nasceu no dia 28 de Outubro de 1906. Morreu em 1988.) 

Lugares-comuns 173

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Graciliano Ramos 2

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.
- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.

"Vidas Secas", Graciliano Ramos

(Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de Outubro de 1892. Morreu em 1953.)

Nova corrida, nova viagem 3

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 25 de outubro de 2014

Murilo Araújo 2

Infância

À noite (e lá por fora ia a tormenta...)
eu pedia à Mamãe: Conta uma história!
E ouvia... Cabecinha sonolenta,
via os reinos de fadas - via a Glória.


(Havia a ventania e a merencória
chuvarada, nas telhas, barulhenta.)
- "Era uma vez..." É incenso na memória
aquela voz embaladora e lenta!


Hoje (que diferente é cada idade!)
Mamãe foi ver as fadas... foi talvez
morar no Reino da Felicidade!


Hoje sou homem, sou, vejam vocês.
Ai! vindo a noite e vindo a tempestade
só da Saudade escuto ERA UMA VEZ!


"Carrilhões", Murilo Araújo

(Murilo Araújo nasceu no dia 26 de Outubro de 1894. Morreu em 1980.)

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Ramalho Ortigão 2

Senão quando a corrente do ar cortado pela locomotiva levou-me da cabeça o meu chapéu. 
Preciso abrir para este objecto perdido um parêntese, de cuja substância Deus me livre que se soubesse! Tinha sido feito em Paris por Pinaud & Amour esse bonito chapéu tão flexível que se meteria dentro de um sobrescrito! Era de casimira azul como a minha jaqueta de viagem, forrado de azul-claro com debrum pespontado de seda preta. O próprio Amour me tinha dito ao vender-mo por vinte francos - Cela vous coiffe à merveille - e eu tinha tido a criminosa fraqueza de o acreditar! Aquele chapéu não era para mim somente um chapéu, era um elmo e um arnês. Não me considerava simplesmente coberto quando o punha, considerava-me também armado. Queres que te confesse a verdade? Eu não me teria nunca atrevido a apertar os dedos da minha alemã, nem a beijar-lhe apaixonadamente a luva, se o não trouxesse na cabeça, e era realmente muito mais com o talento dos srs. Pinaud & Arnour, do que com o meu próprio, que eu contava para me fazer passar junto dela por um homem de espírito! 
Os cabelos despenteados pelo vento tinham-me caído para cima dos olhos; compreendi que estava ridículo, não podendo esconder este ar sumamente tolo de todo o homem a quem de repente desaparece o chapéu na asa de um tufão. 
Ela ria às gargalhadas, as quais me caíam na cabeça... na cabeça não - pelas costas abaixo! - como torrentes de água nevada.

"Ele e Ela", "Histórias Cor-de-Rosa", Ramalho Ortigão 

(Ramalho Ortigão nasceu no dia 24 de Outubro de 1836. Morreu em 1915.)

Alcino Soutinho Realismo Confortável

Foto Hernâni Von Doellinger

De 31 de Outubro a 30 de Novembro, a primeira grande exposição dedicada à obra do arquitecto Alcino Soutinho (1930-2013), uma das figuras de maior influência na arquitectura portuguesa dos últimos 35 anos e marca indelével no coração de Matosinhos. "Alcino Soutinho Realismo Confortável" mostra-se em três espaços da cidade do Porto: Galeria Fundação EDP, Casa-Museu Guerra Junqueiro e Edifício BPI da Boavista. Mais informação, aqui.

Nova corrida, nova viagem 2

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Fafe Film Fest, já a partir de amanhã


Quarta edição do festival de cinema de Fafe, de amanhã até domingo, com homenagem ao produtor e realizador António da Cunha Telles. Organização do Cineclube de Fafe, em parceria com a Câmara Municipal. Sessões na Sala Manoel de Oliveira do Teatro-Cinema de Fafe. Mais informação e programa do Fafe Film Fest, aqui.

Nova corrida, nova viagem

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 21 de outubro de 2014

José Duro 2

Tédio 

Ando às vezes boçal e sinto-me incapaz
De encontrar uma rima ou produzir um verso;
Fazendo de mim mesmo a ideia de um perverso
Capaz de apunhalar à luz do gás.

Incomoda-me a Cor, o sangue do Poente
- Waterloo rubro de que o sol é Bonaparte -;
Não compreendo, Mulher, como inda posso amar-te
Se tenho raiva, muita raiva a toda a gente.

