domingo, 31 de julho de 2022

O contador de pessoas

Levava um banquinho e sentava-se em Cima da Arcada, de guarda-sol aberto, em dias assim-assim, e um caderninho de folhas quadriculadas, sempre. Se por caso invernasse, o guarda-sol chamava-se guarda-chuva. Mas ele. Ele espertava os olhos cansados, via sair, e tomava nota. Saíam do Mário da Louça, do Damião Monteiro, do Império, do Fernando da Sede, do Foto Jóia, do Talho, do Romeu, da Caixa, do Martins da Avenida, do Rabeca, da Câmara, do Café Avenida, da Peninsular, do Moniz Rebelo, das camionetas do João Carlos Soares, da Juditinha, do Sanica, do Casinhas, da Senhora Eufémia, do Américo das Bicicletas, do Alfredo Sapateiro, das Lobas, do Club, da Pacata, da Loja Nova, da Casa da Cera, dos Armazéns Cunha, do Banco, do Martins Relojoeiro, da Electra, do Manel do Campo, até saíam do Escondidinho. Saíam, e ele registava a lápis lambido, mão trémula porém infalível. Analfabeto de nascença, utilizava a técnica do Miguel Cantoneiro, ecumenicamente adaptada: uma cruzinha para os pobres e desiludidos como ele, uma cruz para os menos mal da vida e um cruzeiro para a dúzia e meia de cagões locais. À noite, em casa, depois da sopa e antes do terço, fazia a soma das cruzes, por escalões, comparava com os dias anteriores, as contas todas certinhas, noves fora nada, anotava as variáveis e arquivava tudo no saco de serapilheira debaixo da cama. Aos domingos de manhã, em vez de ir à missa, fazia uma pequena fogueira e queimava tudo enquanto assobiava vigorosamente o hino de Fafe, "Fafe querido", mas de trás para a frente. Chamavam-lhe o Vigilante. Talvez vigilante da natureza. Da natureza humana. Diziam que ele era doudo, para o que lhe havia de dar, ser contador de pessoas. Ele dizia, porém, que era contador de anedotas...

P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Outubro de 2017, sob o título "O velho contador de anedotas". Hoje é Dia Mundial do Vigilante da Natureza.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 223

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Não, não é o único

Não. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, não é o único a esconder os crimes de pedofilia perpetrados no interior na Igreja. Não. Todos os bispos portugueses sabem de casos, recentes ou antigos, e a maioria do clero subalterno também. Mas fazem-se de virgens, encobrem-se uns aos outros, funcionam em cartel. Omitem, calam. E quando falam desfalam. Fazem números de circo com as palavras. Ou mentem. Mentem muito.
E isso revolta-me. Revolta-me tanto!
Tanto, que em 2018, mais ou menos por esta altura do ano, não consegui conter a minha indignação após nova ronda de declarações avulsas e falsas sobre o assunto, creio que por parte da Conferência Episcopal, e, em desespero de causa, cedi à ingenuidade momentânea de enviar um email a um bispo amigo a quem eu devotava o maior respeito e admiração. Era um apelo.

"Caro [...],
Perdoe-me o atrevimento. Em nome da nossa amizade antiga, infelizmente breve, porém limpa, quero fazer-lhe um pedido urgente:
Por favor, não deixe que os seus colegas bispos digam que não têm denúncias sobre casos de pedofilia. Têm. Têm. E o jogo semântico da afirmação hipócrita é de uma habilidade patética e criminosa. Os bispos não precisam de denúncias, os bispos sabem. Sabem. Sabem.
Caro [...],
Rogo-lhe: diga, faça alguma coisa. Em nome das vítimas e dos que, como eu, e eu sou o menos, ainda esperam uma igreja justa, misericordiosa, amparo dos pobres e fracos. Seja, por favor, a voz do Papa em português, já que os seus colegas bispos fazem questão de desperceber o que ele diz."

Convenientemente de férias, o bispo amigo teve, ainda assim, a amabilidade de responder-me.

"Do Algarve, apenas te diria que teria muito gosto em falar contigo. Não tenho problemas em abordar qualquer assunto. Aparece ou diz-me onde te poderei encontrar para conversarmos."

