sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Firme e hirto como uma barra de ferro


Não sei se foi pelos 16 de Maio ou pela Senhora de Antime, talvez fosse pelo Natal ou então ocorreu num dia qualquer, anónimo, um dia sem atributos que o destaque ou recomende. Mas aconteceu. Uma vez, um artista hipnotizador, quiçá mentalista e certamente ilusionista veio dar um espectáculo ao nosso Cinema e eu, que era mocico e pobre, não entrei, não vi, porque era preciso pagar bilhete para entrar. E era uma bonita tarde de sol. Para chamar povo como no Poço da Morte dos 16 de Maio e da Senhora de Antime, o artista hipnotizador, quiçá mentalista e certamente ilusionista fez cá fora, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, o famoso número de conduzir um carro com os olhos vendados, naquele bocado de estrada entre a esquina do Santo Velho e o ateliê do Zé Manel Carriço, exactamente nesse sentido, que era permitido na altura, nem cem metros sempre em linha recta, assim também eu, foi o que então pensei, e no entanto ainda hoje não sei conduzir nem tenho carta de condução, com os olhos abertos ou fechados. O mirabolante número da condução em braille terá sido feito cá fora de mais a mais porque lá dentro decerto não daria jeito, cheguei também a essa importante conclusão aqui atrasado, quando finalmente percebi que o bonito Teatro-Cinema de Fafe, apesar de realmente glorioso e frequentemente "icónico", é muito mais pequeno do que eu o supunha no meu tempo.
Esperei pelas horas à sombra, no passeio em frente, fazendo malha com o cotão dos bolsos, discretamente, encostado à histórica casa-mãe dos Summavielles, como já lhe chamei, e que era habitual sítio de estar. No final da função, os ilustres que pagaram para entrar e ver disseram-me que aquilo lá dentro não prestou, que não valera o dinheiro. Felizmente para eles, a saída era de graça...
O artista talvez fosse o Professor Karma, esse extraordinário e irrefutável hipnotizador de galinhas, lembrei-me agora, mas de momento não estou em condições de o afiançar sem correr risco de levar com um par de desmentidos no focinho. Era, em todo o caso, "um" Professor Karma, ainda que vestisse outro nome mais ou menos estrambólico. O grande Zandinga, haveria eu de conhecê-lo pessoalmente, alguns anos mais tarde, numa noitada para lá de estranha, no Porto, e Alexandrino, o cromo do "firme e hirto como uma barra de ferro" a quem Herman José deu fama, é muito mais recente.
Em Fafe apareciam de vez em quando uns fenómenos assim, prontos a facturar sem serem convidados, e uma ocasião até nos quiserem impingir espectáculos de luta livre nos antigos Bombeiros, com cartazes sugestivos, os sensacionais Tarzan Taborda, José Luís, Carlos Rocha e tudo, vindos directamente do Coliseu dos Recreios, do Parque Mayer e do Pavilhão dos Desportos de Lisboa. Eu conto falar proximamente de mais algumas dessas extraordinarices fafenses, antigas, na linha do artista hipnotizador, quiçá mentalista e certamente ilusionista armado em cego que nos veio enganar a preço eventualmente módico numa bonita tarde de sol. Os fafenses de hoje em dia não fazem ideia da sorte que têm com a programação que lhes colocam actualmente ao dispor, do melhor que pode ser visto e ouvido em Portugal, e digo isto apenas por inveja retroactiva e, por uma vez, sem ponta de cinismo.

P.S. - Este texto tem truque. Já assinalou o Dia Mundial do Hipnotismo e o Dia Mundial do Braille. Hoje é Dia Mundial do Mágico, et voilá...

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Corre, Caixinha, corre!

Foto Hernâni Von Doellinger

O português Pedro Caixinha é treinador do Santos, no Brasil, deste alturas do Natal. Neymar, a estrela cadente, vai voltar ao Santos, está prevista a apresentação para amanhã, e Caixinha diz que sabe muito bem "onde Neymar vai jogar e como vai chegar". Eu prevejo que os dois não vão ficar muito tempo juntos. E um por causa do outro. Escreve-se que Neymar só assinou ou vai assinar para 24 jogos, mas, ainda assim, parece-me que será o treinador o primeiro a sair.

Ai quem me dera...

"Ai quem me dera ter outra vez vinte anos", cantava com sentimento o jovem fadista, estrela que haveria de ser. Tinha apenas sete aninhos, coitadinho, mas, quem o ouvisse, parecia que tinha oitenta...

P.S. - Hoje é Dia da Saudade. No Brasil.

Por mor de

"Ó mor, mor!", dizem elas e dizem eles, namorando-se ou apenas chamando-se, às vezes agredindo-se, querendo dizer, tipo, amor. Elas e eles de todos os géneros e feitios e estratos sociais, um "mor" universal e transversal, ao contrário do que eu cheguei a pensar. Eu supunha que isto do "ó mor!" era conversa rafeira, chunga, patoá de bairro, mas estava enganado, é "ó mor!", tipo, para toda gente, pobre, rica e remediada, analfabeta e doutorada, provavelmente tenho de começar a sair de casa.
É claro que também há o mor que se lê e diz mór, e que é uma redução de maior, e não de amor, que se usa, por exemplo, na frase "assunto da mor importância" e, mais frequentemente, ligado por hífen ao nome que qualifica para indicar superioridade hierárquica ou chefia, ou até suprassumismo, caso de palerma-mor.
Maior, em Fafe, também se dizia moor e, sobretudo, maor, que a minha mãe ainda diz e eu, às vezes, por graça, também. Mas aonde eu queria chegar, e já cá estou, era ao "por mor de", lendo-se e dizendo-se, neste caso, "por môr de", como dizia tão bem a minha querida avó de Basto. "Por mor de" quer dizer "por causa de", "em atenção a", "para", "por amor de" ou, ainda melhor, "derivado a", na pândega, assertiva e estupidamente criticada adaptação de António Lobo Antunes, que eu tanto gosto de usar e abusar. É isso. Vou a correr, por mor de não me atrasar. Ou por outra: corro, derivado à pressa...

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Mistérios de Fafe.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Quem é vivo, sempre aparece

Foto Hernâni Von Doellinger

Nuno Cardoso apareceu hoje a avisar que vai recandidatar-se à Câmara do Porto. O ex-presidente, pelo PS, concorre agora ao cargo, como independente, pelo movimento Pensar o Porto. Nas eleições de 2013, a última vez que tentou, Cardoso levou um valente banho, mas já estava preparado, basta ver a foto que lhe tirei na Praia Internacional, junto ao Edifício Transparente, onde montou tenda de campanha nestes preparos elementares, de calções, descalço e com um enorme sorriso, porque o que é preciso é descontracção.

Tirei a fotografia e desejei boa sorte ao candidato. Nuno Cardoso ofereceu-me uma mãozada e os seus colaboradores acorreram, simpaticamente, prontos para me pegarem na máquina: - Quer tirar uma à beira do engenheiro?
- Não. Porquê? - disse eu.
- Podia querer... - disseram eles.
- Mas não. E o engenheiro quer o meu autógrafo? - perguntei.
- Não, obrigado... - respondeu-me o engenheiro.
E ficámos assim. Quites. Eu sem o retrato com o engenheiro e o engenheiro sem o meu autógrafo. Nenhum de nós perdeu grande coisa.

Ordem unida

A incontinência urinária, tomem bem sentido, não é uma cortesia militar!

P.S. - Hoje é Dia da Incontinência Urinária.

Mijado mas com aprumo

Era um indivíduo que realmente sabia estar. Cada vez que se urinava pernas abaixo, ele dizia, sem perder a compostura: - Rebentaram-me as águas. Levem-me à maternidade, por favor!

P.S. - Hoje é Dia da Incontinência Urinária.

Sonhos molhados, uns e outros

Ultimamente dá-me para sonhar com pessoas que já morreram. Pessoas de quem gosto - familiares e amigos, sobretudo amigos, povo do meu antigamente, gente de Fafe. Sou um simples, acho que são saudades. Mas dizem-me que não, que o assunto é muito mais complicado, especialistas em correntes de ar, astrologia e afins garantem-me que os sonhos querem dizer coisas, significam, e que não enganam. Os sonhos são como o algodão, hidrófilos. Como o algodão do Sonasol. Nos sonhos está lá tudo, e tudo acaba por bater certo. Limpinho.
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger naturais de Fafe e residentes em Matosinhos-sur-Mer. Pela miséria que me tem saído na rifa nos últimos tempos, suspeito que não, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado..., e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência urinária. A vida é tão breve, não foi?
Entretanto, gostaria de aproveitar a oportunidade para comunicar aos meus sonhos que, uma vez que desdenho a Raspadinha, o que me convinha mesmo era o Euromilhões. O jackpot do jackpot, se fazem favor. Agora vou dormir e passo à escuta.

