Foto Hernâni Von Doellinger |
quinta-feira, 30 de novembro de 2017
Uma questão de feitios
Silvestre recusou trabalhar com Urbano. Estava habituado ao Campos...
Microcontos & outras miudezas 59
The walking dead
Diz-me o meu amigo: - Eh pá, que tétrico, só publicas textos de
escritores mortos!...
- Mas mortos vivos - digo eu. É o que está a dar, não é?...
Homens extraordinários
1. Aqueles tipos que dizem "Nunca me arrependo daquilo que fiz".
2. Os políticos que respondem "O meu maior defeito? Sou muito exigente e perfeccionista, é um defeito que eu tenho".- Mas mortos vivos - digo eu. É o que está a dar, não é?...
Homens extraordinários
1. Aqueles tipos que dizem "Nunca me arrependo daquilo que fiz".
3. Artistas que não sabem desenhar uma jarra e fazem exposições de pintura, e vendem.
4. Vendedores de banha da cobra que não sabem escrever e publicam best-sellers.
5. Os candidatos a qualquer coisa porque as "pessoas" lhes pediram muito...
Lua
Gritam Céus Choram
Olhos Cegos
A noite baixou sobre a Noite
(Translucidez insustentável necrotério clamorosamente profético)
Trazes-me nada
Dizes-me amplexo
Sexo Nexo Tacho
A Lua caiu
Partiu(-se)
Era da Vista Alegre
A antiguidade é um posto. Um posto médico.
- Sou do tempo do Joselito, e isso quer dizer muito...
- Hã?!...
- Ok. Pensando melhor, não quer dizer nada... (ouvir)
Um tubarão na sopa
O título tinha tudo para ser um bom título, tirando o facto de não ser. Dizia o jornal sério: "Vale mais um tubarão no mar do que na sopa". Um tubarão na sopa? Um tubarão? Com cabeça e tudo? Ou a cabeça é para cozer à parte, com grão? Desculpem-me meter o bedelho, mas chamar a mosca ao assunto não seria mais credível? Quero eu dizer: mais vale uma mosca no ar do que na sopa. Isto é que está certo, ou não? É que os nossos pratos, ainda que sopeiros, são muito pequeninos. E cada vez mais diminutos. Por causa dos tubarões - os outros...
Pílulas defeituosas e engravidadoras
O título da notícia do jornal, na secção de Saúde, contava: "40 mulheres engravidaram devido a pílulas defeituosas". Não quero levantar falsos testemunhos, mas desconfio que também deve ter havido sexo...
Planeta dos macacos
Há coisa de cinco anos. Uma equipa de cientistas britânicos descobriu que os ninhos dos orangotangos são autênticas obras de engenharia, e de "engenharia complexa", é preciso que se note. Em retaliação, uma equipa de engenheiros argentinos descobriu que um casal de chimpanzés do Uganda estava a trabalhar numa nova vacina contra a febre aftosa.
Entretanto, na pacata vila de Borneo Apes, na Indonésia, chorava-se baba e ranho pela partida de Pony,
a prostituta preferida que durante anos a fio satisfez os, por assim
dizer, homens da população humana, justificando-se aqui o pleonasmo. Pony era uma orangotanga, se me permitem a
expressão, estrela da casa de putas da terreola e finalmente resgatada
pela Associação Protectora dos Orangotangos, após um ano intenso de
tentativas
frustradas de salvamento.Há coisa de cinco anos. Uma equipa de cientistas britânicos descobriu que os ninhos dos orangotangos são autênticas obras de engenharia, e de "engenharia complexa", é preciso que se note. Em retaliação, uma equipa de engenheiros argentinos descobriu que um casal de chimpanzés do Uganda estava a trabalhar numa nova vacina contra a febre aftosa.
Darwin tinha razão. O que ele certamente não sabia é que era tanta e tão retorcida.
Anderson de Araújo Horta
Perfeição
Um santo para todos os milagres.
Remédio para todas as doenças.
Caminho para todos os lugares.
Lágrima para todas as saudades.
Um só riso para todas as bênçãos.
Lâmpada para toda claridade.
Uma cerca entre a vida e a realidade.
Um sonho para todos os amores.
E um amor para toda a eternidade.
Anderson de Araújo Horta
(Anderson de Araújo Horta nasceu no dia 30 de Novembro de 1906. Morreu em 1985.)
Um santo para todos os milagres.
Remédio para todas as doenças.
Caminho para todos os lugares.
Lágrima para todas as saudades.
Um só riso para todas as bênçãos.
Lâmpada para toda claridade.
Uma cerca entre a vida e a realidade.
Um sonho para todos os amores.
E um amor para toda a eternidade.
Anderson de Araújo Horta
(Anderson de Araújo Horta nasceu no dia 30 de Novembro de 1906. Morreu em 1985.)
Guilherme de Azevedo 4
[Ó máquinas febris]
Ó máquinas febris! eu sinto a cada passo,
nos silvos que soltais, aquele canto imenso
que a nova geração nos lábios traz suspenso
como a estância viril duma epopeia d'aço!
Enquanto o velho mundo arfando de cansaço
prostrado cai na luta, em fumo negro e denso
levanta-se a espiral desse moderno incenso
que ofusca os deuses vãos, anuviando o espaço!
Vós sois as criações fulgentes, fabulosas,
que, vibrantes, cruéis, de lavas sequiosas,
mordeis o pedestal da velha majestade!
E as grandes combustões que sempre vos consomem
começam, num cadinho, a refundir o homem,
fazendo ressurgir mais larga a humanidade!
Ó máquinas febris! eu sinto a cada passo,
nos silvos que soltais, aquele canto imenso
que a nova geração nos lábios traz suspenso
como a estância viril duma epopeia d'aço!
Enquanto o velho mundo arfando de cansaço
prostrado cai na luta, em fumo negro e denso
levanta-se a espiral desse moderno incenso
que ofusca os deuses vãos, anuviando o espaço!
Vós sois as criações fulgentes, fabulosas,
que, vibrantes, cruéis, de lavas sequiosas,
mordeis o pedestal da velha majestade!
E as grandes combustões que sempre vos consomem
começam, num cadinho, a refundir o homem,
fazendo ressurgir mais larga a humanidade!
"A Alma Nova", Guilherme de Azevedo
(Guilherme de Azevedo nasceu no dia 30 de Novembro de 1839. Morreu em 1882.)
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Salve!
Augusto até era bom tipo, mas exagerava na pose...
Humberto Lyrio 2
Fim de tarde
Em meio a teu labor risonho ou grave,
Quer na opulenta sala ou na oficina,
Ergue tua alma, leve como uma ave,
Quando ao dia o crepúsculo domina.
Que teu cenho, afinal se desagrave,
E, do Infinito a cérula cortina,
Possa abrir-se a teus olhos para a suave
Penetração da luz da ara divina.
Sofreu, não só o que lutou no mundo.
Quem o humano porvir sonhou fecundo,
Viu, quase em cada poro, atra ferida.
Ergue, pois, ao crepúsculo, uma prece.
A Deus louvando, lembra o que padece
Pelos atalhos lúgubres da vida.
Em meio a teu labor risonho ou grave,
Quer na opulenta sala ou na oficina,
Ergue tua alma, leve como uma ave,
Quando ao dia o crepúsculo domina.
Que teu cenho, afinal se desagrave,
E, do Infinito a cérula cortina,
Possa abrir-se a teus olhos para a suave
Penetração da luz da ara divina.
