Quase morri para salvar um bebé que não era
Vamos supor que era a Grand Central Terminal de Nova Iorque e estávamos no quentinho do cinema. Mas na verdade estávamos em Vila do Conde à chuva e era um tanque público no quarteirão da Santa Casa da Misericórdia. Eu passando. Um carrinho de bebé sem condutor sai lentamente do lavadouro, primeiro em câmara lenta como nos filmes e depois, rapidamente embalado pela força da realidade, adeus passeio, vou para a estrada da morte que se faz tarde. Ia. Naquele momento exacto sinto o primeiro e único impulso de heroísmo de toda a minha vida, voo para o carrinho a pensar na CMTV, na TVI, no YouTube, em Marcelo Rebelo de Sousa, na medalha do 10 de Junho, na reforma vitalícia (pensa-se em muita merda numa fracção de segundos), rezo a Nosso Senhor e a Nossa Senhora e a Santiago, meu padrinho e pretector, falta-me o ar de repente, é o coração que me entope cobardemente a garganta, as pernas tremem-me como varas verdes mas desta vez não falham, voo para o carrinho e agarro-o já no milagroso resvés com um Toyota Yaris que passa nas horas e me enche de nomes, mas é o menos. Graças a Deus. Respiro. A mãe grita, de mãos espetadas na cabeça desgrenhada, Ai o carrinho, e o pai berra Olha o carrinho, e dá mais uma puxa no paivante.
O carrinho?, interpelo eu e repito, mais fodido do que outra coisa, O carrinho? E a criança, caralho?, A criança?, as palavras saem-me aos soluços e eu preciso de uma cadeira para morrer ali sentado. Mas qual criança?, dizem-me os dois, com caras combinadas de quem me manda à merda com a senha número um e portanto sem cadeira, Qual criança?, e riem-se afinadíssimos da minha agonia. Tinham praticamente razão: olhei para o carrinho que mantinha nas mãos cerradas e aflitas, o bebé eram quatro passadeiras lavadas, enroladas e ainda pingantes - as quatro filhas da puta pelas quais eu só não faleci prematuramente porque sou um gajo cheio de sorte.
Nota final. A famosa cena do carrinho de bebé descendo a escadaria, com a criança dentro, no meio do tiroteio, em "Os Intocáveis", de 1987, já tinha sido vista em "O Couraçado Potemkine", de 1925.
Criança estrangeira é outra categoria!
A criança chorava com evidente entusiasmo. Gritava, gritava, gritava. Ranhava, ranhava, ranhava. E esperneava, esperneava, esperneava. Dava mesmo gosto ouvê-la. Que competência! Que performance! Que espectáculo! Que profissionalismo! Que categoria! Que pulmões! Que ginástica! Via-se logo que era uma criança estrangeira, alimentada desde a barriga da mãe a iogurtes, papas e boiões.
Situemo-nos, porém, porque isto não é ficção: estamos na chamada Rotunda do Castelo do Queijo, também desconhecida como Praça de Gonçalves Zarco, no Porto, exactamente na paragem dos autocarros descapotáveis para turistas de mapa nas mãos, e assim estavam os pais babados do seu magnífico filho chorão. Não era, portanto, difícil de adivinhar, mas eu quis tirar a coisa a limpo, por defeito profissional, e perguntei no meu melhor inglês: vosotros être camones, iesse ol raite? E eles responderam-me que efectivamente, camones, mas versão bife, de Bristol.
(Para quem não sabe, Bristol é uma habitadíssima cidade do sudoeste inglês e foi uma sapataria muito jeitosa em Fafe, a sapataria do Magalhães "Bristol", onde o Senhor Ferreira do Hospital me mandou uma vez ir lá escolher um par de sapatos que ele depois pagaria. O Senhor Ferreira do Hospital foi meu mestre e amigo, e era um homem extraordinário.)
Ora bem. Os pais da criança confirmaram-me o que eu já sabia. Eram ingleses, os pais, e o pequeno ranhoso também. E era a primeira vez que estavam em Portugal, há dois dias. O que fez aumentar ainda mais (como se "aumentar ainda mais" fizesse algum sentido), dizia, o que fez aumentar ainda mais a minha estupefacção, para não dizer uma palavra mais simples: é que aquela criança - criança inglesa retinta, filha de pais ingleses retintos, de Bristol - chorava em fluente português, perfeito, sem pontinha de sotaque. O que é extraordinário. Em apenas dois dias...
É o que eu digo: não há nada que chegue ao estrangeiro.
O neném que era sedentário contra a vontade da mãe
Estacionaram o carro junto à praia. A mulher saiu, morena e roliça, num refrescante vestido branco comprido à mãe-de-santo. O homem foi ao banco de trás buscar o filho e pousou-o no chão. O miúdo não gostou. Era ainda um bebezinho dos primeiros passos que quase não se tinha em pé. Se calhar por isso, sentou-se no empedrado, abriu as goelas e chorou o seu protesto. A mãe procurou por quem passava, era eu, e ralhou pedagógica e mansamente ao petiz, naquele português doce do Brasil: - Rodinei Uaxinton, chega! Que sedentarismo, minino!...
P.S. - Hoje, 1 de Junho, é Dia Mundial da Criança. E também é Dia Mundial do Leite. Isto realmente anda tudo ligado.
domingo, 31 de maio de 2020
Sílvio Duncan 4
Os imigrantes
Deuses sentados
no azul dos olhos.
Lendas dobradas
no baú da alma.
Mãos enormes
de geotropismo faminto.
Falas estranhas
de um tempo escuro,
vindas de velhos ossos medievais.
"Profetas do Cimento", Sílvio Duncan
(Sílvio Duncan nasceu no dia 1 de Junho de 1922. Morreu em 1999.)
Deuses sentados
no azul dos olhos.
Lendas dobradas
no baú da alma.
Mãos enormes
de geotropismo faminto.