Por falar nisso: sonhar com algodão dizem que é muito bom para a saúde e que traz uma vida cheia de dinheiro e de felicidade. Bem empregue. É preciso ser-se mesmo muito desgraçado para sonhar com algodão. Se ainda fosse com merda... e depois pisá-la. Pisar merda, isso é que é certo, diz que dá sorte, dinheiro.

P.S. - Hoje é Dia da Incontinência Urinária.

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Pipi das Calças Compridas

Foto Hernâni Von Doellinger

A escritora sueca Astrid Lindgren, autora de "Pipi das Meias Altas", morreu no dia 28 de Janeiro de 2002. Contava 92 anos.

Eles andem aqui!

A minha fornecedora de electricidade é chinesa, a minha companhia de seguros é chinesa, a minha fornecedora de água é israelo-americana, o meu banco agora também é chinês, o carro da minha mulher é germano-checo, o nosso frigorífico é italiano, a minha máquina fotográfica é japonesa, a nossa televisão é sul-coreana, a minha cadeira de trabalho é do IKEA, o meu telemóvel é finlandês, este computador é americano, os meus fósforos são suecos de marca portuguesa e produzidos no Brasil. Quer-se diz: eles sabem-me todo!

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Privacidade de Dados e Dia Europeu da Protecção de Dados. E só me apetece rir.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

E se fossem lamber sabão?

Foto Hernâni Von Doellinger

A rede de carros eléctricos da STCP resume-se a duas linhas e chama-se, hoje em dia, Porto Tram City Tour, está-se logo a ver porquê: é produto para camones. A STCP é a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto, E.I.M., S.A. Isso. A STCP informa que o PTCT "é um ex-líbris incontornável da cidade do Porto". Do Porto - como o célebre vinho. E decerto por isso é que o eléctrico da Linha 18, ou Linha da Restauração, exibe garbosamente as cores do irlandíssimo uísque Jameson.
Que fique registado - eu não tenho nada contra o uísque Jameson, antes pelo contrário. Aliás, se o uísque em geral não soubesse a sabão e se eu gostasse de uísque, era Jameson que beberia. E bebi durante algum tempo, por armanço puro e sem gelo.
Aqui há coisa de trinta anos estive lá, na Old Jameson Distillery, em Dublin, ou na The Jameson Experience Midleton, em Cork - isso é que já não sei precisar, porque os ares da Irlanda, pelo que percebi daquela vez, para além de fazerem muito mal ao fígado, também não são grande coisa para a memória. Mas quase que posso jurar que estive lá, e fiquei convencido. O Jameson foi o único uísque que alguma vez pedi pelo nome, mais que não fosse para ex-pli-car ao resto do balcão que eu... estive lá. Depois cheguei à idade de ganhar juízo, e ganhei. Aprendi o vinho.

(Já aqui contei: havia o sabão azul, o sabão rosa e o sabão amarelo. O sabão azul era o sabão macaco, para lavar roupa de barba rija, o sabão rosa já naquele tempo era para peças mais delicadas e o sabão amarelo era para lavar as escadas e os soalhos, que, em muitas casas, depois eram encerados. E havia também o sabão para lamber, que eu nunca soube de que cor era nem que sabor tinha, mas era o que a minha mãe me mandava fazer, - Vai lamber sabão!, quando eu andava à roda dela a arengar conversa sem assunto.)

Posto isto, permito-me continuar inclinado a afirmar, aguardando entretanto comprovação laboratorial, que é com sabão de lamber que se faz uísque. Anda portanto meio mundo a lamber sabão, e era também ao que deveriam dedicar-se as cabeças da STCP que têm a distinta lata de deixar colar publicidade a uísque num "ex-líbris incontornável da cidade do Porto". Do Porto - como o célebre vinho. Nem que fosse o Três Velhotes, que o meu avô da Bomba guardava ou escondia na mala de enxoval, no quarto, mesmo em frente à cama, aferrolhada a sete chaves e ali debaixo de olho, somando todos os anos mais duas ou três, dadas ou abafadas, nunca percebi a razão daquele desenfreado açambarque. E nunca molhei o bico.
Devia ser só o prazer de não dar. E deviam ser milhões de garrafas na mala quando o meu avô morreu. E o meu avô da Bomba deve ter morrido bastante satisfeito.

Eu sei. O vinhinho em questão, modesto mas honrado, chama-se apenas Velhotes, mas o povo, que percebe muito bem os desenhos, chama-lhe desde sempre Três Velhotes. Nunca percebi por que razão produtores e distribuidores não lhe mudam o nome, aproveitando a abébia da publicidade popular. Quanto a isso, porém, Cálem-te boca...

P.S. - Obra do Marquês de Pombal, a lei que estabelece a primeira região demarcada no mundo para a produção de vinho - o vinho do Porto - e cria a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, com sede na cidade do Porto, foi assinada pelo rei D. José I no dia 10 de Setembro de 1756. E 10 de Setembro é, anualmente, Dia do Vinho do Porto. Hoje, 27 de Janeiro, também é Dia Internacional do Vinho do Porto.

domingo, 26 de janeiro de 2025

A revolução tem dias

Conspiravam. Viviam numa satisfatória clandestinidade, numerados de Um a Doze. Mas tinham as suas fontes. Geralmente bem informadas. Eram os meados da década de setenta do século passado. Na reunião de Novembro, pela noute, em absoluto respeito pelas cautelas catacumbais religiosamente estabelecidas, desligaram o aparelho de televisão por alturas do TV 7, ligaram a telefonia no relato de um Espanha-Portugal em hóquei em patins para disfarçar, colocaram os óculos e apagaram a luz, esbarraram-se uns nos outros, partiram meia dúzia de chávenas e três copos, e os óculos, juntaram as múltiplas informações recolhidas à socapa no mundo exterior, assopraram-lhes cerimoniosamente o pó, decantaram-nas, apreenderam as entrelinhas, montaram o Puzzle, que era um cavalo malhado que dava para todos, mas à vez, pediram mais uma rodada de finos e quatro pires de tremoços, e concluíram que estavam prontos e imperiosos. "É preciso fazer o 25 de Abril!", anunciou o Número Um. "E para quando é que marcamos isso?", perguntou o Número Dois.

P.S. - O Movimento dos Capitães reuniu, no Estoril, no dia 26 de Janeiro de 1974. Foram definidos os objectivos políticos do futuro Programa do MFA.

sábado, 25 de janeiro de 2025

O broche, como deve ser visto

Foto Hernâni Von Doellinger

Há quem diga que não há diferença nenhuma entre um broche e um colchete, que são uma e a mesma coisa. Dicionários razoavelmente informados, como, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, sétima edição, que é a que tenho aqui sempre à mão, consideram-nos, ao broche e ao colchete, sinónimos. Eu, com o devido respeito, discordo. Vejamos bem a coisa. Para mim, tirando o "che" que ambos ostentam, não há comparação possível entre um broche e um colchete. Um broche é um broche e um colchete até pode ser um parêntese recto. Um é uma coisa e o outro é, às vezes, um empecilho. Só quem não passou por eles é que se confundirá. Sei do que falo. Também sei de salas de costura, não cuidem, mas, vamos lá, admitindo a paridade, se vosselências forem gramáticos como eu e quiserem tirar a questão a limpo, se tiver de ser um ou outro, se pretenderem escrutinar a minha preferência, perguntem-me então sem tibiezas: broche ou colchete? E eu digo logo e sempre: broche. Broche, evidentemente. Nem imagino que se possa dizer: olha, faz-me um colchete!...

Gramático era o que me chamava o Empregado do Arquivo quando, por azar, calhávamos os dois no mesmo autocarro às voltas pelo Porto, cada qual na sua vida. O Empregado do Arquivo, assim autodenominado, meu camarada em O Primeiro de Janeiro, morava, se não me engano, no Hospital Conde Ferreira, dava três voltas sobre si próprio antes de cruzar a porta do jornal, em Santa Catarina, e era filho do poeta Alberto de Serpa, que lhe batia em público. Isso, Alberto de Serpa, ilustre membro da geração de Orpheu, modernista, presencista, o poeta da poesia livre, do lirismo do quotidiano, enfiava uns generosos sopapos ao filho, sem medo de testemunhas e de acusações de violência por assim dizer doméstica. O rapaz conseguia ser realmente muito chato, irritante até ao quinto caralho, dava cabo da cabeça ao velho, que tentava acompanhar sem sobressaltos o fecho do suplemento literário "Das Artes Das Letras", que eu penosamente revia, mas, quer-se dizer, o rapaz, assim o tratava o pai, era tolinho encartado, estava internado e tudo, e, que diabo, já tinha para aí quarenta anos ou mais...