‘Té onde a vista alcança alargo o meu olhar,
E creio quanto existe uma nódoa escura
Que as lágrimas do Choro hão de jamais lavar...

Estranha concepção! Abranjo o mundo todo
E em cada estrela vejo a mesma lama impura,
E em cada boca rubra o mesmo impuro lodo!


"Fel", José Duro


(José Duro nasceu no dia 22 de Outubro de 1875. Morreu em 1899.) 

O que é preciso é saber pedir

Cátia Soraia está na universidade e escreveu à mãe a pedir um concelho. A mãe, que é rica e boa alma, mandou-lhe Freixo de Espada à Cinta.

A ver navios 34

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Os melhores anos da minha vida 3

Chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Academicamente falando, os pontos eram aquilo a que hoje, suponho, ainda se chama testes, e a enfermaria já então era o que é - enfermaria. Atenção: eu dava parte de doente não porque fosse mau aluno mas porque era muito bom preguiçoso. Para além dos percevejos e do tradicional concurso de punhetas logo pela manhãzinha e a meio da tarde, o melhor que a enfermaria tinha era a sineta a tocar para os outros, a comida "de dieta" e o enfermeiro propriamente dito que na verdade era barbeiro. O Sr. Pimenta, se bem me lembro. O Sr. Pimenta era enfermeiro porque tinha a bata branca de barbeiro, trazia os termómetros, via as febres (que eram forjadas na fricção com os cobertores - chamava-se àquilo "manipular a febre"), passava raspanetes e dava-nos uns comprimidos de faz de conta que, se não me engano, eram sobras do Laboratório Militar. Os comprimidos serviam para tudo e não faziam nada. O Sr. Pimenta dava também muito mal injecções. E eu contava anedotas.
O Sr. Pimenta era uma homem gordo, de andar pesado e lento, periclitante. A cada passo parecia-me que ia cair redondo para um dos lados, consoante a perna curta que avançava. O Sr. Pimenta tinha idade para ser meu avô e uma barbearia montada como se fosse a sério, mesmo em frente à capela e ao lado da sala de aulas que era também a loja onde os padres nos vendiam os "objectos", mas cortava tão mal o cabelo como os tosquiadores fardados que mo raparam sem dó nem piedade, uns anos depois, quando dei entrada nos Comandos. O Sr. Pimenta era barbeiro porque tinha a bata branca de enfermeiro.
Quer-se dizer: o Sr. Pimenta era a bata.
O Sr. Pimenta era só Sr. Pimenta para mim, porque a minha mãe tinha-me ensinado a tratar os senhores por senhores. Para o resto da rapaziada, o Sr. Pimenta era o Pimenta, ordens de cima, nada de confianças. Paradoxalmente. E os outros funcionários ou acoitados, os que nos serviam no refeitório, certamente lerdos mas filhos de Deus como a gente, eram "criados". Criados. Ordens de cima. Já nem falo de educação - a caridade cristã tem definitivamente muito que se lhe diga.

Portanto, chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Um ano, o padre Vilar, o bom padre Vilar, não quis que eu ficasse sem nota a Religião e Moral. Visitou-me, fez-me duas ou três perguntas que valeriam o ponto, perguntas do mais elementar possível, só para que eu fizesse boa figura. Perguntou-me:
- Quem é Deus para ti?
- Deus é o meu pai - respondi.
- Deus é pai de todos nós - atalhou o padre.
- Mas é mais meu, que sou órfão - defendi-me, com uma não ensaiada porém oportuna lágrima no canto do olho que me valeu para aí um dezoito.
Isto é: sou malabarista desde pequenino.

P.S. - Na enfermaria havia sempre um bufo que ia contar ao padre Coutinho as minhas anedotas, mas omitia a parte das punhetas, que era geral e ideia não sei de quem. Eu também não sabia a malícia das anedotas que contava. Fiquei a saber quando fui chamado à pedra - e assim me roubaram a inocência. O padre Coutinho gostava muito de música clássica e eu tenho a certeza de que a música clássica não gostava nada dele.

