terça-feira, 30 de abril de 2024
Sexofone, saxofome, aqui jazz a humanidade
A capella, ma non troppo
Apontamento musical
Maria Rita, Maria Rita
Foto Hernâni Von Doellinger |
Foi em Julho de 2016, dia 7. Ao ar livre, junto ao mar, no Passeio Atlântico de Matosinhos como se fosse no meu quintal, a cantora brasileira Maria Rita acompanhada pela excelentíssima Orquestra Jazz de Matosinhos, a melhor orquestra de jazz do país. Um mimo, um luxo matosinhense que relembro aqui, hoje.
segunda-feira, 29 de abril de 2024
Villas-Boas. Estavam à espera de quê?
Até parece que caiu o Carmo e a Trindade...
Mas estavam à espera de quê? Do triunfo dos valores? Do amor à camisola? Tretas! Estes tipos são assim: egoístas, vaidosos, ambiciosos, calculistas, insensíveis, falsos num certo sentido. Exactamente no sentido de serem... falsos. Têm estas qualidades todas, preenchem o perfil completo do homem de sucesso. Por isso é que os tubarões os querem para treinadores (ou para presidentes de empresas, ou para directores de jornais), e não por eles irem à missa todos os dias. E estes tipos vingam sempre, quase sempre. Com a rapidez e a pujança de um eucalipto.
André Villas-Boas fez um trabalho sensacional no FC Porto. Foi apenas um ano, mas foi bom enquanto durou. O clube e os portistas só têm de estar gratos, concedendo-lhe uma despedida sem rancores e com votos de boa sorte.
Villas-Boas é jovem, competente, quer ficar (ainda mais) rico (ainda mais) depressa. Tem todo o direito a tratar de vida. Ainda por cima, sai do Dragão com respeito absoluto pelo contrato que assinou com Pinto da Costa: o Chelsea vai pagar ao FC Porto os 15 milhões de euros referentes à cláusula de rescisão aceite de mútuo acordo por treinador e presidente e que existe precisamente para estas situações. Que querem mais?
E quem pode negar a Villas-Boas o direito a sonhar – ele é muito dado a sonhos – com a unanimidade nacional, esse beatífico desiderato só possível de alcançar quando se deixa o FC Porto? E, de preferência, deixando-o de calças na mão.
Depois há o dinheiro. Voltamos sempre ao dinheiro. Ah!, sim, o vil metal. Vil metal, o raio que os parta! Vil metal é contar os cêntimos, vil metal é ganhar o salário mínimo, vil metal é estar desempregado, vil metal é receber o subsídio de desemprego, vil metal é perder o subsídio de desemprego, vil metal é não ter dinheiro para gastar na farmácia, vil metal é ver os filhos com fome, vil metal é ter vergonha de roubar! A iglantónica quantia de cinco milhões de euros/ano multiplicada por três anos não é vil metal. É uma fortuna instantânea a que não se pode dizer não. Seria pecado! Sem perdão! Porque, nisto de traições, ainda vai alguma diferença entre 30 dinheiros e 15 milhões...
Este fim-de-semana saíram-me seis euros e noventa e cinco cêntimos no Euromilhões e eu fiquei bem contente. Eu não sei ao certo quanto dinheiro é cinco milhões de euros por ano. Só se me explicarem em camiões (isto é, se me disserem: "dá para encher xis camiões com notas"...). Mas suspeito que cinco milhões de euros por ano são muitos, muitos camiões. E ainda bem, melhor para o André.
Os argumentos, acredito piamente, estão todos a favor do jovem técnico. Na maioria das críticas que lhe fazem, vejo alguma inveja e muita hipocrisia. Vejo, sim senhor. E não gosto do que vejo.
Ó sepulcros branqueados! Ó raça de víboras! Digo-vos só isto: deixai o homem em paz! Quem de entre vós nunca aceitaria ir treinar o Chelsea por cinco milhões/ano que atire a primeira pedra!
Eu vou apanhar o avião.
Adiantados mentais, graças a Deus
Zé do Boné, o nosso
O Zé do Boné andou mais de meio século pelas páginas de O Primeiro de Janeiro e hoje seria um herói impossível, cancelado. Porque politicamente incorrecto. Criado pelo cartunista britânico Reg Smithe, o malandro Andy Capp, assim se chamava de origem, foi visto pela primeira vez no dia 5 de Agosto de 1957 no jornal Daily Mirror. Internacionalizou-se em 1963, quando passou a ser editado nos Estados Unidos, e chegou a ser publicado em mais de mil jornais, cinquenta países e treze línguas.
O Zé era o típico elemento da classe trabalhadora que na verdade nunca trabalhou. Cidadão imprestável, machista, engatatão sem sucesso, copofónico de gabarito, mentiroso, preguiçoso, implicativo, conflituoso e, numa só palavra, arruaceiro, passava a vida entre o sofá de casa e o balcão do bar da esquina, reservando algumas horas para andar à pancada nos jogos de futebol. Apostador inveterado, as suas modalidades desportivas favoritas eram, para além do pontapé na bola, a columbofilia, o bilhar e as corridas de cavalos. Para além disso, batia na mulher, Flo, trabalhadora esforçada que também gostava do seu copinho e que, quando não, lhe devolvia alguns sopapos.
Enfim, todo um compêndio de indecência e má figura. Ou por outra: acho que conheço este tipo de algum lado...
E que mais? Zé do Boné foi também o nome por que ficou conhecido mestre José Maria Pedroto (1928-1985), filósofo e treinador de futebol, co-autor, com Pinto da Costa, do FC Porto moderno. Zé do Boné, por ser Zé e por usar boné. E eventualmente também por causa do Zé do Boné dos desenhos propriamente dito.
domingo, 28 de abril de 2024
Não te escames!
sábado, 27 de abril de 2024
Rúben Amorim, sonso mas com boa imprensa
Rúben Amorim, o grande comunicador, afinal enganou-se quando foi esta semana a Londres, ele e o seu empresário, de avião particular, ai não, para tratar do contrato que se segue. "Foi um erro", disse hoje Rúben Amorim, o sábio, e pediu humildemente desculpa. Foi sem querer. Ele sabia lá! Como é que ele, coitado, ia adivinhar que o timing da lamentável viagem a Inglaterra era "completamente desajustado" e que a coisa ia dar merda? Como é que ele, o bom-serás, ia adivinhar que os sportinguistas não iam gostar? Como é que ele, a simpatia em pessoa, ia adivinhar que estava a trair os seus jogadores? Como é que ele, valha-me Deus, ia adivinhar que o Sporting joga amanhã com o FC Porto o jogo que até podia ser o do título? E pediu outra vez desculpa, porque ele, com grande categoria, é sempre "o primeiro a dizer que os problemas individuais não se podem sobrepor à equipa". Rúben Amorim, o cavalheiro, o preferido dos jornalistas e comentadores desportivos, pediu pela terceira vez desculpa. E depois saiu e riu-se. E riu-se. E continua rir-se, que eu bem o ouço...