Falas estranhas
de um tempo escuro,
vindas de velhos ossos medievais.
"Profetas do Cimento", Sílvio Duncan
(Sílvio Duncan nasceu no dia 1 de Junho de 1922. Morreu em 1999.)
Manuel Cuña Novás 4
Frauta na noite
Agoiro de frauta antiga
que namorou a lúa
medoñenta das rodas dos camiños
e os anelos das cobras. Ainda
un oco de soma é lar e faise medo.
O sapo era como un paxaro triste
en col de un ramaxe núo que refrexou a xerfa;
seu laído na tébra aluarado
rompeu os nidos segredos da noite.
Pólos derradeiros sonos
rodaba cristaíño un degaro de azas novas.
Nos arañeiros doídos
tece prantos a choviña
e o silenzo faise fonte na silveira.
O sapo é unha mazán vouga, lamacente,
noitébrega semente das silenzosas ágoas
que aloumiñan na noite malencónica
doces seixos de lúa.
O sapo foi un neno,
aquil neno encantado na maxia de unha léenda
que adeprendeu soíño
a cenza alobre das cobras e os lagartos.
O sapo foi un neno
c-un carreiriño de vagalumes en cada man
furada
n-aquel primeiro sono derrubado
xa cheo de paradiso.
"Fabulario Novo", Manuel Cuña Novás
(Manuel Cuña Novás nasceu no dia 1 de Junho de 1924. Morreu em 1992.)
Ofender não ofende?
Há coisas que não se compreendem: como é que um erro defensivo pode ser mais grave do que um erro ofensivo?...
A importância do retrovisor na luta contra o vírus
O espelho retrovisor central é um instrumento da máxima importância dentro de um veículo automóvel. Serve para pendurar coisas. Não coisas quaisquer, à sorte, mas coisas próprias de pendurar num retrovisor. Por exemplo, seria impensável pendurar num retrovisor uma gabardina molhada ou um guarda-chuva aberto, porque o retrovisor não é um cabide, é um retrovisor. E no retrovisor penduraram-se, ao longo da história, terços e senhoras de Fátima fosforecentes, relíquias sagradas da Terra Santa contrafeitas, árvores mágicas ambientadoras, castanholas, galhardetes dos Bombeiros de Montalegre, da Junta de Canas de Senhorim, da Câmara de Nelas, do Real Madrid e do Benfica, fitinhas vermelhas do Leixões, miniaturas de casais minhotos e folclóricos, óculos de sol e óculos de chuva, porta-chaves, porta-aviões, trevos de quatro folhas, estrelas de cinco pontas, cornos de besouro ou escaravelho e cornos em geral, patas de coelho, figas, ferraduras, CD, mesmo largos anos depois de ter passado a novidade, e agora penduram-se as máscaras. Exactamente: o sítio da máscara higiénica e sanitárica que nos protege da pandemia e da morte é o retrovisor, o que só lhe medra a relevância - ao retrovisor.
Ora bem: eu não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. E faço questão de elencar estas três fundamentais asserções, porque elas, as asserções, parecendo sinónimas e redundantes, não o são, não o são. Não o são. Na verdade, há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro; há quem tenha carta de condução, não saiba conduzir e não tenha carro; há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; e até há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro - o que é uma raríssima coincidência. O mais certo é eu não ter esgotado todas as variáveis possíveis, mas desconfio que já perceberam o meu ponto de vista: não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. Portanto não tenho retrovisor.
Chegados aqui - de transporte público, evidentemente -, a grande dúvida que se me coloca é a que se segue: onde é que eu penduro a máscara? Na cara com certeza que não, porque me corta o ar e ainda ontem estive para morrer três vezes quando fui à peixaria, uma, e à padaria, duas. Por outro lado, e agora é uma dúvida mais pequena, alguém me saberá informar se haverá alguma brecha legal que me permita, vá lá, dar a volta às normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS, como a pide), dispensando-me liminarmente do uso da máscara sufocante e substituindo-a, digamos, por um CD, com o nariz enfiado no buraco, o que já seria algum arejo? Haverá? Era o que eu gostava de saber...
P.S. - Mais sobre retrovisor, mas de outro ângulo, aqui.
Ora bem: eu não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. E faço questão de elencar estas três fundamentais asserções, porque elas, as asserções, parecendo sinónimas e redundantes, não o são, não o são. Não o são. Na verdade, há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro; há quem tenha carta de condução, não saiba conduzir e não tenha carro; há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; e até há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro - o que é uma raríssima coincidência. O mais certo é eu não ter esgotado todas as variáveis possíveis, mas desconfio que já perceberam o meu ponto de vista: não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. Portanto não tenho retrovisor.
Chegados aqui - de transporte público, evidentemente -, a grande dúvida que se me coloca é a que se segue: onde é que eu penduro a máscara? Na cara com certeza que não, porque me corta o ar e ainda ontem estive para morrer três vezes quando fui à peixaria, uma, e à padaria, duas. Por outro lado, e agora é uma dúvida mais pequena, alguém me saberá informar se haverá alguma brecha legal que me permita, vá lá, dar a volta às normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS, como a pide), dispensando-me liminarmente do uso da máscara sufocante e substituindo-a, digamos, por um CD, com o nariz enfiado no buraco, o que já seria algum arejo? Haverá? Era o que eu gostava de saber...
P.S. - Mais sobre retrovisor, mas de outro ângulo, aqui.
sábado, 30 de maio de 2020
Walflan de Queiroz 4
A Tânia, numa tarde de crepúsculo místico
Esta tarde meus olhos estão cansados de te esperar
E de te desejar na tranquila paisagem do porto,
Onde os barcos balançam mansamente sob o crepúsculo.
Esta tarde eu te ouço no murmúrio das águas, no voo
Da gaivota, quando desfalece em mim a visão da retirada ilha.