domingo, 19 de outubro de 2014

Cláudio de Sousa

Certa tarde, ao sair de um livreiro, se me deparou o Nunes, que havia muito não encontrava. Acabava de doutorar-se em medicina. Arrastou-me para um café sonolento e vazio. Contou-me as peripécias da defesa de tese, suas esperanças, a alegria de se ver, enfim, livre e senhor de si. Ouvia-o distraído. Entraram, sucessivamente, duas mulheres, e tomaram assento, olhando-nos com insistência. Uma era rubicunda e grosseira. A outra, ruiva e seca, tinha a pele picada pela varíola, cujas cicatrizes lhe davam o aspecto da fruta de conde. A imaginação povoada pelas sacerdotizas de Afrodite, mirei-as com repugnância.
Queres ouvir-me ou não? - disse-me o Nunes, que logo acrescentou, ao ver para onde me iam os olhos: - A ruiva é graciosa, mas a gorducha só como domingo de Páscoa após alguma quaresma severa.

"As Mulheres Fatais", Cláudio de Sousa

(Cláudio de Sousa nasceu no dia 20 de Outubro de 1876. Morreu em 1954.)

A ver navios 33

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 18 de outubro de 2014

Vinicius de Moraes 2

Soneto de fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.


"Poemas, Sonetos e Baladas", Vinicius de Moraes

(Vinicius de Moraes nasceu no dia 19 de Outubro de 1913. Morreu em 1980.)

Lugares-comuns 172

Foto Hernâni Von Doellinger

Tenho uns chinelos para dar. São castanhos.

As coisas têm de ser feitas como devem ser. Cheguei a casa, liguei a Sport TV na sala e a Antena 1 na cozinha. Faz parte. Continuei o ritual: fui ao quarto, preparei umas cuecas brancas, um lenço azul, uma camisa azul e branca, calças azuis e chinelos de meter o dedo... castanhos. Já lá iam uns minutos: FC Porto 0-Sporting 0. Entrei no duche.
Saio do duche, seco-me, visto-me, assoo-me, calço-me. Religiosamente. Espreito como quem não quer a coisa: FC Porto 1-Sporting 2. Filhos da puta dos chinelos...

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

António Ramos Rosa 3

Corpo de aroma

Se foste corola ou barco,
mas quando?
minha irmã,
minha leve amante, minha árvore,
que o mundo levantava
na inocência absoluta
do instante.
Alta estavas no amplo e recolhida
como uma lâmpada,
alta estavas na varanda branca.
Se acaso ainda podes ser aroma
dos meus olhos,
corpo no corpo,
retiro e substância,

linha alta
da delícia,
nada te pedirei na minha ânsia
de puro espaço,
de azul imediato,
de luz para o olvido e o deserto.


António Ramos Rosa

(António Ramos Rosa nasceu no dia 17 de Outubro de 1924. Morreu em 2013.)

Lugares-comuns 171

Foto Hernâni Von Doellinger

Fafe Film Fest 2014


Quarta edição do festival de cinema de Fafe, de 23 a 26 de Outubro - quinta-feira a domingo da próxima semana -, com homenagem ao produtor e realizador António da Cunha Telles. Organização do Cineclube de Fafe, em parceria com a Câmara Municipal. Sessões na Sala Manoel de Oliveira do Teatro-Cinema de Fafe. Mais informação e programa do Fafe Film Fest, aqui.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Manuel da Fonseca 2

Maria Campaniça

Debaixo do lenço azul com sua barra amarela
os lindos olhos que tem!
Mas o rosto macerado
de andar na ceifa e na monda
desde manhã ao sol-posto,
mas o jeito
de mãos torcendo o xaile nos dedos
é de mágoa e abandono...
Ai Maria Campaniça,
levanta os olhos do chão
que eu quero ver nascer o sol!


"Poemas Completos", Manuel da Fonseca

(Manuel da Fonseca nasceu no dia 15 de Outubro de 1911. Morreu em 1993.)

A ver navios 32

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 11 de outubro de 2014

Fernando Sabino 2

A casa tinha três quartos, duas salas, banheiro, copa, cozinha, quarto de empregada, porão, varanda e quintal.
Que significava o quintal para Eduardo?
Significava chão remexido com pauzinho, caco de vidro desenterrado, de onde teria vindo? minhoca partida em duas ainda mexendo, a existência sempre possível de um tesouro, poças d'água barrenta na época das chuvas, barquinho de papel, um formiga dentro, a fila de formigas que ele seguia para ver onde elas iam. Iam ao formigueiro. Um pé de manga-sapatinho, pé de manga-coração-de-boi. Fruta-de-conde, goiaba, gabiroba. Galinheiro. A galinha branca era sua, atendia pelo nome:
- Eduarda!
Ela se abaixava, deixava-se pegar. Às vezes punha um ovo. Quando Eduardo ia para o Grupo, deixava-a debaixo da bacia. Um dia o pai lhe disse que aquilo era maldade: gostaria que fizessem o mesmo com você? As galinhas também sofrem. Um domingo encontrou Eduarda na mesa do almoço, pernas para o ar, assada. Eduarda foi comida entre lágrimas. É, sofrem, mas todo mundo come e ainda acha bom.

