Quarteto de cordas
Eram um excelente quarteto de cordas: de sisal, de propileno, bamba e
estática. As quatro acompanhavam regularmente a corda vocal. Quando
assim, eram o Quinteto da Corda.
Acede-o
- Se eu fosse a ti...
- Não vens, não!
Funcionário brilhoso
Profissional de mão-cheia, empenhava-se a cem por cento no emprego.
Fazia tudo e fazia tudo bem. "Tenho muito brilho no meu trabalho",
costumava dizer.
Maus hálitos
Tinha muitos maus hálitos. O tabaco e o vinho, por exemplo. E também coçava os tomates...
Fino como um alho
Burro como um soco. Duro como um corno. Bêbado como um cacho. Quer-se dizer: o soco, o corno e o cacho, que culpa é que têm?...
Chove-me dinheiro
"Nunca me tinha acontecido. Estou atolado em dívidas. Ontem fiquei a
dever doze cêntimos na padaria e hoje fiquei a dever cinquenta cêntimos
na peixaria. Por outro lado, devo dois euros (um mais um) à latinha do
Euromilhões, que é para o bacalhau do Natal. O meu nome na praça também
deve andar pelas ruas da amargura. Estou desgraçado, não sei o que
hei-de fazer à minha vida."
Isso aí em cima foi há um mês, dia 25 de Agosto, e tinha o título "Quando o dever chama".
Felizmente Deus é grande, tarda mas não falha, escreve direito por
linhas tortas, está em toda a parte, tudo vê e tudo ouve, ouviu-me,
olhou para mim, por mim, deu-me a mão, a mão do meu Senhor da Galileia,
consegui recompor-me e tenho agora uma vida risonhamente desafogada. Só
no passado fim-de-semana achei dinheiro três vezes: dois cêntimos na
sexta-feira, dois cêntimos no sábado e um cêntimo no domingo.
Evidentemente também me saiu o Euromilhões: quatro euros e noventa e
oito. Vou trocar de carro.
me e tenho agora uma vida risonhamente
desafogada. Só no passado fim-de-semana achei dinheiro três vezes: dois
cêntimos na sexta-feira, dois cêntimos no sábado e um cêntimo no
domingo. Evidentemente também me saiu o Euromilhões: quatro euros e
noventa e oito. Vou trocar de carro.
domingo, 30 de setembro de 2018
Vicente Risco 6
Baixaron. Metéronse n'un toco escuro y-estreito, y-andiveron un pedazo. O fin foron dar a un sitio cheo de luz.
Alveiros, que levaba os ollos do escuro, ô pronto non se decatou do que vía. Era unha grandísima rotonda, cuberta c'unha bóveda d'inmensas estalactitas onde xogaban as luces de moitos miles de focos d'unha nunca vista intensidade. Viase igual que polo centro do día. A sua veira, Dehmel quitabas'o abrigo. Había un rebumbio que non deixaba a un entenderse. A man izquerda, unha chega d'esqueletes afinaban os istrumentos debían ser unha orquesta de mais de 400 profesores. Alveiros distinguía os violís, as harpas, os violós, os timbales, os redoblantes, os oboes, as trompas, os fiscorcios... No medio rebulían antr'a chusma d'esqueletes ispidos que rían e berraban, ús cuantos con vestidos de coores brilantes. Aquelo era bonito de veras.
"D'o Caso que Ll'aconteceu ô Doutor Alveiros", Vicente Risco
(Vicente Risco nasceu no dia 1 de Outubro de 1884. Morreu em 1963.)
Alveiros, que levaba os ollos do escuro, ô pronto non se decatou do que vía. Era unha grandísima rotonda, cuberta c'unha bóveda d'inmensas estalactitas onde xogaban as luces de moitos miles de focos d'unha nunca vista intensidade. Viase igual que polo centro do día. A sua veira, Dehmel quitabas'o abrigo. Había un rebumbio que non deixaba a un entenderse. A man izquerda, unha chega d'esqueletes afinaban os istrumentos debían ser unha orquesta de mais de 400 profesores. Alveiros distinguía os violís, as harpas, os violós, os timbales, os redoblantes, os oboes, as trompas, os fiscorcios... No medio rebulían antr'a chusma d'esqueletes ispidos que rían e berraban, ús cuantos con vestidos de coores brilantes. Aquelo era bonito de veras.
"D'o Caso que Ll'aconteceu ô Doutor Alveiros", Vicente Risco
(Vicente Risco nasceu no dia 1 de Outubro de 1884. Morreu em 1963.)
Tenho uma carteira nova
Agora tenho uma carteira. Dantes era um carteiro, mas os CTT mudaram-lhe a rota...
sábado, 29 de setembro de 2018
Microcontos & outras miudezas 105
Como um camelo
Dizer-se que ele bebia como um camelo era um abuso. Ele bebia realmente muito, mas todos os dias.
O hamster
Comprou um hamster e pôs-lhe nome. Damião. Era o hamster Dam.
Os mórreres
Sim, os víveres, evidentemente os víveres. E os mórreres?...
You motherfucker
E uma da faca, e duas da faca, e três da faca, e quatro da faca, e assim sucessivamente...
Lições de História 31: os reis magos
Os três reis magos eram não se sabe quantos, e na verdade nem eram reis nem magos. Provavelmente inexistiram. Mas isso não interessa. O certo é que, depois de terem adorado o Menino Jesus, em Belém, e de lhe terem oferecido ouro, incenso, mirra, um tambor e um carrinho de bombeiros, dedicaram-se à bola: Gaspar brilhou no Rio Ave, Baltasar fez seis épocas no Sporting e Belchior joga na selecção de futebol de praia.
Os grandes problemas
Os grandes problemas vão ser discutidos. Só serão admitidos à discussão problemas com mais de um metro e noventa e três.
A primeira vez
A primeira vez que aquilo aconteceu foi uma completa novidade.
Dizer-se que ele bebia como um camelo era um abuso. Ele bebia realmente muito, mas todos os dias.
O hamster
Comprou um hamster e pôs-lhe nome. Damião. Era o hamster Dam.
Os mórreres
Sim, os víveres, evidentemente os víveres. E os mórreres?...
You motherfucker
E uma da faca, e duas da faca, e três da faca, e quatro da faca, e assim sucessivamente...
Lições de História 31: os reis magos
Os três reis magos eram não se sabe quantos, e na verdade nem eram reis nem magos. Provavelmente inexistiram. Mas isso não interessa. O certo é que, depois de terem adorado o Menino Jesus, em Belém, e de lhe terem oferecido ouro, incenso, mirra, um tambor e um carrinho de bombeiros, dedicaram-se à bola: Gaspar brilhou no Rio Ave, Baltasar fez seis épocas no Sporting e Belchior joga na selecção de futebol de praia.