Esta tarde meu coração adormece docemente em tuas mãos
E penso no silêncio das estrelas e dos teus olhos.
"O Livro de Tânia", Walflan de Queiroz
(Walflan de Queiroz nasceu no dia 31 de Maio de 1930. Morreu em 1995.)
Esta tarde meus olhos estão cansados de te esperar
E de te desejar na tranquila paisagem do porto,
Onde os barcos balançam mansamente sob o crepúsculo.
Esta tarde eu te ouço no murmúrio das águas, no voo
Da gaivota, quando desfalece em mim a visão da retirada ilha.
Esta tarde meu coração adormece docemente em tuas mãos
E penso no silêncio das estrelas e dos teus olhos.
"O Livro de Tânia", Walflan de Queiroz
(Walflan de Queiroz nasceu no dia 31 de Maio de 1930. Morreu em 1995.)
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Foi comprar tabaco e não voltou (a outra versão)
Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Todos os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia foi e não voltou.
P.S. - Hoje, 31 de Maio, é Dia Mundial sem Tabaco. É, portanto, um dia que não existe. E, não existindo, é também Dia dos Irmãos, Dia do Espírito Santo e, já agora, Dia do Tripulante de Cabina. Há dias assim...
P.S. - Hoje, 31 de Maio, é Dia Mundial sem Tabaco. É, portanto, um dia que não existe. E, não existindo, é também Dia dos Irmãos, Dia do Espírito Santo e, já agora, Dia do Tripulante de Cabina. Há dias assim...
Tito, imperador e artilheiro
Faz hoje exactamente mil novecentos e cinquenta anos que Tito e as suas legiões romanas derrubaram a segunda muralha de Jerusalém. Lá dentro, os judeus fugiram à rasca para a primeira muralha, mas os romanos, copiando o Porto de muitos séculos depois, construíram uma circunvalação, cortando vazas aos sitiados e todas as árvores num raio de quinze quilómetros, o que foi considerado um escândalo ambiental. A circunvalação de Tito era também conhecida como muralha de cerco, mais uma vez plagiando por antecipação a Invicta, mas sem bairro. Tito era o filho mais velho de Vespasiano e foi imperador entre 79 e 81. A mãe de Tito chamava-se Domitila, a Maior, para se diferenciar da filha Domitila, a Menor, irmã de Tito.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à presidência da antiga Jugoslávia e ao futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga.
Tito, na área, era imperial. Fino. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava. Palavra de honra, acertava!
Claro, não havia YouTube. Conto assim tal qual porque eu vi. E de olhos bem arregalados.
P.S. - Publicado originalmente no dia 30 de Maio de 2019.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à presidência da antiga Jugoslávia e ao futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga.
Tito, na área, era imperial. Fino. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava. Palavra de honra, acertava!
Claro, não havia YouTube. Conto assim tal qual porque eu vi. E de olhos bem arregalados.
P.S. - Publicado originalmente no dia 30 de Maio de 2019.
sexta-feira, 29 de maio de 2020
O grande prestidigitador
Era um mágico extraordinário: em vez de coelhos da cartola, tirava macacos do nariz.
Anne Marie Morris 4
Ceibe
Quero ficar ceibe
pra correr cô vento
pra enredar meus cabelos nas estrelas
Quero ir na noite
pra bailar no luar
nas orelas do mar escumante
Quero cantar nas sombras
cantares moi tristes
encol dos vellos amores
que deixéi algures no pasado
Perciso de perdel-o mundo
Perciso de voar no ceo
Cediño os momentos chegaron
de andar no fondo do mar
Quero ficar ceibe
pra correr cô vento
pra enredar meus cabelos nas estrelas
"Voz Fuxitiva", Anne Marie Morris
(Anne Marie Morris nasceu no dia 30 de Maio de 1916. Morreu em 1999.)
Quero ficar ceibe
pra correr cô vento
pra enredar meus cabelos nas estrelas
Quero ir na noite
pra bailar no luar
nas orelas do mar escumante
Quero cantar nas sombras
cantares moi tristes
encol dos vellos amores
que deixéi algures no pasado
Perciso de perdel-o mundo
Perciso de voar no ceo
Cediño os momentos chegaron
de andar no fondo do mar
Quero ficar ceibe
pra correr cô vento
pra enredar meus cabelos nas estrelas
"Voz Fuxitiva", Anne Marie Morris
(Anne Marie Morris nasceu no dia 30 de Maio de 1916. Morreu em 1999.)
Xavier Costa Clavell 5
O Manoliño era un rapaz intelixente e cheo de curiosidade. Inda non tiña dez anos e xa coñecía o pobo e a bisbarra de Vimianzo mellor que moitos veciños adultos nados naquelas terras. Recorrera unha e outra vez o belido e rico val que se extende entre os montes Sangro e Faro. Éralle familiar a imaxe da mámoa, a cuxa beira pasara horas e máis horas imaxinando fantásticas aventuras nas que el era o protagonista. Estivera máis dunha vez no castelo de Vimianzo. O seu pai adoptivo - a verdade é que don Fernando, pola súa condición de crego, non o era legalmente, pero sí na práctica - procuraba sempre que tiña ocasión estimular a afección do Manoliño polo devir da historia. Así o neno soubo que no castelo, moi ben conservado por certo, estivera preso por orde de Pedro Madruga o bispo de Tui don Diego de Muros.
"Fillo do Vento", Xavier Costa Clavell
(Xavier Costa Clavell nasceu no dia 30 de Maio de 1923. Morreu em 2006.)
"Fillo do Vento", Xavier Costa Clavell
(Xavier Costa Clavell nasceu no dia 30 de Maio de 1923. Morreu em 2006.)
De mestre
"Pinocar ou pinoquiar?", perguntou o jovem
mestrando em Carpintaria & Outras Artes Sexuais. "Depende",
respondeu o velho professor de nariz adunco e face testicular.