O meu avô era designer e não sabia
Foto Hernâni Von Doellinger |
Já contei que o meu avô da Bomba, apesar de quarteleiro dos Bombeiros de Fafe, e daí o apelido, nunca se apartou completamente do velho e honrado ofício de sapateiro com que se iniciara na vida. Enquanto pôde, num cantinho por baixo das escadas que subiam para "o salão" do quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro, ele manteve banca e fez, com desenho próprio, as sandálias e sapatos que calçavam a família. A família lá de casa dele, quero dizer, mulher e filhos, porque o meu avô não era de dar. O máximo que dava eram os bons-dias, mas exigia o troco e recibo com número de contribuinte.
Em todo o caso, fui semanticamente injusto quando chamei sapateiro ao meu avô da Bomba. Sapateiro. Nestes tempos em que nem os cegos são cegos - são invisuais -, agora que já nem há mentirosos - mas inverdadeiros -, nos dias em que nem os bois são chamados pelos nomes - têm números -, chamar sapateiro ao meu avô da Bomba é praticamente um insulto, e estou muito arrependido, que me desculpem os sapateiros propriamente ditos.
Se escrevesse hoje, e é o que faço agora, eu diria que o meu avô da Bomba era um mestre do artesanato, um artífice do calfe, uma sumidade da sovela, uma Joana Vasconcelos por antecipação, e fazia-lhe um museu; diria que era uma start-up em pessoa e metia-o na Bolsa de Nova Iorque; diria que era um criador de sapatos e enchia-o de massa do PRR; diria que era um caso exemplar do empreendedorismo nacional e pendurava-lhe mais uma medalha no 10 de Junho; diria que era um estilista, um designer de calçado, e acompanhava-o à Feira de Milão. É isso. Se escrevesse hoje, eu diria que, para todos os efeitos, o meu avô era um designer, um artista, isso, sobretudo um artistas. Ai era, era...
P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Novembro de 2015. Hoje é Dia Mundial do Design Gráfico, e cá estamos outra vez...
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Bola baixa, que o guarda-redes é anão
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era um acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Para ensinar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos grandes jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. Lembrei-me dele e deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, numa idade em que devia ser proibido morrer. O David morreu e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...
Já disse. Qualquer dia, quando eu estiver pronto, espero escrever a sério sobre David Alves, o nosso David Alves, guru natural e sem querer de uma ou duas gerações de jovens fafenses. Fomos uns sortudos!
quinta-feira, 25 de abril de 2024
Canção do Salgueiro (Maia)
Esta recebi-a do Jaime Froufe Andrade. No blogue Campainha Eléctrica, li que "o tema "Canção do Salgueiro" tem música e letra de Carlos Tê, que também assegura a produção ao lado de Mário Barreiros e Pedro Vidal. Barreiros é responsável pela mistura e masterização, pela bateria, guitarra eléctrica e teclados, cabendo a Pedro Vidal, director musical de Jorge Palma e parceiro dos Blind Zero e Wraygunn, outra guitarra acústica e eléctrica e também o banjo. Na canção participam ainda Rui David na voz, Patrícia Lestre na voz e violino, Paulo Gravato, saxofonista de Pedro Abrunhosa ou dos Azeitonas, e Rui Pedro Silva no trompete. A voz principal é de Carlos Monteiro." A canção pode ser ouvida aqui. E a letra do Tê diz assim:
Canto agora ao salgueiro
Que um dia abriu os olhos
E viu reinar o vampiro
Sobre a lezíria cansada
De tanto choro e suspiro
E gente tão aviltada
Saiu em fúria da margem
E foi bradar ao terreiro
No seu cavalo de ferro
Pediu contas ao vampiro
E ali lhe fez o enterro
Sem disparar um só tiro
Ai ó meu velho salgueiro
Dá-me a tua sombra amiga
Se há bom tronco lusitano
És da cepa mais antiga
Ai ó meu velho salgueiro
Estás aí tão mudo e quedo
És filho dum ferroviário
Que fez um manguito ao medo
E depois voltou à margem
E ficou a salgueirar
Junto ao Tejo em Santarém
Onde as Tágides vão dançar
Quando a lua harpeja as águas
Certas noites de luar
No poleiro da capital
Cantiga logo esquecida
Mas tu estás de pedra e cal
Mesmo em terra batida
Alto é teu pedestal
Ai ó meu velho salgueiro
Dá-me a tua sombra amiga
Se há bom tronco lusitano
És da cepa mais antiga
Ai ó meu velho salgueiro
Estás aí tão mudo e quedo
És filho dum ferroviário
Que fez um manguito ao medo
Por qué no te callas, Marcelo?
Marcelo sabia muito bem do que falava: de falar demais, de desbocamento. E dizia que Passos "não podia" andar por aí a bitaitar "de manhã, à tarde e à noite".
quarta-feira, 24 de abril de 2024
O quinto dos infernos
Começou tudo no dia 1 de Março e deverá prolongar-se pelo menos por mais um ou dois meses, a fazer fé no aviso gentilmente afixado no placar de cortiça do condomínio. E não me posso queixar. Ainda de acordo com a missiva do vizinho do quinto, a empreitada "decorre tal como permite o quadro legal em vigor", dando "cumprimento ao estipulado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 16.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo decreto-lei n.º 9/2007 de 17 de Janeiro". Ainda bem. Assim, estou muito mais descansado...
terça-feira, 23 de abril de 2024
Abelhas e vespas, a diferença
A diferença entre as abelhas e as vespas. As abelhas são insectos himenópteros, da família dos Apídeos, que vivem em enxames e produzem mel e cera. As vespas são lambretas ou, vá lá, motorizadas para senhoras, desculpem-me a expressão...
