quinta-feira, 30 de setembro de 2021
O Dia De
Lapsus linguae
Espanto gastrointestinal
Sorrio-me por tudo e por nada
Isto das idades
Pianíssimo
quarta-feira, 29 de setembro de 2021
Noé faleceu aos 950 anos, inesperadamente
Ezequiel, médio visionário
O livro vendeu razoavelmente. Arquivistas, bibliotecários e documentalistas catalogaram-no com o assertivo nome de Livro de Ezequiel, para que não houvesse enganos futuros. Respeitado tanto pelo cristianismo como pelo judaísmo, e talvez até pelo islamismo, Ezequiel era porém um infeliz feliz, sentia que lhe faltava algo. Por não ser época de Ferrero Rocher, resolveu então mudar de vida: deixou o negócio das visões, inscreveu-se numa escolinha de futebol e fez-se jogador. Vi-o algumas vezes em campo, pelado, mas sobretudo com a camisola do Lusitânia de Lourosa, corria para o fim o século XX depois de Cristo.
Sodoma e Gomorra (ou há moralidade ou...)
Os sodomitas, habitantes de Sodoma, ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem constam nos dicionários. A História às vezes é muito injusta.
Isaías, profeta e avançado
Isaías escreveu um livro para a Bíblia chamado especificamente Livro de Isaías para não ser confundido com o Deuteronómio. A crítica não lhe foi favorável. Diversos especialistas descrêem que a obra tenha um único autor, Isaías ele próprio, vendo-a, antes, como um trabalho a várias mãos e de diferentes épocas, coligido eventualmente no ano 400 a.C, ou até mais tarde. Isaías seria assim uma espécie de escritor dos nossos dias, nome de capa, escritor do que já foi escrito. Por outros.
Amuado com semelhante desmerecimento público, Isaías deixou-se de profecias, abandonou o reino de Judá e veio jogar futebol para Portugal, em 1987. Começou pelo Rio Ave, brilhou no Boavista e foi para o Benfica, onde fez cinco épocas, 178 jogos e 71 golos, ganhou dois campeonatos e uma Taça. Passou pelo Coventry City, de Inglaterra, e tornou cá em 1999, para representar o Campomaiorense. Regressou ao Brasil em 2000 e pendurou as botas em 2003.
Ficaram célebres os seus dizeres numa por acaso flash interview: "Ouvi a palavra do Senhor, príncipes de Sodoma, escutai a lei do nosso Deus, povo de Gomorra."
As despesas da corrida
Aberração da natureza
O clube do coração
Os jogadores de futebol têm um grave problema com o clube do seu, deles, coração: imediatamente por cima do dito coração, no casaco de marca, o bolso da carteira...
Oh, my dicky ticker!
Eu tinha um cardiologista e visitava-o de quatro em quatro meses.
Falávamos de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes
secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto. E media a tensão, o que é
extraordinário! Deixei. Deixei também o urologista e fiquei-me apenas com o dentista,
que me sevicia de meio em meio ano, fora os inopinados. É a crise, é a
vida. Um destes dias morro e vão dizer que foi por causa de eu ter
deixado de falar de jornais, de jornalistas, de política, de
restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto com o meu
ex-cardiologista.
P.S. - Hoje, 29 de Setembro, é Dia Mundial do Coração.
Os cinco de Liverpool
P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Maio de 2016, sob o título "Os Bítalas". Os Beatles eram também conhecidos, entre outras alcunhas, como "Os fabulosos quatro" ou "Os quatro rapazes de Liverpool". Há quem diga que existe um "quinto Beatle", sem unanimidade e com diversos e bons candidatos ao lugar, entre os quais Brian Epstein, o empresário da banda. Seriam assim, vá lá, os cinco de Liverpool...
terça-feira, 28 de setembro de 2021
O pecado original
Corria tudo muito bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, uma maldadezinha que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.
Daniel, profeta e domador de leões
A fama chegou-lhe apenas em 1973, quando entrou numa canção do Elton John.
Like an angel
Perda de bola em zona de construção
Perder a bola em zona de construção é uma chatice. São os taipais, os andaimes, a maquinaria, os buracos, a lama, ferros mais ou menos retorcidos, a obrigatoriedade de uso de capacete, colete de sinalização e botas de biqueira de aço, e ainda por cima é "proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço". Mais vale dizer adeus à bola...
segunda-feira, 27 de setembro de 2021
E eu estava lá
Foto Tarrenego! |
É o que dá mexer em papéis velhos. Um talvez desinteressante jogo de hóquei em patins entre o FC Porto e o Alenquer, suponho que lá pela primeira metade da década de 1980, nas Antas, Pavilhão Américo de Sá de tantas alegrias. O portista que desliza para o golo é, se não me engano, o grande Cristiano Pereira, estrela maior de uma constelação onde brilhavam também, entre outros, Vítor Hugo, Vítor Bruno, Alves ou Domingos Guimarães - isto é, uma superequipa, multicampeões e artistas de circo que dava gosto, a base da selecção nacional.