O papão
A culpa foi do Camões. No canto V de "Os Lusíadas", o nosso Épico fala do aterrador gigante do cabo das Tormentas (ou Cabo da Boa Esperança, como lhe chamou D. João II, após a passagem de Bartolomeu Dias) que afundava naus sem dó nem piedade e se desfazia em lágrimas depois da maldade feita. Primeira dica: as "lágrimas" eram as águas salgadas e revoltas da assanhada confluência do oceano Atlântico com o oceano Índico, a sul da Cidade do Cabo, na África do Sul.
É sabido, Luís de Camões foi buscar o nosso Adamastor à mitologia greco-romana. O Poeta queria representar as grandes forças da natureza, o poder dos elementos, as violentas tempestades que, naquela zona do mundo, tentavam impedir o avanço heróico dos Portugueses rumo à Índia. E pintou-as como um mostrengo vigilante e vingativo, espécie de porteiro de discoteca que não deixava passar ninguém: De disforme e grandíssima estatura, / O rosto carregado, a barba esquálida, / Os olhos encovados, e a postura / Medonha e má, e a cor terrena e pálida, / Cheios de terra e crespos os cabelos, / A boca negra, os dentes amarelos.
Mas era apenas um cabo, senhores, nem sequer sargento. Um cabo e geográfico. Por sinal, bem difícil de dobrar e com muitos naufrágios para contar.
Bartolomeu Dias, o navegador português que abriu o caminho marítimo para a Índia ao contornar o Cabo da Boa Esperança, morreu no dia 29 de Maio de 1500.
O textinho acima saquei-o de um trabalho que escrevi para a revista de fim-de-semana do jornal 24horas, em Março de 2007, introduzindo-lhe as necessárias adaptações temporais e porventura, involuntariamente, alguns erros de transcrição. Era um ranking, "Os 10 maiores mitos da História de Portugal", e, para o fazer, pedi a ajuda de especialistas reputados: Manuela Mendonça, historiadora e presidente da Academia Portuguesa de História, os historiadores e professores catedráticos António Manuel Hespanha, Fernando de Sousa e Francisco Ribeiro da Silva, o escritor e historiador portuense Hélder Pacheco e o arqueólogo, historiador e actual figura da TV Joel Cleto.
É sabido, Luís de Camões foi buscar o nosso Adamastor à mitologia greco-romana. O Poeta queria representar as grandes forças da natureza, o poder dos elementos, as violentas tempestades que, naquela zona do mundo, tentavam impedir o avanço heróico dos Portugueses rumo à Índia. E pintou-as como um mostrengo vigilante e vingativo, espécie de porteiro de discoteca que não deixava passar ninguém: De disforme e grandíssima estatura, / O rosto carregado, a barba esquálida, / Os olhos encovados, e a postura / Medonha e má, e a cor terrena e pálida, / Cheios de terra e crespos os cabelos, / A boca negra, os dentes amarelos.
Mas era apenas um cabo, senhores, nem sequer sargento. Um cabo e geográfico. Por sinal, bem difícil de dobrar e com muitos naufrágios para contar.
Bartolomeu Dias, o navegador português que abriu o caminho marítimo para a Índia ao contornar o Cabo da Boa Esperança, morreu no dia 29 de Maio de 1500.
O textinho acima saquei-o de um trabalho que escrevi para a revista de fim-de-semana do jornal 24horas, em Março de 2007, introduzindo-lhe as necessárias adaptações temporais e porventura, involuntariamente, alguns erros de transcrição. Era um ranking, "Os 10 maiores mitos da História de Portugal", e, para o fazer, pedi a ajuda de especialistas reputados: Manuela Mendonça, historiadora e presidente da Academia Portuguesa de História, os historiadores e professores catedráticos António Manuel Hespanha, Fernando de Sousa e Francisco Ribeiro da Silva, o escritor e historiador portuense Hélder Pacheco e o arqueólogo, historiador e actual figura da TV Joel Cleto.
quinta-feira, 28 de maio de 2020
Microcontos & outras miudezas 209
Teletrabalho
Os restaurantes reabriram e o arrumador de automóveis saltou imediatamente para a rua, apresentando-se ao serviço. Estava farto de orientar estacionamentos a partir de casa...
Teledesemprego
"Isto sem futebol, o teledesemprego é uma seca!", queixava-se o Acúrsio, e suponho que com razão.
Teledesemprego 2
Está em casa em teledesemprego. Faz horário das dez da manhã às oito da noite. Perguntem-lhe sobre programação da RTP1! Sabe tudo.
Telessexo
É muito à frente, ele. Não esperou pela pandemia nem precisou das indicações do Governo. Há mais de trinta anos que pratica, e com resultados francamente satisfatórios.
E tenho o mar
Notícias do des-con-fi-na-men-to. E tenho o mar. Não sei o que seria da minha quarentena, que já vai em quase dois anos e meio, se não tivesse o mar todos os dias. Seguramente estaria ainda mais avariado da cabeça e do resto. O mar, gosto de o ouvir, gosto de lhe sentir o silêncio, gosto de o ver, gosto de o cheirar, mesmo que cheire mal, gosto de o pensar, gosto de o adivinhar. Gosto do mar com sol, com chuva, com nevoeiro, com vento, sem vento, gosto do mar com todos como o bacalhau. Gosto do mar azul, às vezes verde e sobretudo azul e branco. Gosto do mar manso, gosto do mar bravo. Gosto do mar salgado e ainda que fosse insosso. Gosto do mar. E tenho sorte, na minha rua passa o mar. Tenho o mar se for à varanda, de caras. Escuto-o no quarto de dormir, e sossega-me a alma, ajuda-me ao sono cada vez mais difícil. Continuo a passear-lhe as bordas todas todas as manhãzinhas, cada vez mais cedo, cada vez mais cedo, porque preciso do resto do dia para tomar conta e porque o povo é burro, como se diz em Fafe, e cuida que esta merda já passou, e não passou nada.