E depois há as vespas asiáticas. As vespas asiáticas, diga-se em abono da verdade, são principalmente Honda, Yamaha e Suzuki. Mas também Zongshen, Lml, Lifan, Generic, Kinroad, Jincheng, Znen, Masaï, Keeway, Baotian, Sym, Pgo, Kymco e TNT. Isto apenas por exemplo. E são realmente uma praga.segunda-feira, 22 de abril de 2024
Pegada ecológica
De volta à terra
P.S. - Hoje é Dia da Terra ou Dia Mundial da Terra ou Dia do Planeta Terra ou Dia da Mãe Terra. É também Dia Nacional do Património Geológico.
domingo, 21 de abril de 2024
Os convencidos da vida
Foto Tarrenego! |
O problema dos ex-colegas. Não é brincadeira. Para um gajo a caminho dos setenta anos de idade embora em estado praticamente novo, o problema dos ex-colegas é uma chatice quase tão grande como os calhamaços do José Rodrigues dos Santos se eu os lesse. Um aflição. Os ex-colegas são uma pedra no sapato. Imaginem-me: com ex-colegas da minha rua e da escola primária, os melhores de todos, com ex-colegas do seminário, já lá irei, com ex-colegas do liceu que foram para doutores e foi um ar que se lhes deu, com ex-colegas dos Comandos que acham que são muito mama sumae! e eu não sou, com ex-colegas da fábrica de quem tenho tantas saudades, com ex-colegas dos jornais e da rádio que têm lá as suas vidinhas, vejo-me fodido para os aturar a todos, mesmo quando eles não querem saber de mim, o que é regra geral. E quando querem saber de mim, então ainda é pior. O caso do seminário, e eu disse que vinha cá, é absolutamente paradigmático. Para quê? Digmático. Ninguém me mandou para o seminário, fui porque quis, porque queria ser padre, e às vezes ainda quero. A minha mulher sabe disso e, mais, somos felizes. No ano em que lá cheguei, ao seminário, éramos 136 crianças, eu tinha 11 anos e havia um documento de acção psicológica (isto anda tudo ligado) que rezava assim: "Começar é fácil. Recomeçar é de muitos. Chegar ao fim é de heróis. Nesta marcha ascensional é nosso dever caminhar! A empresa é difícil, mas fascinante O Ideal!"...
E há umas certas e determinadas pessoas que acreditam nisto, os supra-sumos que chegaram ao "O Ideal!". Se tivessem ido para os Comandos, esses supra-sumos, sumos sacerdotes, andariam agora por aí de boina vermelha e crachá, eventualmente de G3 a tiracolo se os deixassem, e em vez de melancólicos ego te absolvo diriam esfuziantes mama sumae! Estes rapazes tiveram os melhores mestres do mundo, o padre Fonseca e o padre João Aguiar, para não irmos mais longe, e afinal não aprenderam nada com eles, não perceberam nada da vida.
Porque. Reencontrei-me ultimamente com ex-colegas do seminário que deram em padres. E até gostei, a princípio. Há aquela festa propedêutica, "ó pá, há que tempos, és mesmo tu, estás mais gordo, estás mais magro, está igualzinho, dá cá esses ossos, dá cá essa febras!", como pessoas normais, e depois os meus ex-colegas enfiam no cu um daqueles feijõezinhos milagrosos que lhes dão aquela voz sacrista e falseta, e, magníficos, condescendentes e compassivos, com a superioridade moral dos eleitos, dos exclusivos de Deus, perguntam sempre lá do alto, como se estivessem combinados uns com os outros, "e então, o que é que tens feito?"...
Fico fodido. Fico à rasca. Começo a suar, a gaguejar, não sei o que hei-de dizer em minha defesa. Afinal estou perante um dos que chegaram ao topo do Kilimanjaro e eu nem sequer passei do sopé do Bom Jesus do Monte, onde o Secónego tinha uma casa. Conto o melhor que consigo: "ó pá, tenho sido sobretudo jornalista mas também trabalhei numa fábrica, sou casado há quarenta anos, sempre com a mesma mulher, o que é miserável no meu ofício, porém continuo apaixonado, tenho um filho que é uma jóia e o meu maior orgulho, temos a casa e o carro pagos, damos umas voltinhas para arejar, eu não sei conduzir mas cozinho muito bem, tenho quatro amigos, pendurei a carreira profissional para tomar conta primeiro do meu sogro e depois da minha sogra, e não me lembro se já disse que sou jornalista"...
Mas não chega. Eu sei que não chega! E continuo fodido e à rasca, gago e suado. Eu até acho que a classe dos ex-colegas está muito sobrevalorizada. Parece-me que a maioria das pessoas passa distraidamente ao lado do negativismo, da carga pejorativa que a própria expressão em si encerra. Ex-colega, ex-colegas. Se, por analogia, as pessoas pensarem no que pensam quando pensam em ex-amigo, em ex-amigos, certamente compreenderão o que eu quero dizer. Mas não adianta. Isso não me salva. Os ex-colegas aparecem-me, realizadíssimos da vida, e eu, que sei que sou a merda que sou, encho-me de vergonha, só me apetece fugir...
Ou por outra, era. Porque aqui atrasado fui a Fafe a um funeral e mudei de táctica. Fui a Fafe, dizia, e esbarrei com um dos meus que deu em padre e que, ainda por cima, estava encarregado do serviço. Conversámos na sacristia da Igreja Matriz, intermediados pelo meu sobrinho Geno, que é um tipo porreiro. Como de costume, inquirido sacramentalmente, pelo ex-colega, "e então, o que é que tens feito?", confessei na mesma o "ó pá..." do parágrafo ali de cima, o "ó pá..." completo, porque tenho este defeito de informar, mas depois acrescentei perguntando-lhe também, para livração da minha alma:
- E tu? Nunca fizeste nada, pois não? Quer-se dizer, és padre, não é?...
Em todo o caso e nos tempos que correm, com o que vai aí de pedofilia e outros abusos: como diria a minha mãe, que é sábia mas também queria um filho padre, "mais vale não fazer nada do que fazer asneiras"...