Estão a ver? Percebem o que eu quero dizer quando falo em hipocrisia? Eu não precisava de encontrar-me com o bispo nem gosto que me mandem calar. E conversarmos o quê? Eu não fui vítima de pedofilia ou de qualquer outro abuso sexual, felizmente não careço desse exorcismo. Eu, na minha boa intenção, só pedi ao bispo que fizesse ouvir a sua influente voz, que chamasse os seus colegas bispos ao bom caminho. Enfim, eu só implorei ao meu amigo bispo que ele revelasse o que eu sei que ele sabe. Mas quanto a isso, nem um pio...

P.S. - Mais sobre o assunto, na síntese de textos abaixo.

Os nossos bispos e os abusos sexuais

Uma mão cheia de nada
José Ornelas, bispo de Setúbal, é o novo presidente da Conferência Episcopal PortuguesaE na sua primeira entrevista nacional vai logo directo ao assunto: a Igreja não pactuará com abusos sexuais. Os abusos sexuais de que a Hierarquia portuguesa nunca soube, não sabe, nunca viu, nunca ouviu, não tomou conhecimento nem desconfiou, mas está contra, pelo menos de quinze em quinze dias, o que não deixa de ser curioso e suspeito. Em Fevereiro do ano passado já o cardeal de Lisboa, Manuel Clemente, encurralado pelo discurso de Natal do Papa Francisco, admitira "reforçar" o que é feito pela Igreja Católica em Portugal para prevenir os abusos sexuais e apoiar as vítimas. Isto é: nada.

Por pensamentos, palavras, actos e omissões
Deus ensinou-nos - porque foi Deus que inventou a religião, católica apostólica romana evidentemente, e inventou a liturgia, a cor dos paramentos, as mitras e o báculos, o beijo no anel e as isenções fiscais, as côngruas e as catequistas, e inventou as orações e a culpa -, Deus ensinou-nos a confessar que pecámos "muitas vezes por pensamentos e palavras, actos e omissões". Deus, que não dá ponto sem nó, deixou as omissões para o fim para que não nos esquecêssemos. Como se nos avisasse: - Meu filho, deixa-te de tangas, omitir, sim, é pecado, é pecado, e já me tens à perna!...
Quanto à pedofilia e outros abusos sexuais no seio da Igreja portuguesa, os nossos bispos são sobretudo omissos, quer-se dizer, pecadores. Não fizeram, não viram, não ouviram, não conhecem, não sabem. São omissos com quantos dentes têm. O último a meter o pé na argola foi o arcebispo de Braga, Jorge Ortiga, numa recente entrevista ao Observador. O Dr. Jorge Ortiga, que em tempos segui e admirei pelo seu entusiasmo e contagiante militância em favor da actualização e abertura da Igreja pós-Concílio Vaticano II (dizia-se aggiornamento, lembram-se?), subiu a bispo, ainda por cima de Braga, e parece que caducou. Também ele não sabe nada sobre pedofilia e outros abusos sexuais no seio da Igreja. Embora eu saiba que muitas pessoas sabem que o arcebispo sabe muito mais do que diz não saber. Omisso? Homessa!

Cardeal-patriarca fala do que não sabe
Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, não sabe nada de casamento - o que até se compreende, porque é solteiro. Também não sabe nada de sexo - o que se pode aceitar, porque certamente nunca praticou. Ainda assim, ignorante em toda a linha, debita palpite sobre os dois assuntos, defendendo que os católicos recasados "em situação irregular" devem ser aconselhados a viverem sem relações sexuais.
Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, sabe muito bem da pedofilia na Igreja portuguesa. Falando do que sabe e do que realmente lhe diz respeito, gostaria de o ouvir propor que os padres devem ser aconselhados a deixarem as pilinhas dos meninos em paz.

Bispo pede campanha contra pedofilia na Igreja
O título deste texto é mentira, e o que se segue também. O bispo de Viana do Castelo, Anacleto Oliveira, apelou hoje ao Presidente da República para "liderar a mobilização de toda a nação" numa "causa nacional" contra a pedofilia na Igreja, por considerar que o que tem sido feito "não chega".
"Nada há de mais poderoso e eficaz [do] que um povo inteiro unido pela mesma causa, no comum modo de viver e pensar, numa mesma cultura", fez notar o prelado, defendendo que "chegou a hora" de o País "gritar bem alto: basta de pedofilia nos colégios católicos, nos seminários e nas sacristias".
A última parte desta última parte também é inventada. A versão verdadeira, que tem a ver com incêndios e é um bocado de rir, está no jornal Público, que copiou da agência Lusa.
Repiro: o título deste texto é mentira. E é pena.