"O Encontro Marcado", Fernando Sabino

(Fernando Sabino nasceu no dia 12 de Outubro de 1923. Morreu em 2004.)

O caracol (ou, como se diz nos Açores, o caracol)

Foto Hernâni Von Doellinger

Chicharros, como se diz nos Açores

É um anúncio radiofónico a não sei quê. Mais ou menos isto: o filho com jeito para a piada chega a casa e diz ao pai que tem uma má e uma boa notícia para lhe dar - bateu com o carro e, como foi contra a porta do mercado, aproveitou para trazer os carapaus para o jantar. "Carapaus não", corrige o sapiente progenitor, "chicharros, como se diz nos Açores". Exactamente. Como se diz nos Açores. Sobretudo naquele belíssimo naco açoriano a norte do Douro e Minho acima, Galiza adentro.

P.S - Em Fafe chicharros diz-se chucharros, e até há uma família, gente boa, com esse nome. Em fafense correcto, os ches de chucharro devem ser lidos como os ches de cachicha.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Profundo 22

Estava aqui a pensar, e depois pensei: para quê?

Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe


De amanhã até domingo, 1.º Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe. Em Fafe, na renovada Praça das Comunidades (sítio da feira semanal). Mais informação, aqui.

P.S. - Mais sobre a vitela assada à moda de Fafe, sob o meu ponto de vista, aqui, aqui, aqui e aqui. E ainda aqui. Só para coleccionadores...

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Mário de Andrade 2

Sousa Costa usava bigodes onde a brilhantina indiscreta suava negrores nítidos. Aliás todo ele era um cuitê de brilhantinas simbólicas, uma graxa, mônada sensitiva e cuidadoso de sua pessoa. Não esquecia nunca o cheiro no lenço. Vinha de portugueses. Perfeitamente. E de Camões herdara ser femeeiro irredutível.
Em tempos de calorão surgiam nos cabelos negros de Dona Laura umas ondulações suspeitas. Usava penteadores e vestidos de seda muito largos. Apenas um gesto e aqueles panos e rendas e vidrilhos despencavam pra uma banda, afligindo a gente. Meia malacabada. Era maior que o marido, era. Lhe permitira aumentar as fábricas de tecidos no Brás e se dedicar por desfastio à criação do gado caracu.
Nas noites espaçadas em que Sousa Costa se aproximava da mulher, ele tomava sempre o cuidado de não mostrar jeitos e sabenças adquiridos lá embaixo no vale. No vale do Anhangabaú? É. Dona Laura comprazia com prazer o marido. Com prazer? Cansada. Entre ambos se firmara tacitamente e bem cedo a convenção honesta: nunca jamais ele trouxera do vale um fio louro no paletó nem aromas que já não fossem pessoais. Ou então aromas cívicos. Dona Laura por sua vez fingia ignorar as navegações do Pedro Álvares Cabral. Convenção honesta se quiserem... Não seria talvez a precisão interior de sossego?... Parece que sim. Afirmo que não. Ah!, ninguém o saberá jamais!...
E quem diria que Sousa Costa não era bom marido? Era sim. Fora tão nu de preconceitos até casar sem pôr reparo nas ondas suspeitas dos cabelos da noiva. E bem me lembro que ficaram noivos em tempo de calorão... Dona Laura retribuía a confiança do marido, esquecendo por sua vez que bigodes abastosos e brilhantinados são suspeitos também. Sentia agora eles trepadeirando pelo braço gelatinoso dela e, meia dormindo, se ajeitando:
- Vendeu o touro?
- Resolvi não vender. É muito bom reprodutor.
Dormiam.