Os grandes problemas
Os grandes problemas vão ser discutidos. Só serão admitidos à discussão problemas com mais de um metro e noventa e três.
A primeira vez
A primeira vez que aquilo aconteceu foi uma completa novidade.
Paulo Bomfim 2
Inventário
Quem habitará, um dia,
Os ternos desabitados
E camisas que se aquecem
Ao sol de tempos passados?
Que esquinas reviverão
Contradanças de gravatas
Sobre sapatos que pisam
Calendários já sem datas?
Quando livros partirão
Da agonia dos instantes,
Silenciosas revoadas
Em busca de outras estantes?
Um dia, quem viverá
O poema que hoje invento?
Ai segredar confessado
À inconfidência do vento!
"Cancioneiro", Paulo Bomfim
(Paulo Bomfim nasceu no dia 30 de Setembro de 1926)
Quem habitará, um dia,
Os ternos desabitados
E camisas que se aquecem
Ao sol de tempos passados?
Que esquinas reviverão
Contradanças de gravatas
Sobre sapatos que pisam
Calendários já sem datas?
Quando livros partirão
Da agonia dos instantes,
Silenciosas revoadas
Em busca de outras estantes?
Um dia, quem viverá
O poema que hoje invento?
Ai segredar confessado
À inconfidência do vento!
"Cancioneiro", Paulo Bomfim
(Paulo Bomfim nasceu no dia 30 de Setembro de 1926)
Machado de Assis 7
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. [...]
"Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis
(Machado de Assis nasceu no dia 21 de Junho de 1839. Morreu no dia 29 de Setembro de 1908.)
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. [...]
"Memórias Póstumas de Brás Cubas", Machado de Assis
(Machado de Assis nasceu no dia 21 de Junho de 1839. Morreu no dia 29 de Setembro de 1908.)
sexta-feira, 28 de setembro de 2018
Pastelaria e graças a Deus
Comeu um cardeal, dois jesuítas e três seminaristas. Bebeu quatro taças de Casal Garcia, persignou-se e deu graças a Deus.
Luís Miguel Nava 3
Retrato
A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.
Luís Miguel Nava
(Luís Miguel Nava nasceu no dia 29 de Setembro de 1957. Morreu em 1995.)
A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.
Luís Miguel Nava
(Luís Miguel Nava nasceu no dia 29 de Setembro de 1957. Morreu em 1995.)
Elvira Vigna
N. saltou do táxi com suas coxas roliças e caminhou até ele. Essa caminhada, passo por passo, não era uma caminhada. Era a implementação de uma imagem. Era uma ação estudada, matemática, calculada. A imagem que N. estabelecia com essas suas saídas de dentro de táxis era a de uma mulher segura, que sabe o que está fazendo. Nesse caso, N. o sabia duplamente. Ela era uma mulher que sabia estar indo ao encontro daquele que ela havia escolhido para amante e ela era uma mulher que sabia que andar com a aparência de segurança era excitante. Paulo hesitou e se levantou para beijá‑la.
Pediram frango à passarinho e cerveja.
Pediram frango à passarinho e cerveja.
"Nada a Dizer", Elvira Vigna
(Elvira Vigna nasceu no dia 29 de Setembro de 1947. Morreu em 2017.)
Alexandre Cribeiro 3
Chiar? Rachar? Dudar?
Ó final, soio queda
a estúpida pantasía
de querer morrer.
"Acoitelado na Espera", Alexandre Cribeiro
(Alexandre Cribeiro nasceu no dia 29 de Setembro de 1936. Morreu em 1995.)
Ó final, soio queda
a estúpida pantasía
de querer morrer.
"Acoitelado na Espera", Alexandre Cribeiro
(Alexandre Cribeiro nasceu no dia 29 de Setembro de 1936. Morreu em 1995.)
Xosé Trapero Pardo 2
Cando era un rapás, andaba aos niños,
e con man incremente
sin pais deixaba aos probes paxariños,
qu'entras ponlas das arbores, soliños,
piaban tristemente.
Orfiños nos quedamos
cando eramos uns nenos,
y-estrados pol-o mundo, inda choramos
o fogar que perdemos de pequenos...
¡Por eso, cal d'un crimen venme a mente
o recordo dos probes paxariños,
q'entr-as ponlas das arbores soliños
piaban tristemente!
"Lóstregos e Moxenas", Xosé Trapero Pardo
"Lóstregos e Moxenas", Xosé Trapero Pardo
(Xosé Trapero Pardo nasceu no dia 29 de Setembro de 1900. Morreu em 1995.)
O bem-mandado
Mandaram-no à merda. Ele foi. Regressou carregado. E perguntou: - É para todos ou alguém está de dieta?
quinta-feira, 27 de setembro de 2018
Pastelaria e ordem unida
Comeu três brigadeiros de enfiada. Disse-lhes após, enquanto limpava a boca: - Informem o general que eu para a semana não venho.
Josyra Sampaio 2
Àqueles que se dizem
naturalmente irresistíveis
sedutores respondo
Não me cativa o falo
atraem-me certos pomos
dourados
verdes
ou maduros
que exalam certos perfumes
de vida
Intensamente
Josyra Sampaio
(Josyra Sampaio nasceu no dia 28 de Setembro de 1931)
naturalmente irresistíveis
sedutores respondo
Não me cativa o falo
atraem-me certos pomos
dourados
verdes
ou maduros
que exalam certos perfumes
de vida
Intensamente
Josyra Sampaio
(Josyra Sampaio nasceu no dia 28 de Setembro de 1931)
António Jacinto 6
Bailarina negra
A noite
(Uma trompete, uma trompete)
fica no jazz
A noite
(Uma trompete, uma trompete)
fica no jazz
A noite
Sempre a noite
Sempre a indissolúvel noite
Sempre a trompete
Sempre a trépida trompete
Sempre o jazz
Sempre o xinguilante jazz
Sempre a noite
Sempre a indissolúvel noite
Sempre a trompete
Sempre a trépida trompete
Sempre o jazz
Sempre o xinguilante jazz
Um perfume de vida
esvoaça
adjaz
Serpente cabriolante
na ave-gesto da tua negra mão
esvoaça
adjaz
Serpente cabriolante
na ave-gesto da tua negra mão
Amor,
Vénus de quantas áfricas há,
vibrante e tonto, o ritmo no longe
preênsil endoudece
Vénus de quantas áfricas há,
vibrante e tonto, o ritmo no longe
preênsil endoudece
Amor
ritmo negro
no teu corpo negro
e os teus olhos
negros também
nos meus
são tantãs de fogo
amor.
ritmo negro
no teu corpo negro
e os teus olhos
negros também
nos meus
são tantãs de fogo
amor.