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Tem de ser, mas não é obrigatório

A gente vai fazer a sua caminhada matinal ali para o Passeio Atlântico, à beira-mar, e encontra-se uma com a outra, ainda que somente de passagem. A gente cruza-se e, à força do hábito, ou talvez educação, cumprimenta-se - "Bom dia!", no primeiro avistamento, "Até amanhã!", no que se supõe seja o último. Ora acontece que as caminhadas matinais ali no Passeio Atlântico, à beira-mar, são feitas em círculo, ida e volta, três ou quatro vezes de uma ponta à outra, o que propicia repetidos reencontros entre a mesma gente que diz uma à outra "Bom dia!" e "Até amanhã!". E a gente tem horror a ficar calada quando se vê, e se já disse "Bom dia!" e ainda não é hora de dizer "Até amanhã!", e como acha que tem obrigação de dizer alguma coisa, então nos entretantos a gente diz "Tem de ser", como se "Tem de ser" fosse uma saudação intermédia entre o olá e o adeus, "Tem de ser", uma boa merda para se dizer seja a quem for como cumprimento, é o que me parece, e eu baixo a cabeça, faço que não vejo, sigo caminho e não digo nada. Passo decerto por malcriado, arrogante, portista desgraçado, mas daqui não saio, daqui ninguém me tira...

Por outro lado, quem diz caminhada, diz corrida, salto à corda, aulas de ginástica e afins, ciclismo, jogos de bola e sem bola, o Passeio Atlântico, no que diz respeito a exercício físico, é pau para toda a obra. O Passeio Atlântico deveria chamar-se, aliás, Passeio Atlético, e estaria muito mais certo, o que só vem dar razão ao ministro Nuno Melo e à sua Organização do Tratado do Atlético Norte.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Educação.

Queijo e vinho sobre a mesa

Ele tinha brilhado durante toda a refeição, falando de boca cheia sobre vinhos, sobre o seu abastado conhecimento a propósito de vinhos. De boca cheia de comida e de muitos caralhos e de diversos foda-se e de um que outro puta que pariu, mastigando e bojardando simultânea e sonoramente, expulsando às vezes alguns bocadinhos de carne, coisa de nada, pequenas migalhas como projécteis. "Vinho? Vinho bom, vinho excelente, arranjo eu no supermercado a menos de um euro a garrafa, arranjo-lhe quantas garrafas quiser, é quantas garrafas quiser!", dizia ele e tornava a dizer, tentando, sem sucesso, convencer a sogra e o sogro, em frente e sem guarda-chuva, perante o evidente orgulho da esposa, ao lado e olhando à volta, ou então seria apenas desconforto, vergonha.
O jovem comensal brilhava, portanto, a grande altura. Dominava realmente a pantera. E vestia uma camisola de um azul duvidoso que dizia à frente, em letras gordas, BOSS. Ele sabia que já tinha conquistado a sala, pelo menos a mim, na mesa contígua, não sou cego nem surdo e era-me impossível escapar ao espectáculo. Ele tinha-me na mão. Resolveu, então, encerrar com chave de ouro a performance e a refeição, mandando vir queijo para sobremesa e aproveitando a oportunidade para voltar a exibir os seus dotes de conhecedor, de especialista. Exigente, pediu informações a respeito do queijo, porque para ele não podia ser um queijo qualquer. Perguntou se o queijo era "flamengo ou Limiano", foi isso mesmo que perguntou, assim, porque, a verdade também era só uma, como passou a explicar, ele não gosta de queijo flamengo, nem o pode ver, quanto mais comer. Flamengo, nunca! Gosta muito é do queijo Limiano, isso sim, "daquele de bola, com buraquinhos", fez questão de registar, como um verdadeiro fromager.
O funcionário do restaurante informou que o queijo da casa era por acaso desse, do bom, queijo Limiano, do de bola, o queijo veio, foi comido com marmelada e toda a gente ficou satisfeita. Evidentemente, o queijo Limiano de bola é queijo flamengo, qualquer um sabe, mas isso são pormenores que só interessam a pessoas que, como eu, não percebem nada de queijo...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Educação.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Nas mãos de Agustina

Foto Gaspar de Jesus

Agustina Bessa-Luís ocupou o cargo de directora de O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987. Digo bem: ocupou o cargo. Fazendo o favor a Diogo Freitas do Amaral, a quem o jornal da portuense Rua de Santa Catarina tinha sido dado pela família Pinto de Azevedo. Agustina entrou e mandou logo mudar de sítio a secretária do gabinete da direcção, a sua secretária de trabalho, para poder apanhar solzinho nas perninhas. É a grande marca do seu consulado. De resto, era bonito de se ver aquela mulherzinha de carrapito e xaile ou lenço pelas costas, sentada quase invisível, debruçada sobre o mesão, com os pés balançando a meio caminho do soalho, manuscrevendo laboriosamente numa letrinha mínima, encarreirada e esdrúxula que era preciso desvendar.
Agustina escrevia para o jornal uns "editoriais" extraordinários, que eram tudo menos editoriais. Eram pérolas literárias, histórias, contos, ensaios, que viam a luz do dia no cantinho superior esquerdo, ou talvez direito, da primeira página.
A directora não sabia nada do jornal e o jornal também não queria saber dela. Um dia o chefe de redacção entrou-lhe no gabinete perguntando-lhe o que fazer com uma notícia eventualmente mais melindrosa e que agitava na mão. É, antigamente as notícias viajavam em folhas de papel. "Eu não sei nada disso", enxotou a directora, "vá falar com o chefe de redacção". E o chefe de redacção disse "Com certeza, senhora directora", e foi falar consigo mesmo, modalidade, aliás, em que ele era e ainda é campeão.
Agustina deixou O Primeiro de Janeiro depois dos pascácios da administração lhe terem feito a sacanagem de publicar, sem lhe dar cavaco, uma edição apócrifa do jornal, a pedido das bolachas Triunfo. A escritora exigiu a demissão dos administradores, que se mantiveram nos seus lugares, agarrados ao tacho como lapas. Saiu ela.
Sei disto tudo e outro tanto porque conheço muito bem o tipo que revia os "editoriais" de Agustina no velho Janeiro e que, vítima do efeito dominó provocado pela honrada renúncia da directora, acabaria por ter de tomar conta da redacção. Conheço-o tão bem que é como se me visse ao espelho.

Hoje é Dia da Escrita à Mão. No Janeiro, onde entrei como revisor, após concurso, lidei também com os extraordinários gatafunhos do filósofo Sant'Anna Dionísio (1902-1991), um velhinho minúsculo, já algo distraído e inesperadamente simpático que nos visitava amiúde, com os bolsos do casaco quase pelos pés atafulhados de folhas de papel manuscritas, riscadas, emendadas e acrescentadas numa letra desengonçada e a bem dizer indecifrável que me calhava sempre a mim, por ordens expressas do chefe da revisão, o sábio Professor Horácio. Sant'Anna Dionísio escrevia uma infindável série de artigos sobre o também filósofo Leonardo Coimbra (1883-1936), que tinha sido seu mestre e era o seu ídolo, por assim dizer. José Augusto Santana Dionísio era talvez o mais notável colaborador do prestigiado suplemente literário do PJ, "Das Artes Das Letras", no meu tempo coordenado pelo poeta Alberto de Serpa (1906-1992), outro incorrigível praticante da escrita manual e evidente filho da mãe, mas desta derradeira idiossincrasia conto dar parte se calhar amanhã.

P.S. - Hoje é Dia da Escrita à Mão.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Bacon, Bacon, Bacon & Bacon

Antes de ser toucinho fumado ou gordura subcutânea do porco, Bacon tinha um primeiro nome: Francis. Foi político, estadista, filósofo empirista, cientista e ensaísta inglês durante os séculos XVI e XVII, sendo considerado um dos fundadores da ciência moderna. Este Bacon era filho de outro Bacon - Nicholas Bacon -, político durante o reinado da rainha Isabel I, notável como lorde guardião do Grande Selo. Ainda Bacon mas agora Nathaniel, converteu-se a colono da Virgínia, EUA, e ficou famoso por liderar uma rebelião nem de propósito chamada Rebelião de Bacon. Isto em 1676. Largos anos mais tarde, nos finais do século XVIII, fez-se John e escultor, e já no século XX, outra vez Francis, dedicou-se à pintura figurativa...

P.S. - Francis Bacon, o cientista, visconde de Alban e barão de Verulam, aliás também referido como Bacon de Verulâmio, nasceu no dia 22 de Janeiro de 1561.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

O mais baixo magistrado da nação

De acordo com a constituição, o mais alto magistrado da nação deve medir para cima de 1,73 m, considerada a altura média dos portugueses homens. Se o mais alto magistrado da nação for por acaso uma mais alta magistrada da nação, então basta medir para cima de 1,62 m, considerada a altura média das portuguesas mulheres. Luís Marques Mendes, que é homem do sexo masculino, mede 1,61 m calçado e, toda a gente sabe, aspira à presidência da república. António Vitorino, que também é homem do sexo masculino, medirá, talvez de palmilhas, mais um centímetro do que Mendes, isto é, 1,62 m, e algum PS aspira a que ele aspire à presidência da república. Eu gostava de ver esta prometedora luta de titãs na campanha para as presidenciais de 2026, que, aliás, já começou. Dir-me-ão, se calhar, que, nas actuais circunstâncias, nem o Luís nem o António obedecem às normas. É fácil de resolver. Faça-se, a este propósito, uma revisão constitucional. Uma revisão da constituição portuguesa. Nada de profundo ou trabalhoso, nada que implique ginásio ou possa dar ideias aos neofascistas mais ou menos hemiciclistas. Apenas um acerto, um ajuste directo, uma revisão constitucional por medida, por baixo. Uma revisãozinha, vá lá. Coisa talvez de doze ou treze centímetros...

