quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O Dia De

Hoje é o Dia da Água. Amanhã volto ao vinho. 

P.S. - Hoje, 1 de Outubro, é Dia Nacional da Água.

Rhythm and blue

Foto Hernâni Von Doellinger

Lapsus linguae

Entrou de rompante e gritou: mãos ao ar, isto é um assalto! Ficou admirado. O que ele queria dizer era: alto e pára o baile! - desesperado com aquele forrobodó todas as noites no andar de cima. Mas estava dito, estava dito: desceu com um LCD de 100 polegadas, uma mesa de DJ, seis colunas de som surround, um globo espelhado, oito CD do Quim Barreiros, dois tablets, quatro telemóveis, sete relógios - um de sala -, seis pulseiras, cinco colares, doze pares de brincos, dois pacotes de batatas fritas, meia piza familiar de cogumelos e fiambre com extra queijo, um pacote de Sugus morango e framboesa, nove gramas de haxixe, garrafa e meia de vodka, duas canecas de sangria, vazias, três garrafas de Casal Garcia, treze cartões de crédito, um vale de reforma e 837 euros em numerário.

P.S. - Hoje, 1 de Outubro, é Dia do Leitor de CD.

Espanto gastrointestinal

Era vegetariano e cagava postas de pescada. A ciência nunca soube explicar o fenómeno.

P.S. - Hoje, 1 de Outubro, é Dia Mundial do Vegetarianismo.

Sorrio-me por tudo e por nada

Gosto das escorregadelas em casca de banana. É humor de casca-grossa. Mas prefiro os trambolhões em pele de cereja - piada fina. A vida é uma comédia e há quem não saiba... 

Ri-te, ri-te...

Foto Hernâni Von Doellinger

Isto das idades

O quarentão é a média de todos nós. O cinquentão começa a desconfiar da vida. O sexagenário passa a constar das notícias. O septuagenário anda em contramão na auto-estrada. O octogenário é porque se safou no acidente. O nonagenário quer que os quarentões, os cinquentões os sexagenários, os septuagenários e os octogenários se fodam e refodam. O centenário só se realiza de cem em cem anos, e está certo.

P.S. - Hoje, 1 de Outubro, é Dia Internacional do Idoso.

Pianíssimo

Estou como diz o outro: Bach leve, levemente...
 
P.S. - Hoje, 1 de Outubro, é Dia Mundial da Música. Ou Dia Internacional da Música.

Fermata

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Noé faleceu aos 950 anos, inesperadamente

Noé, como todos os homens especialmente abençoados por Deus, era um incorrigível optimista. De hora a hora, dia após dia, durante quarenta dias, espreitava à janela da Arca, desviando a cortininha de chita estampada em degradê, e dizia à mulher: "É só um aguaceiro"... 

Ezequiel, médio visionário

Ezequiel era um bem sucedido sacerdote e profeta na Babilónia, algures pelo século VI antes de Cristo. Apresentava o telejornal e escreveu um dos 73 ou 66 livros da Bíblia, consoante a cisma, constando o livro de quarenta e oito capítulos, o primeiro dos quais começava prometedoramente assim: "E aconteceu aos trinta anos, no quarto mês, a cinco dias do mesmo, que, estando eu no meio dos cativos, junto ao rio Cobar, se abriram os céus, e tive visões de Deus."
O livro vendeu razoavelmente. Arquivistas, bibliotecários e documentalistas catalogaram-no com o assertivo nome de Livro de Ezequiel, para que não houvesse enganos futuros. Respeitado tanto pelo cristianismo como pelo judaísmo, e talvez até pelo islamismo, Ezequiel era porém um infeliz feliz, sentia que lhe faltava algo. Por não ser época de Ferrero Rocher, resolveu então mudar de vida: deixou o negócio das visões, inscreveu-se numa escolinha de futebol e fez-se jogador. Vi-o algumas vezes em campo, pelado, mas sobretudo com a camisola do Lusitânia de Lourosa, corria para o fim o século XX depois de Cristo. 

Sodoma e Gomorra (ou há moralidade ou...)

Os sodomitas, habitantes de Sodoma, ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem constam nos dicionários. A História às vezes é muito injusta.  

Isaías, profeta e avançado

Isaías era profeta. Filho de Amoz, nasceu por volta de 765 a.C., acompanhou os reinados de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias, uma linha média de se lhe tirar o chapéu quando disposta em 4-4-2 losango, casou com uma mulher conhecida apenas pelo nome de Profetisa, que o marido lhe pôs, e tiveram dois filhos: Sear-Jasube e Maer-Salal-Hás-Baz. Está-se a ver, portanto, aonde é que os brasileiros e a Luciana Abreu vão buscar os nomes para os  seus rebentos.
Isaías escreveu um livro para a Bíblia chamado especificamente Livro de Isaías para não ser confundido com o Deuteronómio. A crítica não lhe foi favorável. Diversos especialistas descrêem que a obra tenha um único autor, Isaías ele próprio, vendo-a, antes, como um trabalho a várias mãos e de diferentes épocas, coligido eventualmente no ano 400 a.C, ou até mais tarde. Isaías seria assim uma espécie de escritor dos nossos dias, nome de capa, escritor do que já foi escrito. Por outros.
Amuado com semelhante desmerecimento público, Isaías deixou-se de profecias, abandonou o reino de Judá e veio jogar futebol para Portugal, em 1987. Começou pelo Rio Ave, brilhou no Boavista e foi para o Benfica, onde fez cinco épocas, 178 jogos e 71 golos, ganhou dois campeonatos e uma Taça. Passou pelo Coventry City, de Inglaterra, e tornou cá em 1999, para representar o Campomaiorense. Regressou ao Brasil em 2000 e pendurou as botas em 2003.
Ficaram célebres os seus dizeres numa por acaso flash interview: "Ouvi a palavra do Senhor, príncipes de Sodoma, escutai a lei do nosso Deus, povo de Gomorra."

P.S. - No dia 30 de Setembro de 1452 começou a ser impressa a chamada Bíblia de Gutenberg, considerada o primeiro livro do mundo. Hoje é Dia da Bíblia Católica, crê-se que em homenagem a São Jerónimo, doutor da Igreja e conhecido por ser o primeiro tradutor das Escrituras para o latim vulgar, popularizando assim o seu conteúdo. Já agora, e só para que conste: a minha Bíblia é protestante.

Então Deus disse

Foto Hernâni Von Doellinger

As despesas da corrida

Fez todas as despesas da corrida. Quando no fim lhe apresentaram a conta, ia morrendo do coração... 

Aberração da natureza

Tinha o coração ao pé da boca, coisa feia de se ver. Era uma aberração da natureza, uma atracção de feira.

O clube do coração

Os jogadores de futebol têm um grave problema com o clube do seu, deles, coração: imediatamente por cima do dito coração, no casaco de marca, o bolso da carteira...

Oh, my dicky ticker!

Eu tinha um cardiologista e visitava-o de quatro em quatro meses. Falávamos de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto. E media a tensão, o que é extraordinário! Deixei. Deixei também o urologista e fiquei-me apenas com o dentista, que me sevicia de meio em meio ano, fora os inopinados. É a crise, é a vida. Um destes dias morro e vão dizer que foi por causa de eu ter deixado de falar de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto com o meu ex-cardiologista.