António Jacinto
(António Jacinto nasceu no dia 28 de Setembro de 1924. Morreu em 1991.)
Manuel Casado Nieto 2
[...]
O ár somella a beizón
de unha chuvisca de estrelas.
Os rapaciños da escola
rifan á loita frieira:
andan mouros e cristiáns
nas corredoiras da aldeia.
Fanse infindos os camiños.
Fíxose irmá toda a terra.
[...]
Manuel Casado Nieto
(Manuel Casado Nieto nasceu no dia 28 de Setembro de 1912. Morreu em 1983.)
O ár somella a beizón
de unha chuvisca de estrelas.
Os rapaciños da escola
rifan á loita frieira:
andan mouros e cristiáns
nas corredoiras da aldeia.
Fanse infindos os camiños.
Fíxose irmá toda a terra.
[...]
Manuel Casado Nieto
(Manuel Casado Nieto nasceu no dia 28 de Setembro de 1912. Morreu em 1983.)
Os tostões contados
quarta-feira, 26 de setembro de 2018
Ataque à bomba
Disse que ia atacar à bomba, e foi. Anos e anos a fio. Dental. Hoje a bomba é a estação de metro da Trindade e ele era travesti.
Bernardino Graña 2
Vietnam 1972
Cando enfrontados ventos,
cando o ceremonial do caos e asembleas,
cando os grandes negocios, guerra en Asia,
palabras e palabras: París, baile,
cando caen as bombas pola selva
contra o paxaro azul que lembra o ceo,
contra da fe e da casa e da xustiza,
erguéndome pra alá destas murallas
- era cristiá, mil novecentos
setenta e dous, xa primavera,
pero primeiro en tendas, en "percales" -,
sinto o cachón do sangue coma un "geyser"
na indiferencia, nas noticias falsas,
namentres Nixon, Kissinger, Van Thieu
fan sorrintes sermóns, falan e falan,
e en París segue a farsa.
Eu resisto na selva de palabras,
de rañaceos, de fumes, de milleiros
de coches, ruídos, tráficos, papeis,
resisto as mil promesas, as noticias
monótonas, iguais, as esperanzas,
avances, retrocesos, tantalismo,
escenas de matanzas en Quang-Tri,
e, coma voz clamante no deserto,
síntome canso de Vietnam, dos nenos,
mulleres, vellos... mortos, mentres Nixon fala...
E se o sol e a lúa e tanta estrela,
Vietnam, A China, o Polo, o Universo
non son de USA ou Rusia ou dos marcianos,
atrevereime a estar inda en guerrilla
neste noxo de vida, entre as mentiras,
e xurarei que sinto dor e xiria
cando todos me afunden nunha noite,
cando millóns de astáticos
non nos contruban soño e dividendos
se están sen paz, sen pan e sen palabra.
"Non Vexo Vigo Nin Cangas", Bernardino Graña
(Bernardino Graña nasceu no dia 27 de Setembro de 1932)
Cando enfrontados ventos,
cando o ceremonial do caos e asembleas,
cando os grandes negocios, guerra en Asia,
palabras e palabras: París, baile,
cando caen as bombas pola selva
contra o paxaro azul que lembra o ceo,
contra da fe e da casa e da xustiza,
erguéndome pra alá destas murallas
- era cristiá, mil novecentos
setenta e dous, xa primavera,
pero primeiro en tendas, en "percales" -,
sinto o cachón do sangue coma un "geyser"
na indiferencia, nas noticias falsas,
namentres Nixon, Kissinger, Van Thieu
fan sorrintes sermóns, falan e falan,
e en París segue a farsa.
Eu resisto na selva de palabras,
de rañaceos, de fumes, de milleiros
de coches, ruídos, tráficos, papeis,
resisto as mil promesas, as noticias
monótonas, iguais, as esperanzas,
avances, retrocesos, tantalismo,
escenas de matanzas en Quang-Tri,
e, coma voz clamante no deserto,
síntome canso de Vietnam, dos nenos,
mulleres, vellos... mortos, mentres Nixon fala...
E se o sol e a lúa e tanta estrela,
Vietnam, A China, o Polo, o Universo
non son de USA ou Rusia ou dos marcianos,
atrevereime a estar inda en guerrilla
neste noxo de vida, entre as mentiras,
e xurarei que sinto dor e xiria
cando todos me afunden nunha noite,
cando millóns de astáticos
non nos contruban soño e dividendos
se están sen paz, sen pan e sen palabra.
"Non Vexo Vigo Nin Cangas", Bernardino Graña
(Bernardino Graña nasceu no dia 27 de Setembro de 1932)
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Vietnam 1972
Lições de História 32: desde sempre
O desde sempre teve um princípio, e depende: começou,
consoante as crenças de cada qual, com Adão e Eva da Bíblia ou com os
macacos do 2001 - Odisseia no Espaço. Persiste evidentemente um desde
sempre
anterior, perene, mas esse não se sabe, era Deus sozinho e não há
registos. Para os portugueses o desde sempre começou pelo menos com
Afonso
Henriques, esse gabiru de estilo motoqueiro que gostava de vestir saias e
batia na mãe. Na América o desde sempre começou há pouco mais de ano e meio com Donald Trump.
terça-feira, 25 de setembro de 2018
Chove-me dinheiro
"Nunca me tinha acontecido. Estou atolado em dívidas. Ontem fiquei a
dever doze cêntimos na padaria e hoje fiquei a dever cinquenta cêntimos
na peixaria. Por outro lado, devo dois euros (um mais um) à latinha do
Euromilhões, que é para o bacalhau do Natal. O meu nome na praça também
deve andar pelas ruas da amargura. Estou desgraçado, não sei o que
hei-de fazer à minha vida."
Isso aí em cima foi há um mês, dia 25 de Agosto, e tinha o título "Quando o dever chama". Felizmente Deus é grande, tarda mas não falha, escreve direito por linhas tortas, está em toda a parte, tudo vê e tudo ouve, ouviu-me, olhou para mim, por mim, deu-me a mão, a mão do meu Senhor da Galileia, consegui recompor-me e tenho agora uma vida risonhamente desafogada. Só no passado fim-de-semana achei dinheiro três vezes: dois cêntimos na sexta-feira, dois cêntimos no sábado e um cêntimo no domingo. Evidentemente também me saiu o Euromilhões: quatro euros e noventa e oito. Vou trocar de carro.
