domingo, 9 de novembro de 2025

Tramado pelos socos

Dores artroses
Ele padecia de "dores artroses". E também de evidente analfabetismo.

Fafe tinha tudo. Fafe até teve um anão que esteve quase a ir para Lisboa e ser famoso. Não foi por pouco, lá nos meados do século passado, mas só em 2011 é que eu soube da história, em boa hora recuperada pelo blogue Falaf - Revista Cultural de Fafe, creio que de Jesus Martinho e que entretanto encerrou actividade ou mudou de instalações. O homem em foco, o nosso pequeno grande herói, como se diz agora, chamava-se José Nogueira, era natural da freguesia de Golães e teve direito a prosa e retrato na edição de 1947 do Almanaque Ilustrado de Fafe.
Num artigo muito à época, com o desajeitado título de "Um exemplar raro", o Almanaque falava do "petiz de 59 anos" que passou ao lado de uma grande carreira derivado a dois pormenores que hoje não teriam importância nenhuma: a ignorância e o calçado. O anão de Fafe, que "nos seus tempos fazia serenatas, mas não casou", nasceu lamentavelmente com pelo menos 80 anos de avanço. Fosse ele do nosso tempo e ninguém sabe se não estaria, por exemplo, à frente de um partido e a dar todos os dias nas televisões.
Porque faltou muito pouco para que o nosso José Nogueira se tivesse transformado numa espécie de atracção de feira a nível nacional, numa celebridade, e é preciso que se note que na altura não havia reality shows nem CMTV, nem TVI, nem Now, nem CNN Portugal, nem comentadores, nem paineleiros, nem YouTube, nem influencers. O "petiz" era mesmo o máximo por si próprio, era sucesso garantido. E Paulo Portas, não vamos mais longe, também foi pelas feiras que começou.
Segundo rezava o Almanaque, o ilustre fafense José Pinto Bastos "andou para levar" o nosso anão "ao grande Coliseu dos Recreios de Lisboa, pelo que teve entendimentos com o benemérito Empresário Ricardo Covões". A coisa, tomai nota, só não foi avante por causa de José Nogueira, tornando ao Almanaque, "ser analfabeto e estar afeito a usar socos e, lá, precisar de usar calçado de polimento, fraque e luvas."
Os socos... Os socos é que o lixaram. O analfabetismo foi desculpa, pelo menos é o que eu acho.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

Nunca digas

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 8 de novembro de 2025

O jeito que me faz o Armand Assante

Sensibilidade e bom gosto
Eleutério tinha um desgosto muito grande no nome que lhe deram. Mudou para Adalsindo e agora é um homem feliz.

Eu tenho um querido amigo de infância que se chama... que se chama... coiso. Tenho também este pequeno problema: hoje em dia, com a idade e tão raras as saltadas a Fafe, nunca me lembro do nome do meu querido amigo de infância. Então inventei o seguinte truque de memória, que me tem ajudado imenso: quando quero falar com ou do meu querido amigo de infância, penso no Assante. Sim, no actor americano Armand Assante. Estais a ver? Armand, tão quase igual ao portuguesíssimo Armando. Por exemplo, de Armando Baptista-Bastos. E pronto, já descobristes e não era difícil, pois não? O meu querido amigo de infância chama-se, evidentemente, Armindo. Isso. Armindo.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

Arrumadinho

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

De vaquinha

De vaquinha para o emprego? No campo, isto é, na lavoura, estou como o outro, faz algum sentido, é a ordem natural das coisas. Agora, na cidade não me parece nada prático. Nem higiénico, verdade seja dita.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

O Sr. Moura era de filme

Como um passarinho
Morreu como um passarinho. Abatido a tiro.

Chega o tempo das gripes, das constipações, da tosse, do nariz entupido, das febres e das dores de garganta, e eu lembro-me do Quinzinho da Farmácia, que tantas vezes me acudiu na minha infância e juventude. O Quinzinho da Farmácia Moura, em Fafe. É. Lembro-me logo do Quinzinho, sorrio, vejo-o como se fosse hoje, ouço-lhe a voz, perfeitamente, as recomendações, mas depois apanho-me a pensar: que estúpido, que injusto que sou, e então o Sr. Moura propriamente dito? Sim. O Sr. Moura da Farmácia Moura, em Fafe. O que pensar e dizer dele?
E então puxo a fita atrás. O Sr. Moura tinha mais de 200 anos e uns óculos muito pândegos e parecia uma figura dos filmes da Walt Disney para crianças. Eu gostava muito de o ver lá ao fundo, na mesa grande do laboratório, a inventar remédios e talvez perfumes, a tomar notas, a fazer contas, a conferir apontamentos em folhas manuscritas e desencontradas, amarelecidas, no meio de uma babilónia de balões, provetas, tubos de ensaio, pipetas, espátulas, pinças, lâminas, balanças, funis, almofarizes e pilões, serpentinas, condensadores, quem dera que também bicos de Bunsen, isso, porque estou a imaginá-los, rodeado por uns armários enormes e antigos, altos do chão até ao tecto, a toda a volta, cheios de frascos, frasquinhos e campânulas, garrafas, garrafões, caixas e caixinhas, sacos, sacas, saquinhos e saquetas que eu adivinhava abundantes de matérias-primas preciosas, fluidos insondáveis, pomadas da casa e a granel, pós de perlimpimpim, pétalas delicadas de flores exóticas, especiarias do fim do mundo, sementes, raízes e plantas raras e milagrosas, aromas intensos e contraditórios, e ao canto, estou em crer, uma vassoura encantada, aprendiza e ajudante, trabalhadeira, à espera das ordens do velho mestre. A mesa e os armários, em madeira, escura, pesada, eram da idade do Sr. Moura. Aquilo dos óculos esquisitos seria decerto obrigatório para os farmacêuticos naquela época, porque o Quinzinho também tinha. O Sr. Moura, parecendo que não, ditava a moda.
Ainda para mais, o bom do Sr. Moura, que morava por cima do estabelecimento, na Rua Montenegro, atendia durante a madrugada, se lhe tocassem à campainha para acudir a uma aflição inopinada, no tempo em que não havia farmácias de turno nem intercomunicadores ou videoporteiro. Com aquele aspecto de velhinho precoce, sábio ancestral, feiticeiro, alquimista, eterno príncipe dos manipulados, o Sr. Moura assomava ao patiozinho do 1.º andar, informava-se do que era, descia as escadas em chinelos de quarto ou enfiado nos sapatos três números acima, com o pijama a espreitar por baixo das calças vestidas à pressa e às vezes embrulhado no roupão, só lhe faltavam a candeia na mão e o barrete de dormir, resmungava por todos os lados, mas, a verdade é só uma, salvava o povo. E essa é que é essa.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

Íamos todos ficar bem

Foto Hernâni Von Doellinger