P.S. - Hoje, 29 de Setembro, é Dia Mundial do Coração. 

Os cinco de Liverpool

Nunca será demais dizê-lo: os Bítalas eram um conjunto e cantavam obladi obladá. Eram quatro, sendo que o do bombo tinha cara de morcão, e chamavam-se Bítalas exactamente por terem cabelo grande, mas que afinal não era assim tão grande, como os hippies vieram posteriormente a demonstrar - era apenas um cabelinho amaricado, aparadinho, muito anos vinte, muito tipo Beatriz Costa. Os Bítalas eram ingleses de Liverpool e do mundo. Em Portugal, no tempo em que imperava o corte à tigela (ou malga, consoante a parte do país), quem tivesse o cabelo a roçar as orelhas era Bítala. Eu fui, mas cantava num orfeão de manifesto pendor sacrista e por isso passei ao lado de uma grande carreira.

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Maio de 2016, sob o título "Os Bítalas". Os Beatles eram também conhecidos, entre outras alcunhas, como "Os fabulosos quatro" ou "Os quatro rapazes de Liverpool". Há quem diga que existe um "quinto Beatle", sem unanimidade e com diversos e bons candidatos ao lugar, entre os quaiBrian Epstein,empresário da banda. Seriam assim, vá lá, os cinco de Liverpool...

Falta de ar

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 28 de setembro de 2021

O pecado original

Corria tudo muito bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, uma maldadezinha que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.

Voto inútil

Os anjos não têm sexo. Fizeram voto de castidade?

O sexo dos anjos

O sexo dos anjos é divinal. Os anjos são uns sortudos.

Daniel, profeta e domador de leões

Daniel foi mediano profeta e consta da Bíblia no, exactamente, Livro de Daniel. Trabalhou na Babilónia como vidente e porventura cartomante, interpretando sonhos e visões, e tinha três amigos esquisitamente chamados Sadraque, Mesaque e Abednego. Foi também domador de leões, com um anjo como partenaire, dando início a essa lamentável tradição circense.
A fama chegou-lhe apenas em 1973, quando entrou numa canção do Elton John. 

Like an angel

Canta como um anjo. Toca como um anjo. Dança como um anjo. Dorme como um anjo. Dizem. E eu pergunto: alguém já viu um anjo a cantar, a tocar, a dançar ou a dormir?

P.S. - Hoje, 29 de Setembro, é Dia dos Arcanjos. Miguel, Rafael e Gabriel.

Efeitos secundários

Foto Hernâni Von Doellinger

Perda de bola em zona de construção

Perder a bola em zona de construção é uma chatice. São os taipais, os andaimes, a maquinaria, os buracos, a lama, ferros mais ou menos retorcidos, a obrigatoriedade de uso de capacete, colete de sinalização e botas de biqueira de aço, e ainda por cima é "proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço". Mais vale dizer adeus à bola...

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

E eu estava lá

Foto Tarrenego!

É o que dá mexer em papéis velhos. Um talvez desinteressante jogo de hóquei em patins entre o FC Porto e o Alenquer, suponho que lá pela primeira metade da década de 1980, nas Antas, Pavilhão Américo de Sá de tantas alegrias. O portista que desliza para o golo é, se não me engano, o grande Cristiano Pereira, estrela maior de uma constelação onde brilhavam também, entre outros, Vítor Hugo, Vítor Bruno, Alves ou Domingos Guimarães - isto é, uma superequipa, multicampeões e artistas de circo que dava gosto, a base da selecção nacional.
E eu estava lá. Estávamos lá, na bancada vazia tirante nós: eu, o Miguel pequeno e o Miguel grande. Os papéis velhos devem ser remexidos amiúde, mas com cuidado por causa do pó - estou aqui com os olhos um bocadinho irritados, e quem me veja assim ainda vai dizer que estou a chorar...

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Março de 2018. O FC Porto celebra hoje os seus 128 anos de vida.

Gosto do azul. Azul e branco.

Foto Hernâni Von Doellinger

Pela estrada plana, tuk, tuk, tuk

Foto Hernâni Von Doellinger

A senhora que mora na minha padaria

Há uma senhora que mora na minha padaria. Digo que mora na minha padaria porque, seja qual for a hora a que eu lá vá - oito, onze, meio-dia, quatro ou seis da tarde -, ela está lá, na mesa do canto, ao lado do balcão, quem vai para os lavabos. É exactamente para esse endereço que as Finanças lhe mandam as contas dos impostos: Dona Fulana de Tal, Mesa do Canto Ao Lado Do Balcão Quem Vai Para Os Lavabos, 4450-275 Matosinhos.
As padarias hoje em dia são tudo: café, salão de chá, pastelaria, cervejaria, restaurante, casa de pasto, tasco, pensão, centro de convívio, sociedade recreativa, quiosque, tabacaria, meeting point, posto de turismo, guiché de informações variadas. E vendem de tudo, até pão, o que é curioso. São os tempos que correm: o meu talho também vende ovos, azeite, queijo, vinho, peixe congelado, feijão, ananás e pêssego enlatados. E a minha farmácia tem sempre a hortaliça mais fresca aqui da zona.
Sendo tudo, a minha padaria tem televisão e, portanto, milhões de opiniões. A campeona do palpite é a cliente residente, cuja, para mal dos meus pecados, padece de uma voz agreste e guinchada uma oitava acima como se fosse o Bruno de Carvalho mas ao contrário. Nunca a apanhei calada...
"Não. O meu filho não gosta de andar!...", anunciava um destes dias a senhora que mora na minha padaria. "Podes ter gosto", dizia eu cá para mim. "Um marmanjo com mais de trinta anos e que não gosta de andar. Está bem, Alfreda! Até eu ando, até eu me rendi à caminhada, e que bem que me faz...", continuei com os meus botões.
Mas ela insistia, parecia tola a mulher, cheia de orgulho no calaceiro: - O meu filho não gosta de andar. Não. Não gosta de andar...
"Ai que caralho!", ia eu pensar, quando a senhora que mora na minha padaria: - Não gosta de andar. Uma casa, nem que fosse pequenina, mas com tudo, ele preferia. Uma casinha. Andar, não!

Of course, of course, of course

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 26 de setembro de 2021

Very typical

Foto Hernâni Von Doellinger

O esperanto em português suave

(O Passeio Atlântico de Matosinhos é um mundo. Pelo menos, em dias sem pandemia e de tempo bondoso, é uma razoável amostra de mundo.)

O turista estrangeiro aproximou-se do vendedor de óculos de sol de beira de praia. Era obviamente um turista estrangeiro, só eu e os turistas estrangeiros é que sabemos malvestir assim, nunca me engano a esse respeito. O vendedor de óculos de sol de beira de praia é português dos quatro costados, conheço-o muito bem, há anos, monta banca todos os dias ali em baixo e quando chove é vendedor de guarda-chuvas de beira de praia. É, além disso, ambulante, mas apenas para fugir aos fiscais e à polícia. Ele também percebeu logo que o freguês que tinha pela frente era estrangeiro. Mas pensam que se atrapalhou?, era o que faltava! Nós os portugueses temos connosco esta habilidade extraordinária de nos desenrascarmos sempre, seja em que situação for, cá em casa ou lá fora, mesmo debaixo de água, aprendemos línguas, copiamos hábitos, se calhar inventámos o esperanto, possuímos este poder de desembaraço, improvisação e adaptação, que tomaram muitos, até os Alemães, e que fez de nós um povo das sete partidas do mundo por excelência. Bem, com estas tretas todas, esqueci-me do que queria contar...