Os gays, ou quando a Igreja não sabe ser mãe
Diz que vai por aí uma certa e determinada confusão a propósito de umas tais declarações da "psicóloga católica" Maria José Vilaça. A Psicologia Católica é uma especialidade clínica (suponho) que eu ignorava, mas não sou dos que negam à partida uma ciência que desconheço. Portanto...
Maria José Vilaça diz que disse à revista Família Cristã que ter um filho homossexual é como ter um filho toxicodependente. "Eu aceito o meu filho, amo-o se calhar até mais, porque sei que ele vive de uma forma que eu sei que não é natural e que o faz sofrer", diz que disse a senhora doutora. Quer-se dizer, ter um filho homossexual ou toxicodepente é o mesmo que ter um filho trolha que a mãezinha sempre soube que nasceu para ser presidente da república. Isto é, ter um filho homossexual, toxidependente ou trolha é praticamente como ter um filho propriamente dito...

Também não sabia dos homossexuais católicos, que certamente serão completamente diferentes dos homossexuais protestantes, dos homossexuais ortodoxos, dos homossexuais judeus, dos homossexuais budistas, dos homossexuais islâmicos, dos homossexuais agnósticos, dos homossexuais ateus, dos homossexuais bissextos e dos homossexuais apenas. Mas, palavra de honra, não quero saber o que é que objectivamente os diferencia...

Mas sei que, por exemplo, a Igreja Católica Apostólica Romana, que impõe o celibato aos seus funcionários de topo (de padres ao Papa) e lhes exige a castidade, desculpa-lhes o pinanço com mulheres, ainda que casadas, e varre para debaixo do tapete o abuso sobre rapazinhos, posto que inocentes. Os clérigos homossexuais que exigem os seus direitos também me fazem rir, porque não sei qual foi a parte que eles não perceberam quando, no acto da ordenação, perante família e testemunhas, se deitaram no chão aos pés do bispo e aceitaram e juraram desatarraxar a pila para todo o sempre, amém.
A ver se me explico: os padres católicos, enquanto a "Lei" for lamentavelmente assim, não podem reclamar direito a sexualidade de marca nenhuma - nem homo, nem hetero, nem bi, nem pan, nem tudo ao monte e fé em Deus, nem sequer à punheta, escusam de vir com paninhos quentes. Não há sexo para ninguém! Os padres não podem ser sexuais.
O lamentável, o triste, o nojo é que a Igreja instrumental, especialista circense em malabarismos hipócritas, cirrosada em pecado e vício até aos entrefolhos, continue a oprobrizar os seus filhos homossexuais que afinal nunca juraram a Deus castidade e que só querem ser felizes com quem escolheram e acreditando e vivendo em Jesus, tenham ou não cartão de católico em dia. Uma Igreja assim não é boa mãe...  

Igreja reúne-se de emergência
"A Igreja vai reunir-se de emergência na segunda-feira, em Fátima", avisa o JN. Não sei se é verdade, mas, a ser, é preciso tomar nota: em Fátima evidentemente, e de emergência. E por que razão reúne a Igreja portuguesa, de emergência, em Fátima? Por causa da pedofilia interna? Não. Por causa da fome externa? Não. Por causa da pobreza geral? Não. Por causa do desemprego dos outros? Não. Por causa da crise de vocações sacerdotais? Não. Por causa da falta de povo e de fé nas igrejas e nas procissões? Não. Por causa do burquíni? Não. Por causa dos incêndios de Verão? Não. Por causa do terramoto em Itália? Não. Por causa dos atentados na Turquia? Não. Por causa da guerra na Síria? Não, não e não. "A Igreja vai reunir-se de emergência na segunda-feira, em Fátima, para decidir a resposta a enviar ao Estado, que recentemente notificou a maioria das 4376 paróquias a nível nacional para pagarem imposto municipal sobre imóveis dos seus edifícios e terrenos."

O homem que sabia uma coisa terminada em "ia"
José Policarpo sabia de uma coisa terminada em "ia". Pedofilia?, perguntaram-lhe logo. Não, de pedofilia não sei nada, respondeu. Compaixão?, insistiram. Vão-se lixar, isso não interessa para nada e nem sequer termina em "ia", protestou o príncipe da Igreja na reforma. Economia, sei é de economia, acabou por se abrir o emérito, parece que um tudo nada afrontado com a maneira leviana como sindicatos e oposição estão a governar Portugal. Ou então seriam gases.