Napoleão que era Napoleão media pouco mais de metro e meio, segundo os ingleses, ou um metro e setenta, para os franceses. Sem cunhas, saltos altos, sapatos de plataforma ou outras alcavalas, Silvio Berlusconi media 1,65 m, Dmitry Medvedev mede 1,57 m, Putin mede 1,67 m, Kim Jong-il não se sabe bem, mas medirá entre 1,55 m e 1,65 m, sendo possível que na versão oficial meça dois metros e quarenta, e Nicolas Sarkozy mede 1,65 m, rodeando-se sempre de anões, para parecer alto, isto para além de fazer batota com o calçado.

Alto é o almirante. Alto e para o baile. Mas, pelo menos pela parte que me toca, faria muito gosto que não fosse esse, a altura, o argumento de Gouveia e Melo para concorrer e eventualmente ganhar as eleições a Belém, agora que já conseguiu sacudir-se da Maçonaria. Ou então que se meta com alguém do seu tamanho...
Eu creio que entre nós, portugueses, o conceito de mais alto magistrado está desnecessariamente sobrevalorizado e tende até a promover uma mal disfarçada discriminação. Os tempos são outros, povo meu! Porque não aproveitarmos as próximas presidenciais para elegermos, pelo contrário, o mais baixo magistrado da nação?

A desobra de Deus

Deus criou o homem. E o homem inventou a religião. E talvez não houvesse necessidade...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Religião.

Não praticante

Dizia: - A minha religião é o trabalho. Mas não pratico...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Religião.

Para falar com Deus

Tomou horas, foi para a fila, tirou senha, esperou vez, chamaram-lhe o número, acostou finalmente ao balcão das informações e perguntou: - Para falar com Deus, falo com quem?...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Religião.

Tudo nos conformes!

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Há coisas que não se dizem

"Tudo o que é pequenino é bonito", disse a mulher, caridosa, quando o homem baixou as calças. Porra, e era preciso ser tão simpática?...

domingo, 19 de janeiro de 2025

Crime imperfeito

Tirando as minhas caminhadas matinais à beira-mar, eu passava o dia inteiro enfiado em casa. Sozinho. Quer-se dizer: vivia sem testemunhas até que a minha mulher chegasse a casa depois do emprego. E isso começou a assustar-me, primeiro devagarinho e depois avassaladoramente. Meteu-se-me aquilo na cabeça, tinha medo de ser descoberto. Porque - bem vejo o que acontece nos policiais da televisão - é sempre preciso outra pessoa para se ter um álibi. Que se segue? Mandei a mulher reformar-se, e agora ninguém me apanha...

P.S. - O escritor americano Edgar Allan Poe, presumível criador do modelo moderno de romance policial, nasceu no dia 19 de Janeiro de 1809. No mesmo dia, mas no ano de 1921, nasceu a também americana Patricia Highsmith, outra da corda.

A culpa foi do mordomo

Vinham chegando aos poucos e discretos. August Dupin, Dick Tracy, Miss Marple, Clouseou, Maigret, Mike Hammer, Poirot, Sam Spade, Nero Wolfe, Philip Marlowe, Perry Mason, Ironside, Kojak, Columbo e Pepe Carvalho. Sherlock Holmes apareceu enfim, atrasadíssimo e ofegante e com um restinho de farinha amparo na ponta do nariz. Disse que a culpa foi do mordomo.

P.S. - O escritor americano Edgar Allan Poe, presumível criador do modelo moderno de romance policial, nasceu no dia 19 de Janeiro de 1809. No mesmo dia, mas no ano de 1921, nasceu a também americana Patricia Highsmith, outra da corda.

Dando nas vistas

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 18 de janeiro de 2025

Com o riso não se brinca

Tomem-se todas as precauções. O riso é altamente contagioso. Recomenda-se o uso de máscara.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Riso.

Rio-me por tudo e por nada

Gosto das escorregadelas em casca de banana. É humor de casca-grossa. Mas prefiro os trambolhões em pele de cereja - piada fina. A vida é uma comédia e há quem não saiba...

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Riso.

Bem-disposto e bem-mandado

Mandavam-no: - Vai-te rir prò caralho! E ele ia.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Riso.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Diz que binho, mas num biero

Que bonito que era o falar em Fafe! A criança, sentadinha à mesa, ou à roda da merenda, já julgava que era home e pedia: - Binho! O adulto, responsável, geralmente a mãe, respondia-lhe por desfastio, sem fazer caso: - Diz que binho, mas num biero. Isto é, "constou/disseram/dizem/diz-se que vinham, mas não vieram", e assunto resolvido. Mas dito assim, gramatical, higiénico, a seco, tão aos dias de hoje, lá se foi a graça toda. É preciso molhar a palavra...

P.S. - Copiado do meu novo blogue, Mistérios de Fafe.

A ocorrência

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

A obra-prima

Os especialistas dividem-se e a opinião pública também. Há quem defenda que o melhor trabalho de Miguel Ângelo são os frescos da Capela Sistina. Outros preferem a Baía de Cascais...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Compositor.

Eram quatro e formavam um excelente trio

Eram quatro pessoas em palco: um senhor à viola, uma senhora no clarinete, um senhor ao piano e outro senhor virando-lhe as páginas da partitura. Procurei-lhes os nomes enquanto tocavam Brahms e Mozart com assinalável competência. Os quatro formavam o famoso Trio Tomter, Kam & Ihle Hadland. Isto é: são o senhor Lars Anders Tomter, a senhora Sharon Kam e o senhor Christian Ihle Hadland, por ordem de instrumentos. O mudador de páginas, posto que exímio executante, era provavelmente "o rapaz", como "o moço" das obras que vai ao tasco buscar as minis para os artistas, os pedreiros e trolhas propriamente ditos, e portanto não tem direito a nome...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Compositor.

Allegro ma non troppo

Deu-lhe um baque, assim de repente. Ele a princípio até ficou satisfeito, mas na verdade preferia um rimsky-korsakov.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Compositor.

Pianíssimo

Estou como diz o outro: Bach leve, levemente...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Compositor.

Apontamento musical

Era um pequeno apontamento musical. Estava escrito num post-it.  

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Compositor.

O especialiszt

Ele era o verdadeiro e definitivo especialiszt. Ouvissem-no tocar a "Sonata em mi menor" e perceberiam imediatamente porquê.

Aquela já é velha, aqui, mas é minha. Agora reparem na extraordinária coincidência: hoje é Dia Mundial do Compositor e também foi no dia de hoje, 15 de Janeiro, mas de 1845, que o famoso compositor e pianista húngaro Franz Liszt chegou a Lisboa, onde permaneceu até 25 de Fevereiro, para vários recitais.

Sax, sex, six, sox, sux

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

A ordem natural das coisas

O Paços de Ferreira de José Mota, o Rio Ave de Carlos Brito, o Vitória de Setúbal de Manuel Fernandes, o Nacional de Manuel Machado, o Aves do Professor Neca, o Boavista de Manuel José, a Académica de Vítor Manuel, o Varzim de Henrique Calisto, o Marítimo de Nelo Vingada, o Salgueiros de Filipovic, o Vitória de Guimarães de Jaime Pacheco, o Chaves de Raul Águas, o Belenenses de Marinho Peres, o Farense de Paco Fortes, o Portimonense de Vítor Oliveira, o Gil Vicente de Álvaro Magalhães, o Beira Mar de António Sousa, o Braga de Manuel Cajuda, o Felgueiras de Jorge Jesus, parece impossível, o Riopele e o Tirsense de Ferreirinha, o Infesta de Augusto Mata, o Fafe de Nelo Barros, e o FC Porto campeão. Assim eram as coisas e estava tudo certo, ninguém ia para o Brasil ou para as Arábias abanar a árvore das patacas, eu entendia-me com o futebol e era feliz. Era adepto. Agora? Agora o futebol está de pernas para o ar, chamam-lhe "o jogo" e tem polícia de choque, cordões de segurança, jaulas, petardos, periodizações tácticas e claques profissionais, bandidas e amiúde assassinas, os treinadores duram dois ou três jogos, ninguém é de ninguém, o meu Fafe anda pela terceira divisão, o Sporting foi campeão, rebentaram com o FC Porto e eu também já não estou grande coisa...

P.S. - A Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF) foi fundada no dia 14 de Janeiro de 1986.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Entre o dantesco e o dá-me lume

No tempo do jornalismo, havia um sábio chefe de redacção que afinava solenemente quando os seus repórteres vinham da rua e escreviam que o incêndio era "dantesco". "Não há incêndios dantescos!", vociferava definitivo o mestre, cortando a riscos de esferográfica e raiva a asneirola que tanto o incomodava. Quer-se dizer: "incêndios dantescos", haver, há, mas não propriamente no anexo de uma "ilha" na Rua de Cedofeita, coisa resolvida pelos bombeiros em menos de um fósforo. O velho mestre tinha razão, como princípio de conversa. Porque as palavras querem dizer e têm preço, um valor específico, não devem ser usadas à toa e de graça. Porque um desgraçado dia elas são precisas a sério, e já não contam para nada...