Ah!, já sei: o turista estrangeiro. Portanto, o turista estrangeiro abeirou-se do vendedor de óculos português e perguntou: - The glasses, how much?... (Estão a ver como eu tinha razão?).

Foi um clique, um cagagésimo de segundo bastou para que o rapidíssimo cérebro do nosso vendedor formatasse "é inglês, pois então vamos a isso" e mudasse imediatamente de registo, fazendo um entre parênteses na língua do Camões. Cheio de segurança e poliglotismo, respondeu ao camone, marcando ostensivamente as sílabas no mais escorreito acento cockney: - Quali? Quali qui tu quieres?...

Informação turística

Foto Hernâni Von Doellinger

Uma questão de peso

Moro mesmo em frente ao mar, se for para a varanda e me puser de lado. É o que costumo dizer: na minha rua passa o mar. No meu quintal estacionam navios de passeio mediterranicamente atlânticos, paquetes carregados, descarregados e outra vez carregados de turistas rotundos e supersónicos que conseguem turistar o Norte de Portugal inteiro em menos de oito horas. Há quem chame ao meu quintal, por inveja, Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões. Mas não: é o meu quintal!
Noutro dia estacionou-me ali em baixo o Costa Pacifica. São mais de 290 metros de navio para 3.780 passageiros. Os paquetes que me batem regularmente à porta têm-me dado que pensar, suscitam-me reflexões de pequena e média profundidade que aqui humildemente partilho com os meus queridos leitores. E daquela vez vieram-me à cabeça os cus. Os cus que os cruzeiros descarregam e recarregam.
Cu de turista não é brincadeira, já repararam? É traseiro de bitola larga e se for cu americano então ocupa o mundo inteiro, incluindo o México e o Brasil, menos a Alemanha e a Rússia. Até parece que para se ser turista - turista encartado - é preciso ter um cu daqueles. E o cu alemão e o próprio cu russo também para lá caminham, não querem ficar atrás. O que diz tudo a respeito dos cus.
Imagino que sejam muito ricos os camones com que me cruzo nas bordas do Porto de Leixões - eles a saírem todos cheios de good morning e eu, de passagem, "desculpem lá a shit de dog na sola da sandália, é good luck, com os cumprimentos de Matosinhos City
". Tão turistas e tão prendados de cu, têm de ser muito ricos. Engordam e viajam porque podem. Se calhar são todos reformados da administração do Millennium BCP ou do BES mas não querem que se saiba.
Os turistas. Chegam e parece-me sempre um congresso de cus com sala de espera no Passeio Atlântico, que se vê à rasca para aguentar semelhante pesadelo. Toneladas e toneladas de bagagem extra em traseiros colossais e gingões mesmo à frente do meu nariz e que até naufragam tuque-tuques. Confesso: é um espectáculo que não pára de maravilhar-me. Olho para os cus e olho para o barco, e só me apetece elogiar o génio humano, os avanços da ciência, os milagres da indústria, a arte e o engenho dos modernos fazedores de navios, supremos desafiadores das leis da física. Fascina-me aquilo que não consigo compreender. Para os cus e para o barco, olho. Olho para o barco e penso: como é que aquilo não vai ao fundo com tanto cu descomedido lá enfiado?


P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Novembro de 2012. Hoje, 27 de Setembro, é Dia Mundial do Turismo.

Bye mas bolta!

Foto Hernâni Von Doellinger

E um grande tenkiu para ti também, pá!

De manhã eu vou ao peixe. Cada vez mais de manhãzinha. E ontem de manhã, de manhãzinha, estava um camone numa das duas mesas de passeio de um daqueles pequenos cafés à beira da lota de Matosinhos. Vi que era camone à distância, por causa da enorme mochila que lhe descansava ao lado e do mapa na mão que ele olhava e revirava, e percebi logo que não me ia safar. Tenho cara de posto de turismo encerrado para obras, não é para me gabar, e eu que ia ao carapau, saiu-me o bife, se me permitem o chiste de carregar pela boca.

(A marginal de Matosinhos, do princípio do Passeio Atlântico até lá aos fundos do Porto de Leixões, é hoje em dia um dos mais frequentados corredores do Caminho de Santiago, palmilhado a solo ou aos magotes por camones de várias línguas e feitios. A passagem pelo Senhor do Padrão é - devia ser - obrigatória.)

Mas que se passou: o camone viu-me sem mapa e também de mochila às costas (e eu não sei andar sem mochila, parece que me desequilibro sem ela) e portanto achou que eu é que sabia. Perguntou-me então du iu spikinglixe? E eu respondi-lhe o que sempre respondo aos gringos em Portugal: e tu, sabes falar português? 

Não há nada que chegue ao estrangeiro

A criança chorava com evidente entusiasmo. Gritava, gritava, gritava. Ranhava, ranhava, ranhava. E esperneava, esperneava, esperneava. Dava mesmo gosto ouvê-la. Que competência! Que performance! Que espectáculo! Que profissionalismo! Que categoria! Que pulmões! Que ginástica! Via-se logo que era uma criança estrangeira, alimentada desde a barriga da mãe a iogurtes, papas e boiões.
Situemo-nos, porém, porque isto não é ficção: estamos na chamada Rotunda do Castelo do Queijo, também desconhecida como Praça de Gonçalves Zarco, no Porto, exactamente na paragem dos autocarros descapotáveis para turistas de mapa nas mãos, e assim estavam os pais babados do seu magnífico filho chorão. Não era, portanto, difícil de adivinhar, mas eu quis tirar a coisa a limpo, por defeito profissional, e perguntei no meu melhor inglês: vosotros être camones, iesse ol raite? E eles responderam-me que efectivamente, camones, mas versão bife, de Bristol.

(Para quem não sabe, Bristol é uma habitadíssima cidade do sudoeste inglês e foi uma sapataria muito jeitosa em Fafe, a sapataria do Magalhães "Bristol", onde o Senhor Ferreira do Hospital me mandou uma vez ir lá escolher um par de sapatos que ele depois pagaria. O Senhor Ferreira do Hospital foi meu mestre e amigo, e era um homem extraordinário.)

Ora bem. Os pais da criança confirmaram-me o que eu já sabia. Eram ingleses, os pais, e o pequeno ranhoso também. E era a primeira vez que estavam em Portugal, há dois dias. O que fez aumentar ainda mais (como se "aumentar ainda mais" fizesse algum sentido), dizia, o que fez aumentar ainda mais a minha estupefacção, para não dizer uma palavra mais simples: é que aquela criança - criança inglesa retinta, filha de pais ingleses retintos, de Bristol - chorava em fluente português, perfeito, sem pontinha de sotaque. O que é extraordinário. Em apenas dois dias...
É o que eu digo: não há nada que chegue ao estrangeiro. 

P.S. - Hoje, 26 de Setembro, é Dia Europeu das Línguas.