Stultorum infinitus est numerus
P.S. - Hoje é Dia da Latinidade. Sobretudo no Brasil e nas américas Central e do Sul de uma forma geral. Não por acaso, a fundação de Roma por Rómulo terá ocorrido, segundo a tradição, no dia 21 de Abril de 753 a.C.
Declinando
sábado, 20 de abril de 2024
Chamam-lhe train surfing
Foto Hernâni Von Doellinger |
Isto, portanto, há nove anos, altura em que a coisa terá começado. Os putos chamam a isto, cá em cima, "andar à guna". Entretanto, em Abril de 2019, quatro destes gabirus, com 15 ou 16 anos, caíram à linha em Rio Tinto quando andavam nestes perigosos preparos, foram atropelados e ficaram feridos, dois deles em estado grave. E em Maio do ano anterior morrera uma rapariga de 13 anos. De acordo com os mais recentes avistamentos, a toléria continua. Os jornais e as televisões chamam a esta merda train surfing, o que lhe empresta um ar desportivo, radical, aventureiro, jovem e dinâmico, desafiante, descontraído, nome de nova modalidade olímpica. Eu chamo-lhe estupidez. Estupidez natural.
Posso pedir um disco?
Vinham o padre, o presidente da câmara, o chefe da polícia, o sargento da GNR, o Emplastro, o comandante dos bombeiros, a fanfarra dos escuteiros, uma gaiola com pombas brancas, o André Ventura e o director da prisão. Parecia a procissão da Senhora de Antime parando em frente à Câmara, meu rico menino. O carcereiro, que vinha também, desatarraxou a porta da cela e o director da prisão, pausado e solene, com voz de locutor de rádio, informou o condenado: - Tens direito a um último pedido. O condenado pensou um bocadinho e disse: - Pode ser o "Sete e Pico", do Conjunto António Mafra?...
Agora a sério. Isto é, à séria, se inadvertidamente lido em Lisboa. Falemos de discos, dos velhinhos e cada vez mais modernos discos de vinil. A primeira jukebox de todos os tempos entrou em funcionamento no "saloon" Palais Royale, de São Francisco, EUA, no dia 23 de Novembro de 1889. A Fafe, as primeiras jukeboxes deverão ter chegado no final da década de sessenta do século passado, com as barracas de matraquilhos que se instalavam por baixo da Arcada, mais central era impossível, pelos 16 de Maio e pelas Festas da Vila. Havia um brilhantíssimo grupo de jovens fafenses, mais velhos do que eu, que dava excelente uso à novidade. Dessa malta porreira fariam parte, se não me engano, o Berto Dantas, o tio, o Eduardo do Retiro, o Mesquita, creio que o Mané, o Dr. Mané, o Jorge Lem, se era assim que se chamava, o Jorge Barros, filho do Nelinho, bissextamente o Ginho Cardoso e não tenho a certeza se o Bi Valente, gente assim desta categoria, e estou decerto a esquecer alguém ou alguéns e a confundir nomes. Eu admirava muito estes tipos cheios de classe, seguia-os sempre que podia, distâncias à parte, uma vez até me levaram com eles para um jogo de futebol que foram fazer a Felgueiras e no fim ainda tiveram a bondade de convidar-me para a almoçarada na Juditinha, evidentemente depois do Bertinho ter pedido por mim à minha mãe.
Mas tornando à maquineta dos discos, que mais tarde haveria de exibir também videoclipes, aliás de muito duvidosa qualidade, artística e técnica. Aquela rapaziada, já com algum mundo, tinha fino gosto musical e conhecia o que, regra geral, em Fafe ainda não se sabia. Acredito que me educaram o ouvido, entre alguns outros a quem o devo. A escolha na jukebox era muito limitada, pindérica, a ementa ao dispor consistia quase só naquilo a que hoje costumamos chamar música pimba. "O autocarro do amor" - de "Os Taras" e Montenegro, por onde andava um moço chamado Quim Barreiros - tocava de manhã até à noite, num despique fratricida e interminável com "Eu te amo, meu Brasil", de "Os Incríveis". Uma xaropada insuportável, um atentado às orelhas de qualquer um, nem que não as tivesse ou por mais moucas que elas fossem. A minha sorte é que os rapazes do bando do Bertinho, chamemos-lhes assim, faziam questão de destoar da ignorância geral e caprichavam na evangelização, pondo a tocar, de forma paciente e cirúrgica, Beatles obrigatoriamente, "Aquellos ojos verdes", por Nat King Cole, que eu desconhecia, tenho vaga ideia também de um clássico de Sinatra, não sei qual, lembro-me da poderosa versão de "I'm free", da ópera rock Tommy, dos The Who, com a London Symphony Orchestra, e sobretudo, e estou-lhes tão grato por isso, ensinaram-me a inestimável "Eloise", de Barry Ryan, que ainda hoje me regala.
Por outro lado. Os matraquilhos foram inventados pelo galego Alexandre Campos Ramires ou Alexandre de Fisterra, que também era editor e escritor. O nome mais bonito dos matraquilhos é, digo eu, pseberico. Assim se falava pelo menos em Fafe.
sexta-feira, 19 de abril de 2024
A honra dos Silvas
Quando assim falo, que é sempre, os meus parentes caem-me em cima, protestam a sua mais entranhada vaidade onomástica e ameaçam banir-me do clã, e eu contra isso nada. Ouço-os, isto é, faço de conta que os ouço, mas penso noutra coisa. Penso nos Silvas. Penso como seria bonito ver alguém sair a terreiro em defesa da honra dos Silvas. Exactamente: alguém de velha têmpera e honra antiga que, armado em Von Doellinger de corrida, ousasse chegar-se à frente para gritar alto e bom som, de estandarte em punho e peito inflado de altivez:
- Eu tenho muito orgulho em ser um Silva, há algum problema?!...