"Amar, Verbo Intransitivo", Mário de Andrade

(Mário de Andrade nasceu no dia 9 de Outubro de 1893. Morreu em 1945.)

domingo, 5 de outubro de 2014

Manuel María 2

A palavra

Nós, de verdade, unicamente temos
a palavra. Só a palavra verdadeira
pode traduzir a fecha
e insondável soidade do nosso ser.
Só a palavra. A própria.
A que pertence à nossa língua.
A que amamos. A que usa,
conhece e reconhece a nossa gente.
Sem a palavra seria a pobreza,
a miséria total, a impotência
a escuridade e o nom ser.
Mas hai quem manipula, força,
retorce, desfai e prostitui
o autêntico senso da palavra.
Hai quem mente. E ainda hai
o frio, feroz assassino da palavra.

"A Luz Ressuscitada", Manuel María

(Manuel María nasceu no dia 6 de Outubro de 1929. Morreu em 2004.)

A ver navios 30

Foto Hernâni Von Doellinger

O impagável Marinho e Pinto

Marinho e Pinto diz que os partidos políticos portugueses são todos uma merda, e portanto quer fazer mais um. Este tipo é impagável - pelo menos abaixo dos 4800 euros mensais.

Cyro dos Anjos

Nestes vinte dias não me saiu sequer uma linha. Já não encontro, no ato de escrever, a satisfação de outros tempos. Pouco há, também, que escrever. Continuar a acompanhar a vida dos outros. Isso seria interminável. A vida dos amigos apenas se me revelou quando incidiu na minha. Jamais entrei nos seus domínios íntimos, e, se mergulhei em Silviano, foi porque nele encontrei possíveis itinerários para as minhas incertezas. Só conhecemos, aliás, a vida alheia pelos seus pontos de incidência com a nossa: o mais é conjetura ou romance. Não tenciono escrever romance.
E os amigos se desviaram de mim. Redelvim, que sempre foi pouco afetivo, tomou o seu rumo. Anda pela fazenda e dele não tenho notícia. Glicério deixou a Seção e passou a trabalhar nos serviços de advocacia do Estado: foi o bastante para afrouxar nosso convívio. Jandira se afasta cada vez mais, quase me parece estranha. Dentro em pouco, talvez nada tenhamos de comum. Acabou o namoro com o tal doutorando, mas deve ter arranjado outros, pois não dá sinal de si. Vive no seu mundo de Pereirinhas e de Azevedos Leões. Apenas Silviano, ainda que pouco encontradiço, permanece a oferecer interesse. Ah! É verdade: Florêncio não me tem faltado. Mas continua Florêncio. Que dizer dele? É um homem sem história, e nisso está sua felicidade.
Como um ano, que passa, modifica o aspecto das coisas! Minha vida se reduz a Emílio, Carolino, Giovanni e Prudêncio. Isto é: encolhe-se na Rua Erê, como dentro de um caramujo.
Leio um pouco e caminho pela cidade, em companhia do Carolino. Às vezes não encontro lugar que me sirva, e ando, ando sempre, como Judeu Errante. Não procurarei os amigos: se não me aparecem é porque já não me querem.
Creio que já escrevi tudo o que havia em mim para escrever.

"O Amanuense Belmiro", Cyro dos Anjos

(Cyro dos Anjos nasceu no dia 5 de Outubro de 1906. Morreu em 1994.)

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O saco de gatos do Largo do Rato

Dizem que são correntes, sensibilidades, tendências. Tretas. Não são nada correntes nem sensibilidades nem tendências - são apenas filas para o tacho, cada fila com seu padrinho. Os ferristas, os guterristas, os soaristas, os costistas, os seguristas, os gamistas, os gamelistas, os alegristas, os trististas, os sampaístas, os coelhistas, os almeida-santistas, os socratistas, os sacristas, os aparelhistas, os arrivistas, os manobristas, os equilibristas e os contorcionistas. Todos ao mesmo: moina. O PS tem de tudo, só não tem socialistas.

A ver navios 29

Foto Hernâni Von Doellinger

Ó mor, mor

- Ó mor, mor! Tu mamas, mor?
- Ó mor, claro que tamo, mor.
- Diz-me a verdade, mor. Tu mamas, mor?
- Tamo, mor. Tamo tipo bué, tás a ver, mor?
- Não, mor, tipo a sério, mor, tu mamas-me tipo... a sério, mor?
- Tamo-te, mor. Tamo tipo, mor.
- Mamas mesmo, mor?
- Tipo agora, mor?

(Actualização às 12h49 de quinta-feira, 2 de Outubro de 2014: "Português é a quinta língua mais falada na Internet", diz-se no Público. Parabéns à prima.)