E as provas? E os nomes?
A Conferência Episcopal Portuguesa garante ter dado "passos muito concretos na luta contra a pedofilia". Deu? Pois então que apresente provas, que diga nomes, como exige àqueles que denunciam os abusos praticados no interior da Igreja. Porque "não se deve dizer mais do que a verdade".

Os bispos e a pedofilia: mais um pequeno passo
Eurico Dias Nogueira, antigo arcebispo de Braga, é da minha opinião: a Igreja Católica portuguesa "esteve demasiado calada" sobre os casos de pedofilia que aconteceram no seu seio. Em entrevista à rádio Antena 1, o prelado confirma ter informações de casos de abusos sexuais de menores dentro da instituição, que critica por ter tentado "abafar" as situações, sem "resolver" o problema. "Fazia-se isso secretamente", diz.
E querem saber como é que a Hierarquia "abafava" os casos? Por exemplo, mudando os padres pedófilos de paróquia em paróquia e de escola em escola, assim multiplicando o número de vítimas.

Os nossos bispos, a pedofilia e a hipocrisia deles
José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, garantia em Dezembro do ano passado, meia dúzia de dias antes do Natal, que não conhecia casos de pedofilia na Igreja portuguesa. Mas também dizia que o melhor era não "deitar foguetes antes da festa, porque um caso pode sempre aparecer". Pois pode e é preciso ter cuidado. Não faltam por aí manetas, por eles, os foguetes, lhes terem rebentado nas mãos - avisei eu.
Ontem, José Policarpo anunciou que os bispos portugueses querem que as vítimas de abusos sexuais por parte de membros do clero participem os casos "às autoridades civis competentes".
Não sei se o cardeal arrepiou caminho apenas para salvar as mãozinhas ou se teve um rebate de consciência. Mas este desafio dos bispos, tal como foi lançado cá para fora, enrodilhado em alegadas questões legais (e não morais, valha-nos Deus), é uma indecência e de uma hipocrisia e crueldade para com as vítimas que envergonham o Jesus Cristo que as excelências reverendíssimas deviam pregar e viver.
Quem é esta gente que fala em nome da minha Igreja e já não sabe o que é o amor ao próximo e a caridade cristã? O que é que acontece a esta gente quando se veste de vermelho, para tão escandalosamente desdenhar dos mais fracos e indefesos, dos estropiados?

E, no entanto, José Policarpo e os seus bispos (não sei quem os empurrou) deram um passo em direcção à verdade: há pedófilos e vítimas de pedofilia na Igreja portuguesa. A Hierarquia anda muito devagar e por isso eu só lhe peço que tente, para já, mais um passo. Um pequeno passo até ao enorme tapete para baixo do qual tem varrido, pelo menos ao longo dos últimos quarenta anos, os diversos casos de abusos sexuais sobre menores que conhece e a que fecha os olhos. E que tenha a dignidade mínima de expor, expurgar e fazer castigar os violadores e não as vítimas.

O cardeal e os foguetes
O cardeal-patriarca de Lisboa garantiu ontem, em entrevista à rádio TSF e ao jornal Diário de Notícias, que não conhece casos de pedofilia na Igreja portuguesa. Mas, à cautela, acrescentou que "não podemos estar a deitar foguetes antes da festa, porque um caso pode sempre aparecer". Faz muito bem o senhor D. José Policarpo. Foguetes, não! Ainda lhe rebentam nas mãos. 

P.S. - Textos publicados originalmente entre Dezembro de 2011 e 21 de Junho de 2020, do mais recente para o mais antigo.

Trunfo é paus

Quatro tigres-de-bengala. Jogam sueca e contam dos netos na fresquinha do jardim.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Tigre.

Quantas noivas ficaram por casar

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Consumir de preferência antes de

Ele era um acérrimo defensor da conservação da natureza. Em frasco, mas sobretudo em lata.

P.S. - Exactamente. Hoje é Dia da Conservação da Natureza.

Chancas à porta

As chancas eram de pobres. De gente do campo, rota e remendada. Suja. E de choro e ranho em casa, ó mãe eu tenho vergonha de ir assim para a escola, quero uns sapatos como os outros meninos. Efectivamente, os meninos ricos tinham sapatos, botas e sandálias, consoante a estação do ano no tempo em que havia estações do ano, e os paizinhos dos meninos ricos, depois de razoavelmente gastos os sapatos, as botas e as sandálias dos filhos, vendiam o calçado aos pais dos meninos pobres. Vendiam. Na minha terra, os paizinhos dos meninos ricos eram muito ricos e muito da religião e da santamissinha e das procissões e vicentinos, mas vendiam aos pobres - não davam. Vendiam. Se calhar por isso é que eram ricos. Quem dá aos pobres empresta a Deus, quem vende aos pobres é que se safa. Alguns safaram-se, amém.