Isso aí em cima foi há um mês, dia 25 de Agosto, e tinha o título "Quando o dever chama". Felizmente Deus é grande, tarda mas não falha, escreve direito por linhas tortas, está em toda a parte, tudo vê e tudo ouve, ouviu-me, olhou para mim, por mim, deu-me a mão, a mão do meu Senhor da Galileia, consegui recompor-me e tenho agora uma vida risonhamente desafogada. Só no passado fim-de-semana achei dinheiro três vezes: dois cêntimos na sexta-feira, dois cêntimos no sábado e um cêntimo no domingo. Evidentemente também me saiu o Euromilhões: quatro euros e noventa e oito. Vou trocar de carro.
Amar é apanhar piriscas, por exemplo
Foto Hernâni Von Doellinger |
Seria um casal patusco, se não fosse trágico. Desengonçados ambos, cómicos no vestir, feiinhos graças a Deus, testo e panela emparelhados de encomenda. Cirandam pelas ruas de Matosinhos todos os dias, de manhãzinha à noite, de braço dado, num andar de procissão e olhos caídos, passando o chão a pente fino à cata de piriscas reutilizáveis. Ele, posto que zarolho, tem visão de longo alcance ou então algum radar que eu não sei. Vê a beata e faz um gesto com a cabeça. Ela, em obediência canina, dobra-se, apanha a prisca referenciada, entrega-lha e corre a enfiar-lhe novamente o braço, se ele deixar, até à próxima. Ele fuma e ela vai feliz. Os dois são um filme mudo. Isso, uma fita das antigas, num preto-e-branco fatela. Digo, seria um casal patusco, se não fosse trágico: quando lhe apetece, o filhodaputa bate na mulher.
Moelas de coelho, o petisco e o risco
A verdade é só uma: as moelas de coelho têm cada vez mais procura aqui no Tarrenego! No sentido de esclarecer e orientar estudiosos interessados, simples curiosos, ou gastrónomos em geral, segue-se uma despretensiosa súmula dos artigos científicos que ao longo dos últimos anos fomos produzindo a propósito de matéria tão penetrantemente seminal (ou tão seminalmente penetrante):
A minha receita de tomates aux gésiers de lapin
Livre de gorduras e lave em duas águas, uma pode ser das Pedras, as moelas de coelho. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto o ministro da Finanças conta até dez, que é aproximadamente durante duas horas e um quarto. Os ovos de codorniz deviam ter sido tirados antes, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Aqueça a feijoada que sobrou de ontem, encha o prato até à borda e... seja feliz!
Ainda as moelas de coelho
Claro que os coelhos não têm moelas. Claro que não há moelas de coelho. Devo informar, no entanto, que há um sítio em Fafe onde as arranjam muito bem.
Na cozinha em cuecas
O senhor da fibra óptica tocou-me ontem à porta, eram para aí 18h15. Não abri, mas disse-lhe pelo buraco da fechadura que não o podia atender. A verdade é esta: eu estava em cuecas e de avental a cozinhar umas moelas por acaso de coelho, as quais, não é para me gabar, até me saíram uma especialidade, e um homem em cuecas e de avental não é homem que se apresente ao senhor da fibra óptica, a não ser que o senhor da fibra óptica também se apresente em cuecas e de avental.
Irritam-me solenemente as visitas e os telefonemas de todos os vendedores de fibra da cobra, que são mais que as mães e andam todos ao mesmo, e a minha vontade é mandá-los à merda. Mas olho por mim abaixo, ponho-me no lugar deles e resolvo respeitar quem trabalha. Lá abro a porta ou atendo a chamada e... é um erro. São abusadores estes tipos: se mostramos simpatia, começam logo a fazer perguntas atrás de perguntas a que acham que nós temos obrigação de responder, e eu, que afinal não estou para os aturar, respondo-lhes torto, fecho-lhes a porta com um "com licença" ou desligo o telefone com outro "com licença". E depois arrependo-me da malcriadez, fico cheio de remorsos.
Portanto fiz muito bem em não ter aberto a porta, ontem, ao senhor da fibra óptica. Ainda por cima, estou muito bem servido de fibra óptica e as moelas de coelho, para ficarem em condições, devem ser cozinhadas sempre em cuecas.
O sucesso das moelas de coelho
O Dr. Google continua a remeter-me centenas de consulentes que me perguntam se "o coelho tem moela" ou se "há moelas de coelho". Ó galinácea ignorância! Mas é claro que o coelho não tem moela, é claríssimo que não há moelas de coelho, nem de coelha, quantas vezes mais tenho de dizer? Esclareço, no entanto, que quem as cozinha muito bem, às moelas de coelho, é o meu querido amigo Peixoto, em Fafe.
Já não há moelas de coelho
Embora notoriamente os coelhos não tenham moelas, ninguém cozinhava tão bem as moelas de coelho como o meu amigo Peixoto. Fui lá ontem, de fugida, para lhe dar um abraço e duas de letra, mas Peixoto de grilo. O malandro passou o negócio e não me avisou, ninguém me avisou. E devia ter saído em edital camarário, com voto de louvor e medalha: afinal, o Peixoto era uma instituição. Foda-se! Aos poucos vão-se-me acabando os motivos para tornar a Fafe...
Ovos de Páscoa
Os ovos de Páscoa são de coelha, evidentemente.
Notas: "A minha receita de tomates aux gésiers de lapin" - 9 de Setembro de 2011, era então ministro das Finanças o morte-lenta Vítor Gaspar. "Ainda as moelas de coelho" - 20 de Setembro de 2011. "Na cozinha em cuecas" - 20 de Outubro de 2011. "O sucesso das moelas de coelho" - 14 de Março de 2014. "Já não há moelas de coelho" - 23 de Fevereiro de 2017. "Ovos de Páscoa" - 28 de Março de 2018.
Moedas: peço desculpa, não tenho trocado.
A minha receita de tomates aux gésiers de lapin
Livre de gorduras e lave em duas águas, uma pode ser das Pedras, as moelas de coelho. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto o ministro da Finanças conta até dez, que é aproximadamente durante duas horas e um quarto. Os ovos de codorniz deviam ter sido tirados antes, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Aqueça a feijoada que sobrou de ontem, encha o prato até à borda e... seja feliz!