Os restaurantes reabriram e o arrumador de automóveis saltou imediatamente para a rua, apresentando-se ao serviço. Estava farto de orientar estacionamentos a partir de casa...
Teledesemprego
"Isto sem futebol, o teledesemprego é uma seca!", queixava-se o Acúrsio, e suponho que com razão.
Teledesemprego 2
Está em casa em teledesemprego. Faz horário das dez da manhã às oito da noite. Perguntem-lhe sobre programação da RTP1! Sabe tudo.
Telessexo
É muito à frente, ele. Não esperou pela pandemia nem precisou das indicações do Governo. Há mais de trinta anos que pratica, e com resultados francamente satisfatórios.
E tenho o mar
Notícias do des-con-fi-na-men-to. E tenho o mar. Não sei o que seria da minha quarentena, que já vai em quase dois anos e meio, se não tivesse o mar todos os dias. Seguramente estaria ainda mais avariado da cabeça e do resto. O mar, gosto de o ouvir, gosto de lhe sentir o silêncio, gosto de o ver, gosto de o cheirar, mesmo que cheire mal, gosto de o pensar, gosto de o adivinhar. Gosto do mar com sol, com chuva, com nevoeiro, com vento, sem vento, gosto do mar com todos como o bacalhau. Gosto do mar azul, às vezes verde e sobretudo azul e branco. Gosto do mar manso, gosto do mar bravo. Gosto do mar salgado e ainda que fosse insosso. Gosto do mar. E tenho sorte, na minha rua passa o mar. Tenho o mar se for à varanda, de caras. Escuto-o no quarto de dormir, e sossega-me a alma, ajuda-me ao sono cada vez mais difícil. Continuo a passear-lhe as bordas todas todas as manhãzinhas, cada vez mais cedo, cada vez mais cedo, porque preciso do resto do dia para tomar conta e porque o povo é burro, como se diz em Fafe, e cuida que esta merda já passou, e não passou nada.
Agustín Fernández Paz 5
Sen embargo, o meu desexo máis intenso é ben distinto: que entren canto antes as máquinas escavadoras, as padeadoras, os camións. Que troncen as árbores, que rebaixen o monte polo medio e medio, que derruben os restos que a xente chama prerromanos. Que non quede nada en pé, que desfagan canto hai, que non deixen unha pedra no seu sitio. E que logo o sepulten todo baixo toneladas de rocha e de cascallo, e boten por riba ben capas de cemento e alcatrán. É o destino mellor para ese lugar maldito, ese lugar que ningún día da miña vida puiden expulsar do territorio dos meus soños.
"O Enigma do Menhir", Agustín Fernández Paz
(Agustín Fernández Paz nasceu no dia 29 de Maio de 1947. Morreu em 2016.)
"O Enigma do Menhir", Agustín Fernández Paz
(Agustín Fernández Paz nasceu no dia 29 de Maio de 1947. Morreu em 2016.)
Levantamento das Caldas
O Levantamento das Caldas, tentativa de golpe militar contra o Estado Novo caetanista, ocorreu no dia 16 de Março de 1974 e, apesar de falhado, serviu de rastilho para a Revolução de 25 de Abril. É também chamado Intentona das Caldas, Revolta das Caldas ou Golpe das Caldas - tudo nomes bem menos sugestivos e mais ajuizados. É. Deixem-se de malandrices! Levantamento e Caldas, na mesma expressão, trazem logo à conversa fradinhos malacuecos...
P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Março de 2020. O Brasil festeja hoje, 28 de Maio, o Dia do Ceramista. Em Portugal a nova horda racista e fascista celebra o 28 de Maio apenasmente.
P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Março de 2020. O Brasil festeja hoje, 28 de Maio, o Dia do Ceramista. Em Portugal a nova horda racista e fascista celebra o 28 de Maio apenasmente.
quarta-feira, 27 de maio de 2020
A Caixa: de Pandora a Paulo Macedo
Pandora era a primeira
mulher, a mulher perfeita, criada por Hefesto e Atena, com a mãozinha
de todos os outros deuses, cada qual conferindo-lhe um dom, sob régua e
esquadro de Zeus. Pandora era "a que tudo dá", "a que possui tudo", "a
que tudo tira". Pandora foi feita de encomenda para agradar aos
homens. Depois tomou conta da Caixa, ou da Boceta, como dizem os cultos
e alguns depravados, e hoje em dia é Paulo Macedo.
José Craveirinha 7
A cadeira
Ajeito na velha mesa a toalha aos quadradinhos.
Ponho-me os pratos, os talheres e um copo.
Eu mesmo me estendo a travessa do arroz.
Levanto-me por causa da garrafa de água.
Torno a levantar-me em busca de um garfo.
Solitários cotovelos fincados na mesa
nos punhos contraídos apoio o mento.
Entretanto, de mim vai-se esquecendo o almoço.
Engulo um nó de saliva. É insulso o jejum.
Em outro lado dos quadradinhos da toalha
completamente desprovida de sentido
observa-me compassiva
uma cadeira vazia.
Pela terceira vez me levanto.
Mas onde é que está o raio do saleiro?
José Craveirinha
(José Craveirinha nasceu no dia 28 de Maio de 1922. Morreu em 2003.)
Ajeito na velha mesa a toalha aos quadradinhos.
Ponho-me os pratos, os talheres e um copo.
Eu mesmo me estendo a travessa do arroz.
Levanto-me por causa da garrafa de água.
Torno a levantar-me em busca de um garfo.
Solitários cotovelos fincados na mesa
nos punhos contraídos apoio o mento.
Entretanto, de mim vai-se esquecendo o almoço.
Engulo um nó de saliva. É insulso o jejum.
Em outro lado dos quadradinhos da toalha
completamente desprovida de sentido
observa-me compassiva
uma cadeira vazia.
Pela terceira vez me levanto.