This is your captain speaking

Foto Hernâni Von Doellinger

Os que deixaram de fumar

Bonifácio Terrafunda era coveiro no cemitério da Junta de Freguesia de Sabugal do Meio há mais de quarenta anos. Funcionário exemplar, pai de duas famílias. Um dia, para o que lhe havia de dar, resolveu dividir o campo-santo em dois talhões devidamente assinalados, um para "Fumadores" e outro para "Não fumadores", como nos aviões antigamente. A coisa veio nos jornais, quer-se dizer, no Correio da Manhã. Anacleto Boavida, jovem presidente da autarquia, passou-se dos carretos, instaurou inquérito e competente processo disciplinar, meteu advogado e testemunhas, imagens do YouTube, e o velho coveiro foi inapelavelmente remetido para o olho da rua, por indecente e má figura, isto é, despedido com justa causa. - É que não se admite, com os mortos não se brinca! - justificava o fulgurante autarca, alto e bom som, para quem o quisesse ouvir, que era a esposa. E rematava: - Aquela gente, se lá está, é porque, por definição, deixou toda de fumar...
 
P.S. - Hoje, 26 de Setembro, é Dia Europeu do Ex-Fumador.

Litlle smog

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 25 de setembro de 2021

Eu só queria ir à farmácia

17h15. Fui à farmácia e perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim assim e queria ver se me podiam dar qualquer coisa para o meu problema". O meu problema era no olho. Direito. "Ora mostre lá o olho", e eu mostrei, "ui, vai ter de ir ao médico", e eu fui. A pé, da Rua Brito Capelo até ao Centro de Saúde de Matosinhos, que é um pedaço acima da Câmara Municipal.
No centro de saúde fui atendido em menos de uma hora. Perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim assim, fui à farmácia, na farmácia mandaram-me ao médico, e eu vim". "Ora mostre lá o olho", e eu mostrei, "vai ter de ir imediatamente ao oftalmologista, mas, como no Hospital Pedro Hispano não há urgência da especialidade, pegue lá esta carta e vá ao Hospital de Santo António", e eu fui. A pé até à Avenida Serpa Pinto, apanhei o autocarro 500 até ao Castelo do Queijo, esperei uma hora pelo autocarro 200 e lá cheguei ao Santo António quando o trânsito me deixou.
Na urgência fui atendido em menos de um quarto de hora. Perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim assim, fui à farmácia, na farmácia mandaram-me ao médico, o médico mandou-me aqui, e eu vim". "Ora mostre lá o olho, encoste aí o queixo e olhe para esta luzinha", e eu mostrei, encostei e olhei. "Tome lá esta receita, são umas gotas para colocar de duas em duas horas, vá já à farmácia", e eu fui. Estava de volta à casa de partida, passava pouco das 21h45.
E tudo isto pelos módicos cinco euros da taxa que paguei no centro de saúde, mais as viagens e os quase catorze euros das gotas, que afinal nem precisavam de receita médica, e que estou a pensar meter como despesas de representação.

Sei que tenho o melhor serviço nacional de saúde do mundo. Raramente lhe dou uso, mas frequento-o assiduamente e vivo de olhos abertos. Querem saber o que é o nosso Serviço Nacional de Saúde? Não são taxas moderadoras e isenções. São as pessoas: os auxiliares, os médicos e os enfermeiros, que todos os dias trabalham no arame e sem rede, que já lhes tiraram há muito, e fazem funcionar uma coisa que na verdade já nem existe, ou, se quisermos ser bondosos, vai morrendo aos bocadinhos. A minha urgência pareceu-me uma desnecessidade, mas as pessoas quiseram fazer bem - são profissionais. E faço figas para que me tratem sempre assim mas palminhas. Em todo o caso, palavra de honra, eu só queria ir à farmácia.

P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Setembro de 2014. Quer-se dizer: uma homenagem aos profissionais do SNS com quase seis anos de avanço em relação ao novo coronavírus. E continuo sem arrepender-me de ter razão. Por outro lado, hoje, 26 de Setembro, é Dia Nacional do Farmacêutico.

Serviço pré-venda

Foto Hernâni Von Doellinger

Oh, what a beautiful morning!

Mas que esplêndida manhã de sábado! Ruas sem altifalantes nem buzinões, camiões de recolha do lixo numa inusitada lufa-lufa, ecopontos num brinquinho, senhores varredores que se multiplicam aparecidos de parte incerta, a terra e a areia arrastadas pela tempestade nocturna para passeios e estradas já cá não estão, só as marcas, para que se saiba, a polícia municipal, inesperadamente discreta e cabisbaixa, nem sequer sai dos carros, por forma a evitar sarilhos vá-se lá saber a quem. Que sossego! Que limpeza! Que bom que é hoje ser véspera! Que bom que é amanhã ser dia daquilo de que não se pode falar hoje!...

Interlúdio fotográfico 361

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Eles não sabem que o sono

Dormia, por norma, dezasseis ou dezassete horas, consoante fossem dias ímpares ou pares, respectivamente. Ia ao emprego marcar o ponto de saída e era alvo de todas as críticas, atacado por patrões, colegas e até pelo sindicato. Defendia-se, filosoficamente: - Vocês não sabem que o sono é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer?... 

Tinha sonhos mas comeu-os

Tinha muitos sonhos. Comei-os todos de enfiada e ocorreu-lhe uma caganeira das antigas. É para aprender a não ser lambão... 

Tinha um sonho mas já não tem

Tinha um sonho muito antigo. Levou-o à Feira da Vandoma. Deram-lhe euro e meio por ele.

Os sonhos são como o algodão, hidrófilos

Ultimamente dá-me para sonhar com pessoas que já morreram. Pessoas de quem gosto - familiares e amigos, sobretudo amigos. Sou um simples, acho que são saudades. Mas dizem-me que não, que o assunto é muito mais complicado, especialistas em correntes de ar garantem-me que os sonhos querem dizer coisas, significam, e que não enganam. Como o algodão do Sonasol. Nos sonhos está lá tudo, e tudo acaba por bater certo. Limpinho.
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger naturais de Fafe e residentes em Matosinhos-sur-Mer. Pela miséria que me tem saído na rifa nos últimos tempos, suspeito que não, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado..., e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência urinária. A vida é tão breve, não foi?
Entretanto, gostaria de aproveitar a oportunidade para comunicar aos meus sonhos que, uma vez que desdenho a Raspadinha, o que me convinha mesmo era o Euromilhões. O jackpot do jackpot, se fazem favor. Agora vou dormir e passo à escuta.

Por falar nisso: sonhar com algodão dizem que é muito bom para a saúde e que traz uma vida cheia de dinheiro e de felicidade. Bem empregue. É preciso ser-se mesmo muito desgraçado para sonhar com algodão. Se ainda fosse com merda... 

P.S. - Hoje, 25 de Setembro, é Dia Mundial do Sonho.