Sofreu, não só o que lutou no mundo.
Quem o humano porvir sonhou fecundo,
Viu, quase em cada poro, atra ferida.
Ergue, pois, ao crepúsculo, uma prece.
A Deus louvando, lembra o que padece
Pelos atalhos lúgubres da vida.
"Almas no Espelho", Humberto Lyrio
(Humberto Lyrio nasceu no dia 29 de Novembro de 1918)
António Ferreira 2
Os dias conto, e cada hora e momento
Os dias conto, e cada hora e momento
que alongando-me vou dos meus amores.
Nas árvores, nas pedras, ervas, flores
parece que acho mágoa, e sentimento.
As aves que no ar voam, o sol e o vento,
montes, rios e gados e pastores,
as estradas e os campos mostram as dores
da minha saudade e apartamento.
E quanto me era lá doce e suave,
mais triste e duro amor cá mo apresenta
a que entreguei da minha vida a chave.
Em lágrimas força é que as faces lave,
ou que não sinta a dor que na tormenta
memória da bonança faz mais grave.Os dias conto, e cada hora e momento
que alongando-me vou dos meus amores.
Nas árvores, nas pedras, ervas, flores
parece que acho mágoa, e sentimento.
As aves que no ar voam, o sol e o vento,
montes, rios e gados e pastores,
as estradas e os campos mostram as dores
da minha saudade e apartamento.
E quanto me era lá doce e suave,
mais triste e duro amor cá mo apresenta
a que entreguei da minha vida a chave.
Em lágrimas força é que as faces lave,
ou que não sinta a dor que na tormenta
"Poemas Lusitanos", António Ferreira
(António Ferreira nasceu em 1528. Morreu no dia 29 de Novembro de 1569.)
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Araújo Porto-Alegre
O triunfo
Troam na Ibéria os hinos da vitória
Que Fernando e Isabel do Mouro houveram.
Jaz vencida Granada! A cruz guerreira
Da moderna cruzada resplandece
No rubro cimo da atalaia altiva
Que domina de Alhambra os régios muros
E os zimbórios vidrados das mesquitas,
Assentados no grêmio augusto e belo
Da abatida sultana do Ocidente!
Jaz vencido o Corão: no santo aprisco
Repousa a Espanha à sombra do Evangelho.
Na ridente esplanada, ovantes, firmes,
Como troncos de ferro, ao sol fulguram
Pautados esquadrões, lúcidas armas.
Rebombam no horizonte em densas nuvens
Os estrondos da rouca artilharia,
Que dos rinchos equinos aumentados,
E do rijo clangor das márcias tubas,
De alto a baixo as montanhas estremecem!
[...]
Troam na Ibéria os hinos da vitória
Que Fernando e Isabel do Mouro houveram.
Jaz vencida Granada! A cruz guerreira
Da moderna cruzada resplandece
No rubro cimo da atalaia altiva
Que domina de Alhambra os régios muros
E os zimbórios vidrados das mesquitas,
Assentados no grêmio augusto e belo
Da abatida sultana do Ocidente!
Jaz vencido o Corão: no santo aprisco
Repousa a Espanha à sombra do Evangelho.
Na ridente esplanada, ovantes, firmes,
Como troncos de ferro, ao sol fulguram
Pautados esquadrões, lúcidas armas.
Rebombam no horizonte em densas nuvens
Os estrondos da rouca artilharia,
Que dos rinchos equinos aumentados,
E do rijo clangor das márcias tubas,
De alto a baixo as montanhas estremecem!
[...]
"Colombo", Araújo Porto-Alegre
(Araújo Porto-Alegre nasceu no dia 29 de Novembro de 1806. Morreu em 1879.)
Xerardo Álvarez Gallego
Aquela mesma tarde o Capitán dos de Asalto habíame parado pra ameazarme por andar tratando de salvar a Bóveda, o roxo-separatista, "y tú eres uno de esos, y te va a pasar lo que a él". O Guardia falábame en galego. - Mire, señor Sesto; por favor, escóiteme.
Había nos seus ollos unha door infinda, como un pasmo sin fondo.
Decateime axiña e doume confianza. Comprendín no intre que non era un nemigo. - Señor Sesto, eu son moi amigo de Bóveda; aínda o outro día fun a visitalo á cadea coa miña muller. Somos tamén de Ourense, e brincamos xuntos de meniños. E agora, agora... - agora qué?, pergunteille. - Sorteáronme, e teño que formar no pelotón de fusilamento. - Póñase enfermo, aconselleille. - Fáranme Consello de Guerra, pois non mo creerían, teño fama de repubricán. O que vou a faguer e negarme. Si me fusilan que me fusilen por algo.
- ¿Ten fllos?. - Teño sí, señor.
Eu estaba vivindo ises momentos que fican fora da realidade cotián, fora da norma do vivir e do morrer, nun terreo no que as ideias, os sentimentos, as verbas, perden o senso de todolos días pra se adentrar nun mundo despersoalizado no que xa non se sabe si é fogo ou xelo o que nos consume.
- ¿E que vai a conquerir con que o maten a vostede tamén?. ¿De qué pode servir outra morte máis?. Nin tan siquera tería o consolo de oferescer a sua vida pola dél. - ¿Qué vou a faguer entón, señor Sesto?. - Vostede é católico?. - Son sí, señor.
Era xa un volcán a estoupar no meu cor, i algo nos meus beizos falóu, que non era eu. Unha voz que non era a miña.
- ¿Qué tal tirador é?. - Estou calificado de pirmeira. - Pois ise valor tan estraordinario que vexo en vostede póñao ao servizo, sereamente, do seu pulso e apúntelle ao cor, pra que non sufra. I oferezca a sua door por Alexandre e por Galiza.
Alonxeime axiña, arrepíado. Ouvin detrás de min un salouco.
Non volvín a ver na miña vida a aquel horne; nin perguntei por él; nin sei cómo se chamaba. Soio soupen dempois que Alexandre Bóveda tiña un disparo no meio e meio do cor.
Había nos seus ollos unha door infinda, como un pasmo sin fondo.
Decateime axiña e doume confianza. Comprendín no intre que non era un nemigo. - Señor Sesto, eu son moi amigo de Bóveda; aínda o outro día fun a visitalo á cadea coa miña muller. Somos tamén de Ourense, e brincamos xuntos de meniños. E agora, agora... - agora qué?, pergunteille. - Sorteáronme, e teño que formar no pelotón de fusilamento. - Póñase enfermo, aconselleille. - Fáranme Consello de Guerra, pois non mo creerían, teño fama de repubricán. O que vou a faguer e negarme. Si me fusilan que me fusilen por algo.
- ¿Ten fllos?. - Teño sí, señor.
Eu estaba vivindo ises momentos que fican fora da realidade cotián, fora da norma do vivir e do morrer, nun terreo no que as ideias, os sentimentos, as verbas, perden o senso de todolos días pra se adentrar nun mundo despersoalizado no que xa non se sabe si é fogo ou xelo o que nos consume.
- ¿E que vai a conquerir con que o maten a vostede tamén?. ¿De qué pode servir outra morte máis?. Nin tan siquera tería o consolo de oferescer a sua vida pola dél. - ¿Qué vou a faguer entón, señor Sesto?. - Vostede é católico?. - Son sí, señor.
Era xa un volcán a estoupar no meu cor, i algo nos meus beizos falóu, que non era eu. Unha voz que non era a miña.