Mas onde é que está o raio do saleiro?
José Craveirinha
(José Craveirinha nasceu no dia 28 de Maio de 1922. Morreu em 2003.)
Xoán Cuveiro Piñol 3
Unha corrida de arroaces
[...]
Hai na devandita cividade, na mesma beira dela, un sitio que chaman "as Corbaceiras", onde no tempo de que vou a falar, había unha barca pra pasala xente e mailo gando á parroquia de Poio: pois ben, neste barrio da Moureira onde viven os pescadores e xente probe, non falta quen garda unha rede feita de cordas de esparto, pro grosas e fortes, e anque cando hai que usala, arroméndase e repárase polos desprefeutos que sole ter, e que costa bos cartos, esta rede esténdese dende o muelle das Corbaceiras astra a beira de Poio na orela do mar, de sorte que quedan drento, río arriba, tódolos arroaces que coa rubida da marea, soben ó río, no que se folgan os peixes astra a debalada da dita marea, e entón, é cando comeza a festa, que ben merece unha discriución.
[...]
Xoán Cuveiro Piñol
(Xoán Cuveiro Piñol nasceu no dia 28 de Maio de 1821. Morreu em 1906.)
[...]
Hai na devandita cividade, na mesma beira dela, un sitio que chaman "as Corbaceiras", onde no tempo de que vou a falar, había unha barca pra pasala xente e mailo gando á parroquia de Poio: pois ben, neste barrio da Moureira onde viven os pescadores e xente probe, non falta quen garda unha rede feita de cordas de esparto, pro grosas e fortes, e anque cando hai que usala, arroméndase e repárase polos desprefeutos que sole ter, e que costa bos cartos, esta rede esténdese dende o muelle das Corbaceiras astra a beira de Poio na orela do mar, de sorte que quedan drento, río arriba, tódolos arroaces que coa rubida da marea, soben ó río, no que se folgan os peixes astra a debalada da dita marea, e entón, é cando comeza a festa, que ben merece unha discriución.
[...]
Xoán Cuveiro Piñol
(Xoán Cuveiro Piñol nasceu no dia 28 de Maio de 1821. Morreu em 1906.)
O Correio da Manhã, a ignorância e o Google Maps
João Gonçalves Zarco, da nobre família dos Zarcos de Valdevez, foi um navegador português e cavaleiro fidalgo da Casa do Infante D. Henrique, que o encarregou de organizar o povoamento e administrar a zona funchalense da Ilha da Madeira enquanto Alberto João Jardim não chegasse. Dito e feito. Quando se reformou, o velho Zarco, que não era tolo e tinha agasalhado uns cobres, abriu uma escola em Matosinhos mas escolheu a Foz, no Porto, para morar, instalando-se desafogadamente na famosa Rotunda do Castelo do Queijo, a que também chamam Praça de Gonçalves Zarco exactamente em homenagem à estátua equestre de D. João VI que está lá no meio.
P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Novembro de 2019. O Correio da Manhã propagandeou ontem o despiste de uma "condutora de 20 anos alcoolizada" que foi "contra um poste" na "praça Gonçalves Zarco, junto ao Sea Life, em Matosinhos". Exactamente. Em Matosinhos. Na Praça de Gonçalves Zarco do Porto, ao fundo da Avenida da Boavista do Porto, junto ao Sea Life do Porto, no Castelo do Queijo do Porto, entre o Edifício Transparente do Porto e a marginal da Foz do Porto - evidentemente em Matosinhos.
P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Novembro de 2019. O Correio da Manhã propagandeou ontem o despiste de uma "condutora de 20 anos alcoolizada" que foi "contra um poste" na "praça Gonçalves Zarco, junto ao Sea Life, em Matosinhos". Exactamente. Em Matosinhos. Na Praça de Gonçalves Zarco do Porto, ao fundo da Avenida da Boavista do Porto, junto ao Sea Life do Porto, no Castelo do Queijo do Porto, entre o Edifício Transparente do Porto e a marginal da Foz do Porto - evidentemente em Matosinhos.
Do garibaldismo
Garibaldi foi um general italiano que ficou muito famoso por usar blusão vermelho. Mais tarde o ilustre mercenário e patriota, alcunhado Herói de Dois Mundos por certas e determinadas razões, transformou-se em camisola de fora ou casaco curto de mulher e numa espécie de guindaste geralmente improvisado e ainda hoje usado nas obras.
P.S. - No dia 27 de Maio de 1860, Giuseppe Garibaldi iniciou o seu ataque a Palermo, Sicília, na luta pela unificação italiana.
P.S. - No dia 27 de Maio de 1860, Giuseppe Garibaldi iniciou o seu ataque a Palermo, Sicília, na luta pela unificação italiana.
Vendemos para fora
Intrigado com a novidade estrangeira que de repente tomou conta das portas, janelas e montras dos restaurantes da cidade, entrou na velha casa de pasto, sem vez, sem distância e sem máscara, porque "era só para fazer um pergunta", e perguntou:
- Aquilo do Take away é o quê?
- Quer dizer que vendemos para fora.
- Há mais de trinta anos que todos os sábados venho aqui buscar um tachinho de tripas. Qual é a diferença agora?
- O coronavírus...
- Aquilo do Take away é o quê?
- Quer dizer que vendemos para fora.
- Há mais de trinta anos que todos os sábados venho aqui buscar um tachinho de tripas. Qual é a diferença agora?
- O coronavírus...
terça-feira, 26 de maio de 2020
Uma questão de anos
As notícias anunciam que uma "cientista diz que retardar o envelhecimento através da genética é uma questão de anos". Mas que assertividade! É disso que se trata exactamente: de uma questão de anos...
Luís Veiga Leitão 4
Resistência
Não. Digo à explosão de ameaça
e à rapada paisagem do desterro.
E não. Digo à minha carcaça
encalhada em bancos de ferro
e ao cordame dos nervos, fustigado,
a ranger no silêncio a sós:
Por cada nervo quebrado
que se inventem mais nós.