Chancas é calçado de pau, valha-me Deus! E no entanto chancas era bom. Porque abaixo de chancas eram socos, ainda mais miseráveis e lavradorescos, e abaixo de socos era descalço. Sim, descalço. Andava-se descalço no Portugal pré-25 de Abril, tal qual como agora nos querem. Andava-se descalço por necessidade e quem andasse descalço era multado pela polícia, ia para o posto e até podia acabar na Pide e na cadeia. Não é altamente suspeito que nos tenham deitado ao lixo a memória daqueles anos?
Mas, perdi-me, era apenas para dizer mais isto: as chancas, exactamente como as galochas, estão na moda. Suponho que os netos, as netas, os bisnetos e as bisnetas dos ricos da minha terra correm todos a comprar chancas. Anacrónicos por maldição, os pobres da minha terra calçam sapatinho dirópito - e choram. E eu só me dá para rir.

À conclusão: ao andar, as chancas e os socos, batendo em cheio no chão, faziam um basqueiro desgraçado. Dentro de casa, naqueles velhos soalhos gastos, carunchosos e periclitantes, então era um autêntico terramoto, aliás muito bem aproveitado como fundo musical pelos ranchos folclóricos. Mas no dia-a-dia antigo, doméstico, as chancas e os socos ficavam à porta, do lado de fora. Por causa do banzé, da lama e da terra que traziam agarradas dos campos e do quintal, e evidentemente derivado ao chulé.

Pensamento do dia

- Gosto muito de pensar.
- O mundo?
- O gado.

As galochas, da parolice à passarela

As mulheres do campo sempre andaram de galochas. Antigamente uma mulher de galochas era de rir, era parola. Agora andar de galochas é moda, as mulheres vão de galochas para o escritório e para o café. Fico à espera do avental. Ainda hei-de ver as madamas a tomarem chá de mindinho esticado e com um molho de couves à cabeça.

O nosso homem no terreno

Quando ela falava do seu homem no terreno, havia logo quem imaginasse histórias de espiões, acção, aventura e romance. Mas não. Ela falava do marido e da hortazita que o desgraçado fabricava nas traseiras da casa em horário pós-laboral.

Mistérios da natureza

Semeava ventos e colhia tempestades. Nunca conseguiu perceber.

O mito urbano e o mito rústico

- Faz favor de desculpar, o senhor é o tipo do mito urbano, não é?
- Mito quê?
- Mito urbano. Urbano. Citadino, civilizado, cortês, polido, gafonha, urbanita, urbícola, correcto, afável, aprazível, fruitivo, lisonjeiro, mavioso, amorável, charmoso, peralta, lhano, tirone, refinado, esticadinho, delicioso, educado...
- O que são as palavras, veja lá o senhor. Não, não sou o tipo do mito urbano. Na verdade fiz-me homem em Valnogueiras, Vila Real de cima, sou portanto e pelo contrário, se me está a acompanhar, o mito do tipo rústico.
- Tipo quê?
- Tipo rústico. Rústico. Rusticano, rural, aldeão, camponês, campino, campesino, campesinho, campestre, campónio, agrário, casca-grossa, labrego, parolo, lavrador, grosseiro, bruto, boçal, besta, bronco, grunho, labrego, malcriado...
- Realmente o que são as palavras. Mas é tão parecido com ele...
- Porém, não sou ele. Por favor, não me comprometa. Se o senhor disser que eu sou ele, eu nego. Ene-é-gê-ó. Nego!
- Palavra de honra, aqui que ninguém nos ouve, o senhor nunca foi o tipo do mito urbano nem por um bocadinho? Ande lá...
- Nunca, meu caro senhor. Aliás, se me permite, desafio qualquer um a recordar alguma intervenção ou escrito que eu tenha tido nesse sentido e que, de uma ou outra forma, me possa conectar a essa lamentável problemática. Desafio. Eu sou o mito, não sou o tipo, e ponto final. 