E eu estava lá. Estávamos lá, na bancada vazia tirante nós: eu, o Miguel pequeno e o Miguel grande. Os papéis velhos devem ser remexidos amiúde, mas com cuidado por causa do pó - estou aqui com os olhos um bocadinho irritados, e quem me veja assim ainda vai dizer que estou a chorar...
A senhora que mora na minha padaria
As padarias hoje em dia são tudo: café, salão de chá, pastelaria, cervejaria, restaurante, casa de pasto, tasco, pensão, centro de convívio, sociedade recreativa, quiosque, tabacaria, meeting point, posto de turismo, guiché de informações variadas. E vendem de tudo, até pão, o que é curioso. São os tempos que correm: o meu talho também vende ovos, azeite, queijo, vinho, peixe congelado, feijão, ananás e pêssego enlatados. E a minha farmácia tem sempre a hortaliça mais fresca aqui da zona.
Sendo tudo, a minha padaria tem televisão e, portanto, milhões de opiniões. A campeona do palpite é a cliente residente, cuja, para mal dos meus pecados, padece de uma voz agreste e guinchada uma oitava acima como se fosse o Bruno de Carvalho mas ao contrário. Nunca a apanhei calada...
"Não. O meu filho não gosta de andar!...", anunciava um destes dias a senhora que mora na minha padaria. "Podes ter gosto", dizia eu cá para mim. "Um marmanjo com mais de trinta anos e que não gosta de andar. Está bem, Alfreda! Até eu ando, até eu me rendi à caminhada, e que bem que me faz...", continuei com os meus botões.
Mas ela insistia, parecia tola a mulher, cheia de orgulho no calaceiro: - O meu filho não gosta de andar. Não. Não gosta de andar...
"Ai que caralho!", ia eu pensar, quando a senhora que mora na minha padaria: - Não gosta de andar. Uma casa, nem que fosse pequenina, mas com tudo, ele preferia. Uma casinha. Andar, não!
domingo, 26 de setembro de 2021
O esperanto em português suave
(O Passeio Atlântico de Matosinhos é um mundo. Pelo menos, em dias sem pandemia e de tempo bondoso, é uma razoável amostra de mundo.)
O turista estrangeiro aproximou-se do vendedor de óculos de sol de beira de praia. Era obviamente um turista estrangeiro, só eu e os turistas estrangeiros é que sabemos malvestir assim, nunca me engano a esse respeito. O vendedor de óculos de sol de beira de praia é português dos quatro costados, conheço-o muito bem, há anos, monta banca todos os dias ali em baixo e quando chove é vendedor de guarda-chuvas de beira de praia. É, além disso, ambulante, mas apenas para fugir aos fiscais e à polícia. Ele também percebeu logo que o freguês que tinha pela frente era estrangeiro. Mas pensam que se atrapalhou?, era o que faltava! Nós os portugueses temos connosco esta habilidade extraordinária de nos desenrascarmos sempre, seja em que situação for, cá em casa ou lá fora, mesmo debaixo de água, aprendemos línguas, copiamos hábitos, se calhar inventámos o esperanto, possuímos este poder de desembaraço, improvisação e adaptação, que tomaram muitos, até os Alemães, e que fez de nós um povo das sete partidas do mundo por excelência. Bem, com estas tretas todas, esqueci-me do que queria contar...
Ah!, já sei: o turista estrangeiro. Portanto, o turista estrangeiro abeirou-se do vendedor de óculos português e perguntou: - The glasses, how much?... (Estão a ver como eu tinha razão?).
Foi um clique, um cagagésimo de segundo bastou para que o rapidíssimo cérebro do nosso vendedor formatasse "é inglês, pois então vamos a isso" e mudasse imediatamente de registo, fazendo um entre parênteses na língua do Camões. Cheio de segurança e poliglotismo, respondeu ao camone, marcando ostensivamente as sílabas no mais escorreito acento cockney: - Quali? Quali qui tu quieres?...
Uma questão de peso
Noutro dia estacionou-me ali em baixo o Costa Pacifica. São mais de 290 metros de navio para 3.780 passageiros. Os paquetes que me batem regularmente à porta têm-me dado que pensar, suscitam-me reflexões de pequena e média profundidade que aqui humildemente partilho com os meus queridos leitores. E daquela vez vieram-me à cabeça os cus. Os cus que os cruzeiros descarregam e recarregam.