Ainda as moelas de coelho
Claro que os coelhos não têm moelas. Claro que não há moelas de coelho. Devo informar, no entanto, que há um sítio em Fafe onde as arranjam muito bem.
Na cozinha em cuecas
O senhor da fibra óptica tocou-me ontem à porta, eram para aí 18h15. Não abri, mas disse-lhe pelo buraco da fechadura que não o podia atender. A verdade é esta: eu estava em cuecas e de avental a cozinhar umas moelas por acaso de coelho, as quais, não é para me gabar, até me saíram uma especialidade, e um homem em cuecas e de avental não é homem que se apresente ao senhor da fibra óptica, a não ser que o senhor da fibra óptica também se apresente em cuecas e de avental.
Irritam-me solenemente as visitas e os telefonemas de todos os vendedores de fibra da cobra, que são mais que as mães e andam todos ao mesmo, e a minha vontade é mandá-los à merda. Mas olho por mim abaixo, ponho-me no lugar deles e resolvo respeitar quem trabalha. Lá abro a porta ou atendo a chamada e... é um erro. São abusadores estes tipos: se mostramos simpatia, começam logo a fazer perguntas atrás de perguntas a que acham que nós temos obrigação de responder, e eu, que afinal não estou para os aturar, respondo-lhes torto, fecho-lhes a porta com um "com licença" ou desligo o telefone com outro "com licença". E depois arrependo-me da malcriadez, fico cheio de remorsos.
Portanto fiz muito bem em não ter aberto a porta, ontem, ao senhor da fibra óptica. Ainda por cima, estou muito bem servido de fibra óptica e as moelas de coelho, para ficarem em condições, devem ser cozinhadas sempre em cuecas.
O sucesso das moelas de coelho
O Dr. Google continua a remeter-me centenas de consulentes que me perguntam se "o coelho tem moela" ou se "há moelas de coelho". Ó galinácea ignorância! Mas é claro que o coelho não tem moela, é claríssimo que não há moelas de coelho, nem de coelha, quantas vezes mais tenho de dizer? Esclareço, no entanto, que quem as cozinha muito bem, às moelas de coelho, é o meu querido amigo Peixoto, em Fafe.
Já não há moelas de coelho
Embora notoriamente os coelhos não tenham moelas, ninguém cozinhava tão bem as moelas de coelho como o meu amigo Peixoto. Fui lá ontem, de fugida, para lhe dar um abraço e duas de letra, mas Peixoto de grilo. O malandro passou o negócio e não me avisou, ninguém me avisou. E devia ter saído em edital camarário, com voto de louvor e medalha: afinal, o Peixoto era uma instituição. Foda-se! Aos poucos vão-se-me acabando os motivos para tornar a Fafe...
Ovos de Páscoa
Os ovos de Páscoa são de coelha, evidentemente.
Notas: "A minha receita de tomates aux gésiers de lapin" - 9 de Setembro de 2011, era então ministro das Finanças o morte-lenta Vítor Gaspar. "Ainda as moelas de coelho" - 20 de Setembro de 2011. "Na cozinha em cuecas" - 20 de Outubro de 2011. "O sucesso das moelas de coelho" - 14 de Março de 2014. "Já não há moelas de coelho" - 23 de Fevereiro de 2017. "Ovos de Páscoa" - 28 de Março de 2018.
Moedas: peço desculpa, não tenho trocado.
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
Fino como um alho
Burro como um soco. Duro como um corno. Bêbado como um cacho. Quer-se dizer: o soco, o corno e o cacho, que culpa é que têm?...
António Aurélio Gonçalves
Efeito desta fascinação, crescia nela um sentimento de irremediável desastre, de vida sacrilegamente poluída, o qual se exprimia por um grito íntimo de agonia. "A minha vida! Que fiz da minha vida?" E era acompanhado da certeza de que ela seria repelida todas as vezes que, no seu impulso de mulher-borboleta, tentasse aproximar-se da luz.
"Virgens Loucas", António Aurélio Gonçalves
(António Aurélio Gonçalves nasceu no dia 25 de Setembro de 1901. Morreu em 1984.)
Daniel Pernas Nieto 4
Sempre moza
Furtiva moza te vexo
que ven de min t’agasallas;
pol’as meixelas campeas.
Unha bágoa.
I-eres pra todos a moza
recollidiña n-a cama;
post’o sol bicas a terra.
Sempre ufana.
Que das Delores a Nai
n-o Ceo deuche pousada.
"Fala das Musas e Outros Poemas", Daniel Pernas Nieto
(Daniel Pernas Nieto nasceu no dia 25 de Setembro de 1884. Morreu em 1946.)
Furtiva moza te vexo
que ven de min t’agasallas;
pol’as meixelas campeas.
Unha bágoa.
I-eres pra todos a moza
recollidiña n-a cama;
post’o sol bicas a terra.
Sempre ufana.
Que das Delores a Nai
n-o Ceo deuche pousada.
"Fala das Musas e Outros Poemas", Daniel Pernas Nieto
(Daniel Pernas Nieto nasceu no dia 25 de Setembro de 1884. Morreu em 1946.)
Augusto Casas 3
Canzón
A noite é unha fror
para o meu amor!
O río tiña unha noiva,
meu corazón un amor...
Na noite cantaba o río,
cantaba o meu corazón...
Na noite había unha estrela
orfa de olladas e voz,
i o río, ao pé, de xionllos,
ía enfiando a conzón...
A noite é unha fror
para o meu amor!
"Cantigas da Noite Moza", Augusto Casas
(Augusto Casas nasceu no dia 25 de Setembro de 1906. Morreu em 1973.)
A noite é unha fror
para o meu amor!
O río tiña unha noiva,
meu corazón un amor...
Na noite cantaba o río,
cantaba o meu corazón...
Na noite había unha estrela
orfa de olladas e voz,
i o río, ao pé, de xionllos,
ía enfiando a conzón...
A noite é unha fror
para o meu amor!
"Cantigas da Noite Moza", Augusto Casas
(Augusto Casas nasceu no dia 25 de Setembro de 1906. Morreu em 1973.)
Serralves nunca mais
Estou indignado com Serralves. Nunca mais na vida ponho os pés em Serralves. Eu nunca pus os pés em Serralves. Mas agora é que nunca mais.
domingo, 23 de setembro de 2018
Quarteto de cordas
Eram um excelente quarteto de cordas: de sisal, de propileno, bamba e estática. As quatro acompanhavam regularmente a corda vocal. Quando assim, eram o Quinteto da Corda.
Carlos Pimentel 2
Mamãe, me faz flor
É um menino
prestes os quatro anos.