- ¿Qué tal tirador é?. - Estou calificado de pirmeira. - Pois ise valor tan estraordinario que vexo en vostede póñao ao servizo, sereamente, do seu pulso e apúntelle ao cor, pra que non sufra. I oferezca a sua door por Alexandre e por Galiza.
Alonxeime axiña, arrepíado. Ouvin detrás de min un salouco.
Non volvín a ver na miña vida a aquel horne; nin perguntei por él; nin sei cómo se chamaba. Soio soupen dempois que Alexandre Bóveda tiña un disparo no meio e meio do cor.
"Vida, Paixón e Morte de Alexandre Bóveda", Xerardo Álvarez Gallego
(Xerardo Álvarez Gallego nasceu no dia 29 de Novembro de 1899. Morreu em 1986.)
terça-feira, 28 de novembro de 2017
Microcontos & outras miudezas 58
A ordem natural das coisas
A Esperança foi a primeira a morrer. Era a mais velha...
E contigo também
Prazeres entrou para o convento e nunca mais houve sossego...
Les bourgeois
Mercedes tinha um defeito, aquela pose de nova-rica... A Esperança foi a primeira a morrer. Era a mais velha...
E contigo também
Prazeres entrou para o convento e nunca mais houve sossego...
Les bourgeois
Come tudo, tudo, tudo
Sebastião foi finalmente condenado por violência doméstica...
Enganadores...
Desempregado há seis anos, leu o título do jornal Público: "Portugal já recuperou o emprego perdido durante a troika". No dia seguinte apresentou-se ao serviço...Crimes de peso
Era um contumaz praticante de crimes de peso. Até que foi apanhado. Os fiscais apreenderam-lhe a balança e o tribunal aplicou-lhe um coima de mil euros.
O senão do Aristeu
- Ó mor, posso chamar-te Arismeu?...
O Texas
O Texas era um tasco em Fafe. Chamava-se também Quiterinha, derivado ao
nome da dona, senhora respeitável, ou Pensão Império, nunca soube derivado a
quê. Estão a ver a Rua Monsenhor Vieira de Castro, quem vai para o
Picotalho, do lado do Cinema, depois da padaria e encostado ao Noré,
mesmo em frente à cabine, antes de chegar às Grilas e
ainda mais às Turicas? O Texas era exactamente aí, previamente a ter-se
instalado de armas e bagagens no mapa dos Estados Unidos da América,
segundo vi depois nos filmes a cores. O Texas, o nosso Texas, o verdadeiro Texas, era a preto e branco e
tinha, após o balcão, um reservado com vista para a cozinha e para os
campos do Santo,
onde hoje se ergue o cimento do Pavilhão Municipal. Foi no nosso Texas,
na sala da frente, que eu vi na televisão os jogos de Portugal no Mundial de 1966.
Ao Texas fui com o meu pai, no Texas confraternizei com os músicos antigos da Banda de Revelhe, que tinha casa de ensaio ali a dois (com)passos, coisa tão a calhar, com o querido Senhor Ferreira do Hospital
ou com o Queirós, meu camarada bissexto na fábrica e provavelmente o
melhor tintureiro do mundo, desse-se o caso extraordinário de ele
aparecer ao trabalho...
Vamos dizer, então, que o Texas, o nosso, era uma casa de pasto
- sem ofensa para todos os verdadeiros americanos do faroeste,
incluindo gado cavalar e vacum. As portas do Texas eram verdes, mas não
eram de saloon. Cobóis, apareciam alguns, sobretudo às
quartas-feiras, porém não me lembro de tiros. Naquele tempo em Fafe,
terra de paz e amor, matava-se mais à sacholada. Borracheiras havia-as, e
eram acontecimento de alta patente, é preciso que se note. Não tínhamos
xerife, mas tínhamos o Chester, tínhamos o regedor de pistolete à cinta e tínhamos o Miguel Cantoneiro, que, para todos os efeitos, também era autoridade. Às vezes, quando não era precisa, também tínhamos polícia...Em todo o caso: no Texas, no nosso Texas, um palerma do calibre de Donald Trump nunca seria escolhido sequer para fazer a escrita da sueca...
Antero de Figueiredo 4
Ei-lo diante de mim: Leonardo tem a alma inteira na mansidão do olhar ingénuo - na fisionomia aberta do seu rosto queimado e barbado de homem do mar, forte, franco e simples. Seus cabelos negros, onde há os fios brancos dos cinquenta anos, descem ondados na testa morena e plácida, quase sem rugas; e sob as plebeias sobrancelhas travadas, em bico, na raiz do nariz forte, os olhos
redondos, pestanudos e castanhos (quase sempre anuviados por um véu de tristeza mansa) tomam o ar do espanto, rústico e tímido, no sorriso bom. Estende-se até os lóbulos das orelhas e sobe até as faces, boleadas como seixos e envernizadas como camoesas de tons quentes, a barba preta, crespa, curta e quadrada. O pequeno bigode, modestamente curvo nos cantos, deixa ver todo o desenho perfeito da boca larga, grossa, leal e afável. Espadaúdo, peito abaulado, braços musculosos e arqueados de carregador, mãos grossas de pedreiro - tal é este homem hercúleo, em cujo rude arcaboiço floresce uma frágil alma de criança.
"O Último Olhar de Jesus", Antero de Figueiredo
(Antero de Figueiredo nasceu no dia 28 de Novembro de 1866. Morreu em 1953.)
redondos, pestanudos e castanhos (quase sempre anuviados por um véu de tristeza mansa) tomam o ar do espanto, rústico e tímido, no sorriso bom. Estende-se até os lóbulos das orelhas e sobe até as faces, boleadas como seixos e envernizadas como camoesas de tons quentes, a barba preta, crespa, curta e quadrada. O pequeno bigode, modestamente curvo nos cantos, deixa ver todo o desenho perfeito da boca larga, grossa, leal e afável. Espadaúdo, peito abaulado, braços musculosos e arqueados de carregador, mãos grossas de pedreiro - tal é este homem hercúleo, em cujo rude arcaboiço floresce uma frágil alma de criança.
"O Último Olhar de Jesus", Antero de Figueiredo
(Antero de Figueiredo nasceu no dia 28 de Novembro de 1866. Morreu em 1953.)
Luiz Ruas 2
Apocalipse
Os meteoros ameaçam nossos jardins.
É hora de decolarmos
Para a infinitude do silêncio dilatado
Com nossas asas de sonho
Antes que a terra exploda
E se escancare como a fauce
De uma desmedida flor carnívora
Faminta de nossos corpos.
Não mais teremos tempo
De colher o fruto do nosso canto
Os meteoros ameaçam nossos campos.
Os mares cobrirão nossas faces;
Os vulcões ressecarão nossos ossos;
As mãos, os ventres, os sexos
Murcharão sob o fogo das estrelas
Que cairão sobre vales e colinas.
Os meteoros ameaçam nossos rios.
É tempo de partirmos para o espanto desmedido.
Do que fomos, fizemos ou cantamos,
Ficará, apenas, o invisível traço
Do vôo da ave indivisível
Que se consumiu no espaço.
"Poemeu", Luiz Ruas
(Luiz Ruas nasceu no dia 28 de Novembro de 1931. Morreu em 2000.)
Os meteoros ameaçam nossos jardins.
É hora de decolarmos
Para a infinitude do silêncio dilatado
Com nossas asas de sonho
Antes que a terra exploda
E se escancare como a fauce
De uma desmedida flor carnívora
Faminta de nossos corpos.