Cu de turista não é brincadeira, já repararam? É traseiro de bitola larga e se for cu americano então ocupa o mundo inteiro, incluindo o México e o Brasil, menos a Alemanha e a Rússia. Até parece que para se ser turista - turista encartado - é preciso ter um cu daqueles. E o cu alemão e o próprio cu russo também para lá caminham, não querem ficar atrás. O que diz tudo a respeito dos cus.
Imagino que sejam muito ricos os camones com que me cruzo nas bordas do Porto de Leixões - eles a saírem todos cheios de good morning e eu, de passagem, "desculpem lá a shit de dog na sola da sandália, é good luck, com os cumprimentos de Matosinhos City". Tão turistas e tão prendados de cu, têm de ser muito ricos. Engordam e viajam porque podem. Se calhar são todos reformados da administração do Millennium BCP ou do BES mas não querem que se saiba.
Os turistas. Chegam e parece-me sempre um congresso de cus com sala de espera no Passeio Atlântico, que se vê à rasca para aguentar semelhante pesadelo. Toneladas e toneladas de bagagem extra em traseiros colossais e gingões mesmo à frente do meu nariz e que até naufragam tuque-tuques. Confesso: é um espectáculo que não pára de maravilhar-me. Olho para os cus e olho para o barco, e só me apetece elogiar o génio humano, os avanços da ciência, os milagres da indústria, a arte e o engenho dos modernos fazedores de navios, supremos desafiadores das leis da física. Fascina-me aquilo que não consigo compreender. Para os cus e para o barco, olho. Olho para o barco e penso: como é que aquilo não vai ao fundo com tanto cu descomedido lá enfiado?
P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Novembro de 2012. Hoje, 27 de Setembro, é Dia Mundial do Turismo.
E um grande tenkiu para ti também, pá!
De manhã eu vou ao peixe. Cada vez mais de manhãzinha. E ontem de manhã,
de manhãzinha, estava um camone numa das duas mesas de passeio de um
daqueles pequenos cafés à beira da lota de Matosinhos. Vi que era camone
à distância, por causa da enorme mochila que lhe descansava ao lado e
do mapa na mão que ele olhava e revirava, e percebi logo que não me ia
safar. Tenho cara de posto de turismo encerrado para obras, não é para
me gabar, e eu que ia ao carapau, saiu-me o bife, se me permitem o
chiste de carregar pela boca.
(A marginal de Matosinhos, do princípio do Passeio Atlântico até lá aos
fundos do Porto de Leixões, é hoje em dia um dos mais frequentados
corredores do Caminho de Santiago, palmilhado a solo ou aos magotes por
camones de várias línguas e feitios. A passagem pelo Senhor do Padrão é -
devia ser - obrigatória.)
Mas que se passou: o camone viu-me sem mapa e também de mochila às
costas (e eu não sei andar sem mochila, parece que me desequilibro sem
ela) e portanto achou que eu é que sabia. Perguntou-me então du iu
spikinglixe? E eu respondi-lhe o que sempre respondo aos gringos em
Portugal: e tu, sabes falar português?
Não há nada que chegue ao estrangeiro
Situemo-nos, porém, porque isto não é ficção: estamos na chamada Rotunda do Castelo do Queijo, também desconhecida como Praça de Gonçalves Zarco, no Porto, exactamente na paragem dos autocarros descapotáveis para turistas de mapa nas mãos, e assim estavam os pais babados do seu magnífico filho chorão. Não era, portanto, difícil de adivinhar, mas eu quis tirar a coisa a limpo, por defeito profissional, e perguntei no meu melhor inglês: vosotros être camones, iesse ol raite? E eles responderam-me que efectivamente, camones, mas versão bife, de Bristol.
(Para quem não sabe, Bristol é uma habitadíssima cidade do sudoeste inglês e foi uma sapataria muito jeitosa em Fafe, a sapataria do Magalhães "Bristol", onde o Senhor Ferreira do Hospital me mandou uma vez ir lá escolher um par de sapatos que ele depois pagaria. O Senhor Ferreira do Hospital foi meu mestre e amigo, e era um homem extraordinário.)
Ora bem. Os pais da criança confirmaram-me o que eu já sabia. Eram ingleses, os pais, e o pequeno ranhoso também. E era a primeira vez que estavam em Portugal, há dois dias. O que fez aumentar ainda mais (como se "aumentar ainda mais" fizesse algum sentido), dizia, o que fez aumentar ainda mais a minha estupefacção, para não dizer uma palavra mais simples: é que aquela criança - criança inglesa retinta, filha de pais ingleses retintos, de Bristol - chorava em fluente português, perfeito, sem pontinha de sotaque. O que é extraordinário. Em apenas dois dias...