O tamanho dos sonhos é, geralmente, 45x62

Foto Hernâni Von Doellinger

Vou na ribeira do rio

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

As eleições perderam a piada

Houve um tempo, a seguir ao 25 de Abril de 1974 e ao Verão Quente de 1975, em que as eleições corriam sempre bem, chovesse ou fizesse sol. Sobretudo as eleições autárquicas, que eram assim uma coisa mais maneirinha, mais caseira, mais privada, para não ir mais longe. Mas era geral. O mapa do País não interessava para nada, a logística era um pormenor, os cadernos eleitorais um mero adereço, as chapeladas as do costume mas gloriosamente ao contrário. Bebiam-se uns copos à boca das urnas e nas urnas propriamente ditas, fazia-se uma almoçarada com o pessoal de serviço de todos os partidos, que eram o PPD e o "da mãozinha" mais o gajo do PC que viera de fora e era um picuinhas e a senhora do CDS que era catequista e virgem segundo as últimas sondagens. O pai votava pelo filho que era tolinho e estava internado, o filho que era tolinho e estava internado votava pelo pai que já falecera, pai e filho votavam pela avó que se encontrava muito atacadinha e por isso não pôde ir, e depois a avó que se encontrava muito atacadinha ia e votava também. Havia quem votasse em dois lados, havia quem votasse duas ou três vezes no mesmo lado, havia quem votasse em dois partidos, e valia, havia quem votasse em quantas freguesias fosse preciso, era só dizer, havia quem quisesse e pudesse votar e não deixavam, havia quem se fizesse de ambulância, havia quem se fizesse de parvo, havia quem chamasse a polícia, havia quem chamasse o gregório agarrado ao garrafão levado pelo presidente da mesa a mando do presidente da junta. Chegada a hora das contas, ia-se aos cadernos e à acta, acrescentava-se aqui, desarriscava-se ali, rasgavam-se uns papéis, queimavam-se noves fora nada, o chato do PC também assinava, a beata do CDS amém, e no fim batia tudo certo. Podem crer: batia tudo certo. As eleições eram verdadeiramente livres e democráticas.

Isso. As eleições eram do povo, eram, por assim dizer, um arraial libertário, mas cumpriam a função. Trafulhice, aquilo? Não. Bagatelas, pequenos truques de ilusionismo, alguns até bastante ingénuos e que geralmente acabavam por anular-se entre si e nem davam caso. Agora seria impossível que tal acontecesse, com a experiência burocrática entretanto adquirida, com o rigor vigente e o cada vez mais apertado controlo nos actos eleitorais, com os doutores a tomarem conta. A política chegou em força e escangalhou as autárquicas, que perderam definitivamente a piada. Acabou-se o descaramento, isso é verdade. Agora os cambalachos fazem-se pelo soleno... 

Três sílabas de plástico, que era mais barato

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

O retrato do falecido

Manifestamente incomodado, o morto levantou-se e disse: - Mas quem caralho deu a minha fotografia ao Correio da Manhã?...

Ientaculum

Foto Hernâni Von Doellinger

Os comboios

Se os comboios andassem sobre rodas, seriam transportes rodoviários. Assim...

A vê-los passar

Foto Hernâni Von Doellinger

Génio empresarial

Foi uma revolução completa na frota da empresa. Os veículos passaram a chamar-se viaturas.

Combustível, vamos definir...

As pessoas metem gasolina de manhã, a caminho do emprego, e depois andam todo o dia com o combustível - repito: combustível - no depósito do carro. Eu acho um perigo!

Felizmente o Outono

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Pegada ecológica

Tinha uma pegada deveras ecológica. Fosse aonde fosse, ia em pezinhos de lã.

A pegada

Deixou de andar a pé e passou a andar de carro. Para diminuir a pegada.

Os amigos são para as ocasiões

Um amigo de Lisboa mandou-me uma SMS. Dizia-me que precisava de falar urgentemente comigo. Não pensei duas vezes. Nem três: meti-me no carro e lancei-me na auto-estrada a mais de 180 à hora. Só ao chegar a Vila Franca é que me lembrei que não tenho carro nem sei conduzir... 

Os jornais às vezes

"Cada carro que passa na A24 custa 79 euros ao País", revelava o influente semanário, em título, na sua primeira página, aqui há uns anos. Portanto, é só fazer as contas, um carro custa 79 euros, dois carros custam 158 euros e 200 carros custam 15.800 euros. Ao País. Isto é: quantos mais carros passarem na A24, maior é o prejuízo. Se não passar nenhum, fica ela por ela... 

P.S. - Hoje, 22 de Setembro, é Dia Europeu Sem Carros.

Sic transit gloria mundi

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Muitíssimo obrigadíssimo!

O Canivete que vendia jornais, o Palhaço que fazia autópsias, o Cesteiro que esteve nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, o Paredes que também era Neiva de mãos enormes e falso susto para crianças, o Landinho eterno Menino, o Landinho do Club que tinha uns testículos muito compridos e era primo de quem fosse importante mesmo que fosse estrangeiro, o Piu, o Chico Cereja, o Sandim que levava os filmes de carrinho, o Tónio da Legião, o Dr. Antunes.
A Rosa do Piroco (Senhora Rosa do Mato!, corrigia-me a minha mãe), o Zé de Castro poeta e cauteleiro, o Chupiu, o Manel do Campo, o Luisinho com o "criado" atrás, o Zé Cão, o Roda Forte cauteleiro, o Pai Zé cauteleiro e gasolineiro, o Meireles de Antime, o Malhado decilitrador premiado e competente arranjador de guarda-chuvas, o Clemente que construía pipas e escadas e era tão pequenino que eu nunca percebi onde cabia tanto tabaco e aguardente, o gigante Barnabé e o mano, o Rates artista da bola, o poeta Augusto Fera, o Álvaro da Dinâmica, o carteiro Aristides, o Zé Sacristão, o Sr. Ferreira do Hospital, o 17 da Bomba, meu avô.
O Sr. Arcipreste, o Maló que era de Fafe em dias certos e cantava fanhosa e desalmadamente o "despedi-me e fui para longe" na esquina da minha rua, o Quinzinho da Farmácia que era o melhor médico do mundo, o Rui que era irmão do Renato e ardinava o Comércio do Porto, o Pedro e o Norte Desportivo, o Guia e a língua portuguesa, o Zegolina e a má-língua, o Batata, o Miguel Chichilim, o Fiu, o Chichirini, o Neca do Hotel, o Zé Manco, o Zé Manquinho, o Sibino, o Sr. Augusto Paredes, o Jerónimo Barbeiro, o Zé Bastos, o Chester faz-tudo, o Nélson Fafe e a alma do teatro, o Sr. Saldanha e a Bandeira Nacional.
Na música: os Bacalhaus, os Custódio, os Gandarelas, os Betas, os Silvas, os Maciéis. Nos bombeiros: o comandante Luís Mário, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Quintos, os Ferreiras e os Nogueiras, os Moleiros e os dos Santo, mestres também de filosofias de carne e osso e do jogo do pau.
O Joãozinho da Loja Nova que era um partidão e nem assim, o Joãozinho Summavielle e o meio fininho ao balcão do Peludo de costas voltadas para a televisão, o engenheiro Mário Valente doente da bola e fazedor do que Fafe é, o Albano das Águas esperto que eu sei lá, o Armindo Alves que era a Banda de Revelhe, o Mário Chanato, o Zé do Registo, o Fernando da Sede, o Sr. Avelino do Café, o Flórido engraxador, o Belinho, o Baptista do Asilo, o Nelinho da SIF, o Guarda-Fios, o Miguel do Zé da Menina, o Miguel Cantoneiro, o Chaparrinho, o Nelo Chapeleiro, o Manel da Pinta, o Nelinho Barros, o Hugo Alfaiate, o Chico da Libânia, o Toninho Nacor e a Dona Isabel, o padre Barros, o padre Zé, o Bilinho e o Bergiga meus companheiros de infância, o inesquecível Berto Dantas.
E, ainda por cima, o grande Zé Manel Carriço, provavelmente o homem mais extraordinário que conheci em toda a minha vida.
A todos e outros que tais, os meus respeitos. Muito agradecido por serem a minha memória.