Não mais teremos tempo
De colher o fruto do nosso canto
Os meteoros ameaçam nossos campos.
Os mares cobrirão nossas faces;
Os vulcões ressecarão nossos ossos;
As mãos, os ventres, os sexos
Murcharão sob o fogo das estrelas
Que cairão sobre vales e colinas.
Os meteoros ameaçam nossos rios.
É tempo de partirmos para o espanto desmedido.
Do que fomos, fizemos ou cantamos,
Ficará, apenas, o invisível traço
Do vôo da ave indivisível
Que se consumiu no espaço.
"Poemeu", Luiz Ruas
(Luiz Ruas nasceu no dia 28 de Novembro de 1931. Morreu em 2000.)
Antísthenes Pinto 2
Dentro do meu relógio,
a minha dor.
As reticências da tarde
são cães esgueirando seus latidos.
Depois irei para o vale de ardências
ver os utensílios da manhã.
Dentro da minha dor
o relógio se apagou
e as estrelas apodreceram
no prato que trago perto,
queixo em minhas mãos.
Dentro de mim começo a sentir
raízes como se eu fosse um muro estatelando.
a minha dor.
As reticências da tarde
são cães esgueirando seus latidos.
Depois irei para o vale de ardências
ver os utensílios da manhã.
Dentro da minha dor
o relógio se apagou
e as estrelas apodreceram
no prato que trago perto,
queixo em minhas mãos.
Dentro de mim começo a sentir
raízes como se eu fosse um muro estatelando.
"Angústia Numeral", Antísthenes Pinto
(Antísthenes Pinto nasceu no dia 28 de Novembro de 1929. Morreu em 2000.)
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
Palavra do senhor
Evangelista era um implacável porém monótono contador de histórias. Começava sempre: - Naquele tempo...
Os meus cromos 43
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Raduan Nassar
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte; deitei uma das faces contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a imobilidade ante o vôo fugaz dos cílios; o ruído das batidas na porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o floco de paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha onde por instantes adormecia; e o ruído se repetindo, sempre macio e manso, não me perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o disperso e esparso torvelinho sem acolhimento; meus olhos depois viram a maçaneta que girava, mas ela em movimento se esquecia na retina como um objeto sem vida, um som sem vibração, ou um sopro escuro no porão da memória; foram pancadas num momento que puseram em sobressalto e desespero as coisas letárgicas do meu quarto; num salto leve e silencioso, me pus de pé, me curvando pra pegar a toalha estendida no chão; apertei os olhos enquanto enxugava a mão, agitei em seguida a cabeça pra agitar meus olhos, apanhei a camisa jogada na cadeira, escondi na calça meu sexo roxo e obscuro, dei logo uns passos e abri uma das folhas me recuando atrás dela: era meu irmão mais velho que estava na porta; assim que ele entrou, ficamos de frente um para o outro, nossos olhos parados, era um espaço de terra seca que nos separava, tinha susto e espanto nesse pó, mas não era uma descoberta, nem sei o que era, e não nos dizíamos nada, até que ele estendeu os braços e fechou em silêncio as mãos fortes nos meus ombros e nós nos olhamos e num momento preciso nossas memórias nos assaltaram os olhos em atropelo, e eu vi de repente seus olhos se molharem, e foi então que ele me abraçou, e eu senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família inteira; voltamos a nos olhar e eu disse "não te esperava" foi o que eu disse confuso com o desajeito do que dizia e cheio de receio de me deixar escapar não importava com o que eu fosse lá dizer, mesmo assim eu repeti "não te esperava" foi isso o que eu disse mais uma vez e eu senti a força poderosa da família desabando sobre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia "nós te amamos muito, nós te amamos muito" e era tudo o que ele dizia enquanto me abraçava mais uma vez; ainda confuso, aturdido, mostrei-lhe a cadeira do canto, mas ele nem se mexeu e tirando o lenço do bolso ele disse "abotoe a camisa, André".
"Lavoura Arcaica", Raduan Nassar
(Raduan Nassar nasceu no dia 27 de Novembro de 1935)
"Lavoura Arcaica", Raduan Nassar
(Raduan Nassar nasceu no dia 27 de Novembro de 1935)
Soares dos Passos 5
A Camões
Ai do que a sorte assinalou no berço
Inspirado cantor, rei da harmonia!
Ai do que Deus às gerações envia
Dizendo - vai, padece, é teu fadário;
Como um astro brilhante o mundo o admira,
Mas não vê que essa chama abrasadora
Que o cerca d'esplendor, também devora
Seu peito solitário.
Pairar nos céus em alteroso adejo,
Buscando amor, e vida, e luz, e glórias;
E ver passar, quais sombras ilusórias,
Essas imagens de fulgor divino:
Tais s o vossos destinos, ó poetas,
Almas de fogo, que um vil mundo encerra;
Tal foi, grande Camões, tal foi na terra
Teu mísero destino.
A cruz levaste desde o berço à campa:
Esgotaste a amargura ate às fezes:
Parece que a fortuna em seus revezes
Te mediu pelo génio a desventura.
Combateste com ela como o cedro
Que provoca o rancor da tempestade,
Mas cuja inabalável majestade
Lhe resiste segura.
Foste grande na dor como na lira!
Quem soube mais sofrer, quem sofreu tanto?
Um anjo viste de celeste encanto,
E aos pés caíste da visão querida...
Engano! foi um astro passageiro,
Foi uma flor de perfumado alento
Que ao longe te sorriu, mas que sedento
Jamais colheste em vida.
[...]
Soares dos Passos
(Soares dos Passos nasceu no dia 27 de Novembro de 1826. Morreu em 1860.)
Ai do que a sorte assinalou no berço
Inspirado cantor, rei da harmonia!
Ai do que Deus às gerações envia
Dizendo - vai, padece, é teu fadário;
Como um astro brilhante o mundo o admira,
Mas não vê que essa chama abrasadora
Que o cerca d'esplendor, também devora
Seu peito solitário.
Pairar nos céus em alteroso adejo,
Buscando amor, e vida, e luz, e glórias;
E ver passar, quais sombras ilusórias,
Essas imagens de fulgor divino:
Tais s o vossos destinos, ó poetas,
Almas de fogo, que um vil mundo encerra;
Tal foi, grande Camões, tal foi na terra
Teu mísero destino.
A cruz levaste desde o berço à campa:
Esgotaste a amargura ate às fezes:
Parece que a fortuna em seus revezes
Te mediu pelo génio a desventura.
Combateste com ela como o cedro
Que provoca o rancor da tempestade,
Mas cuja inabalável majestade
Lhe resiste segura.
Foste grande na dor como na lira!
Quem soube mais sofrer, quem sofreu tanto?
Um anjo viste de celeste encanto,
E aos pés caíste da visão querida...
Engano! foi um astro passageiro,
Foi uma flor de perfumado alento
Que ao longe te sorriu, mas que sedento
Jamais colheste em vida.
[...]
Soares dos Passos
(Soares dos Passos nasceu no dia 27 de Novembro de 1826. Morreu em 1860.)