É o que eu digo: não há nada que chegue ao estrangeiro.
Os que deixaram de fumar
sábado, 25 de setembro de 2021
Eu só queria ir à farmácia
No centro de saúde fui atendido em menos de uma hora. Perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim assim, fui à farmácia, na farmácia mandaram-me ao médico, e eu vim". "Ora mostre lá o olho", e eu mostrei, "vai ter de ir imediatamente ao oftalmologista, mas, como no Hospital Pedro Hispano não há urgência da especialidade, pegue lá esta carta e vá ao Hospital de Santo António", e eu fui. A pé até à Avenida Serpa Pinto, apanhei o autocarro 500 até ao Castelo do Queijo, esperei uma hora pelo autocarro 200 e lá cheguei ao Santo António quando o trânsito me deixou.
Na urgência fui atendido em menos de um quarto de hora. Perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim assim, fui à farmácia, na farmácia mandaram-me ao médico, o médico mandou-me aqui, e eu vim". "Ora mostre lá o olho, encoste aí o queixo e olhe para esta luzinha", e eu mostrei, encostei e olhei. "Tome lá esta receita, são umas gotas para colocar de duas em duas horas, vá já à farmácia", e eu fui. Estava de volta à casa de partida, passava pouco das 21h45.
E tudo isto pelos módicos cinco euros da taxa que paguei no centro de saúde, mais as viagens e os quase catorze euros das gotas, que afinal nem precisavam de receita médica, e que estou a pensar meter como despesas de representação.
Sei que tenho o melhor serviço nacional de saúde do mundo. Raramente lhe dou uso, mas frequento-o assiduamente e vivo de olhos abertos. Querem saber o que é o nosso Serviço Nacional de Saúde? Não são taxas moderadoras e isenções. São as pessoas: os auxiliares, os médicos e os enfermeiros, que todos os dias trabalham no arame e sem rede, que já lhes tiraram há muito, e fazem funcionar uma coisa que na verdade já nem existe, ou, se quisermos ser bondosos, vai morrendo aos bocadinhos. A minha urgência pareceu-me uma desnecessidade, mas as pessoas quiseram fazer bem - são profissionais. E faço figas para que me tratem sempre assim mas palminhas. Em todo o caso, palavra de honra, eu só queria ir à farmácia.
P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Setembro de 2014. Quer-se dizer: uma homenagem aos profissionais do SNS com quase seis anos de avanço em relação ao novo coronavírus. E continuo sem arrepender-me de ter razão. Por outro lado, hoje, 26 de Setembro, é Dia Nacional do Farmacêutico.
Oh, what a beautiful morning!
Mas que esplêndida manhã de sábado! Ruas sem altifalantes nem buzinões, camiões de recolha do lixo numa inusitada lufa-lufa, ecopontos num brinquinho, senhores varredores que se multiplicam aparecidos de parte incerta, a terra e a areia arrastadas pela tempestade nocturna para passeios e estradas já cá não estão, só as marcas, para que se saiba, a polícia municipal, inesperadamente discreta e cabisbaixa, nem sequer sai dos carros, por forma a evitar sarilhos vá-se lá saber a quem. Que sossego! Que limpeza! Que bom que é hoje ser véspera! Que bom que é amanhã ser dia daquilo de que não se pode falar hoje!...
sexta-feira, 24 de setembro de 2021
Eles não sabem que o sono
Tinha sonhos mas comeu-os
Tinha um sonho mas já não tem
Os sonhos são como o algodão, hidrófilos
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger naturais de Fafe e residentes em Matosinhos-sur-Mer. Pela miséria que me tem saído na rifa nos últimos tempos, suspeito que não, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado..., e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência urinária. A vida é tão breve, não foi?
Entretanto, gostaria de aproveitar a oportunidade para comunicar aos meus sonhos que, uma vez que desdenho a Raspadinha, o que me convinha mesmo era o Euromilhões. O jackpot do jackpot, se fazem favor. Agora vou dormir e passo à escuta.