A Divina Comédia

O meu irmão Orlando ofereceu-me pelo Natal, entre outros livros, "A Divina Comédia" de Dante. A tal, edição bilingue, com a requintada e premiada tradução de Vasco Graça Moura. No total, quase 900 páginas. E é o que eu digo: o meu irmão não me grama.

O homem que ia pela sombra

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 12 de janeiro de 2025

Vítor Bruno tem piada

Tem piada Vítor Bruno, o actual treinador da principal equipa de futebol do FC Porto. Tem piada porque, quando fala, fala como se estivesse a escrever no Facebook ou num blogue qualquer, como eu, cheio de redondismos e de outras habilidades linguísticas e semânticas, mas nunca sei do que é que ele está realmente a falar quando fala, quem dera que os seus jogadores saibam, e isso é que interessa.
Também não sei, ninguém sabe, como é que Vítor Bruno prepara os jogos com os seus jogadores, mas sei como é que ele os desprepara e comenta. Comenta-os como comentador, assertivo, com distância e oportuna opinião, e não como actual treinador da principal equipa de futebol do FC Porto, parte da coisa. Ele não tem nada a ver com o assunto, se o assunto correu mal.
Ainda há pouco, na Madeira, após mais uma magnífica exibição de incompetência, explicou: "Se uma equipa como o FC Porto quer ser campeão, tem de ter outra mentalidade e perceber que só com talento não se ganha jogos. Entregámos o jogo praticamente na primeira parte". Mais: "Primeira parte desastrosa. Com uma entrada totalmente ao lado, o Nacional marca na primeira jogada, começou a ganhar duelos e nós com dificuldade a ligar o jogo". E ainda: "Fomos macios perante um Nacional que quis ganhar mais do que nós". E é verdade, tem toda a razão. De Vítor Bruno ainda um dia se há-de dizer que, como treinador, era uma jóia de pessoa.
Agora: o que é que Vítor Bruno, não o bloguista ou influencer, mas o actual treinador da principal equipa de futebol do FC Porto, fez com os seus jogadores, antes e durante o jogo, já avisado pelo humilhante quarto de hora de nevoeiro de outro dia, para que o jogo não fosse assim? E de onde raio lhe veio a ideia de meter um meio-campo de anões, mais de meia equipa, quando o futebol, hoje em dia, é cada vez mais físico, de impacto e bola alta, e os defesas centrais de que dispõe são cada vez mais mecos? "Tudo o que é pequenino é bonito", disse a mulher, irrelevando, quando o homem baixou as calças - mas isto não é "O Senhor dos Anéis", valha-me Deus!...

P.S. - Digo "actual treinador da principal equipa de futebol do FC Porto", à hora em que escrevo.

Fui de comboio prà guerra

Foto O Comboio Volta a Fafe

Podem não acreditar, mas eu também fui de comboio para a guerra, e já a guerra tinha acabado. O comboio é que ainda não. Isto é, naquele tempo até nem era nada de extraordinário ir-se de comboio para a guerra, porque Fafe tinha comboio, mas aqui fica o registo, a nota pessoal. Deram-me, portanto, uma guia de marcha. Embarquei em Fafe num domingo à noite, quase ainda fim de tarde, bem bebido, e cheguei à Amadora na segunda-feira de manhã, sóbrio, a bater à porta da guerra mesmo à hora de abertura do expediente. Era um comboio sobrelotado e verde, quer-se dizer, a esbordar de magalas fardados e sonolentos. Fafe-Amadora, ligação "rápida" e praticamente "directa", com os necessários sobressaltos na Trindade, São Bento e Campanhã, no Porto, e em Santa Apolónia e Rossio, em Lisboa. E de borla. A Pátria tratava-nos bem. Levava-se merendeiro de casa, evidentemente.

Eu fui à guerra e comi 21 gafanhotos de uma vez, uns atrás dos outros. Isso. Quando fiz 21 anos, num dia mais ou menos assim, comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me estou a queixar, embora tenha sido uma canseira andar a persegui-los e a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltinhos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, os insultos do tenente, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos no dia exacto e triste em que fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Mas os gafanhotos. Os gafanhotos eram absolutamente essenciais, alimentavam heróis em construção, forjavam homens de aço, oleavam máquinas de guerra que haveríamos de ser. Eram, repito, absolutamente essenciais, naturalmente curriculares. Os gafanhotos e a pancada.
O meu encontro gastronómico com os gafanhotos teve como cenário os bélicos campos e montes de Santa Margarida durante a chamada "semana maluca" dos Comandos, em que o dia é noite e a noite é dia, com horários e afazeres trocados, incluindo as refeições e a instrução, manobras ainda por cima abrilhantadas pelas famosas prova da sede, prova de choque ou prova de sobrevivência. Famosas e às vezes fatais. Quer-se dizer: pancada, pancada e mais pancada!

Assim eram os Comandos, tropa dita de elite para onde não fui voluntário, é preciso que se note. "Mais logo afocinharemos!", ameaçava o tenente por tudo e por nada, só porque lhe apetecia. E afocinhávamos. Passávamos a vida a afocinhar. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugos descontrolados e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, mais de quarenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que uma vez por outra "as coisas correm mal". Há mortes, mesmo no intervalo da guerra. O treino não podia ser mais completo.
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor palerma. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana, e eu cheio de saudades de Fafe e da namorada no Porto.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche decerto marchariam melhor. Pelo menos parece ser esse o entendimento da nossa Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, que anunciou em Junho de 2021 a autorização para a produção, comercialização e utilização na alimentação em Portugal de sete espécies de insectos - duas de gafanhotos, duas de grilos, duas de larvas e um besouro.

Por aquela altura, no meu breve tempo de Comandos, eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com o trágico David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro Juca Chaves (1938-2023) e que, se bem me lembro, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando!...

P.S. - Este é um velho texto a que pus um nariz novo e republiquei, no meu blogue Fafismos, a propósito do Dia do Exército Português, em Outubro do ano passado. Fafe tinha comboio e era o fim do mundo, deixou de ligar ao comboio, desistiu do comboio, tiraram-lhe o comboio que já ninguém usava a não ser eu, queixou-se muito de não ter comboio e agora tem uma locomotiva de corpo presente, restaurada e bem janota, que até chegou de camioneta. Hoje é Dia da Academia Militar.

sábado, 11 de janeiro de 2025

A apoteose dos campeões de Limoges

Foto enviada por José Freitas

José Freitas teve a amabilidade de enviar-me esta extraordinária "lembrança de David", assim lhe chamou, provavelmente na sequência das minhas mais recentes publicações sobre guarda-redes, aqui no Tarrenego! e num dos meus outros blogues, Fafismos, onde faço questão de enfatizar a personalidade e os ensinamentos do saudoso David Alves. O David, como já contei, fez a sua formação futebolística nos juniores do FC Porto, pelo menos entre 1964 e 1966, acamaradando com craques da categoria de Pavão, Lázaro, Rendeiro, Sérgio Vilarinho, Arlindo, Ernesto, Belo, Alberto, Alípio, se não estou em erro, e Sousa, com quem dividia a baliza, entre outros. Nesta histórica fotografia, de que desconheço o autor e as circunstâncias, mas que agradeço penhoradamente ao José Freitas, o nosso David é o primeiro à esquerda, obviamente de pé.

Até aqui, já nós sabíamos. O texto acima contei-o há dias, sob o título "Lembrando David Alves". Mas há mais. Mais a dizer sobre esta icónica fotografia, que eterniza a equipa de juniores do FC Porto que venceu o prestigiado Torneiro Internacional de Limoges, França, em Maio de 1966, e que foi oferecida pelo próprio David, com dedicatória, "ao devotado portista e amigo Calvelos", isto é, ao nosso Zeca Calvelos, que é nada mais nada menos que o José Freitas que agora, quase 58 anos depois, teve a feliz ideia de no-la enviar. Ali estão, creio não haver engano, da esquerda para a direita, de pé: David, Orlando, Alberto, Bastos, Almeida, Lourenço e Sousa. E em primeiro plano, no mesmo sentido, de joelhos: Luís Pereira, Ricardo, Zé Carlos, Miranda e Lázaro. O treinador seria certamente, por aquela altura, o mítico Artur Baeta.
O FC Porto sagrou-se campeão da quinta edição do famoso torneio francês após vencer, na final, o FC Barcelona. Foi a primeira grande conquista internacional do clube no futebol de formação, e a cidade recebeu os seus rapazes como heróis. Em autêntica apoteose. Como que adivinhando o que haveria de ser o futuro normal, a Baixa encheu-se de uma multidão de adeptos portistas em delírio.
"No dia do regresso a casa, o triunfo valeu uma grande recepção na Estação de São Bento, um cortejo na Avenida dos Aliados e uma cerimónia na antiga sede do clube, onde hoje se localiza o Axis Porto Club Hotel. Tamanha celebração sublinhou ainda mais a importância da conquista dos jovens futebolistas, a quem a organização da prova complicou bastante a vida", faz notar, actualmente, a informação oficial do FC Porto. A taça arrecadada, que por acaso é um jarro certamente da mais fina porcelana, ou não fosse de Limoges o torneio, é bem bonita e pode ser visitada no museu.