A violência do cancro
le atacou.
É um menino.
Prestes os quatro anos!
Nos tratamentos
na quimioterapia
todo o cabelo caiu.
"Papai sou careca"
brincava...
levando sua mãozinha à cabeça
segurava molhes de cabelos
entregava à mamãe
dizendo:
"mamãe, fazi uma flôr pó papai"
"Pano Barato", Carlos Pimentel
(Carlos Pimentel nasceu no dia 24 de Setembro de 1944. Morreu em 2016.)
É um menino
prestes os quatro anos.
A violência do cancro
le atacou.
É um menino.
Prestes os quatro anos!
Nos tratamentos
na quimioterapia
todo o cabelo caiu.
"Papai sou careca"
brincava...
levando sua mãozinha à cabeça
segurava molhes de cabelos
entregava à mamãe
dizendo:
"mamãe, fazi uma flôr pó papai"
"Pano Barato", Carlos Pimentel
(Carlos Pimentel nasceu no dia 24 de Setembro de 1944. Morreu em 2016.)
sábado, 22 de setembro de 2018
Maus hálitos
Tinha muitos maus hálitos. O tabaco e o vinho, por exemplo. E também coçava os tomates...
António Ramos Rosa 7
Para um amigo tenho sempre
Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
"Viagem Através de Uma Nebulosa", António Ramos Rosa
(António Ramos Rosa nasceu no dia 17 de Outubro de 1924. Morreu no dia 23 de Setembro de 2013.)
Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
"Viagem Através de Uma Nebulosa", António Ramos Rosa
(António Ramos Rosa nasceu no dia 17 de Outubro de 1924. Morreu no dia 23 de Setembro de 2013.)
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Viagem Através de Uma Nebulosa
Belén Feliú
Como farol sombrizo entre dúas canículas
Manterán os homes sabios que o azar non existe. Que non pode existir nun mundo gobernado polo deus único. Que todo está escrito dende os tempos inmemoriais. Tal dirán.
Porque o azar non existe, hoxe estou de novo en Lisboa. E pola mesma razón non podo evitar verme chegando a este porto hai tres anos. Xusto tamén no mes de xullo. Xullo do trinta e cinco.
Véxome leda apoiada na varanda do barco, anceiando terra tras cruzar as augas. Véxome naquel tempo irreal tornando á miña decrépita Europa, esta que hoxe xa non está decrépita senón habitada polos ventos da loucura invasora e demoledora. Eu vina ben disposta para frecuentar as vellas amizades no medio do meu espírito lixeiro. Hoxe, pola contra, espero escapar de Lisboa porque eu si presinto os campos cheos dos que no seu día non puideron dar creto. Dos que cegaron ante a barbarie. Dos que non creron no muro do fascismo que anda a nos cernar e seguiron cara adiante. Atónitos co croque final.
Eu, que vivo do xogo, creo que o azar a penas existe na copa do meu chapeo.
[...]
Belén Feliú
(Belén Feliú nasceu no dia 22 de Outubro de 1961. Morreu no dia 23 de Setembro de 1997.)
Manterán os homes sabios que o azar non existe. Que non pode existir nun mundo gobernado polo deus único. Que todo está escrito dende os tempos inmemoriais. Tal dirán.
Porque o azar non existe, hoxe estou de novo en Lisboa. E pola mesma razón non podo evitar verme chegando a este porto hai tres anos. Xusto tamén no mes de xullo. Xullo do trinta e cinco.
Véxome leda apoiada na varanda do barco, anceiando terra tras cruzar as augas. Véxome naquel tempo irreal tornando á miña decrépita Europa, esta que hoxe xa non está decrépita senón habitada polos ventos da loucura invasora e demoledora. Eu vina ben disposta para frecuentar as vellas amizades no medio do meu espírito lixeiro. Hoxe, pola contra, espero escapar de Lisboa porque eu si presinto os campos cheos dos que no seu día non puideron dar creto. Dos que cegaron ante a barbarie. Dos que non creron no muro do fascismo que anda a nos cernar e seguiron cara adiante. Atónitos co croque final.
Eu, que vivo do xogo, creo que o azar a penas existe na copa do meu chapeo.
[...]
Belén Feliú
(Belén Feliú nasceu no dia 22 de Outubro de 1961. Morreu no dia 23 de Setembro de 1997.)
Abel Botelho 6
Simultaneamente com esta clandestina conspirata nos promíscuos desvãos da locanda do Zé Pequeno, ali a não muitos metros dela, em casa de Afonso de Carvalho Meireles, o arrogante senhor da fábrica do Almargem, se retinira também a pequena sociedade habitual. Numa aparatosa antessala, austera e fria, - té meia altura vestida do seu rodapé de azulejos, para cima um carcomido forro de preciosos gobelins, em capelas, paveias, listrões de flores, mal amparados erguendo-se a entestar com a bisarma piramidal do negro teto apainelado, - abancavam, como de habito, a uma quina, em volta ao grande bufete de ébano torcido: o velho Meireles e a mulher, o comendador Sulpício, o Bernardo Gonzaga, o padre Sebastião. E um pouco a distancia, no outro extremo da diagonal, Adriana, a patrícia filha dos donos da casa, distraída bedelhava ao piano, em vagos acordes, em fugazes e cérulas melodias.
"Amanhã", Abel Botelho
(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)
"Amanhã", Abel Botelho
(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)
sexta-feira, 21 de setembro de 2018
Funcionário brilhoso
Profissional de mão-cheia, empenhava-se a cem por cento no emprego. Fazia tudo e fazia tudo bem. "Tenho muito brilho no meu trabalho", costumava dizer.
Emilio Álvarez Blázquez 5
Por eiqui viñeron
outrora os cantares
cando eu era nano.
Por esta valgada
viñeron os bicos
e as floriñas brancas.
Agora - non chores! -
ven un vento frío,
de aló, de moi lonxe...
"O Tempo Desancorado", Emilio Álvarez Blázquez
(Emilio Álvarez Blázquez nasceu no dia 16 de Abril de 1919. Morreu no dia 22 de Setembro de 1988.)
outrora os cantares
cando eu era nano.
Por esta valgada
viñeron os bicos
e as floriñas brancas.
Agora - non chores! -
ven un vento frío,
de aló, de moi lonxe...
"O Tempo Desancorado", Emilio Álvarez Blázquez
(Emilio Álvarez Blázquez nasceu no dia 16 de Abril de 1919. Morreu no dia 22 de Setembro de 1988.)