Adonias Filho 4
A moça dos pãezinhos de queijo
É preciso conhecer o Largo da Palma, tão velho quanto Salvador, para saber onde fica a casa dos pãezinhos de queijo. Cercam-no os casarões antigos que abrem passagens para as ruas e para uma ladeira pequena e torta que também se chama de Palma. E, se o largo e a ladeira são da Palma, é porque lá está a igreja que lhes empresta o nome. Humilde e enrugadinha, com três séculos de idade, nada ali acontece que não testemunhe em sua curiosidade de velha muito velha. E, assim de frente para a ladeira que desce no caminho da Baixa dos Sapateiros, vê e ouve tudo o que se faz e fala na casa dos pãezinhos de queijo.
[...]
"O Largo da Palma", Adonias Filho
(Adonias Filho nasceu no dia 27 de Novembro de 1915. Morreu em 1990.)
É preciso conhecer o Largo da Palma, tão velho quanto Salvador, para saber onde fica a casa dos pãezinhos de queijo. Cercam-no os casarões antigos que abrem passagens para as ruas e para uma ladeira pequena e torta que também se chama de Palma. E, se o largo e a ladeira são da Palma, é porque lá está a igreja que lhes empresta o nome. Humilde e enrugadinha, com três séculos de idade, nada ali acontece que não testemunhe em sua curiosidade de velha muito velha. E, assim de frente para a ladeira que desce no caminho da Baixa dos Sapateiros, vê e ouve tudo o que se faz e fala na casa dos pãezinhos de queijo.
[...]
"O Largo da Palma", Adonias Filho
(Adonias Filho nasceu no dia 27 de Novembro de 1915. Morreu em 1990.)
Afonso Arinos de Melo Franco
A minha gente materna e paterna subira, naturalmente, dos municípios da mata e do sertão para a nova capital. De ouvidores e capitães-mores na Colônia, de deputados provinciais e gerais do Império, presidente de Estado, deputados e senadores, estaduais e federais na República, chegavam a Belo Horizonte contando gerações a serviço do povo mineiro. Eram, por isso mesmo, naturais na sua independência sem sobranceria. Nunca - mas realmente nunca, nem um só dia, nem uma só vez - senti na minha casa a triste necessidade da subserviência, da adulação ou da abdicação da personalidade, para defesa de uma melhor situação na vida. Era, autenticamente, uma família senhoril; de senhores mineiros, bem entendido, modestos, sem luxos nem riquezas, mas senhores. Isto é, gente simples mas altiva, incapaz de sofrer qualquer humilhação para subir na vida. O que os diferençava, talvez, de outros grupos familiares no mesmo gênero, existentes no Estado, era a ininterrupta tradição intelectual que fazia da literatura, na nossa casa, uma coisa comum, uma conversa de todo dia. A literatura nos acompanhava desde a Colônia.
"A Alma do Tempo", Afonso Arinos de Melo Franco
(Afonso Arinos de Melo Franco nasceu no dia 27 de Novembro de 1905. Morreu em 1990.)
domingo, 26 de novembro de 2017
Os figurantes
Foto Hernâni Von Doellinger |
Escândalo. O Governo pagou aos cidadãos que fizeram perguntas a António Costa num evento organizado para efemerizar os dois anos da Geringonça. Eu, por princípio, não acho mal que o Governo pague aos cidadãos. Mas o PSD (o PSD que está e o PSD que há-de vir) e pelos menos dois jornais da corda, o Sol e o Observador, mais a RTP que está incomodadíssima, consideram que isto tudo é uma vergonha e exigem todos os esclarecimentos. Porque afinal os cidadãos perguntadores eram apenas figurantes. Eu, por princípio, também não acho mal que se pague aos figurantes.
Uma vez, há muitos anos, começava no meu ofício, mandaram-me a uma conferência de imprensa na secção do Porto da Ordem dos Médicos. A Ordem dos Médicos do Porto tinha então um assessor de imprensa, relações públicas ou director de comunicação, como agora se diz, que era jornalista no activo com cargo de chefia e, se a memória não me atraiçoa, também treinador de futebol - o verdadeiro enciclopedista do século vinte. O homem sorria à porta da salinha, com uns bilhetinhos na mão e eu logo a pensar "só entro se pagar ou serão rifas? passo-me já ao caralho, e quero lá saber das maiúsculas..."
Os bilhetinhos. Eram perguntinhas dactilografadas como quadras para concurso de São João no JN. As perguntinhas que a Ordem dos Médicos do Porto ou pelo menos o meu obtuso camarada queriam que os jornalistas fizessem na tal conferência de imprensa, posto que eles por acaso já tinham a resposta na ponta da língua. Mandei o assessor lamber sabão e não quero saber (sei, sei!) se alguém aceitou a encomenda.
Os cidadãos figurantes de António Costa foram pagos, cada um, com 200 euros em vales de compras, contam os jornais indignados. Os jornalistas figurantes sinceramente não sei qual é a tabela...
P.S. - Arnaldo Figurante consta da "Crónica dos Bons Malandros", de Mário Zambujal, jornalista honrado. Fosse o Arnaldo Vigilante em vez de Figurante e o seu nome era de certeza Zé. Zé Gomes, como toda a gente sabe...
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Agora a sério
A Graça é de rir...
Álvaro Pacheco
Erótica
uma vagina que seja o infinito:
uma boca
sorridente e fresca. Uma puta amorosa
sem recalques ou fome
e que esteja a qualquer hora
à espera do beijo mais brutal
e da recusa confortadora.
uma vagina que saiba
as contrações finais
do orgasmo perdido - e se imponha
a qualquer impotência ou embriaguez:
uma folha tenra
a se quebrar em minhas mãos
como uma inocência.
"Itinerários", Álvaro Pacheco
(Álvaro Pacheco nasceu no dia 26 de Novembro de 1933)
uma vagina que seja o infinito:
uma boca
sorridente e fresca. Uma puta amorosa
sem recalques ou fome
e que esteja a qualquer hora
à espera do beijo mais brutal
e da recusa confortadora.
uma vagina que saiba
as contrações finais
do orgasmo perdido - e se imponha
a qualquer impotência ou embriaguez:
uma folha tenra
a se quebrar em minhas mãos
como uma inocência.
"Itinerários", Álvaro Pacheco
(Álvaro Pacheco nasceu no dia 26 de Novembro de 1933)
Mário Lago 5
Três coisas
Três coisas pra mim no mundo
Valem bem mais do que o resto.
Pra defender qualquer delas
Eu mostro o quanto que presto.
É o gesto, é o grito, é o passo,
É o grito, é o passo, é o gesto.
O gesto é a voz do proibido
Escrita sem deixar traço.
Chama, ordena, empurra, assusta.
Vai longe com pouco espaço.
É o passo, é o gesto, é o grito,
É o gesto, é o grito, é o passo
O passo começa o voo
Que vai do chão pro infinito.
Pra mim, que amo estrada aberta,
Quem prende o passo é maldito.
É o grito, é o passo, é o gesto,
É o passo, é o gesto, é o grito.
O grito explode o protesto
Se a boca já não dá espaço.
Que guarde o que há pra ser dito
No grito, no passo e gesto.
É o gesto, é o grito, é o passo,
É o passo, é o gesto, é o grito.
Mário Lago
(Mário Lago nasceu no dia 26 de Novembro de 1911. Morreu em 2002.)
Três coisas pra mim no mundo
Valem bem mais do que o resto.
Pra defender qualquer delas
Eu mostro o quanto que presto.
É o gesto, é o grito, é o passo,
É o grito, é o passo, é o gesto.
O gesto é a voz do proibido
Escrita sem deixar traço.
Chama, ordena, empurra, assusta.
Vai longe com pouco espaço.