Os Silvas, é preciso que se note, não são uma merda qualquer, e não estou sequer a falar do ilustre casal de ex-inquilinos do Palácio de Belém, que faz aqui tanta falta como o queijo gruyère numa caldeirada de enguias. A primeira linhagem de Silvas é de príncipes e anterior à fundação da nacionalidade portuguesa. Os Silvas de pé-rapado conquistaram Portugal e os Brasis, é só ir ver as listas telefónicas. Os Silvas são uns grandes pinantes, é só ir ver os registos dos motéis, mas aqui são nomes falsos. Os Silvas, se um dia se chateiam, o País pára, porque os Silvas são o País. Chamar ó Silva! num autocarro articulado da Carris é um perigo: os 145 passageiros (48 sentados, 96 de pé e um numa cadeira de rodas) olham todos para trás e o motorista também. O Silva dos Plásticos, toda a gente sabe, era mais conhecido do que o Papa. Silva I seria, aliás, um bom nome para um Papa português, e há logo quem pense no poeta José Tolentino Mendonça.
Embora de nascença ninguém escolha ser Silva, nem ser nome nenhum, está visto que os Silvas só têm motivos de orgulho. E quem diz os Silvas, diz os Santos, os Ferreiras, os Antunes, os Rodrigues, os Costas, os Oliveiras, os Martins, os Sousas, os Gonçalves, os Almeidas, os Carvalhos, os Farias, os Magalhães, os Alves, os Teixeiras, os Lopes, os Ribeiros, os Ramos e até os Brochados. Sim, porque não os Brochados? Há algum problema?
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Fafe já não tem piononos
"O Rapto", de Marco Bellocchio |
No monte de São Jorge havia um pionono. E constava que havia outro no monte de Castelhão. Fui testemunha de ambos, embora o segundo possa jamais ter existido. O pionono, para mim, era uma espécie de meco que ajudava montes de pouca monta a porem-se em bicos de pés, a chegarem-se a uma certa altura, a uma altura certa, a um número redondo que desse jeito falar. Quero dizer: era uma espécie de sapato de salto alto para caga-tacos complexados, porém ao contrário, com o tacão virado para cima e usado na cabeça, bem na crucha da cabeça. Depois tomei conhecimento do Pio IX, mas nunca percebi a relação, e acho um insulto chamar-lhe marco geodésico. Ao papa. Ao sumo pontífice.
Assim com maiúscula, o Pionono era exactamente em São Jorge, é justo que se diga. Pionono era nome próprio, sítio, geografia. Era topónimo com alvará. "Vou ao Pionono". Ia-se ao Pionono. Ao Pionono ia-se aos pinheiros pelo Natal, ia-se esgaçar umas pernadas de carvalho para o trono da cascata do Santo António, ia-se aos fentos ou ao mato para o eido ou às giestas secas para espertar a lareira do chão da cozinha, ia-se brincar aos cobóis, ia-se cagar ao monte e ia-se dar umas trancadas, e o que eu gostava da palavra trancadas, mesmo sem ainda conseguir alcançar o que ela quereria dizer. Nem de propósito, São Jorge parece que também tinha mamoas, eu confesso que não sabia mas fiquei a saber no final do ano passado.
(As giestas, por falar nelas, davam umas vassouras de categoria e o Trancadas era um barbeiro mesmo ao lado do tasco do Neca do Hotel, proximidade que se revelava de uma comodidade extrema. Por falar nisso, lembro-me de descer um degrauzinho, mais cá para o centro da vila, ali entre a sombria loja da Rosindinha Catequista e a Cafelândia, mas esse era o Sr. António Grande, o segundo barbeiro do meu padrinho Américo. Eu ia lá com o meu padrinho mais o meu tio Zé da Bomba, aos sábados de manhã, que naquele tempo eram sempre de sol. Na espera lia-se "O Primeiro de Janeiro", mal eu sabia que ainda o haveria de fazer. O meu padrinho Américo e o meu tio Zé da Bomba eram irmãos do meu pai, o grande Lando Bomba, e depois foram meus pais, à falta do propriamente dito, por razão de força maior.)
Hoje os montes de São Jorge e de Castelhão são casas e é o progresso. Os montes foram capados, terraplenados, desarborizados, alcatroados, liquidados. Os montes morreram de morte matada e a culpa morreu solteira. Fafe já não tem piononos. Mas, dizem-me, tem ainda a "Garrafinha" e historiadores até dar com um pau. Um deles, quem dera que não chova, ainda há-de contar esta como deve ser.
Era um perseguidor de sonhos
O Homem-Bata
Figura mítica, consagrada instituição da velha Tamanca e autoridade local, o Sr. Pimenta era uma homem gordo, de andar pesado e lento, periclitante. A cada passo parecia-me que ia cair redondo para um dos lados, consoante a perna curta que avançava. O Sr. Pimenta tinha idade para ser meu avô, achava eu, e uma barbearia montada como se fosse a sério, mesmo em frente à capela e ao lado da sala de aulas que era também a loja onde os padres nos vendiam os "objectos", mas cortava tão mal o cabelo como os tosquiadores fardados que mo raparam sem dó nem piedade, uns anos depois, quando dei entrada nos Comandos. O Sr. Pimenta era barbeiro porque tinha a bata branca de enfermeiro.
Quer-se dizer: o Sr. Pimenta era a bata.
E poderia ter sido, quem sabe, o Homem-Bata, se, derivado aos seus múltiplos poderes e polivalentes predicados, a Marvel lhe tivesse deitado a mão em devido tempo. Infelizmente a Marvel não recruta em Portugal, e é o que perde.
Apesar de ter tudo para ser um super-herói, o Sr. Pimenta era só Sr. Pimenta para mim, porque a minha mãe tinha-me ensinado a tratar os senhores por senhores. Para o resto da rapaziada, meninos bem ou matarruanos, o Sr. Pimenta era o Pimenta, ordens de cima, nada de confianças. Paradoxalmente. E os outros funcionários ou acoitados, os que nos serviam no refeitório, certamente lerdos mas filhos de Deus como a gente, eram "criados". Criados. Ordens de cima. Já nem falo de educação - a caridade cristã tem definitivamente muito que se lhe diga.
Portanto, chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Um ano, o padre Vilar, o bom padre Vilar, não quis que eu ficasse sem nota a Religião e Moral. Visitou-me, fez-me duas ou três perguntas que valeriam o ponto, perguntas do mais elementar possível, só para que eu fizesse boa figura. Perguntou-me:
- Quem é Deus para ti?
- Deus é o meu pai - respondi.