P.S. - Hoje é Dia do Agricultor. No Brasil.

terça-feira, 26 de julho de 2022

Pai duas vezes

Ele foi pai duas vezes, primeiro uma menina e agora um menino. Quer-se dizer: é praticamente avô...

A bó, o bô e o bu

Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Vezes dois, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos. Bô queria também dizer bom: binho bô; bô moço. Depois, se calhar por soar a parolo, bô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Quem caralho teve a ideia?...

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Avós.

Doce fardo, leve pena

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 25 de julho de 2022

O taxista-leninista

Bem lhe recomendavam que não misturasse trabalho com política, mas ele ignorava. E dizia, alto e bom som, a quem o quisesse ouvir, "Sou taxista-leninista, e com muito gosto"...

Velhos hábitos

Era um homem muito antigo e vivia agarrado a coisas que já não se usam. Vejam lá que quando precisava de um táxi chamava um táxi!...

P.S. - Hoje é Dia do Taxista. No Brasil.

Afogamento

Deixou afogar o motor e isso marcou-o para toda a vida.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Prevenção do Afogamento.

Chovia em Santiago

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 23 de julho de 2022

Corte e costura

Era alfaiate. Mas não era de modas. Podia ser uma ave pernalta limícola da família dos recurvirrostrídeos, de bico comprido, fino e muito curvado para cima, patas azuladas e plumagem branca e preta, mas não. Era um insecto aquático, hemíptero, da família dos hidrometrídeos, de pernas longas, que se desloca sobre as águas. Exactamente. Alfaiate.

P.S. - Hoje é Dia do Alfaiate e da Modista.

Inventei a dança para me disfarçar

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Armado aos cucos

Egas Moniz sempre gostou de fazer a cabeça dos outros. Começou com o pequeno Afonso Henriques e deu-se mal. Depois generalizou e deram-lhe um Nobel. Ultimamente querem tirar-lho, por causa do abuso.

O topa-a-tudo

Viu um anúncio a pedir idiotas e lá foi ele. Estava no fundo do desemprego e respondia a todos os anúncios. 

Quem sai aos seus

Deixe de ser parvo, disse o palerma. E você deixe de ser palerma, disse o parvo. Palerma é melhor que parvo, disse o palerma. Parvo é que é melhor que palerma, disse o parvo. Quem disse, perguntou o palerma. O meu pai, respondeu o parvo. O seu pai é parvo, disse o palerma. E o seu é palerma, disse o parvo. Mas o meu pai é mais palerma que o seu, disse o palerma. E o meu é mais parvo que o seu, disse o parvo. Mas não é palerma, disse o palerma. Nem o seu é parvo, disse o parvo. Dah!, disse o palerma. Dah!, disse o parvo.

Dão-se alvíssaras

Perdeu a cabeça e pôs anúncio no jornal. Faz-lhe muita falta.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Cérebro.

A moça mostrava a coxa

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Aos papéis... e às migalhas

Nos preguiçosos semáforos do frequentadíssimo cruzamento de Valença, na Nacional 13, como quem vai mas não vai para a estação da CP, dois indivíduos vestidos à empregado de mesa distribuem panfletos aos carros que param desprecatados e de vidros abertos. À empregado de mesa, quero dizer, sapatos desengraxados, calças pretas sebosas e camisas que parece que já foram brancas. Os panfletos com letras azuis e tamanhos desaparelhados fazem reclame a um restaurante, a uma churrasqueira, ou mais concretamente a um "asador", como lá diz em título garrafal, e justamente "asador" ainda que o estabelecimento se localize em pleno território nacional, a largos três quilómetros da fronteira com Espanha e "com amplo parque de estacionamento", mas é assim que as coisas são.
Duas das principais especialidades da casa são o "pollo na brasa" e a "costilla de cerdo". Para além dos mais emblemáticos pratos da cozinha tradicional portuguesa, do cozido e da picanha aos diversos bacalhaus e pescada cozida com todos, passando pelo cabrito, pelo leitão, pela vitela, pelo arroz de tamboril e pelo polvo, e com capacidade para 400 - sim, quatrocentas - pessoas, tem também "francezinhas, pizzas e hamburguers". É a promessa de todo um mundo, posto que regional e com ar condicionado. A quem se apresentar com o papelinho na mão, o imenso restaurante diz que regala "una botella de viño para levar p/ casa".
Enquanto isso, duas da tarde, o sol a pique nos semáforos do cruzamento cosmopolita, um dos dois emissários do "asador" farto, generoso, climatizado, bilingue e extraordinário, por acaso o mais velho dos propagandistas gastronómicos, abre um pequeno saco se papel castanho que trazia no bolso das calças e rapa de um lanche já encetado. Dá uma, duas dentadas e volta a guardar a sande pré-fabricada e dura no saco gorduroso e nas calças idem. Limpa a boca com as costas da mão, sacode as migalhas da camisa suada e continua a distribuir papéis. Assim, a seco.