P.S. - Lembrando David Alves. Hoje é Dia Internacional do Obrigado. Obrigado, David!

A culpa é sempre do guarda-redes

É goleiro no Brasil e guarda-redes em Portugal, o que em certa medida explica logo à nascença a suprema necessidade e a utilidade sem medida dessa coisa escaganifobética e sonsa a que certos doutores chamam acordo ortográfico. Falando à nossa moda, o guarda-redes é-o, regra geral, porque, no que diz respeito à bola, não serve para mais nada, não joga um caralho, não dá uma para a caixa, é um trambolho, um cepo, um arrocho, e por isso vai para a baliza. Exactamente: o arrocho vai para a baliza. Ali pelo menos não estorva. E grita a torto e a direito "Sainde da frente!, Sainde da frente!", desarrumando imaginárias barreiras no miserável recreio da Escola Conde de Ferreira, no largo da Feira Velha ou entre as aprazíveis tílias do Santo Velho, fazendo todo o cuidado aos vidros das portas da frente da Milinha Modista, isto era em Fafe mas podia ser no Maracanã ou no Prater de Viena, era só pensar e escolher. Sei muito bem do que falo, da maneira de ser arrocho. E falo orgulhosamente por experiência própria, não sendo o único.
Albert Camus, Arthur Conan Doyle, Karol Wojtyla, conhecido como papa João Paulo II, que foi eleito santo, Che Guevara, Julio Iglesias e até Luís Marques Mendes tentaram ser ou foram mesmo guarda-redes. Do Luisinho lembro-me eu muito bem, nas camadas jovens da nossa AD Fafe, que agora tem uma extraordinária SAD que parece que vai para Felgueiras, suponho que na velha carreira, ida e volta todos os dias, como faziam antigamente as pessoas sérias, isto é, as pessoas que têm só uma família e trabalham...
Duas das melhores definições sobre o guarda-redes, digo eu, terão sido elaboradas pelos escritores Eduardo Galeano e Nelson Rodrigues. "Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito", sentenciou o uruguaio. Já o brasileiro Nelson Rodrigues afirmou um dia - "Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários."
Por mim, o que continua a interessar-se particularmente no ofício de guarda-redes é tentar perceber esse mistério do homem que entra em campo como "guardião", sim, chamam-lhe guardião, e sai do campo como "frangueiro", sim, chamam-lhe frangueiro, ao ex-guardião. Frangueiro e filhodaputa. E penso na desgraça que aí andou a respeito de Adán, o intermitente ex-guarda-redes do Sporting.

É preciso que se note, o menosprezo pelo guarda-redes não é de agora, vem desde o tempo da invenção do futebol. O guarda-redes nunca constou de esquemas tácticos, não entra nos fundamentos do jogo. Eram "onze contra onze", ficou estabelecido, mas o guarda-redes, nem que fosse "o melhor do mundo", não contava para o totobola. O guarda-redes era uma espécie de Santa Bárbara (embora esse fosse do andebol), só se lembravam dele quando toava, quer-se dizer, à hora do penálti. De resto, havia o 1-1-8, o WM, o 4-2-4, o 3-4-3, o 4-3-3 e o 3-5-2. Sobretudo. E é só fazer as contas, somar os algarismos e ver que dá dez, não onze. Até W mais M é igual a dez. O "onze contra onze" é uma fraude - eram dez contra dez e era um pau, e a bola era redonda mas nem sempre. Essa é que é essa. E hoje em dia, por mais losangos, faixas e terços do terreno que inventem, a desconsideração continua. O guarda-redes só é necessário porque é preciso um bode expiatório. E, no entanto, ele houve e há grandes guarda-redes, autênticos salvadores da pátria, valha-me Deus!

David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem o italiano Dino Zoff, nem outros de semelhante calibre - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de mais recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. Isso mesmo. O David era inteligente, culto e visionário, carismático, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com um par de décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Pensador por natureza, pedagogo, ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes para assistir. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era um acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Para ensinar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos grandes jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. Lembrei-me dele e deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, numa idade em que devia ser proibido morrer. O David morreu e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...

Já disse. Qualquer dia, quando eu estiver pronto, espero escrever a sério sobre David Alves, o nosso David Alves, guru natural e sem querer de uma ou duas gerações de jovens fafenses. Fomos uns sortudos!

P.S. - Acho que vem a propósito limpar outra vez o pó a este velho apontamento, já aqui publicado, corrigido e aumentado. Hoje é Dia Internacional do Obrigado. Obrigado, David!

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Apaixonados pelo telemóvel

Eu não percebo porque é que ele leva a namorada a almoçar. Ele também leva o telemóvel. Eu não percebo porque é que ela leva o namorado a almoçar. Ela também leva o telemóvel. Ele e ela, à mesa, ignorantes um do outro, calados um contra o outro, passam o almoço de mãos dadas. Mãos dadas ao telemóvel, ele ao dele, ela ao dela. E nem sequer ligam um ao outro.

P.S. - Tudo começou ou acabou no dia 9 de Janeiro de 2007. A Apple apresentou o iPhone, o dispositivo que combinava iPod, telefone e navegador de internet num só aparelho.

Está lá?

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Lágrimas por Marcelo

Junho de 1973. De visita a Londres, Marcelo é recebido por uma manifestação de protesto contra a presença de Portugal nas então chamadas províncias ultramarinas e, de uma forma geral, contra a, por assim dizer, política africana do Governo português. "Portugal no more massacres. Get out of Africa now!", lê-se em alguns cartazes de más-vindas. Eu nem queria acreditar. Fiquei de todo. Os meus olhos, virgens e patrióticos como eu inteiro, viam a preto-e-branco o que se passava no televisor do bar dos Bombeiros de Fafe, que eu tinha só para mim naquela clandestina hora do meio-dia, e a revolta transformava-se-me inesperadamente em choro. Chorei de raiva, dorido pelo Senhor Presidente do Conselho. Como se atreviam aqueles gajos?! Que vergonha! Que falta de respeito! Angola é nossa e ponto final, ainda que o caso fosse particularmente Moçambique.

No regresso a Lisboa, Marcelo foi graças a Deus surpreendido por uma manifestação espontânea muito bem organizada, uma manifestação a bem da Nação, de desagravo pessoal e de apoio às políticas africanas do Governo, uma manifestação contra as manifestações de Londres, mas com muito mais povo, muitas mais camionetas, muitos mais letreiros, muitos mais garrafões de vinho e salpicões e muitos mais Vivas!, toma lá ò camone a ver se gostas...
De certeza que foi gente de Queimadela. Queimadela estava sempre presente! "Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia Marcelo, modestíssimo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas!, assim à moda do nosso Velhinho, o Castro Mendes de Travassós, o trabalhista fafense, "ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e pagai". E depois Marcelo falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, ranhoso, mas agora de auto-satisfação nacionalista, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho, certamente como a viagem, devia ser também de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se querem que lhes diga (e ainda que não queiram), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu, burro como uma porta, pensando que sabia tudo, ainda não sabia nada.

P.S. - O programa Conversas em Família, de e com Marcelo Caetano, estreou na RTP no dia 8 de Janeiro de 1969. Na visita de Caetano a Londres, durante três dias, em 1973, manifestações constantes condenaram o massacre de Wiriamu, em Moçambique, revelado pelo jornal britânico Times.

A fama que vem de longe

Foto Tarrenego!

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

O fim do futebol

Mais dia menos dia, de uma maneira ou de outra, as claques vão conseguir acabar com o futebol. Para mim, já acabaram. Há anos.