- Todos somos filhos de Deus - atalhou o padre.
- Mas eu sou mais, porque sou órfão - defendi-me, com uma não ensaiada porém oportuna lágrima no canto do olho que me valeu para aí um dezoito.
Isto é: sou malabarista desde pequenino.
Na enfermaria havia sempre um bufo que ia contar ao impiedoso padre Coutinho as minhas anedotas, mas omitia a parte das punhetas, que era regra geral e ideia não sei de quem, minha é que não. E eu também não sabia a malícia das anedotas que contava. Fiquei a saber quando fui chamado à pedra por uma orelha - e assim me roubaram a inocência. O padre Coutinho gostava muito de música clássica e eu tenho a certeza absoluta de que a música clássica não gostava nada dele.
P.S. - Publicado originalmente no dia 20 de Outubro de 2014. O Super-Homem faz hoje 86 anos. Exactamente. O também chamado Homem de Aço, um dos principais super-heróis da cultura pop americana, apareceu pela primeira vez no dia 18 de Abril de 1938, na capa da Action Comics n.º 1.
terça-feira, 16 de abril de 2024
Lourenço da Arrábida
P.S. - O cineasta britânico David Lean, realizador de "Lawrence da Arábia" e "Doutor Jivago", morreu no dia 16 de Abril de 1991.
segunda-feira, 15 de abril de 2024
O passeio do jovem ciclista em cuecas
Foto Hernâni Von Doellinger |
Palavra de honra, em cuecas. Os famosos slipes ou trusses. Em cuecas, portanto. O jovem ciclista atravessou com a maior das descontracções a praça principal da vila de Caminha, em frente à Câmara e à igreja, perante o espanto e a reprovação compungida da distintíssima esplanada do Café Central que rebentava pelas costuras de senhorecas e senhorecos, sobretudo portuenses da Foz chique em gozo de segunda casa. Ou terceira. Ou. Primeiro para cima, depois para baixo, pedalando em preparos tão resumidos, o ciclista em cima da bicicleta, parece impossível num centro histórico! A indignação foi praticamente geral, até as arcas dos gelados coraram. E perceba-se o escândalo: era domingo e hora da missa para os indígenas, valha-me Deus...
domingo, 14 de abril de 2024
O poeta do sol
sábado, 13 de abril de 2024
Com bandeira portuguesa
O Irão atacou um navio com bandeira portuguesa no estreito de Ormuz. E eu estou preocupado. A bandeira, é a deste Governo ou a do anterior Executivo?
Dava-te um beijo, mas não tenho...
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", dizemos olá de boca, e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos, paleio. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Amigos por computador. Dizemos. Enviamos. Remetemos. Aproveitamos a oportunidade para. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emojis. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um magnífico beijo", "Desejo-lhe um excelentíssimo abraço". E nisto estamos.
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O falatório. Nunca tanto se palavrou. Nunca se falou tanto, nunca se mentiu tanto. Isso. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.
sexta-feira, 12 de abril de 2024
Os Antigos e a Família Tradicional
Os Antigos sabiam de laranjas - de manhã ouro, à tarde prata e à noite mata. Sabiam do tempo - em Abril, águas mil. Sabiam de horas e alturas - deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer. Sabiam de curas e maleitas - o vinagre e o limão meio cirurgião são. Sabiam de tubérculos e famulagem - não comas caldo de nabos nem o dês aos teus criados. Sabiam de presigos e segurança pública - sardinha sem pão é comer de ladrão. Sabiam de magustos e viagras - a castanha excita o coito e alimenta muito. Sabiam de proporções - bom comer: três vezes beber. Sabiam de criação e divindades - ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo. Sabiam de prestidigitação e utopias - mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Sabiam saltar a cerca - a galinha da vizinha é sempre melhor que a minha. E sabiam guardar um segredo - o corno é o último a saber.
Os Antigos morriam muito, mas morriam muito velhinhos, isto é, por volta dos cinquenta, sessenta anos.
Os Antigos não andavam por aí aos tiros. Andavam às pauladas, às facadas, às sacholadas - e aos tiros.
Os Antigos não matavam por dá cá aquele palha. Matavam por causa da água - e geralmente por causa do vinho.
Os Antigos não emprenhavam raparigas solteiras a torto e a direito. Os filhos de pai incógnito eram realmente mais que as mães, mas eram milagres.
Os Antigos não toleravam e até perseguiam os maricas, isto é, os paneleiros, porém consideravam razoável que o senhor padre fosse ao pito às moças da paróquia e brincasse com as pilinhas dos meninos da catequese.
Os Antigos achavam que melhor que um Salazar só dois Salazares. Melhor ainda, um Salazar em cada esquina. Entre Salazar e Fátima, é que os Antigos não sabiam bem...
Os Antigos sabiam como fazer homens. Pegavam nos rapazes e mandavam-nos para a tropa, se possível para a guerra.
Os Antigos eram puros. Não gostavam de pretos. Nem de monhés. Nem de ciganos. Nem de imigrantes. Nem dos outros em geral. E iam muito à missa e à sagrada comunhão.
Os Antigos inventaram Deus, Pátria e Família. Mas Família Tradicional!
Os Antigos faziam muitos filhos. E batiam-lhes. E também batiam nas mulheres. Os Antigos gostavam muito de bater. Batiam porque tinham razão, batiam para ter razão. Batiam por vontade de Deus. Os Antigos davam pão e também educação. A educação dos Antigos.
Os Antigos respeitavam as esposas. Por isso iam às putas.
Os Antigos andam por aí. E estamos outra vez no tempo deles. Houve outro dia em Lisboa uma reunião de Antigos. Falou Pedro Passos Coelho.
Nossa Senhora era astronauta
"Fosse o que fosse, talvez não seja temerário supor que, pela sua assunção, Maria foi a primeira criatura humana a transpor o espaço. Não foi uma mera espectadora da História, mas uma protagonista e precursora de uma das maiores proezas da humanidade.", proclama o Sr. Portocarrero, directamente de Cabo Canaveral, numa inesperada confusão entre astronáutica e santidade, ciência e fé que faria corar do vergonha o próprio Padre Mário da Lixa.
Depois os senhores gonçalos todos, sotainados ou não, ficam muito incomodados quando lêem e ouvem que Nossa Senhora de Fátima foi um ovni. E o negócio, valha-nos Deus?...