Luís Veiga Leitão
(Luís Veiga Leitão nasceu no dia 27 de Maio de 1912. Morreu em 1987.)
Não. Digo à explosão de ameaça
e à rapada paisagem do desterro.
E não. Digo à minha carcaça
encalhada em bancos de ferro
e ao cordame dos nervos, fustigado,
a ranger no silêncio a sós:
Por cada nervo quebrado
que se inventem mais nós.
Luís Veiga Leitão
(Luís Veiga Leitão nasceu no dia 27 de Maio de 1912. Morreu em 1987.)
Um tal... es de Mileto
A água é o princípio de todas as coisas; o vinho é o fim - dizia o filósofo antigo. Um tal... um tal... um Tales de Mileto.
Mais vale Sá do que mal acompanhado
- Nome?
- Orlando Sá.
- Só?
- Sá.
- Sei. Mas só?
- Sá.
P.S. - O jogador de futebol Orlando Sá, que recentemente deixou os belgas do Standard Liège e acho que é meu vizinho, faz hoje 32 anos.
- Orlando Sá.
- Só?
- Sá.
- Sei. Mas só?
- Sá.
P.S. - O jogador de futebol Orlando Sá, que recentemente deixou os belgas do Standard Liège e acho que é meu vizinho, faz hoje 32 anos.
segunda-feira, 25 de maio de 2020
Microcontos & outras miudezas 208
Hoje não há umas vagenzitas?
Empratei o jantar da minha sogra: uma posta de bacalhau cozido com três dedos de altura por um palmo de comprimento, um ovo aberto ao meio, cinco batatas médias partidas em quartos, um dilúvio de azeite e duas pingas de vinagre branco, como ela gosta. A minha mulher colocou-lhe à frente aquela reprodução dos Himalaias em tamanho natural, e a minha sogra, 88 anos, mal-humorada por princípio e por prazer, resmungou: - Hoje não há umas vagenzitas?...
Não havia. Era segunda-feira e à segunda-feira cá em casa é assim, uma tradição que vem de Fafe. A minha sogra limpou o prato em menos de cinco minutos, mas sob protesto, que fique registado.
P.S. - Vagem, neste caso, é feijão-verde. Ou, melhor dito, vage. As vages, posso esclarecer, são ao almoço de quarta-feira para uma pessoa, com pescada quase sempre fresca. E outra coisa: com bacalhau, a minha sogra bebe um fundinho de vinho. Diz que é dado: bacalhau, portanto vinho. Mas isso é lá uma tradição dela...
Mãos ao ar!
Notícias do des-con-fi-na-men-to. Fui à minha farmácia, à hora da abertura, e já se podia entrar. Dois de cada vez, mascarados como para um assalto e de mãos previamente desinfectadas por causa das impressões, e eu cheguei em segundo. Estava a contar com uma medalha mas as cerimónias protocolares foram suspensas derivado à pandemia. Entregaram-me o Losartan com todos os cuidados e na maior das confidencialidades, e isto que não saia daqui...
A máscara
Adaptou-se razoavelmente ao uso da máscara. Para comer é que era uma desgraça. Um chiqueiro...
De vaquinha para o desemprego
As viagens de casa para o desemprego e do desemprego para casa custavam-lhes os olhos da cara. Organizaram-se. Agora vão de vaquinha. Para e do desemprego.
Empratei o jantar da minha sogra: uma posta de bacalhau cozido com três dedos de altura por um palmo de comprimento, um ovo aberto ao meio, cinco batatas médias partidas em quartos, um dilúvio de azeite e duas pingas de vinagre branco, como ela gosta. A minha mulher colocou-lhe à frente aquela reprodução dos Himalaias em tamanho natural, e a minha sogra, 88 anos, mal-humorada por princípio e por prazer, resmungou: - Hoje não há umas vagenzitas?...
Não havia. Era segunda-feira e à segunda-feira cá em casa é assim, uma tradição que vem de Fafe. A minha sogra limpou o prato em menos de cinco minutos, mas sob protesto, que fique registado.
P.S. - Vagem, neste caso, é feijão-verde. Ou, melhor dito, vage. As vages, posso esclarecer, são ao almoço de quarta-feira para uma pessoa, com pescada quase sempre fresca. E outra coisa: com bacalhau, a minha sogra bebe um fundinho de vinho. Diz que é dado: bacalhau, portanto vinho. Mas isso é lá uma tradição dela...
Mãos ao ar!
Notícias do des-con-fi-na-men-to. Fui à minha farmácia, à hora da abertura, e já se podia entrar. Dois de cada vez, mascarados como para um assalto e de mãos previamente desinfectadas por causa das impressões, e eu cheguei em segundo. Estava a contar com uma medalha mas as cerimónias protocolares foram suspensas derivado à pandemia. Entregaram-me o Losartan com todos os cuidados e na maior das confidencialidades, e isto que não saia daqui...
A máscara
Adaptou-se razoavelmente ao uso da máscara. Para comer é que era uma desgraça. Um chiqueiro...
De vaquinha para o desemprego
As viagens de casa para o desemprego e do desemprego para casa custavam-lhes os olhos da cara. Organizaram-se. Agora vão de vaquinha. Para e do desemprego.
Glória de Sant'Anna 4
Prece
Senhora de pedra
Senhora de pedra
de rosto suave,
há muito não vinha
para visitar-te.
Já tinha esquecido
Já tinha esquecido
estes bancos negros
tão certos e graves.
Sei que não és essa,
Sei que não és essa,
exacta, parada
que se enche de pó
e olha no vácuo
- de pedra talhada.
Senhora, aqui estou.
Senhora, aqui estou.
(Não te peço nada).
Só quero voltar
Só quero voltar
a estar de joelhos.