Aqui há uns anos soube que foi feito um "Dicionário dos Fafenses" ilustres. A lista oficial, estou quase certo, não será exactamente esta, a minha, posto que incompletíssima. Mas lá está. A ilustreza é um conceito deveras relativo. Como certos e determinados pronomes...

P.S. - Publicado originalmente no dia 30 de Março de 2014, abrindo a série "Fafenses excelentíssimos". Porque há mais! Hoje, 21 de Setembro, é Dia Mundial da Gratidão.

Da mais elementar...

Foto Hernâni Von Doellinger

Joie de vivre

Sabem aqueles indivíduos que têm a certeza de que, mais hora menos hora, lhes vai acontecer uma desgraça qualquer, um furo ou um cancro, por exemplo, e que por isso andam sempre com o credo na boca e o colete reflector vestido? Ele não era desses. Viveu descansado e feliz até aos 123 anos, e só se queixou uma vez, mesmo antes do último suspiro: - Agora que me sentia tão bem... 

P.S. - Hoje, 21 de Setembro, é Dia Internacional da Paz.

Jogue golfe com moderação

Depois do quinto shot, o famoso jogador de golfe já via tudo a dobrar. O buraco 17 parecia-lhe o 34, o que é manifestamente irregular.

P.S. - Sem brincadeiras: hoje, 21 de Setembro, é Dia Internacional do Minigolfe.  

Uma certa pancada

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 19 de setembro de 2021

Nostradamus, vostradais, elestradão

Nostradamus, estão a ver? Se não estão a ver, pensem em Orson Welles e chegam lá. Ah!, também não estão a ver Orson Welles. Não interessa, são muito antigos. Michel de Nostredame foi um apotecário e médico francês da Renascença que praticava muito bem a alquimia e rondava satisfatoriamente o ocultismo. Escreveu um famoso livro em versos intitulado "As Profecias", o qual, como o próprio nome indica, conteria previsões codificadas acerca do futuro, e tão codificadas seriam que só alguns muito poucos é que continuam a acreditar naquelas cousas sem sentido. Ou, a posteriori, com o sentido que se lhes quiser encaixar.
Nostradamus, nome latino e artístico, padecia de epilepsia psíquica, de gota e de insuficiência cardíaca. Se a isto tudo somarmos a habilidade para a leitura dos astros e das cartas de tarô, facilmente perceberemos que o artista viveu e morreu antes do tempo. O nosso Miguel seria o convidado ideal, diário, bidiário, ou talvez até terciário, para todos os programas das manhãs e das tardes das televisões generalistas portuguesas de hoje em dia.
A mais eficaz profecia de Nostradamus acabou por ser, lamentavelmente, a do seu próprio falecimento. Em 1566, dia 1 de Julho, inesperada véspera do definitivo dia 2 de Julho, estava o profeta cada vez mais à rasca derivado ao dramático agravamento da gota e da artrite, chamou o seu secretário e, entre trovões e relâmpagos e talvez sarças ardentes de febre, disse-lhe o que já lhe dissera mais do que uma vez: de amanhã não passo. E finalmente acertou.

P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Dezembro de 2019. E atenção: Renascença não quer dizer Rádio Renascença. Mas ao que eu vim: na Roma antiga, hoje, 20 de Setembro, decorreria o Festival de Témis, considerada deusa da justiça, do destino e da profecia. Filha de Úrano e de Gaia, na mitologia grega, irmã dos titãs e das titânides, Témis foi segunda esposa de Zeus, depois de Métis e antes de Hera.

Panem et circenses

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 18 de setembro de 2021

Os influentes

O rio Douro tem muitos e variados influentes em território nacional. Os mais importantes são os rios Côa, Sabor, Tua, Ceira, Varosa, Corgo, Ovil, Paiva, Sardoura, Tâmega, Mau, Arda, Uima e Sousa. São bastante influentes porque eles é que abastecem de água o rio Douro.

P.S. - Hoje, 18 de Setembro, é Dia Mundial da Monitorização da Água.

Limpeza das praias

Hoje, 18 de Setembro de 2021, é Dia Internacional da Limpeza Costeira. Decerto era a isso que a Senhora Dona Paula Bobone, essa colossal cabeça, se referia aqui atrasado quando opinou em entrevista que "a entrada nas praias deveria ser paga, para se fazer uma certa selecção".

Verão alcatifado

Foto Hernâni Von Doellinger

Biblioteca pública

Foto Hernâni Von Doellinger

Livraria

Transpôs a porta sagrada, procurou instintivamente à direita a piazinha de água-benta que não encontrou, genuflexou e benzeu-se num silêncio e num respeito que só vistos, caminhou lentamente até à estante, no mais profundo recolhimento, pegou no livro como quem pega em asa de borboleta ferida, afagou-o, ao livro, abriu-o como que a medo, em ângulo recto não mais, folheou-o sem destino mas com mil cuidados, contemplativo, num deleite adivinhatório de santidade gozosa. Tinha acabado de entrar numa livraria.

Os livros

Gosto de afagar os livros que leio. Aliso-os. Cheiro-os e gosto. Protejo-os. Guardo-os com mil cuidados. E deixei de emprestá-los!

P.S. - Hoje, 18 de Setembro é Dia Internacional de Ler Um Ebook. Eu leio em papel.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

À mesa

Isto devia ser ensinado desde os bancos da escola: o telemóvel ou o tablet não fazem parte do talher. O talher é composto pelo conjunto de garfo, colher e faca e comando de televisão. Mais nada.

E ao terceiro sábado...

Lembram-se do tempo em que as pessoas não se indignavam? Pois é. Depois vieram as redes sociais...

P.S. - Hoje, terceiro sábado de Setembro, é Dia do Software Livre.

Alô, Houston!

Foto Hernâni Von Doellinger

Perfume de mulher

Na minha infância e princípios da juventude lidei muito com padres. E os padres cheiravam. Não como o padre Clementino ou o Secónego, casos particulares, que cheiravam naturalmente a mofo, mas outro cheiro, doce, aperfumado, que também não era incenso nem ares de santidade ou sacristia. Cheiravam não sabia bem a quê. Aquilo intrigava-me, ainda por cima porque eu nem fazia ideia de que havia perfumes para homens, quanto mais para padres!
Que se segue? Na vasta sabedoria dos meus nove-dez anos resolvi então que aquilo de os padres cheirarem a perfume era para disfarçar o cheiro a tabaco. Os padres não queriam que o povo soubesse do cigarrito às escondidas. Bem visto! Porque naquele tempo fumar era um pecado muito grande, praticamente ao nível da masturbação.
E nisso fui acreditando, bem-aventurados os néscios, até que um dia, espigadote e epifanado, finalmente percebi: aquilo do perfume dos padres era mas é cheiro a mulher...