É o passo, é o gesto, é o grito,
É o gesto, é o grito, é o passo
O passo começa o voo
Que vai do chão pro infinito.
Pra mim, que amo estrada aberta,
Quem prende o passo é maldito.
É o grito, é o passo, é o gesto,
É o passo, é o gesto, é o grito.
O grito explode o protesto
Se a boca já não dá espaço.
Que guarde o que há pra ser dito
No grito, no passo e gesto.
É o gesto, é o grito, é o passo,
É o passo, é o gesto, é o grito.
Mário Lago
(Mário Lago nasceu no dia 26 de Novembro de 1911. Morreu em 2002.)
Jorge Listopad 2
Ulisses
[...]
- Quero saber mais - insisti.
O meu fotógrafo estava um tanto surpreendido com a minha curiosidade, e não era razão para menos. Mas acontecia que o engenheiro Šourek, gerente do banco Assicurazione de Trieste, era amigo do meu pai, e comercialmente também eram amigos. Era o único prémio de seguro que eu recebia, depois de o meu pai ter morrido numa prisão nazi; que estranho, como a memória brinca connosco, porque só agora desenterro factos que estavam esquecidos? Eu sabia que o engenheiro Šourek era casado com uma irlandesa de nome Eileen; só nesse momento juntei os factos: a Eileen era irmã de James Joyce, que era então professor na bela cidade de Trieste, que aliás visitei, uma vez, ao fazer um desvio de Veneza; e que, sem eu saber porquê, estranhamente me comoveu. Sei é que em Trieste, quando chamavam Joyce ao senhor professor, faziam-no como se lessem a palavra eslava jajce, que em esloveno significa ovo. Quanto a Šourek, na língua autóctone significa testículos. James Joyce sabia-o, linguista como ele era, e escreveu aos noivos uma carta de felicitações, não do melhor gosto, desejando-lhes um bom e fecundo encontro do ovo com o testículo.
Como o mundo é pequeno. O meu pai era amigo do cunhado de James Joyce, provavelmente sem saber quem era esse novo Homero do século xx; eu morava numa rua vizinha da sua e em casa tinha aberto o seu livro Ulisses. Achei tudo isto um milagre de acasos e por isso dedico esta pequena narrativa a todos os entes aqui nomeados e ao referido fotógrafo, que foi depois tomar comigo um café numa outra rua próxima; um mokka, como escreveu James Joyce. Enquanto tomávamos café quis contar-lhe tudo isto, mas depois achei que ele não podia compreender uma coisa que nem eu mesmo compreendia.
"Remington", Jorge Listopad
(Jorge Listopad nasceu no dia 26 de Novembro de 1921. Morreu ontem.)
[...]
- Quero saber mais - insisti.
O meu fotógrafo estava um tanto surpreendido com a minha curiosidade, e não era razão para menos. Mas acontecia que o engenheiro Šourek, gerente do banco Assicurazione de Trieste, era amigo do meu pai, e comercialmente também eram amigos. Era o único prémio de seguro que eu recebia, depois de o meu pai ter morrido numa prisão nazi; que estranho, como a memória brinca connosco, porque só agora desenterro factos que estavam esquecidos? Eu sabia que o engenheiro Šourek era casado com uma irlandesa de nome Eileen; só nesse momento juntei os factos: a Eileen era irmã de James Joyce, que era então professor na bela cidade de Trieste, que aliás visitei, uma vez, ao fazer um desvio de Veneza; e que, sem eu saber porquê, estranhamente me comoveu. Sei é que em Trieste, quando chamavam Joyce ao senhor professor, faziam-no como se lessem a palavra eslava jajce, que em esloveno significa ovo. Quanto a Šourek, na língua autóctone significa testículos. James Joyce sabia-o, linguista como ele era, e escreveu aos noivos uma carta de felicitações, não do melhor gosto, desejando-lhes um bom e fecundo encontro do ovo com o testículo.
Como o mundo é pequeno. O meu pai era amigo do cunhado de James Joyce, provavelmente sem saber quem era esse novo Homero do século xx; eu morava numa rua vizinha da sua e em casa tinha aberto o seu livro Ulisses. Achei tudo isto um milagre de acasos e por isso dedico esta pequena narrativa a todos os entes aqui nomeados e ao referido fotógrafo, que foi depois tomar comigo um café numa outra rua próxima; um mokka, como escreveu James Joyce. Enquanto tomávamos café quis contar-lhe tudo isto, mas depois achei que ele não podia compreender uma coisa que nem eu mesmo compreendia.
"Remington", Jorge Listopad
(Jorge Listopad nasceu no dia 26 de Novembro de 1921. Morreu ontem.)
Dario Veloso 2
Paredra
Vênus pagã, olhos de sete-estrelo,
A cabeleira rútila fulgindo...
Amei-te!... Amor, nos olhos tens fulgindo,
Volúpia; luz o sol de teu cabelo.
A luxúria findou. Astro maldito,
Rolei do azul aos pélagos hiantes...
Procurava a minha alma... Além, distantes,
Lótus colhi nos édens do Infinito.
Morreste. Ao vale da Sombra, compungido,
Boa que foras para meus delírios,
Levei teu nobre coração partido.
Só então, osculando o altar de pedra,
À luz morrente de funéreos círios,
Vênus pagã, olhos de sete-estrelo,
A cabeleira rútila fulgindo...
Amei-te!... Amor, nos olhos tens fulgindo,
Volúpia; luz o sol de teu cabelo.
A luxúria findou. Astro maldito,
Rolei do azul aos pélagos hiantes...
Procurava a minha alma... Além, distantes,
Lótus colhi nos édens do Infinito.
Morreste. Ao vale da Sombra, compungido,
Boa que foras para meus delírios,
Levei teu nobre coração partido.
Só então, osculando o altar de pedra,
À luz morrente de funéreos círios,
Tua alma ouvi... - a minha Irmã, Paredra.
Dario Veloso
(Dario Veloso nasceu no dia 26 de Novembro de 1869. Morreu em 1937.)
Dario Veloso
(Dario Veloso nasceu no dia 26 de Novembro de 1869. Morreu em 1937.)
sábado, 25 de novembro de 2017
Que seca!
Madalena chorava por tudo e por nada. Um desperdício, nos tempos que correm...
Microcontos & outras miudezas 57
A cocada e a monada
A cocada e a monada, há quem as confunda. Porém existes-lhes um
diferença substancial. A cocada é uma pancada dada com a cabeça, uma
cabeçada, e faz cócegas no nariz. A monada é uma porção de monos,
macaquices, trejeitos, e, passando por cima do dicionário, evidentemente
uma pancada dada com a mona, uma cabeçada, mas não faz cócegas no
nariz. A tolada é outro assunto... Não sou eu. Sou o meu irmão gémeo...
- Então hoje resolveu aparecer?...
- Não.
- Não?...
- Não.
- Mas você...
- Não sou eu...
- Você não é você?...
- Não. Sou o meu irmão gémeo.
Desconversão
Há vinte anos que a Piedade não põe os pés na igreja...
As mãos no fogo
Ninguém me convence que o Inocêncio é culpado...
Antes pelo contrário
Assim era o Clemente - impiedoso...
Incrédulo
Não consigo acreditar que a Perpétua morreu...
Impávido e sereno
Impávido & Sereno, Sucessores, Limitada, a distribuir cartão canelado desde 1911. Exactamente.