Por falar nisso: sonhar com algodão dizem que é muito bom para a saúde e que traz uma vida cheia de dinheiro e de felicidade. Bem empregue. É preciso ser-se mesmo muito desgraçado para sonhar com algodão. Se ainda fosse com merda...
quinta-feira, 23 de setembro de 2021
As eleições perderam a piada
Isso. As eleições eram do povo, eram, por assim dizer, um arraial libertário, mas cumpriam a função. Trafulhice, aquilo? Não. Bagatelas, pequenos truques de ilusionismo, alguns até bastante ingénuos e que geralmente acabavam por anular-se entre si e nem davam caso. Agora seria impossível que tal acontecesse, com a experiência burocrática entretanto adquirida, com o rigor vigente e o cada vez mais apertado controlo nos actos eleitorais, com os doutores a tomarem conta. A política chegou em força e escangalhou as autárquicas, que perderam definitivamente a piada. Acabou-se o descaramento, isso é verdade. Agora os cambalachos fazem-se pelo soleno...
quarta-feira, 22 de setembro de 2021
O retrato do falecido
Manifestamente incomodado, o morto levantou-se e disse: - Mas quem caralho deu a minha fotografia ao Correio da Manhã?...
Génio empresarial
Foi uma revolução completa na frota da empresa. Os veículos passaram a chamar-se viaturas.
Combustível, vamos definir...
terça-feira, 21 de setembro de 2021
Os amigos são para as ocasiões
Os jornais às vezes
segunda-feira, 20 de setembro de 2021
Muitíssimo obrigadíssimo!
A Rosa do Piroco (Senhora Rosa do Mato!, corrigia-me a minha mãe), o Zé de Castro poeta e cauteleiro, o Chupiu, o Manel do Campo, o Luisinho com o "criado" atrás, o Zé Cão, o Roda Forte cauteleiro, o Pai Zé cauteleiro e gasolineiro, o Meireles de Antime, o Malhado decilitrador premiado e competente arranjador de guarda-chuvas, o Clemente que construía pipas e escadas e era tão pequenino que eu nunca percebi onde cabia tanto tabaco e aguardente, o gigante Barnabé e o mano, o Rates artista da bola, o poeta Augusto Fera, o Álvaro da Dinâmica, o carteiro Aristides, o Zé Sacristão, o Sr. Ferreira do Hospital, o 17 da Bomba, meu avô.
O Sr. Arcipreste, o Maló que era de Fafe em dias certos e cantava fanhosa e desalmadamente o "despedi-me e fui para longe" na esquina da minha rua, o Quinzinho da Farmácia que era o melhor médico do mundo, o Rui que era irmão do Renato e ardinava o Comércio do Porto, o Pedro e o Norte Desportivo, o Guia e a língua portuguesa, o Zegolina e a má-língua, o Batata, o Miguel Chichilim, o Fiu, o Chichirini, o Neca do Hotel, o Zé Manco, o Zé Manquinho, o Sibino, o Sr. Augusto Paredes, o Jerónimo Barbeiro, o Zé Bastos, o Chester faz-tudo, o Nélson Fafe e a alma do teatro, o Sr. Saldanha e a Bandeira Nacional.
Na música: os Bacalhaus, os Custódio, os Gandarelas, os Betas, os Silvas, os Maciéis. Nos bombeiros: o comandante Luís Mário, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Quintos, os Ferreiras e os Nogueiras, os Moleiros e os dos Santo, mestres também de filosofias de carne e osso e do jogo do pau.
O Joãozinho da Loja Nova que era um partidão e nem assim, o Joãozinho Summavielle e o meio fininho ao balcão do Peludo de costas voltadas para a televisão, o engenheiro Mário Valente doente da bola e fazedor do que Fafe é, o Albano das Águas esperto que eu sei lá, o Armindo Alves que era a Banda de Revelhe, o Mário Chanato, o Zé do Registo, o Fernando da Sede, o Sr. Avelino do Café, o Flórido engraxador, o Belinho, o Baptista do Asilo, o Nelinho da SIF, o Guarda-Fios, o Miguel do Zé da Menina, o Miguel Cantoneiro, o Chaparrinho, o Nelo Chapeleiro, o Manel da Pinta, o Nelinho Barros, o Hugo Alfaiate, o Chico da Libânia, o Toninho Nacor e a Dona Isabel, o padre Barros, o padre Zé, o Bilinho e o Bergiga meus companheiros de infância, o inesquecível Berto Dantas.
E, ainda por cima, o grande Zé Manel Carriço, provavelmente o homem mais extraordinário que conheci em toda a minha vida.
A todos e outros que tais, os meus respeitos. Muito agradecido por serem a minha memória.
Aqui há uns anos soube que foi feito um "Dicionário dos Fafenses" ilustres. A lista oficial, estou quase certo, não será exactamente esta, a minha, posto que incompletíssima. Mas lá está. A ilustreza é um conceito deveras relativo. Como certos e determinados pronomes...
P.S. - Publicado originalmente no dia 30 de Março de 2014, abrindo a série "Fafenses excelentíssimos". Porque há mais! Hoje, 21 de Setembro, é Dia Mundial da Gratidão.