Amador Montenegro 3
Por qué canto
Canto, por qué en Galícea,
N-esta bendita e feiticeira terra,
Dend'o val hastr'a serra,
Dend'as penas d'a praya âs altas cumes
Pobradas de remores e de arumes,
Todo canta, facéndolle xustícea,
Dando soaves ôs ventos
Notas mil de gratísemos concentos.
Os inquedos regatos
Que cruzan en cen voltas escumantes
Iste eterno xardín, aló n-os matos
Os xílgaros amantes;
As ondas bramadoras
Que reventan n-as prayas, ou mainiñas
Morrer veñen de mayo n-as tardiñas;
N-os pechos bosques o bramar d'as feras;
o cantar malencóneco e tristeiro
Qu'entona n-o seu barc'o mariñeiro;
As queixas d'a zanfona,
O célteco aturuxo qu'o aire fende
Resoando n-os vales e cañadas;
As notas compasdas
D'a gaita remolona,
Que pol-o imenso espáceo logo estende
O vento garimoso,
Estrofas son de un cántico fermoso.
[...]
"Muxenas", Amador Montenegro
(Amador Montenegro nasceu no dia 30 de Abril de 1864. Morreu no dia 22 de Setembro de 1932.)
Canto, por qué en Galícea,
N-esta bendita e feiticeira terra,
Dend'o val hastr'a serra,
Dend'as penas d'a praya âs altas cumes
Pobradas de remores e de arumes,
Todo canta, facéndolle xustícea,
Dando soaves ôs ventos
Notas mil de gratísemos concentos.
Os inquedos regatos
Que cruzan en cen voltas escumantes
Iste eterno xardín, aló n-os matos
Os xílgaros amantes;
As ondas bramadoras
Que reventan n-as prayas, ou mainiñas
Morrer veñen de mayo n-as tardiñas;
N-os pechos bosques o bramar d'as feras;
o cantar malencóneco e tristeiro
Qu'entona n-o seu barc'o mariñeiro;
As queixas d'a zanfona,
O célteco aturuxo qu'o aire fende
Resoando n-os vales e cañadas;
As notas compasdas
D'a gaita remolona,
Que pol-o imenso espáceo logo estende
O vento garimoso,
Estrofas son de un cántico fermoso.
[...]
"Muxenas", Amador Montenegro
(Amador Montenegro nasceu no dia 30 de Abril de 1864. Morreu no dia 22 de Setembro de 1932.)
O novo livro de José Sócrates
Diz o DN, em título digital: "Sócrates promete escrever livro sobre "traição do PS" na Operação Marquês". E já se sabe quem é que vai escrever o livro que José Sócrates promete escrever?
quinta-feira, 20 de setembro de 2018
Microcontos & outras miudezas 104
Lições de História 30: o maneirismo
O maneirismo desponta na Europa em meados do século XVI e logo começa a ser criticado. A homofobia é, com efeito, uma doença muito antiga.
Lobo aos pobres
Deram o lobo aos pobres. Tarde demais perceberam o lapso.
Está dito
- Só digo isto uma vez!
- O quê?...
- Só digo isto uma vez.
Sismando
Ao contrário do que o próprio nome indica, o Happy Centro é um sítio deveras perigoso.
O cu e cinco tostões
Tinha aquela mania tola de dizer repetida e inopinadamente, como se fosse um mero portanto, "dava o cu e cinco tostões". Nunca lhe aceitaram o dinheiro.
Naquele tempo o Menino Jesus era nosso
As coisas em que a gente acredita quando é miúdo! Eu, por exemplo, acreditava piamente que o Menino Jesus era português - morra já aqui se estou a mentir. Eu ia à missa, ajudava, ouvia com gosto aqueles bocadinhos de Bíblia e fazia a conexão que se impunha: se a Samaritana é de Coimbra, se os apóstolos são todos portugueses - João e Tiago, filhos de Zebedeu, Pedro, André, Mateus, Tomé, Judas, e por aí fora -, se o Jordão é em Guimarães e o Calvário em Fafe, se Roma é uma avenida em Lisboa, se Nazaré e Belém são nossos, então o Menino Jesus também é. Deus é nosso. Se Deus quiser até joga na Selecção e marca os golos que Lhe apetecer. Já grande, e após alguns anos de reeducação nos trabalhos forçados do seminário, passei a olhar com um certo carinho e determinada melancolia para esta minha crença infantil e patriótica. Depois veio Cavaco Silva, em 2006, e eu deixei finalmente de acreditar. Dediquei-me à exegese, à hermenêutica, à toponímia, à geografia e à natação sincronizada sob chuveiro, sem ofensa para os presentes e apenas às primeiras quartas-feiras de cada mês, de três em três meses, dez minutos antes de me deitar.
Grávidas de gémeos
As grávidas de gémeos dão à luz entre 21 de Maio e 20 de Junho.
O maneirismo desponta na Europa em meados do século XVI e logo começa a ser criticado. A homofobia é, com efeito, uma doença muito antiga.
Lobo aos pobres
Deram o lobo aos pobres. Tarde demais perceberam o lapso.
Está dito
- Só digo isto uma vez!
- O quê?...
- Só digo isto uma vez.
Sismando
Ao contrário do que o próprio nome indica, o Happy Centro é um sítio deveras perigoso.
O cu e cinco tostões
Tinha aquela mania tola de dizer repetida e inopinadamente, como se fosse um mero portanto, "dava o cu e cinco tostões". Nunca lhe aceitaram o dinheiro.
Naquele tempo o Menino Jesus era nosso
As coisas em que a gente acredita quando é miúdo! Eu, por exemplo, acreditava piamente que o Menino Jesus era português - morra já aqui se estou a mentir. Eu ia à missa, ajudava, ouvia com gosto aqueles bocadinhos de Bíblia e fazia a conexão que se impunha: se a Samaritana é de Coimbra, se os apóstolos são todos portugueses - João e Tiago, filhos de Zebedeu, Pedro, André, Mateus, Tomé, Judas, e por aí fora -, se o Jordão é em Guimarães e o Calvário em Fafe, se Roma é uma avenida em Lisboa, se Nazaré e Belém são nossos, então o Menino Jesus também é. Deus é nosso. Se Deus quiser até joga na Selecção e marca os golos que Lhe apetecer. Já grande, e após alguns anos de reeducação nos trabalhos forçados do seminário, passei a olhar com um certo carinho e determinada melancolia para esta minha crença infantil e patriótica. Depois veio Cavaco Silva, em 2006, e eu deixei finalmente de acreditar. Dediquei-me à exegese, à hermenêutica, à toponímia, à geografia e à natação sincronizada sob chuveiro, sem ofensa para os presentes e apenas às primeiras quartas-feiras de cada mês, de três em três meses, dez minutos antes de me deitar.