"Um Denso Azul Silêncio", Glória de Sant'Anna
(Glória de Sant'Anna nasceu no dia 26 de Maio de 1925. Morreu em 2009.)
Eu vi o autogolo de Manaca
Eu estava lá. No estádio, em Guimarães. Eu vi ao vivo o autogolo de Manaca que deu o triunfo por 0-1 e o título de campeão ao seu Sporting, sendo ele naquela altura jogador emprestado pelos leões ao Vitória. Faz hoje anos. Foi no dia 25 de Maio de 1980, e eu portista estava lá, mesmo atrás da baliza em questão. Vi tudo, lembro-me como se fosse ontem. E se querem que lhes diga: não sei.
As Grilas, as Turicas e um par de mamas
Eu também fui preso antes do 25 de Abril. Sim, no meu tempo de estudante, em pleno turbilhão da crise académica de 1969, andava na quinta classe e ia para a Escola da Feira Velha quando fui detido pelo polícia, preso pelo cachaço. (A quinta classe que fiz com o professor Fernando - "Conhé" para os alunos -, e não há engano, houve realmente um tempo em que a quinta e a sexta classes eram o liceu dos pobres). Mas o meu o crime, é isso que querem saber, não é? Pois bem: achei um bocado de giz no chão e escrevi "Senhoras Donas Grilas" na parede da casa das Grilas propriamente ditas. Há horas do diabo e o cívico estava lá, pontual e flagrante, mesmo atrás das minhas costas. Apanhei um susto que ainda hoje tremo, e digo isto sem peneiras: ia-me borrando todo.
A história precisa de ser melhor contada, não precisa? Vamos lá então ver se sei, e por partes:
Primeiro, para que nos situemos, é essencial não confundir as Grilas com as Turicas, erro crasso e muito comum entre os especialistas locais. As Grilas eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía. Irmãs, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Eu morava ali à beira, ao dobrar da esquina, no Santo, e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada que lhes perpetrei e que graças a Deus nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba" e isso valia muito em Fafe. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que lhes cometi...
Isto as Grilas. Agora as Turicas, na mesma Rua Monsenhor Vieira de Castro e do mesmo lado, direito para quem desce para o Picotalho ou para a Recta, mas depois do cruzamento dos tascos do Paredes e do Zé Manco, nem 50 metros de distância entre umas e outras, e daí a lamentável e inexplicável confusão numa terra tão prenhe de historiadores. As Turicas eram também irmãs. Costuravam. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às enormes portadas que davam para a rua. Tinham uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas. Vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento. As boas senhoras tinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. A minha mãe mandou-me ao vinho e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi um desgosto muito grande.
Que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada, barafustavam que a casa ia abaixo, era berraria o dia inteiro, guinchos de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou. Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas, palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente garibalde que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os meus onze anos, o que me fez desconfiar que estava metido em caso sério. Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar, respondi - Nada...
Ainda hoje acho que respondi com grande categoria.
E o polícia - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim - Moro longe. E ele - Então, vamos para a esquadra.
(Para a esquadra? Mais polícias? Isso é que não me dá jeito, pensei, rápido como um fósforo, derivado ao que se ouvia dizer. Porque a Polícia daquele tempo.... bem, a Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos.)
E eu - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo...
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir por mim e foi à frente avisar a minha mãe de que eu não tinha feito mal nenhum. Fiquei a dever uma ao João. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida conta o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas" simplesmente. "Senhoras", evidentemente. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo.
Fui condenado a limpar a parede com um pano molhado, cumpri pena e segui para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. As varas verdes eram também uma especialidade da minha mãe. Livrei-me de boa...
P.S. - Hoje, 25 de Maio, o Brasil assinala o Dia da Costureira. Lembrei-me das Senhoras Donas Turicas.
A história precisa de ser melhor contada, não precisa? Vamos lá então ver se sei, e por partes:
Primeiro, para que nos situemos, é essencial não confundir as Grilas com as Turicas, erro crasso e muito comum entre os especialistas locais. As Grilas eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía. Irmãs, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Eu morava ali à beira, ao dobrar da esquina, no Santo, e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada que lhes perpetrei e que graças a Deus nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba" e isso valia muito em Fafe. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que lhes cometi...
Isto as Grilas. Agora as Turicas, na mesma Rua Monsenhor Vieira de Castro e do mesmo lado, direito para quem desce para o Picotalho ou para a Recta, mas depois do cruzamento dos tascos do Paredes e do Zé Manco, nem 50 metros de distância entre umas e outras, e daí a lamentável e inexplicável confusão numa terra tão prenhe de historiadores. As Turicas eram também irmãs. Costuravam. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às enormes portadas que davam para a rua. Tinham uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas. Vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento. As boas senhoras tinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. A minha mãe mandou-me ao vinho e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi um desgosto muito grande.
Que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada, barafustavam que a casa ia abaixo, era berraria o dia inteiro, guinchos de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou. Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas, palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente garibalde que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os meus onze anos, o que me fez desconfiar que estava metido em caso sério. Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar, respondi - Nada...
Ainda hoje acho que respondi com grande categoria.
E o polícia - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim - Moro longe. E ele - Então, vamos para a esquadra.
(Para a esquadra? Mais polícias? Isso é que não me dá jeito, pensei, rápido como um fósforo, derivado ao que se ouvia dizer. Porque a Polícia daquele tempo.... bem, a Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos.)
E eu - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo...
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir por mim e foi à frente avisar a minha mãe de que eu não tinha feito mal nenhum. Fiquei a dever uma ao João. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida conta o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas" simplesmente. "Senhoras", evidentemente. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo.
Fui condenado a limpar a parede com um pano molhado, cumpri pena e segui para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. As varas verdes eram também uma especialidade da minha mãe. Livrei-me de boa...
P.S. - Hoje, 25 de Maio, o Brasil assinala o Dia da Costureira. Lembrei-me das Senhoras Donas Turicas.
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