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Eles vêm aí

Foto Hernâni Von Doellinger

O mistério dos hemisférios

Já repararam como o hemisfério norte encaixa tão bem no hemisfério sul, e ficam ali os dois hemisférios hermeticamente atarraxados no equador e às voltas ao Sol, sem uma folga, e sem entornarem a água dos oceanos, ainda que a Terra esteja de momento ligeiramente chateada nos pólos derivado ao aquecimento global? É um mistério. Penso muito nisto, sobretudo por causa dos peixes, coitadinhos...   

Ligeiramente chateada nos pólos

Agora é que a Terra está ligeiramente chateada nos pólos. Derivado ao aquecimento global e respectivos degelos, que são sempre desagradáveis. E isto é científico. 

P.S. - Hoje, 16 de Setembro, é Dia Mundial para a Preservação da Camada do Ozono.

Ocasos de fogo 21

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

O feitiço contra o feiticeiro

Quando o Feitiço se virou contra o Feiticeiro, o Feiticeiro resmungou: - Mal agradecido... 

Pero que las hay, las hay

Foto Hernâni Von Doellinger

São uns pontos

E daquela vez em que o ponto final fez sociedade com o ponto de cruz? Foi de morte.

São uns pontos 2

Diz o ponto cardeal ao ponto de rebuçado: não te armes em papa. 

São uns pontos 3

Eram três e perigosos. Chamavam-lhes Reticências...

São uns pontos 4

O defeito do ponto e vírgula? Tem a mania que é mais que os outros.

São uns pontos 5

Antes ponto de embraiagem do que ponto morto.

São uns pontos 6

- PowerPoint! - gritou o ponto negro, de punho erguido.

São uns pontos 7

Aventureiro por natureza, o ponto de vista só tinha um medo - as cataratas.

São uns pontos 8

Morreu o último ponto de ordem à mesa. De fome - é o que consta.

Ponto de observação

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 14 de setembro de 2021

Os pontos nos ee

"Sexualmente falando, és imprestável", disse ela. "Tá bem", disse ele, e foi organizar-se com a vizinha. Ele percebera "emprestável". São coisas que acontecem...

Vendo pontos de vista para o mar

Eu tenho uma certa maneira de ver as coisas, isso é verdade. Mas não possuo aquilo a que se possa chamar um prisma, uma óptica, sequer um ângulo que se diga. Tivesse-os eu, e vendia-os...

Ponto de honra

Licenciou-se. Fez três mestrados, uma pós-graduação, uma pós-produção e uma pós-tulação. Arranjou trabalho num call center. O pai, preocupava-o o pai: certamente desiludira o cota. O cota dizia-lhe que não: - Meu filho, qualquer emprego é bom e digno desde que seja honesto. Ainda que assaltes bancos ou roubes velhinhas, se o fizeres honestamente, serás sempre o meu orgulho.

Pontos de vística

- O caro amigo desculpe, mas está completamente errático...
- Pelo contrário, ó ilustríssimo: estou absolutamente cértico.

Agá Ramos e pronto. Ponto.

Gosto de palavras, gosto do falar antigo, gosto de nomes, gosto de brincar com nomes. Gosto de me rir. E às vezes rio-me com os nomes que me vêm à cabeça, por exemplo Al Mirante, Bill Tre, Sam Dwich, Sara Pinto, Rick Ardo, Poly Ban, Bica Bornato, Bee Tock, Herr Nesto, Sade Miranda, Bob Adela, Rui Barbo, Bib Alves, Ono Mástico, Ray Naldo, Ca Trel, Pio Nés, Kris Talino, Dick São, Tony Truante, Sal Amandra, Mick Ose, Lee Moens, Rita Lina, Aury Cular, Ted Io, Nick Utina, Otto Mano, Su Papo, Tuli Creme, Pan Ike, Gal Déria, Philip Inas, Ary Ston, Jerry Kan, Karl Inga, Bruce Li, Bruce Lose, Andy Capp, Car Burant, Lu Na Park e Buzz U-Lak. Rio-me também do meu apelido, doellinger, que não levo a sério e só me arranja confusões. Silva servia-me muito bem. E sabeis que mais? Quem se leva a sério é tolo. Eu sou o principal motivo do meu riso, e, podeis crer, farto-me de rir. Rio-me de mim até na desgraça, e a desgraça é o meu dia-a-dia.
Eu assino agá. Exactamente agá pequenino ponto, h., sei muito bem o meu lugar e o meu tamanho no mundo. É: agá, de hernâni, e pronto.

O meu sonho, um dos meus mais de mil inconsoláveis sonhos, era, porém, chamar-me e poder assinar H. Ramos. Quero dizer, agá ramos. 

P.S. - Hoje, 15 de Setembro, é Dia Internacional do Ponto.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 218

Foto Hernâni Von Doellinger

Fernando Nobre, o peneirento

Há que tempos que não me vinha à cabeça a palavra peneirento. Veio-me ontem, com acento na penúltima sílaba e tudo - "peneirénto" -, como se diz na minha terra. E devo o momento de tocante nostalgia ao Dr. Fernando Nobre e à sua mais que esperada renúncia ao cargo de deputado. Muito obrigado, senhor doutor.
Arrumado contra-vontade no baú das expressões populares, o adjectivo peneirento tem vindo a ser substituído por sinónimos tão modernos como vaidoso, presumido, pretensioso, presunçoso ou pedante. Também estão bem para o caso em apreço, mas não são a mesma coisa.
Fernando Nobre, o antipolítico que apoiou Durão Barroso na ressaca pós-guterrista e depois se arrependeu, que apoiou Mário Soares, que apoiou o Bloco de Esquerda, que apoiou António Capucho (PSD) à Câmara de Cascais, que se apoiou a si próprio à Presidência da República, contra todos os partidos, e que logo a seguir teve uma recaída social-democrata para ser "candidato" à presidência da Assembleia da República, não vai deixar saudades, mas mete pena.
Este percurso aos ziguezagues, que acabou da pior forma com o tremendo estampanço no Parlamento, é o triste retrato de um homem de 59 anos que parece que nunca soube o que quer ser quando for grande. A não ser, ser importante, ser mais que os outros, como o poeta de Florbela.
Ser deputado da Nação é ocupação menor para o fundador da AMI. Nobre, que sonhara ser a primeira figura do Estado e avisou logo que nunca aceitaria ser menos do que o segundo na hierarquia nacional, saiu do Parlamento pela porta pequena e já sem o seu halo de santidade, deixado para trás das costas em estilhaços.
Ironicamente, a Wikipédia regista Fernando Nobre como "médico, activista, professor universitário e político português". Político português! A vaidade, o desastre que foi a sua breve passagem pela arena política, não pode apagar nem prejudicar sobretudo o seu trabalho humanitário de anos e anos. Foi uma pena, de facto, tudo o que ele se fez passar para tentar chegar ao poleiro mais alto. Nobre não merecia isto de si próprio. Até porque é certamente uma pessoa estimável, um português excelentíssimo. Mas peneirento.

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Julho de 2011, sob o título "O peneirento". Fernando Nobre, que nunca me enganou, pretende agora ser um dos principais rostos do negacionismo antivacinas e antimáscaras em Portugal. Ainda havemos de o ver candidato do Chega...