PS, o velho saco de gatos

António José Seguro desafiou Mário Centeno a explicar o salário de Hélder Rosalino no Banco de Portugal - 15 mil euros por mês, como consultor da administração. António José Seguro e Mário Centeno são socialistas e potenciais candidatos à Presidência da República. Hélder Rosalino, não, nem é socialista nem candidato à Presidência da República - que só paga, líquidos, menos de 6 mil euros por mês.
Quer-se dizer: Seguro, finalmente com pressa, para marcar posição, começa por atacar o seu camarada de partido, o que só lhe fica bem, no respeito pela longa tradição socialista. Sendo o PS o eterno saco de gatos que é, queimam-se todos uns aos outros, os melhores, e no fim atamancam um candidato da treta, pataqueiro, perdem naturalmente as eleições, e a culpa, já se sabe, é do povo, que é tolo e vai atrás dos outros.
Eu por acaso acho extraordinário que alguém, para além dele próprio, pense que, nos dias de hoje, António José Seguro é um bom candidato a eleições. Seguro, apesar do nome, e não lhe ponho em causa a honradez e o sentido de serviço, é realmente uma personalidade arrebatadora e empolgante, uma figura carismática e mobilizadora, entusiasmante - tanto que, juro e com o devido respeito, de cada vez que o vejo e ouço, faz-me sempre lembrar o Droopy, o cãozinho melancólico dos desenhos animados de Tex Avery, e ainda assim fica a perder.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Mistérios de Fafe


Arranco o ano de 2025 com um novo blogue - Mistérios de Fafe, título que pedi emprestado à obra de Camilo Castelo Branco, quando se assinala o bicentenário do nascimento do escritor. Anunciam o abandono e morte dos blogues, e eu, como de costume em contramão, regenero-os e multiplico-os. Não prometo grandes novidades, é certo, mas ofereço mais do que baralhar e dar de novo. Mistérios de Fafe conterá, para começar, todos os meus textos já publicados sobre vidas, pessoas e acontecimentos do meu tempo de Fafe, isto é, sobre o modo como o recordo ou quero recordar. Todos os textos serão revistos e geralmente aumentados, passados a limpo, por assim dizer, à espera talvez de uso futuro, mas, de momento, sem um objectivo concreto no horizonte. Por outro lado, e sempre que possível, os textos serão expurgados das notas de actualidade a que amiúde estão conectados nos meus outros dois blogues - Tarrenego! e Fafismos (De Fafe, com muito gosto). Nenhum texto será igual à sua versão anterior, isso é garantido.
Mistérios de Fafe será o meu arquivo privilegiado, o meu caderno de apontamentos favoritos,  provavelmente para nada. Memórias pessoais, juvenis e profissionais, velhas amizades, cromos e admirações, cenas gagas ou desgraçadas, "adultérios, homicídios, missionários e outros cirros sociais", como dira Camilo, tudo será ali contado, portanto cuidado, muito cuidado! O ritmo de publicação em Mistérios de Fafe será vagarento, a seu-meu bel-prazer, sem agenda nem calendário, porque esta vida são dois dias e estamos praticamente no Carnaval, que são três.
É esta a ideia. Pelo menos, em princípio...

(Mistérios de Fafe pode ser visto e lido em - https://misteriosdefafe.blogspot.com/)

Cantei os Antunes aos Reis

Ando desencontrado com os dias. Ontem acordei outra vez com uma daquelas dúvidas tolas que me perseguem há que tempos, coisas da idade: seria dia de ir cantar os Reis aos Antunes ou dia de ir cantar os Antunes aos Reis? Atirei a moeda ao ar. Fui cantar os Antunes aos Reis.

Dia de Reis

Hoje é Dia de Reis. O Dia de Presidentes da República não sei quando é. Os calendários são omissos.

Como um camelo

Dizer-se que ele bebia como um camelo, era um abuso. Ele bebia realmente muito, mas todos os dias. 

Rei morto, rei posto

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 5 de janeiro de 2025

O meu amigo racista

Sabeis o que dizem todos os racistas para dizerem que não são racistas, claro que sabeis. Para dizerem que não são racistas, os racistas dizem: - Até tenho um amigo que é preto! É o que eles dizem, sim senhor, os racistas, essas criaturas da pior espécie, mas que fazem parte de nós, e escusais de vir agora chamar-me wokista, simplista, esquerdista, maniqueísta ou antista de qualquer coisa, porque realmente não sou. Se quereis saber, eu até tenho um amigo que é fascista, racista, xenófobo, homofóbico e o resto...

A respeito das Presidenciais

André Ventura é candidato à Presidência da República. Eu não. Somos, de facto, muito diferentes.

Entre mortos e feridos, ninguém se aleijou

Vinho na pipa
couves na horta
se não nos der nada
cagamos na porta

A casa do Sr. Carlos da Cantina, na Recta, tinha no portão um aviso que dizia, mais ou menos, "Atenção! Perigo! Propriedade protegida por arma de fogo!", e aquilo metia-me muito medo, arrepiava-me, perseguia-me, não porque me passasse pela cabeça enveredar pela carreira de assaltante de residências, longe disso, caramba, a minha mãe batia-me, mas porque, na minha natural infantilidade e ignorância, eu ainda não ligava "arma de fogo" a espingarda, caçadeira, metralhadora ou pistola, mas a uma série de armadilhas explosivas e incendiárias que rebentariam sem dó nem piedade em todo o perímetro mal alguém ousasse sequer pôr o pé na vedação, por acaso alta e gradeada. Não haveria sobreviventes. Aquilo não era uma casa, era uma mansão, um cofre-forte ou quartel-general, uma imensa ratoeira, com muito terreno à frente e hei-de crer que também atrás. Eu, ai ninas, mudava sempre para o outro lado da rua quando por lá passava por algum recado.
Portanto, para quem não soubesse que o Sr. Carlos da Cantina era um homem rico, muito rico, o aviso estava lá: - Sou! E é tudo para mim. Isto é: estão a ver o Marco Paulo? No que diz respeito a fortuna, cinjamo-nos a esse departamento, o Sr. Carlos da Cantina devia ser um bocado como o Marco Paulo, mas em careca. Filhos, não posso precisar se tinha ou não, não me lembro deles se os houve, pelo menos não foram das minhas relações, o que só lhes abonaria, mas sei que tinha um afilhado, que também se chamava Carlos, noblesse oblige, creio que morava frequentemente lá no palácio e foi meu colega de escola primária, na Conde Ferreira. Era um moço porreiro, o Carlos, e o que lhe estimo é o que para mim desejo.
A Recta é a Avenida de São Jorge e o Sr. Carlos era da Cantina porque era o responsável-mor pela Cantina da Fábrica do Ferro, grande negócio, uma mina, e era por isso que era rico, muito rico, porque todos os responsáveis da Fábrica do Ferro ficaram ricos, muito ricos, só os operários, evidentemente irresponsáveis, é que ficaram pobres, muito pobres, e se, pelo Natal e por vingança, algum deles, mais atrevido ou revolucionário, resolvesse saltar o muro do shangri-la do Sr. Carlos da Cantina tendo em vista, digamos assim, orientar uma braçada de couves-galegas para a panela da consoada, morria logo ali que se fodia, feito em picado como na Guiné, e essa imagem não me saía da cabeça.
Ainda por cima, uma vez, em Passos, isto é, em Basto, nas minhas inesquecíveis férias de Verão, vi uns rapazes a construírem uma verdadeira "arma de fogo", com um pedaço de madeira, um tubo, arames, pólvora, farrapos e varetas de guarda-chuva aguçadas, que eram as balas. Chamavam àquilo "espoleta" ou, realmente, "esporeta". Era para ir à caça, e foram. Um dos miúdos ficou cego de um olho, já não me lembro se derivado a explosão desorientada ou vazado pelo projéctil - meteu-me impressão, de qualquer maneira. E eu, tornando a Fafe e ao fort knox do Sr. Carlos da Cantina, imaginava milhares de varetas de guarda-chuva a rebentarem-lhe do quintal inteiro e a assobiarem os ares, como se fosse Senhora de Antime, mas flamejantes as varetas, certeiras e mortíferas na descida, levando tudo a eito, a ferro e fogo, desde a Parefa, sejamos razoáveis, pelo menos até ao tasco do Lando da Recta, no fim da mesma, onde a estrada começa a curvar e a descer para Armil. Uma carnificina extraordinária, espectacular, nunca vista em lado algum, nem mesmo no nosso Cinema, que, não desfazendo, era de tiro e queda e de caixão à cova. E a gente a morrer ali desalmadamente, sem tempo sequer para levar a caneca aos queixos.
Ora bem. O que eu digo é o seguinte: conheci muito bem o Sr. Carlos da Cantina e a sua imensa viatura, mas sou capaz de admitir que o filho da puta do letreiro de ponta e mola me tenha indrominado a mente a respeito do homem propriamente dito, que se calhar até era uma jóia de indivíduo, eu que é estou para aqui a fazer filmes. Admito, sim senhor. Em todo o caso, e pelo sim e pelo não, nunca lhe fui cantar os Reis ou as Janeiras, no tempo deles e delas, nessa nunca me apanharam. Eu, que era um solista requisitado por vários e afamados grupos, voz de anjo já com certificação seminarística, tinha medo àquele reclame armado em parvo, já disse, ali nunca ninguém me haveria de ouvir. Cagar-lhe à porta, talvez. Mais do que isso, não.