"O meu filho não gosta de andar"
Há uma senhora que mora na minha padaria. Digo que mora na minha padaria porque, seja qual for a hora a que eu lá vá - oito, onze, meio-dia, quatro ou seis da tarde -, ela está lá, na mesa do canto, ao lado do balcão, quem vai para os lavabos. É exactamente para esse endereço que as Finanças lhe mandam as contas dos impostos: Dona Fulana de Tal, Mesa do Canto Ao Lado Do Balcão Quem Vai Para Os Lavabos, 4450-275 Matosinhos.
As padarias hoje em dia são tudo: café, salão de chá, pastelaria, cervejaria, restaurante, casa de pasto, tasco, pensão, centro de convívio, sociedade recreativa, quiosque, tabacaria, meeting point, posto de turismo, guiché de informações variadas. E vendem de tudo, até pão, o que é curioso. São os tempos que correm: o meu talho também vende ovos, azeite, queijo, vinho, peixe congelado, feijão, ananás e pêssego enlatados. E a minha farmácia tem sempre a hortaliça mais fresca aqui da zona.
Sendo tudo, a minha padaria tem televisão e, portanto, milhões de opiniões. A campeona do palpite é a cliente residente, cuja, para mal dos meus pecados, padece de uma voz agreste e guinchada uma oitava acima como se fosse o Bruno de Carvalho mas ao contrário. Nunca a apanhei calada...
"Não. O meu filho não gosta de andar!...", anunciava um destes dias a senhora que mora na minha padaria. "Podes ter gosto", dizia eu cá para mim. "Um marmanjo com mais de trinta anos e que não gosta de andar. Está bem, Alfreda! Até eu ando, até eu me rendi à caminhada, e que bem que me faz...", continuei com os meus botões.
Mas ela insistia, parecia tola a mulher, cheia de orgulho no calaceiro: - O meu filho não gosta de andar. Não. Não gosta de andar...
"Ai que caralho!", ia eu pensar, quando a senhora que mora na minha padaria: - Não gosta de andar. Uma casa, nem que fosse pequenina, mas com tudo, ele preferia...
Vida difícil
Foi um choque quando soube que a Pureza se dedicava à prostituição...
Oswaldo Osório
Manhã inflor
as héveas murcharam
desertas de folhas
desertas de flores
propositadamente
nem só o sangue mas também a seiva
nem só a criança mas também a pétala
nem só o homem mas também a planta
nem só a carne mas também a lenha
propositadamente
tudo o hamadricida flagelou
a beleza da flor
a inocência da criança
a certeza dos campos
o aconchego duma sombra
mas nos covis a vida continuou
e o apelo à luta redobrou
as héveas murcharam
e com as héveas
a manhã inflor
a terra nua
mas ainda a vida
nos covis continua
Oswaldo Osório
(Osvaldo Alcântara Medina Custódio, conhecido como Oswaldo Osório, nasceu no dia 25 de Novembro de 1937)
as héveas murcharam
desertas de folhas
desertas de flores
propositadamente
nem só o sangue mas também a seiva
nem só a criança mas também a pétala
nem só o homem mas também a planta
nem só a carne mas também a lenha
propositadamente
tudo o hamadricida flagelou
a beleza da flor
a inocência da criança
a certeza dos campos
o aconchego duma sombra
mas nos covis a vida continuou
e o apelo à luta redobrou
as héveas murcharam
e com as héveas
a manhã inflor
a terra nua
mas ainda a vida
nos covis continua
Oswaldo Osório
(Osvaldo Alcântara Medina Custódio, conhecido como Oswaldo Osório, nasceu no dia 25 de Novembro de 1937)
Jenaro Marinhas del Valle
Recanto dum jardim público. Dous bancos, próprios do sítio, um
dando frente ao público, em direcçom horizontal à embocadura, o
outro em posiçom vertical a ela e num lateral. Atrás do primeiro,
quando menos, umha árvore em cujas pólas podam pousar as duas
aves exóticas que aparecerám imediatamente.
Ave 1: Onde é que nos encontramos?
Ave 2: Pois nom o sei. Nunca é fácil sabê-lo com certeza, tudo se vai uniformando tanto no mundo que todas as cidades parecem a mesma. Iguais avenidas, "scalestrix", "buildings". Que nojo!
Ave 1: Vamos dar outra revoada a ver se pesquisamos algo orientador.
Ave 2: Se déssemos coa Oficina de Turismo.
Ave 1: Impossível, nom podemos rasear o voo com tantas espingardas de ar comprimido em maos dos escolares.
[...]
"O Assento", Jenaro Marinhas del Valle
(Jenaro Marinhas del Valle nasceu no dia 25 de Novembro de 1908. Morreu em 1999.)
Ave 1: Onde é que nos encontramos?
Ave 2: Pois nom o sei. Nunca é fácil sabê-lo com certeza, tudo se vai uniformando tanto no mundo que todas as cidades parecem a mesma. Iguais avenidas, "scalestrix", "buildings". Que nojo!
Ave 1: Vamos dar outra revoada a ver se pesquisamos algo orientador.
Ave 2: Se déssemos coa Oficina de Turismo.
Ave 1: Impossível, nom podemos rasear o voo com tantas espingardas de ar comprimido em maos dos escolares.
[...]
"O Assento", Jenaro Marinhas del Valle
(Jenaro Marinhas del Valle nasceu no dia 25 de Novembro de 1908. Morreu em 1999.)
Eça de Queirós 5
O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival. No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis. A sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao mar de Âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, n.º 202.
"A Cidade e as Serras", Eça de Queirós
(Eça de Queirós nasceu no dia 25 de Novembro de 1845. Morreu em 1900.)
"A Cidade e as Serras", Eça de Queirós
(Eça de Queirós nasceu no dia 25 de Novembro de 1845. Morreu em 1900.)
sexta-feira, 24 de novembro de 2017
Tourada em Fafe
Campo da Granja, 1963. Uma tourada que terá sido a primeira realizada em
terras de Fafe e que, se não me engano, foi a única, até hoje, com
touros. Fui lá com o meu vizinho Zé da SIF "ajudar" a instalar os altifalantes. O redondel não era assim tão redondo como o próprio nome poderia
indicar: digamos que foi montada uma espécie de lua cheia fanada,
cortada em linha recta na zona da bancada, que era para o excelentíssimo
público poder estar em cima do acontecimento. Pronto. Lembram-se da
bancada do Campo da Granja? Lembram-se sequer do Campo da Granja? Sabem
onde era o Campo da Granja? Sabem ao menos o que era o Campo da Granja, para além da óbvia redundância? Ai a memória...
E era isto. Se, por causa do título e da lamentável agenda política local, pensavam que era outra coisa é porque confundem as prioridades da vida. Já agora: a tourada foi igualmente uma merda. E olé!...
P.S. (nem de propósito) - Escrevi e publiquei este texto no dia 7 de Outubro de 2013, mas hoje também está bem...
E era isto. Se, por causa do título e da lamentável agenda política local, pensavam que era outra coisa é porque confundem as prioridades da vida. Já agora: a tourada foi igualmente uma merda. E olé!...
P.S. (nem de propósito) - Escrevi e publiquei este texto no dia 7 de Outubro de 2013, mas hoje também está bem...
Bombeiros de Fafe em livro
"Bombeiros Voluntários de Fafe - Uma História de Heroísmo desde 1890" é o título do mais recente livro de Artur Ferreira Coimbra. Será apresentado na próxima quarta-feira, dia 29 de Novembro, a partir das 21 horas, no Teatro-Cinema de Fafe. A cerimónia serve de pretexto para uma "festa solidária a favor" dos Bombeiros de Fafe. Mais informação, aqui.