Joie de vivre
Jogue golfe com moderação
Depois do quinto shot, o famoso jogador de golfe já via tudo a dobrar. O buraco 17 parecia-lhe o 34, o que é manifestamente irregular.
P.S. - Sem brincadeiras: hoje, 21 de Setembro, é Dia Internacional do Minigolfe.
domingo, 19 de setembro de 2021
Nostradamus, vostradais, elestradão
Nostradamus, nome latino e artístico, padecia de epilepsia psíquica, de gota e de insuficiência cardíaca. Se a isto tudo somarmos a habilidade para a leitura dos astros e das cartas de tarô, facilmente perceberemos que o artista viveu e morreu antes do tempo. O nosso Miguel seria o convidado ideal, diário, bidiário, ou talvez até terciário, para todos os programas das manhãs e das tardes das televisões generalistas portuguesas de hoje em dia.
A mais eficaz profecia de Nostradamus acabou por ser, lamentavelmente, a do seu próprio falecimento. Em 1566, dia 1 de Julho, inesperada véspera do definitivo dia 2 de Julho, estava o profeta cada vez mais à rasca derivado ao dramático agravamento da gota e da artrite, chamou o seu secretário e, entre trovões e relâmpagos e talvez sarças ardentes de febre, disse-lhe o que já lhe dissera mais do que uma vez: de amanhã não passo. E finalmente acertou.
P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Dezembro de 2019. E atenção: Renascença não quer dizer Rádio Renascença. Mas ao que eu vim: na Roma antiga, hoje, 20 de Setembro, decorreria o Festival de Témis, considerada deusa da justiça, do destino e da profecia. Filha de Úrano e de Gaia, na mitologia grega, irmã dos titãs e das titânides, Témis foi segunda esposa de Zeus, depois de Métis e antes de Hera.
sábado, 18 de setembro de 2021
Os influentes
Limpeza das praias
Hoje, 18 de Setembro de 2021, é Dia Internacional da Limpeza Costeira. Decerto era a isso que a Senhora Dona Paula Bobone, essa colossal cabeça, se referia aqui atrasado quando opinou em entrevista que "a entrada nas praias deveria ser paga, para se fazer uma certa selecção".
Livraria
Os livros
sexta-feira, 17 de setembro de 2021
À mesa
E ao terceiro sábado...
Perfume de mulher
Que se segue? Na vasta sabedoria dos meus nove-dez anos resolvi então que aquilo de os padres cheirarem a perfume era para disfarçar o cheiro a tabaco. Os padres não queriam que o povo soubesse do cigarrito às escondidas. Bem visto! Porque naquele tempo fumar era um pecado muito grande, praticamente ao nível da masturbação.
quinta-feira, 16 de setembro de 2021
O mistério dos hemisférios
Já repararam como o hemisfério norte encaixa tão bem no hemisfério sul, e ficam ali os dois hemisférios hermeticamente atarraxados no equador e às voltas ao Sol, sem uma folga, e sem entornarem a água dos oceanos, ainda que a Terra esteja de momento ligeiramente chateada nos pólos derivado ao aquecimento global? É um mistério. Penso muito nisto, sobretudo por causa dos peixes, coitadinhos...
Ligeiramente chateada nos pólos
quarta-feira, 15 de setembro de 2021
O feitiço contra o feiticeiro
terça-feira, 14 de setembro de 2021
Os pontos nos ee
Vendo pontos de vista para o mar
Eu tenho uma certa maneira de ver as coisas, isso é verdade. Mas não possuo aquilo a que se possa chamar um prisma, uma óptica, sequer um ângulo que se diga. Tivesse-os eu, e vendia-os...
Ponto de honra
Licenciou-se. Fez três mestrados, uma pós-graduação, uma pós-produção e uma pós-tulação. Arranjou trabalho num call center. O pai, preocupava-o o pai: certamente desiludira o cota. O cota dizia-lhe que não: - Meu filho, qualquer emprego é bom e digno desde que seja honesto. Ainda que assaltes bancos ou roubes velhinhas, se o fizeres honestamente, serás sempre o meu orgulho.
Pontos de vística
- Pelo contrário, ó ilustríssimo: estou absolutamente cértico.
Agá Ramos e pronto. Ponto.
Gosto de palavras, gosto do falar antigo, gosto de nomes, gosto de
brincar com nomes.