P.S. - Publicado originalmente no dia 15 de Agosto de 2019. O lamentável Sr. Portocarrero continua por aí, a dividir, a odiar, a disparatar, mas não é isso que interessa aqui hoje. Hoje é Dia Internacional do Voo Espacial Tripulado.
quinta-feira, 11 de abril de 2024
A vida era uma fotonovela
Recuemos. À década de oitenta do século passado e ao cimo da mui portuense Rua de 31 de Janeiro, onde havia uma casa de jogos de máquinas de flippers e afins que tinha uma cave com um altifalante fanhoso que, de uns quantos em quantos minutos, gritava cá para fora a curiosa frase "Mudança de modelo". Lá em baixo parece que havia umas raparigas muito jeitosas e nuas a fazerem não sei o quê e umas cabinas individuais e sebentas com ranhura para a clientela meter a moeda como nas velhas jukeboxes de feira e espreitar por um vidro e fazer também não sei o quê. Sei muito pouco do assunto porque, palavra de honra, nunca lá pus os pés. Ou se calhar pus, lembro-me vagamente da situação, não juraria em tribunal, mas isso também não vem ao caso.
Informei-me. "Mudança de modelo", logo a seguir ao ding-dong de uma campainha de aeroporto, queria dizer, por exemplo, que a morena mamuda passava a pasta à loura pernalta e ia para os bastidores ler a Corín Tellado, e assim sucessivamente e vice-versa, mas decerto queria dizer também que os clientes tinham de fechar a braguilha e limpar as mãos o mais rapidamente possível e dar a vez a outros, que eram mais que as mães, sobretudo no intervalo de almoço. O speaker de serviço dizia "Mudaaaança de modeloooo" com um garbo só comparável ao do mestre-de-cerimónias do Circo Merito quando anunciava na Feira Velha a sensacional "Maribelaaaa no seu rrrrrola-rolaaaa". Eu gostava: "Mudaaaança de modeloooo"! Parava em frente para ouvir, uma e outra vez, até à hora de voltar ao trabalho. E ria-me. Quase quarenta anos depois, leio e ouço a moderna lengalenga da "mudança de paradigma". "Mudança de paradigma" acima, "mudança de paradigma" abaixo. "Mudança de paradigma" para aqui, "mudança de paradigma" para ali. E também me faz rir, confesso, mas não me arrebita. Falta-lhe sustância, ao paradigma...
Já agora, sobre Corín Tellado, espanhola que se chamava Maria del Socorro Tellado Lopez e morreu no dia 11 de Abril de 2009, aos 82 anos. Escritora, autora mais lida na língua de Cervantes logo atrás do próprio, publicou mais de quatro mil romances cor-de-rosa ao longo de uma carreira de quase 56 anos, vendendo acima de 400 milhões de exemplares, o que lhe valeu a entrada no Guiness em 1994. Em Portugal, e pelo menos em Fafe, antes do 25 de Abril, a senhora Corín Tellado ficou famosa pela melosíssima revista de fotonovelas a que emprestava o nome. As revistas eram disputadas, partilhadas, emprestadas, trocadas, rompiam-se de mão em mão, iam de casa em casa como a Sagrada Família mas com outros interesses. A televisão era a RTP e o mais parecido com uma telenovela era o TV Rural do engenheiro Sousa Veloso, "despeço-me com amizade até ao próximo programa". Na rádio, o "Simplesmente Maria", folhetim radiofónico, chegou à Renascença apenas em Março de 1973, e o país desfez-se em lágrimas, como se houvera inundações. Já disse: era assim em Portugal e pelo menos em Fafe. A parte de Fafe do rés-do-chão, da esfregona e da costura. A parte de Fafe de que sou. Era triste mas era isto: a vida era uma fotonovela.
"Eu e a UNITA" no Mar Shopping
O novo livro do jornalista Orlando Castro, "Eu e a UNITA", é lançado no próximo domingo, dia 14 de Abril, pelas 16 horas, na Fnac do Mar Shopping Matosinhos. Sobre si próprio e sobre o que o move, diz Orlando Castro: "Ao longo dos anos defendo aquilo que considero o mais correcto para a minha terra, Angola. Consigo não agradar nem a gregos (MPLA) nem a troianos (UNITA)".
quarta-feira, 10 de abril de 2024
Viva Zapata!
Viva Portugal!
Viva a República e a Monarquia!
Viva a Igreja e a Maçonaria!
Viva a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vila Real de Santo António, não desfazendo de todas as outras associações humanitários de bombeiros voluntários do resto do País que têm nome mais curto, como, por exemplo, Fão ou Freixo de Espada à Cinta!
Viva!
Viva císsimo!
Viva mente!
Viva quente!
Vá para dentro!
Viva cidade!
Viva Villa!
Viva Zapata!
Viva México!
Arriba, arriba! Ándale, ándale!
Viva Las Vegas!
Ó Elvis, ó Elvis, bisavós à vista!
Viva!
Santinho!
P.S. - Emiliano Zapata (de seu nome completo, Emiliano Zapata Salazar), líder da Revolução Mexicana de 1919, herói nacional mexicano conhecido como Caudilho do Sul, foi emboscado e morto no dia 10 de Abril de 1919. Marlon Brando, o grande Marlon Brando cujo centenário passou por estes dias, foi Zapata no filme "Viva Zapata!", de 1952, com argumento de John Steinbeck e realização de Elia Kazan. "Viva Zapata!" foi considerado pelo The New York Times como um dos 1000 melhores filmes do mundo. De Zapata, dizem que disse um dia: "É melhor morrer de pé do que viver de joelhos", frase de almanaque também atribuída, parece que erradamente, a Franklin Roosevelt e, numa ligeira variação, a Che Guevara.