Grávidas de gémeos
As grávidas de gémeos dão à luz entre 21 de Maio e 20 de Junho.
Herberto Sales 6
[...] Fiquei a um canto, aturdido com o que se passava, e a espaços ia à janela, em busca de uma distração. Punha-me a ver, lá fora, as árvores, a rua, e mais além o farol, numa elevação, recortando contra o céu a grande torre erguida diante do mar. De repente, surgiu, de avental, Dr. Freire. Médico particular de meu tio, acompanhara todos os socorros que lhe foram prestados no hospital, depois do acidente. E tudo se precipitou. Todos correram atarantados para o quarto, ficando na sala, apenas, eu e tia Edite, e o Dr. Freire, que a amparava no ombro, a consolá-la, mas chorando tanto quanto ela. Trouxera ele a pior notícia que se poderia esperar: meu tio acabara de falecer. Transcorridos uns minutos angustiados, o grupo voltou a reunir-se na sala. E recordo-me que, na impressão daquela despedida fúnebre, todos sofriam, num pranto silencioso, a perda do grande amigo. Em meio à confusão reinante, sob os efeitos daquele golpe que se abatera sobre eles, retive a lembrança de João Félix, de pé, ao lado da janela, as costas voltadas para a sala, como fitando lá fora um ponto invisível, a levar de quando em quando o lenço aos olhos. Somente eu, muito menino ainda para me capacitar do horror daquele transe, somente eu, que nunca vira morrer ninguém, e nada sabia do significado da morte, somente eu não chorava. Dir-se-ia que eu apenas estranhasse o fato de uma pessoa poder deixar de viver. Mas as lágrimas que então me faltaram vêm-me agora, não aos olhos, mas ao coração, cristalizadas numa dor sincera, ao lembrar como tio Marcelino, entre as palmeiras que lhe alegraram tanto a vida, foi encontrar tão tragicamente a morte.
"Dados Biográficos do Finado Marcelino", Herberto Sales
(Herberto Sales nasceu no dia 21 de Setembro de 1917. Morreu em 1999.)
"Dados Biográficos do Finado Marcelino", Herberto Sales
(Herberto Sales nasceu no dia 21 de Setembro de 1917. Morreu em 1999.)
Quatro dias para descobrir a vitela à moda de Fafe
Foto Hernâni Von Doellinger |
Marque na agenda: de 4 a 7 de Outubro, quinta edição do Festival Gastronómico da Vitela Assada à Moda de Fafe. Em Fafe, na Praça das Comunidades (espaço da feira semanal). Mais informação e programa, aqui.
quarta-feira, 19 de setembro de 2018
Lições de História 31: os reis magos
Os três reis magos eram não se sabe quantos, e na verdade nem eram reis nem magos. Provavelmente inexistiram. Mas isso não interessa. O certo é que, depois de terem adorado o Menino Jesus, em Belém, e de lhe terem oferecido ouro, incenso, mirra, um tambor e um carrinho de bombeiros, dedicaram-se à bola: Gaspar brilhou no Rio Ave, Baltasar fez seis épocas no Sporting e Belchior joga na selecção de futebol de praia.
Alberto de Lacerda 5
Os poemas
envelhecem
Alguns
(muito poucos)
vão deitando raízes
desconhecidas
No ramo mais alto
o bafo dos deuses
"Átrio", Alberto de Lacerda
(Alberto de Lacerda nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 2007.)
envelhecem
Alguns
(muito poucos)
vão deitando raízes
desconhecidas
No ramo mais alto
o bafo dos deuses
"Átrio", Alberto de Lacerda
(Alberto de Lacerda nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 2007.)
Noémia de Sousa
Aforismo
Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.
Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.
Noémia de Sousa
(Noémia de Sousa nasceu no dia 20 de Setembro de 1926. Morreu em 2002.)
Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
Não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.
Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.
Noémia de Sousa
(Noémia de Sousa nasceu no dia 20 de Setembro de 1926. Morreu em 2002.)
Sérgio Milliet 3
Lisboa
A cidade tomou banho
Água suja do Tejo
A Torre de Belém
no poente decadente
sonha com impossíveis caravelas.
Sérgio Milliet
(Sérgio Milliet nasceu no dia 20 de Setembro de 1898. Morreu em 1966.)
A cidade tomou banho
Água suja do Tejo
A Torre de Belém
no poente decadente
sonha com impossíveis caravelas.
Sérgio Milliet
(Sérgio Milliet nasceu no dia 20 de Setembro de 1898. Morreu em 1966.)
Silva Freire 3
Do menino Rondon
saiu de polainas
pulando morrotes
com pé-de-moleque
sem bola e bexiga
rodou em burrica
foi barra-bandeira
virou perereca
pegou carrapato
nem viu tamanduá
socou bem-te-vi
e lavou-se com água-acuri-palmeira
Silva Freire
(Silva Freire nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 1991.)
saiu de polainas
pulando morrotes
com pé-de-moleque
sem bola e bexiga
rodou em burrica
foi barra-bandeira
virou perereca
pegou carrapato
nem viu tamanduá
socou bem-te-vi
e lavou-se com água-acuri-palmeira
Silva Freire
(Silva Freire nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 1991.)
Santos Moraes 2
O homem e seu cão
Na estrada sozinhos viajavam
Um homem e seu cão.
Não viam do dia as sombras
Nem da noite a escuridão.
Despreocupados da ignota origem
Das coisas e dos seres,
Sozinhos viajavam como irmãos,
Um homem e seu cão.
"Tempo e Espuma", Santos Moraes
(Santos Moraes nasceu no dia 20 de Setembro de 1920)
Na estrada sozinhos viajavam
Um homem e seu cão.
Não viam do dia as sombras
Nem da noite a escuridão.
Despreocupados da ignota origem
Das coisas e dos seres,
Sozinhos viajavam como irmãos,
Um homem e seu cão.
"Tempo e Espuma", Santos Moraes
(Santos Moraes nasceu no dia 20 de Setembro de 1920)
You motherfucker
E uma da faca, e duas da faca, e três da faca, e quatro da faca, e assim sucessivamente...
terça-feira, 18 de setembro de 2018
O último dos Bernardinos
Foto Hernâni Von Doellinger |
Já sabem, eu não posso ver na rua bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. (Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas?) Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E portanto cá vai mais uma vez, versão refinada e aumentada:
O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.
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