Gosto de me rir. E às vezes rio-me com os nomes que me vêm à cabeça,
por exemplo Al Mirante, Bill Tre, Sam Dwich, Sara Pinto, Rick Ardo,
Poly Ban, Bica Bornato, Bee Tock, Herr Nesto, Sade Miranda, Bob Adela,
Rui Barbo, Bib Alves, Ono Mástico, Ray Naldo, Ca Trel, Pio Nés, Kris
Talino, Dick São, Tony Truante, Sal Amandra, Mick Ose, Lee Moens, Rita
Lina, Aury Cular, Ted Io, Nick Utina, Otto Mano, Su Papo, Tuli Creme,
Pan Ike, Gal Déria, Philip Inas, Ary Ston, Jerry Kan, Karl Inga, Bruce
Li, Bruce
Lose, Andy Capp, Car Burant, Lu Na Park e Buzz U-Lak. Rio-me também do meu
apelido, doellinger, que não levo a sério e só me arranja confusões.
Silva
servia-me muito bem. E sabeis que mais? Quem se leva a sério é tolo. Eu
sou o principal motivo do meu riso, e, podeis crer, farto-me de rir.
Rio-me de mim até
na desgraça, e a desgraça é o meu dia-a-dia.
Eu assino agá. Exactamente agá pequenino ponto, h., sei muito bem o meu
lugar e o meu tamanho no mundo. É: agá, de hernâni, e pronto.
O meu sonho, um dos meus mais de mil inconsoláveis sonhos, era, porém, chamar-me e poder assinar H. Ramos. Quero dizer, agá ramos.
P.S. - Hoje, 15 de Setembro, é Dia Internacional do Ponto.
Fernando Nobre, o peneirento
Há que tempos que não me vinha à cabeça a palavra peneirento. Veio-me
ontem, com acento na penúltima sílaba e tudo - "peneirénto" -, como se
diz na minha terra. E devo o momento de tocante nostalgia ao Dr.
Fernando Nobre e à sua mais que esperada renúncia ao cargo de deputado.
Muito obrigado, senhor doutor.
Arrumado contra-vontade no baú das expressões populares, o adjectivo
peneirento tem vindo a ser substituído por sinónimos tão modernos como
vaidoso, presumido, pretensioso, presunçoso ou pedante. Também estão bem
para o caso em apreço, mas não são a mesma coisa.
Fernando Nobre, o antipolítico que apoiou Durão Barroso na ressaca
pós-guterrista e depois se arrependeu, que apoiou Mário Soares, que
apoiou o Bloco de Esquerda, que apoiou António Capucho (PSD) à Câmara de
Cascais, que se apoiou a si próprio à Presidência da República, contra
todos os partidos, e que logo a seguir teve uma recaída social-democrata
para ser "candidato" à presidência da Assembleia da República, não vai
deixar saudades, mas mete pena.
Este percurso aos ziguezagues, que acabou da pior forma com o tremendo
estampanço no Parlamento, é o triste retrato de um homem de 59 anos que
parece que nunca soube o que quer ser quando for grande. A não ser, ser
importante, ser mais que os outros, como o poeta de Florbela.
Ser deputado da Nação é ocupação menor para o fundador da AMI. Nobre,
que sonhara ser a primeira figura do Estado e avisou logo que nunca
aceitaria ser menos do que o segundo na hierarquia nacional, saiu do
Parlamento pela porta pequena e já sem o seu halo de santidade, deixado
para trás das costas em estilhaços.
Ironicamente, a Wikipédia regista Fernando Nobre como "médico,
activista, professor universitário e político português". Político
português! A vaidade, o desastre que foi a sua breve passagem pela arena
política, não pode apagar nem prejudicar sobretudo o seu trabalho
humanitário de anos e anos. Foi uma pena, de facto, tudo o que ele se
fez passar para tentar chegar ao poleiro mais alto. Nobre não merecia
isto de si próprio. Até porque é certamente uma pessoa estimável, um
português excelentíssimo. Mas peneirento.
segunda-feira, 13 de setembro de 2021
Vivinho da Silva
Chamava-se Vivinho da Silva e era gozado por toda a gente. Quando morreu, então, foi uma risota...
domingo, 12 de setembro de 2021
O tipo do mito urbano e o mito do tipo rústico
- Faz favor de desculpar, o senhor é o tipo do mito urbano, não é?
- Mito quê?
- Mito urbano. Urbano. Citadino, civilizado, cortês, polido, gafonha,
urbanita, urbícola, correcto, afável, aprazível, fruitivo, lisonjeiro,
mavioso, amorável, charmoso, peralta, lhano, tirone, refinado,
esticadinho, delicioso, educado...
-
O que são as palavras, veja lá o senhor. Não, não sou o tipo do mito
urbano. Na verdade fiz-me homem em Valnogueiras, Vila Real de cima, sou
portanto e pelo contrário, se me está a acompanhar, o mito do tipo
rústico.
- Tipo quê?