Memórias da ditadura
O livro "Memórias da Ditadura - Sociedade, Emigração e Resistência" será lançado depois de amanhã, dia 12 de Abril, pelas 18 horas, na Associação 25 de Abril, em Lisboa. A obra, concebida e realizada por Daniel Bastos, a partir do espólio fotográfico inédito de Fernando Mariano Cardeira, antigo oposicionista, militar desertor, emigrante e exilado político, tem edição bilingue (português e inglês), traduzida por Paulo Teixeira, e é prefaciada pelo historiador e investigador José Pacheco Pereira. A apresentação estará a cargo de Manuel Pedroso Marques, militar, antigo exilado político e presidente da RTP
Escreve Daniel Bastos: "No ano em que se assinala meio século de liberdade e democracia em Portugal, a publicação deste livro, que conta com o apoio institucional da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril, constitui uma oportunidade simbólica de revisitar o país como era há 50 anos. Mormente o quotidiano de pobreza e miséria em Lisboa, a efervescência do movimento estudantil português, o embarque de tropas para o Ultramar e os caminhos da deserção, da emigração "a salto" e do exílio, uma estratégia seguida por milhares de portugueses em demanda de melhores condições de vida e para escapar à Guerra Colonial nos anos 60 e 70."
terça-feira, 9 de abril de 2024
Então Ele não ressuscitou?
Gosto de entrar em igrejas e capelas. Igrejas e capelas vazias, silenciosas, fora dos horários de expediente. E abertas, o que é cada vez mais raro. Entro. Como ainda há bocado, na funcional capelinha da Obra do Padre Grilo, que frequento amiúde aqui em Matosinhos, ao pé da porta. Entrei, sentei-me, olhei em frente, e o que vi eu, para meu espanto, meu máximo espanto? O Jesus Cristo da Sexta-Feira Santa, seviciado, ferido, pregado à cruz e morto, como de costume em cima do sacrário vagamente dourado e embutido na parede de mármore, como se nada fosse, como se entretanto mais nada tivesse acontecido, como se não tivesse havido Domingo de Páscoa, como se a história tivesse morrido ali. - Ó diabo! - pensei, desconfiado -, mas então Ele não ressuscitou ao terceiro dia?...
É em situações assim, creio, que a fé de uma pessoa vacila.
segunda-feira, 8 de abril de 2024
O hóquei está de volta ao Palácio
Foto Tarrenego! |
Praticamente "pronto" o segundo Palácio de Cristal original, então baptizado Pavilhão de Desportos do Porto e ajambrado às três pancadas para o Campeonato Mundial de Hóquei em Patins de 1952, que decorreu assim mesmo sem cobertura. Isso, um pavilhão ao ar livre. Lá atrás, é possível ver talvez ainda um resto da cúpula central do verdadeiro Palácio de Cristal. Esta é uma de meia dúzia de fotos históricas que "trouxe" de O Primeiro de Janeiro antes que chovesse, mas não lhe sei o autor.
O Pavilhão Rosa Mota chama-se actualmente Super Bock Arena, isto é, continua ligado ao ramo das cervejas, quem sabe se um dia não será Sagres ou Cergal, e, 72 anos depois, volta a receber uma grande competição de hóquei em patins, agora a final four da Liga dos Campeões, nos dias 11 e 12 de Maio.
Os sapos e outros engolimentos
A porta da nossa casa no Santo Velho tinha, em baixo, junto ao chão, um bocadinho de folheta levantada, e era ali que se deixava a chave, de uns para outros, éramos pelo menos seis, como, por exemplo, à noite, quando a nossa mãe já nos dava licença de saída até às 22 horas, ao Nelo e a mim, e depois no regresso a gente metia a mão no buraco, tirava a chave, que era enorme, digna de São Pedro, há que dizê-lo, abria a porta em câmara lenta, a monumental chave de bico calado, bem oleada, e entrávamos em casa com os pés debaixo dos braços para não fazermos barulho, a nossa mãe fazia de conta que estava a dormir e portanto só de manhã é que nos acertava o passo por termos chegado às 22h01.
Os sapos à porta realmente incomodam-me. E metem-me nojo sobretudo os sapos à porta dos restaurantes ou de outros estabelecimentos comerciais. É. Como sou um bocado cigano, recuso-me também a entrar.
No velho tasco do Toninho Nacor havia um sapo que era um jogo, na zona cimentada do quintal logo depois da cozinha, por baixo do sombroso caramanchão, ao lado das famosas gaiolas dos pássaros e do forno de cozer vitela e bolo. O sapo era um jogo tradicional e de taberna, um jogo de mesa em forma de armário aberto com inúmeras ranhuras correspondentes a outras tantas gavetas. Jogava-se com pequenas patelas, que se lançavam para o "armário" e cada entrada correspondia a uma certa pontuação. A boca do sapo era o máximo, se não me engano. Servia para matar o tempo enquanto se esperava pela hora da merenda e dali poderia sair também "multa" aos perdedores para próximas quartilhadas.
Sobre este interessante assunto, os sapos, apraz-me finalmente registar que o Sapo, primeiro motor de busca português, foi criado por cinco estudantes da Universidade de Aveiro em 1995. Antes disso, mas em Penafiel, já era um famoso restaurante de enfarta-brutos e conceituado estabelecimento de compra e venda de árbitros de futebol.
O cigano e o sapo
domingo, 7 de abril de 2024
O dia em que envelheci
A tensão, muita a tensão
- Temos tomado a nossa medicação? - pergunta-me ela.
- Temos, temos, senhora doutora - respondo eu, que sou uma pessoa educada e um exemplar tomador de medicações.
- Temos feito o nosso exerciciozinho diário?
- Todos os dias, senhora doutora.
- Temos moderado a nossa alimentação?
- Que remédio, senhora doutora. O dinheiro já só dá para cascas de batatas.
- Ora ainda bem. Vamos lá ver como que é temos a nossa tensão - diz-me ela.
- Vamos a isso, senhora doutora, nem é tarde nem é cedo - digo eu, tirando o casaco que nunca uso e arregaçando a manga da camisa.
Vimos a tensão.
- Temo-la um bocadinho alta - informa-me ela, sem esconder a preocupação.
- Um bocadinho pouco ou um bocadinho muito, senhora doutora? - pergunto eu, evidentemente também já um bocadinho muito à rasca.
- Bastante, bastante. Vamos meter este comprimidozinho debaixo da língua e vamos deitar um bocadinho ali - diz-me ela.
- Vamos lá então, senhora doutora. A senhora doutora primeiro, que eu gosto de ficar por cima - digo eu, que, repito, sou uma pessoa educada e exemplar tomador de medicações.
P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Dezembro de 2012.