Gaspar de Jesus expõe "Sinais de Religiosidade"


"Sinais de Religiosidade" é o tema da nova exposição de Gaspar de Jesus, que inaugura no próximo sábado, dia 4 de Outubro, no Centro Paroquial de Avintes, Rua do Passal, 70. A mostra decorre no âmbito do Festival de Fotografia de Avintes, que se prolonga até 1 de Novembro.
Gaspar de Jesus, fotojornalista e professor de Fotografia, trabalhou em A Capital, O Primeiro de Janeiro, A Bola, TV Guia, Notícias Magazine e Autores. Artista premiado, realizou uma vintena de exposições individuais e participou em inúmeras exposições colectivas, dentro e fora do País. Foi formador em cursos do FAOJ e integrou o quadro de formadores do IPF-Porto. É co-autor dos livros "Portugal e o Ambiente", "Reencontros - Portugal em Fotografia", "Daqui Houve Nome Portugal", "21 Retratos do Porto para o Século XXI", "Porto Cidade com Alma" e "Porto sem Filtro". É autor do blogue Arte Fotográfica e promotor das tertúlias Com a Arte no Olhar.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

José Cardoso Pires 2

Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.
Repare-se que tenho a mão direita pousada num livro antigo -
Monografia do Termo da Gafeira - ou seja, que tenho a mão sobre a palavra veneranda de certo abade que, entre mil setecentos e noventa, mil oitocentos e um, decifrou o passado deste território. É nele que penso também - nisto tudo, na aldeia, nos montes em redor e nos seres que a habitam e que formigam lá em baixo, por entre casas, quelhas e penedos, à distância de um primeiro andar. Sou um visitante de pé (e em corpo inteiro, como numa fotografia de álbum), um Autor apoiado na lição do mestre. Lavatório de ferro à esquerda, mesa de trabalho à direita; em fundo, a porta com a espingarda e a cartucheira penduradas no cabide. Pormenor importante: enfrento a janela de guilhotina que dá para o único café da povoação, do outro lado da rua, e, mais para diante, vejo o largo, a estrada de asfalto e um horizonte de pinhais dominado por uma coroa de nuvens: a lagoa. Algures, no corredor, a dona da casa chama pela criadita.
Temos, pois, o Autor instalado na janela duma pensão de caçadores. Sente vida por baixo e à volta dele, sim, pode senti-la, mas, por enquanto, fixa-se unicamente, e com intenção, no tal sopro de nuvens que é a lagoa. Não a vê dali, bem o sabe, porque fica no vale, para lá dos montes, secreta e indiferente. No entanto, aprendeu a assinalá-la por aquele halo derramado à flor das árvores, e diz: lá está ela, a respirar. Depois, se quisesse escrever, passaria apenas o dedo na capa encarquilhada do livro que o acompanha (ou numa tábua de relíquia, ou numa pedra) e sulcaria o pó com esta palavra: Delfim.
Seria uma dedicatória. Um epitáfio, também. Seis letras que, de qualquer maneira, não teriam mais do que a justa e exacta duração que a poeira consentisse até as cobrir de novo.


"O Delfim", José Cardoso Pires

(José Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de 1925. Morreu em 1998.)

"A Generala", novo livro de Jorge Monteiro Alves


"A Generala" é o mais recente livro de Jorge Monteiro Alves e tem lançamento marcado para o próximo sábado, dia 4 de Outubro, pelas 16 horas, no portuense Café Guarany. A apresentação da obra estará a cargo do jornalista Orlando Castro.
"A Generala" é a estória de um extraordinário período vivido e sofrido pelos Portugueses - as Invasões Francesas. E de como foi o povo que se levantou contra o invasor e morreu pela Pátria. Retratos de almas simples e de um patife, Loison, dito o Maneta. Dias de sofrimento que deram lugar ao amor entre duas mulheres e que geraram sementes que tornaram possível a Revolução Liberal e, com esta, o fim do Antigo Regime.
Jorge Monteiro Alves é natural do Porto. Passou a vida adulta entre duas paixões - livros e jornais. Foi jornalista do Jornal de Notícias e trabalha actualmente no Público. É autor de "Nunca Passes Além do Drina" e de "Carmencita".

(Sobre o autor e a obra, informação retirada da contracapa e lombada do livro. Quanto à capa - sendo a "estória" o que diz que é -, vou ali e venho já.)