P.S. - A quadra lá de cima era cantada, em Fafe, no final das Janeiras e dos Reis, espécie de encore caso tardasse a abertura da porta da casa e a moedinha da ordem. E, na verdade, não se dizia "cagamos" mas "caguemos", "caguemos na porta", como se ainda faláramos o velho e indesmentível galego. Era também uma reclamação, um aviso, mas da parte de fora, uma ameaça, quem sabe se alguma vez consumada...

sábado, 4 de janeiro de 2025

Português, taxista, 86 anos de idade

Foto Ivo Borges / O Minho

A notícia é de ontem, do jornal O Minho, e vendo-a pelo preço que a comprei:
"Um táxi desgovernado embateu numa carrinha, derrubou placas de sinalização, postes e iluminações de Natal e ainda embateu num edifício, na rua Dr. José Sampaio, em Guimarães, ao início da tarde desta sexta-feira.
Ao que O MINHO apurou no local, o taxista tem 86 anos, sendo um dos profissionais mais antigos na cidade. Terá tido um acidente na semana passada e trocou de carro. Por ainda não estar habituado à viatura ter-se-á atrapalhado com os pedais, acabando por levar tudo à frente.
O octogenário terá sofrido um ferimento ligeiro e recusou transporte ao hospital.
O acidente causou grande aparato no cidade.
A PSP registou a ocorrência."
Quer-se dizer: Portugal, século XXI, alguém a precisar ou a fazer questão de trabalhar aos 86 anos? E, ainda por cima, como taxista? E pode? E deixam? E é apenas "um dos profissionais mais antigos na cidade"? Há  mais, e mais antigos? Palavra de honra? Não me venham dizer que este país não é para velhos. E os novos, que fujam! Da frente...

Cantemos os reis, cantemos os roques

viva o rei
dos leitões, do cachorro quente, dos queijos e dos beijos
da sardinha assada, do churrasco, do carvão, dos frangos, dos galos
de barcelos
das bolas de berlim, do vinho e da cerveja, dos presuntos, das bifanas
do caracol, das castanhas, das batatas, do pernil
do cabrito e dos cabrões
do bacalhau, da picanha, da laranja, das tripas, dos bitoques
das migas, das caldeiradas
do marisco, das carnes, do cozido, frito, assim e assado
do caldo verde, dos croissants, dos bolos e dos tolos

viva
viva o rei
dos fogões e dos balões, da louça, dos móveis, dos candeeiros
dos tapetes, das alcatifas, dos relógios, dos tecidos, das fardas
dos sapatos, das meias, das malhas, das samarras
dos guarda-chuvas, das luvas, dos chapéus e dos bonés
das gravatas, dos fatos e dos factos
dos sofás

do ioió, do sexo, dos gnomos, do crime, dos filmes
da noite, do jet-set
da pornografia
dos pássaros e das pássaras
das cópias, das fotocópias
dos livros e dos livres 

viva
viva o rei
dos óculos, das limas, das ferramentas, dos salvados, da sucata, do pneu
das tintas e dos tintos
da rádio
do fado, do gado, do rock'n'roll, do baião, do malato, do kuduro, do forró
das flores
do butão e do fecho-éclair

viva
viva o rei
de espadas
de ouros
sobre azuis
de copas
de copos
e de paus
mandados
reispectivamente

viva
viva o rei
dos cartões amarelos e de crédito
das bolas paradas e das assistências
das pole positions e dos afundanços

vivam
vivam
rei pelé, ray charles, ray liotta, rei zinho, rei naldo, rei nunido

vivam
vivam os reis
com o rei na barriga
rei morto, rei posto

viva o rei dos catalisadores

vivam os reis dos cartuchos
dos carimbos, dos caramelos
e dos carburadores

vivam os reis
sem rei nem roque
vivam o roque e a amiga
viva o rock em stock
viva, viva a rei nação
o rato roeu a rolha da garrafa do rei da rússia

vivam
vivam
o rei da selva, o rei-do-mar, o rei pescador
e o rei taxidermista, o rei da montanha
mais o rei dos ares
condicionados

vivam
vivam
o rei momo, o reigrilo
o armindo rei, o dos reis almeida
o rei tor manietador e o reisparta

vivam
vivam
o rei do universo
o cristo-rei
o rei dos reis
o bolo-rei

e os reis
belchior, baltasar e gaspar
magos

(fresquinho, no Peixoto, pela passagem de ano)

vivam o rei
maila sua ex-celsa com sorte
vivam

tchim
tchim

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Outubro de 2011, sob o título "Viva o rei".

O injusto sono dos justos

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

O dia em que envelheci

Sei muito bem o dia em que envelheci. Foi de repente. Sei o ano, sei o mês, sei o dia e até sei a hora, mas tanta exactidão não vem aqui ao caso. Sei o local e sei as circunstâncias. Foi no Hospital de Gaia, numa consulta de medicina do sono, creio que a coisa se chamava ou chama assim. A dado passo da bateria de exames e do minucioso inquérito, a médica perguntou-me, surpreendentemente: - Quando era novo, o Sr. Américo já sentia este cansaço?..
Eu ia caindo de cu. Primeiro. Esta mania de me tratarem pelo meu primeiro nome, Américo, nas consultas e, em geral, em todos os serviços públicos ou privados que exigem a competente apresentação de credenciais. Não sei, chamam-me Américo e eu, que estou tão habituado a chamar-me Hernâni, procuro sempre outro indivíduo ao meu lado, no meu próprio lugar. Sinto-me outra pessoa, um estranho de mim mesmo. Tratar-me por Américo é um privilégio que está reservado ao meus companheiros da escola primária, em Fafe, e mesmo com esses poucos que ainda se lembram de mim nunca sei se é comigo que estão a falar quando falam comigo. O Bergiguinha chama-me Américo com todo o direito, mas diz que chama Américo a todos os homens da minha família. Segundo. "Quando era novo", disse ela. Quando era novo?! Porra, eu ainda sou novo, tentei corrigir gentilmente a senhora doutora, atirando ao ar duas ou três larachas e apanhando-as, a todas, sem deixar cair, disparando-me da marquesa, acto contínuo, num acrobático salto encarpado, com duas piruetas à retaguarda. 
Mas não adiantou. Pelo contrário. A doutora insistia, parecia-me agora que com algum prazer, com uma certa maldade, "quando era novo" para aqui, "quando era novo" para ali, "quando era novo" acima, "quando era novo" abaixo, e quem sou eu para contrariar o veredicto da medicina, a sábia decisão da ciência? 
E foi assim. Nesse dia, naquele preciso momento, fiquei velho para toda a vida, por indicação médica e sem remédio. Eu acabara de fazer 41 anos.

P.S. - Hoje é Dia do Festival do Sono. Coisa de velhos. Por outro lado, de acordo com o nosso Governo, a juventude vai pelo menos até aos 35 anos.

O candidato da Maçonaria

Parece que o almirante Gouveia e Melo vai ser o candidato da Maçonaria à Presidência da República. E não me admirará que ele seja também o candidato, declarado ou não, do Opus Dei. Quer-se dizer: ainda sem vir à tona, o nosso submarinista já faz o pleno.

Aqui estão os Reis à porta...

Os Reis, já seremos tão poucos a lembrarmo-nos, cantavam-se de porta em porta. Na rua por nossa conta. Em Fafe de antigamente, como nos antigamentes de outras terras. Fazia um frio de rachar e éramos crianças lamentavelmente enfiadas em roupa regrada mas limpa e calçado malpropício, desagasalhadas da vida mas livres e felizes ao menos uma noite em cada ano. As palavras saíam-nos tremidas, vaporosas, condensadas, pedras de gelo às vezes, num bater de dentes que, regra geral, passava muito bem por acompanhamento a trancanholas ou reco-reco (ou requerreque, em fafês), até parecia habilidoso arranjo musical feito de encomenda por um artista das nossas bandas filarmónicas. Éramos portanto crianças, pobres, de porta em porta, na rua gelada, a abençoar a noite dos adultos, se possível burgueses e talvezes. Estão a ver o Halloween? Os nossos Reis eram isso mais ou menos, mas a generosidade morava no lado de fora. E o papel higiénico era um luxo e só limpava o cu dos ricos. O nosso, limpávamo-lo ao jornal...

Cantávamos:
"Do dia cinco prò seis,
nós vimos cantar os Reis..."

Cantávamos:
"Correi, ó pastores,
que a noite está bela,
vinde ver Jesus
na formosa estrela."

Cantávamos:
"Aqui estão os Reis à porta..."

Cantávamos:
"Olhei para o céu,
estava estrelado,
vi o Deus Menino
nas palhas deitado.
Nas palhas deitado,
nas palhas esquecido,
filho duma rosa,
dum cravo nascido."

Cantávamos:
"Pastorinhos, pumpum,
do deserto, pumpum,
vinde todos a Belém.
Pumpum.
Vinde ver, pumpum,
o Menino, pumpum,
que Nossa Senhora tem.
Pumpum."

Cantávamos:
"Quem diremos nós que viva
nas folhinhas do codesso,
viva o dono desta casa
que eu por nome não conheço."

E também cantávamos:
"Vinho na pipa,
couves na horta,
se não nos der nada,
cagamos na porta."

É. Era. Não me canso de o dizer. Estão a ver o Halloween? O "típico" Halloween português, essa "tradição" tão fafense do Halloween? Os nossos Reis eram isso mais ou menos, mas em verdadeiro, em realmente nosso. E com música.

Encontro de Cantadores, em Fafe