Ele há lendas e lêndeas

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 12 de setembro de 2021

O tipo do mito urbano e o mito do tipo rústico

- Faz favor de desculpar, o senhor é o tipo do mito urbano, não é?
- Mito quê?
- Mito urbano. Urbano. Citadino, civilizado, cortês, polido, gafonha, urbanita, urbícola, correcto, afável, aprazível, fruitivo, lisonjeiro, mavioso, amorável, charmoso, peralta, lhano, tirone, refinado, esticadinho, delicioso, educado...
- O que são as palavras, veja lá o senhor. Não, não sou o tipo do mito urbano. Na verdade fiz-me homem em Valnogueiras, Vila Real de cima, sou portanto e pelo contrário, se me está a acompanhar, o mito do tipo rústico.
- Tipo quê?
- Tipo rústico. Rústico. Rusticano, rural, aldeão, camponês, campino, campesino, campesinho, campestre, campónio, agrário, casca-grossa, labrego, parolo, lavrador, grosseiro, bruto, boçal, besta, bronco, grunho, labrego, malcriado...
- Realmente o que são as palavras. Mas é tão parecido com ele...
- Porém, não sou ele. Por favor, não me comprometa. Se o senhor disser que eu sou ele, eu nego. Ene-é-gê-ó. Nego!
- Palavra de honra, aqui que ninguém nos ouve, o senhor nunca foi o tipo do mito urbano nem por um bocadinho? Ande lá...
- Nunca, meu caro senhor. Aliás, se me permite, desafio qualquer um a recordar alguma intervenção ou escrito que eu tenha tido nesse sentido e que, de uma ou outra forma, me possa conectar a essa lamentável problemática. Desafio. Eu sou o mito, não sou o tipo, e ponto final. 

P.S. - Hoje, 13 de Setembro, é Dia Mundial do Agrónomo. Sobretudo no Brasil.

Massas

Gostava de uma boa massa à lavrador, de uma boa massa de marisco e sobretudo de uma boa massa de bacalhau. Também concordava com a vacinação em massa. Quanto à massa de ar quente, não é que desgostasse, mas afligia-o a flatulência. 

Bem prega frei Tomás

Tomás era o faz-tudo do convento. Agricultor, apicultor, sacristão, chef de cozinha, porteiro, parteiro, telefonista, copista, contorcionista, iluminador, vendedor de imóveis, disc jockey, picheleiro, Pai Natal, guarda-redes, mas sobretudo era um carpinteiro de mão cheia. Fosse o soalho do refeitório ou empreitada mais modesta, de martelo em riste, pregador como ele não havia.

sábado, 11 de setembro de 2021

Quando a "puta" tocava

A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. Os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta. Mas quando ela tocava era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros largavam em pleno andamento ao chegarem ao quartel e um mirone encartado ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a estorvar a saída dos carros de incêndio. O Casimiro da Caixas tinha vindo de Guimarães, onde decerto nascera, como talvez Portugal, e nunca se descolou daquela pronúncia carregada que nos fazia rir a todos.
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.

(E havia os espontâneos, que afinal não eram tão espontâneos assim. Moravam ali à porta e estavam sempre de prevenção para uma emergência que o fosse realmente. Faltava um motorista, a saída estava a atrasar-se? - era só chamar por eles e eles avançavam: lembro-me do Fredinho Bastos e do irmão Quinzinho, do Varinho Dantas ou do Toninho da Luísa, que tinha piada fina e eu gostava de imaginar DaLuísa derivado ao comediante americano Dom DeLuise, mas isso já é outro filme. Se calhasse, enfiavam um blusão e um bivaque, só para despaisanar, e avançavam a todo o gás, bombeiros como os de exame feito e papel passado e ainda mais voluntários, mas qual seguro qual carapuça! Ser-se bombeiro era efectivamente um estado de alma. E estes eram bombeiríssimos de primeira.)

Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...

Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Às vezes, não. Às vezes o herói faz o que tem de fazer, isto é, faz o que fazem os heróis, e depois desaparece em direcção ao sol poente. Desaparece e nunca mais.


P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Novembro de 2011. 

O homem-rã

O homem-rã apareceu à tona em câmara lenta e saiu do lago com toda a calma, perante o evidente embaraço do casal de cisnes que porteira o condomínio. Vestia um blusão de cabedal que dizia nas costas batalhão de sapadores bombeiros, bsb, passou por um bando de turistas japoneses acabadíssimos de descarregar no novo terminal de cruzeiros, sorriu para os flashes e continuou naquele andar cómico até ao bar do parque da cidade. Entrou no bar, saltou para cima de um banco, depois saltou para cima do balcão e mandou vir, com uma nota de cinco na mãozinha verde: - Coach!, coach!

Incêndios e outros negócios

O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. É uma questão de marialvismo, orgulho macho. E então arrebitam e continuam a arder lampeiramente uma semana depois de terem sido decretados dominados aos microfones da CMTV, e a CMTV fica toda contente, porque a CMTV é do ramo do sarrabulho e do fumeiro - disso vive, em lume brando. Os oficiais da Protecção Civil, doutores da mula ruça porém pessoas muito honradas e de boina, que antes deste rico emprego nunca tinham posto os pés num incêndio, tiraram um curso relâmpago de Teatro de Operações, vulgo TO, Forças no Terreno, Frentes Activas, Meios Aéreos & Pontos de Ignição e gostam de dar na televisão: o mais que dizem é que os incêndios de manhã, se não estão já dominados, vão entregar-se às autoridades a meio da tarde. Os oficiais da Protecção Civil e os políticos que os pariram inventaram um novo dicionário, especializaram-se em semântica, graduaram-se em eufemística e falam muito do que sabem nada...
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina e galões no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.

Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Tolos porém honrados. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel...

O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do desemprego, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.

Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.

P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Agosto de 2016.

De gala

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

O drama, a tragédia, o horror. O sangue...

Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima ou por aqueles degraus abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque, naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Estavam ali no relambório, a dar água sem caneco e a benzer-se na direcção da Igreja Nova, mas sem perder pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote! Uma comoção!...
Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem na CMTV.

P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Fevereiro de 2016.

A sarça ardente (ou Chamem os bombeiros!)

Quando Moisés disse todo vaidoso "A minha vida dava um filme", Deus ficou bastante chateado, chegou lume ao monte e proclamou: - Agora apaga-o, que o Noé gastou-me a água toda.

A Festa da Bomba

Foto Tarrenego!

Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do Santo António na minha rua. Quanto à enormeza da Senhora de Antime, sobretudo da sua incomparável e pungente procissão, suponho que estamos conversados. Do nosso Santo António já aqui dei um lamiré, e é preciso não esquecer que até tínhamos foguetes e altifalantes que o Zé da SIF arranjava e metíamos raivinha às outras ruas todas, incluindo avenidas, rampas, quelhas e largos como o nosso. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver. Mas as festas. Faltava a festa de anos dos Bombeiros Voluntários de Fafe - a Festa da Bomba -, e vamos a isso.

A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam demais aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Abril de 2012. Hoje, 11 de Setembro, é Dia Nacional do Bombeiro Profissional, outra coisa.