- Tipo rústico. Rústico. Rusticano,
rural, aldeão, camponês, campino, campesino, campesinho, campestre, campónio, agrário,
casca-grossa, labrego, parolo, lavrador, grosseiro, bruto, boçal, besta, bronco, grunho, labrego, malcriado...
- Realmente o que são as palavras. Mas é tão parecido com ele...
- Porém, não sou ele. Por favor, não me comprometa. Se o senhor disser que eu sou ele, eu nego. Ene-é-gê-ó. Nego!
- Palavra de honra, aqui que ninguém nos ouve, o senhor nunca foi o tipo do mito urbano nem por um bocadinho? Ande lá...
- Nunca, meu caro senhor. Aliás, se me permite,
desafio qualquer um a recordar alguma intervenção ou escrito que eu
tenha tido nesse sentido e que, de uma ou outra forma, me possa conectar
a essa lamentável problemática. Desafio. Eu sou o mito, não sou o tipo,
e ponto final.
P.S. - Hoje, 13 de Setembro, é Dia Mundial do Agrónomo. Sobretudo no Brasil.
Massas
Bem prega frei Tomás
Tomás era o faz-tudo do convento. Agricultor, apicultor, sacristão, chef de cozinha, porteiro, parteiro, telefonista, copista, contorcionista, iluminador, vendedor de imóveis, disc jockey, picheleiro, Pai Natal, guarda-redes, mas sobretudo era um carpinteiro de mão cheia. Fosse o soalho do refeitório ou empreitada mais modesta, de martelo em riste, pregador como ele não havia.
sábado, 11 de setembro de 2021
Quando a "puta" tocava
A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. Os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta. Mas quando ela tocava era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros largavam em pleno andamento ao chegarem ao quartel e um mirone encartado ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a estorvar a saída dos carros de incêndio. O Casimiro da Caixas tinha vindo de Guimarães, onde decerto nascera, como talvez Portugal, e nunca se descolou daquela pronúncia carregada que nos fazia rir a todos.
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.
(E havia os espontâneos, que afinal não eram tão espontâneos assim. Moravam ali à porta e estavam sempre de prevenção para uma emergência que o fosse realmente. Faltava um motorista, a saída estava a atrasar-se? - era só chamar por eles e eles avançavam: lembro-me do Fredinho Bastos e do irmão Quinzinho, do Varinho Dantas ou do Toninho da Luísa, que tinha piada fina e eu gostava de imaginar DaLuísa derivado ao comediante americano Dom DeLuise, mas isso já é outro filme. Se calhasse, enfiavam um blusão e um bivaque, só para despaisanar, e avançavam a todo o gás, bombeiros como os de exame feito e papel passado e ainda mais voluntários, mas qual seguro qual carapuça! Ser-se bombeiro era efectivamente um estado de alma. E estes eram bombeiríssimos de primeira.)
Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...
Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Às vezes, não. Às vezes o herói faz o que tem de fazer, isto é, faz o que fazem os heróis, e depois desaparece em direcção ao sol poente. Desaparece e nunca mais.
P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Novembro de 2011.
O homem-rã
Incêndios e outros negócios
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina e galões no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.
Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Tolos porém honrados. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel...
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do desemprego, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.
Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.
P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Agosto de 2016.
sexta-feira, 10 de setembro de 2021
O drama, a tragédia, o horror. O sangue...
Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com
a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do
hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e
finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros,
assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e
caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria
a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a
casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram,
portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor
servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima
ou por aqueles degraus abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom
do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela
gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres
afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no
avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi
"a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque,
naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma
ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no
meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas
do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes
esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos
ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o
home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? E muitos Uis! e muitos Ais! e
muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Estavam ali no relambório, a dar
água sem caneco e a benzer-se na direcção da Igreja Nova, mas sem perder
pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita,
vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte.
Era um fartote! Uma comoção!...
Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas
do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem na CMTV.
P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Fevereiro de 2016.
A sarça ardente (ou Chamem os bombeiros!)
A Festa da Bomba
Foto Tarrenego! |
Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do Santo António na minha rua. Quanto à enormeza da Senhora de Antime, sobretudo da sua incomparável e pungente procissão, suponho que estamos conversados. Do nosso Santo António já aqui dei um lamiré, e é preciso não esquecer que até tínhamos foguetes e altifalantes que o Zé da SIF arranjava e metíamos raivinha às outras ruas todas, incluindo avenidas, rampas, quelhas e largos como o nosso. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver. Mas as festas. Faltava a festa de anos dos Bombeiros Voluntários de Fafe - a Festa da Bomba -, e vamos a isso.
A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam demais aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.
P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Abril de 2012. Hoje, 11 de Setembro, é Dia Nacional do Bombeiro Profissional, outra coisa.