Os meus cromos 40
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Termas de São Vicente
Cautela e caldo de galinha...
Nunca levantava o pé direito sem ter a certeza de que tinha o pé esquerdo no chão - assim andava Prudêncio.
António Gedeão 5
Fala do homem nascido
Venho da terra assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.
Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença, com licença,
que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo,
não tenho tempo a perder.
Minha barca aparelhada
solta rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.
Quero eu e a natureza,
que a natureza sou eu,
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu.
Com licença, com licença,
que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença,
mesmo morto hei-de passar.
Com licença, com licença,
com rumo à estrela polar.
"Teatro do Mundo", António Gedeão
(António Gedeão nasceu no dia 24 de Novembro de 1906. Morreu em 1997.)
Venho da terra assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.
Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença, com licença,
que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo,
não tenho tempo a perder.
Minha barca aparelhada
solta rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.
Quero eu e a natureza,
que a natureza sou eu,
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu.
Com licença, com licença,
que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença,
mesmo morto hei-de passar.
Com licença, com licença,
com rumo à estrela polar.
"Teatro do Mundo", António Gedeão
(António Gedeão nasceu no dia 24 de Novembro de 1906. Morreu em 1997.)
Cruz e Sousa 2
Emoção
Não sei que estranho frisson nervoso percorre-me às vezes a espinha, me eletriza e sensibiliza todo como se o meu corpo fosse um harmonioso teclado de cristal vibrando as sonoridades mais delicadas.
Um ombro aveludado e trescalante a frescuras aromáticas, que pelo meu ombro levemente roce na rua, num encontro fortuito, produz-me um estado tal de volúpia, dá-me tão longa, larga volúpia, que me vejo por entre incensos, festivamente paramentado como o sacerdote que ergue o cálice acima da cabeça, ao alto do altar-mor dos templos doirados, sentindo que uma aluvião de almas crentes o adora de joelhos.
A mão fina, ideal, calçada em luva clara, de formosa mulher que por entre a multidão aparece e desaparece, como uma estrela por entre nuvens, bem vezes, também, me alvoroça e agita o sangue.
E sigo, radiante, triunfal, rei, essa nobre mão enluvada, à qual eu em vão pediria o ouro, a riqueza afetuosa de um gesto carinhoso - a essa delicada mão avara e milionária que, para mais avara tornar-se ainda, se fora esconder na maciez elegante da luva fresca, vivendo dentro dela afagada, confortada, palpitando talvez por encontrar a mão feliz que vibrará de amor ao seu contato.
[...]
Não sei que estranho frisson nervoso percorre-me às vezes a espinha, me eletriza e sensibiliza todo como se o meu corpo fosse um harmonioso teclado de cristal vibrando as sonoridades mais delicadas.
Um ombro aveludado e trescalante a frescuras aromáticas, que pelo meu ombro levemente roce na rua, num encontro fortuito, produz-me um estado tal de volúpia, dá-me tão longa, larga volúpia, que me vejo por entre incensos, festivamente paramentado como o sacerdote que ergue o cálice acima da cabeça, ao alto do altar-mor dos templos doirados, sentindo que uma aluvião de almas crentes o adora de joelhos.
A mão fina, ideal, calçada em luva clara, de formosa mulher que por entre a multidão aparece e desaparece, como uma estrela por entre nuvens, bem vezes, também, me alvoroça e agita o sangue.
E sigo, radiante, triunfal, rei, essa nobre mão enluvada, à qual eu em vão pediria o ouro, a riqueza afetuosa de um gesto carinhoso - a essa delicada mão avara e milionária que, para mais avara tornar-se ainda, se fora esconder na maciez elegante da luva fresca, vivendo dentro dela afagada, confortada, palpitando talvez por encontrar a mão feliz que vibrará de amor ao seu contato.
[...]
"Missal", Cruz e Sousa
(Cruz e Sousa nasceu no dia 24 de Novembro de 1861. Morreu em 1898.)
Eugenio Montes 2
Neve
Baixan puntas d'estrelas
Bican as corozas e deixan parches nos traxes
Dorm'a neve no colo do outeiro
Telón d'un cine crebándose nos ollos
Store cubrindo o hourizonte
As cuartillas choven pelotas de tennis
Qu'o chegar â terra non queren brincar
A neve chama nas portas c'os cotovelos
A terra é o despacho d'un poeta cuberto de cuartillas que choran
Brinca o sol
A luz da carabiolas
Rin os piñeiros ensinando os dentes
Os espellos están crebados no chao
O azogue roubou dúas áas e fuxe a cabalo do lombo do arco da vella
Eugenio Montes
(Eugenio Montes nasceu no dia 24 de Novembro de 1900. Morreu em 1982.)
Baixan puntas d'estrelas
Bican as corozas e deixan parches nos traxes
Dorm'a neve no colo do outeiro
Telón d'un cine crebándose nos ollos
Store cubrindo o hourizonte
As cuartillas choven pelotas de tennis
Qu'o chegar â terra non queren brincar
A neve chama nas portas c'os cotovelos
A terra é o despacho d'un poeta cuberto de cuartillas que choran
Brinca o sol
A luz da carabiolas
Rin os piñeiros ensinando os dentes
Os espellos están crebados no chao
O azogue roubou dúas áas e fuxe a cabalo do lombo do arco da vella
Eugenio Montes
(Eugenio Montes nasceu no dia 24 de Novembro de 1900. Morreu em 1982.)
Celso Pinheiro 2
[Manhã prestes a abrir]
Manhã prestes a abrir o cálice doirado!
Na casinha de palha andam todos alerta.
Pois antes que a manhã seja uma rosa aberta,
Há de este amor surgir o fruto iluminado!...
Dona Flor com o semblante heril transfigurado,
Tem anseios de mãe... A parteira desperta,
Pitando o seu cachimbo, aguarda a hora certa,
E me diz que não tenha o mínimo cuidado!...
De súbito, porém, a sombra de um perigo...
Eu, pálido, a tremer, minha alegria tolho,
E vou ver o Dr. - velho médico amigo!
Mas ao volver ao lar me comovo e confundo:
Ela, ingênua, a sorrir, mostrando-me o pimpolho,
Sugere-me votivo o seu nome - Raimundo!...
Celso Pinheiro
(Celso Pinheiro nasceu no dia 24 de Novembro de 1887. Morreu em 1950.)
Manhã prestes a abrir o cálice doirado!
Na casinha de palha andam todos alerta.
Pois antes que a manhã seja uma rosa aberta,
Há de este amor surgir o fruto iluminado!...
Dona Flor com o semblante heril transfigurado,
Tem anseios de mãe... A parteira desperta,
Pitando o seu cachimbo, aguarda a hora certa,
E me diz que não tenha o mínimo cuidado!...
De súbito, porém, a sombra de um perigo...
Eu, pálido, a tremer, minha alegria tolho,
E vou ver o Dr. - velho médico amigo!
Mas ao volver ao lar me comovo e confundo:
Ela, ingênua, a sorrir, mostrando-me o pimpolho,
Sugere-me votivo o seu nome - Raimundo!...
Celso Pinheiro
(Celso Pinheiro nasceu no dia 24 de Novembro de 1887. Morreu em 1950.)
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