P.S. - Hoje é Dia da Junk Food.

É urgente um barco no mar

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Castigo máximo

Amigo não empata amigo. E foram a penáltis.

Brothers in arms

Já restavam poucos, cada vez menos, mas juntavam-se ano após ano, vindos do país inteiro: o Aguiar da Beira, o Ferreira do Alentejo, o Vieira do Minho, o Miranda do Douro, o Castanheira do Ribatejo, o Costa da Caparica, o Nogueira da Maia, o Oliveira de Azeméis, o Vale de Cambra, o Canas de Senhorim, o Leça da Palmeira, o Figueira de Castelo Rodrigo, o Freixo de Numão, o Sobral de Monte Agraço, o Lajes do Pico, o Santiago do Cacém, o Vila Nova de Cerveira e o Antunes de Pevidém, que nem sequer foi à tropa e ninguém sabe como é que começou a aparecer...  

O grande Jeremias

Encontrei ontem por acaso o Jeremias, o velho Jeremias, o grande Jeremias - aos anos que não nos víamos um ao outro, eu e o Jeremias! Recordámos os tempos antigos, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, da pandemia, do Senhor Luís Filipe Vieira, do Senhor Sérgio Conceição e do Senhor Macaco, do dr. Ribeiro e Castro, dos novos fascistas-racistas, da novíssima terminologia gay, de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia e à distância derivado ainda à pandemia. Despedimo-nos calorosamente trocando abraços da boca para fora e números de telemóvel e apalavrando a marcação de um almoço para quando se Deus quiser. Cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Jeremias, nem sequer é parecido com o Jeremias, apesar da máscara nos fazer a quase todos iguais. Na verdade, tenho agora a certeza absoluta de que não conheço este indivíduo de lado nenhum. Em todo o caso, gostei muito de falar com o Jeremias.

P.S. - Hoje é Dia do Amigo.

Eu me perco em carícias de água

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 19 de julho de 2022

Virtudes teologais

 Fé, esperança e caridade. A fé move montanhas. A esperança é a última a morrer. A caridade tem dias.

Eram pobres e tinham dono

Antigamente a caridade tinha dia certo, e era um descanso. Às sextas-feiras, vamos supor, os pobres manquelitavam de porta em porta pedindo "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Os pobres da parte de fora da porta eram uns desgraçados muito rotos e muito sujos e eram assim para se distinguirem dos pobres da parte de dentro da porta, que já tinham em cima da "cristaleira" umas moedinhas negras separadas e preparadas para a função. Éramos todos pobres, dum e doutro lado da porta, uns mais, outros menos, e, à falta de quem governasse por nós, em Lisboa ou na Câmara, nada mais nos restava senão sermos uns para os outros. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.

(A "cristaleira" tinha sido comprada em terceira mão e paga em honradas prestações.)

Naquele tempo os ricos tinham os seus próprios pobres, privativos, pessoais porém transmissíveis. Os pobres eram deixados em herança. Ter pobres por conta era, pelo menos em Fafe, inequívoco sinal exterior de riqueza. Os pobres eram exibidos, bastas vezes à porta da igreja, como gado preso à argola do tasco em dia de moscas e feira semanal. Para o senso comum, quantos mais pobres alguém tivesse mais rico era. Os pobres eram, portanto, uma necessidade da Nação para que os ricos prosperassem. Quantos mais pobres Portugal tivesse e quanto mais pobres fossem os pobres portugueses mais ricos seriam os nossos ricos e isso certamente era bom para o Produto Interno Bruto.

Isto é: a pobreza convinha-nos, aos pobres. A pobreza era o progresso da Nação. O regime ensinava-nos desde os bancos da escola que felicidade era sermos pobres mas honrados e termos as unhas das mãos sempre limpas. E isso deixava-me cheio de pena dos ricos, infelizes, principalmente dos ricos muito ricos que ainda por cima tinham as mãos sujas.

(Os ricos, pelo menos os de Fafe, não davam a roupa nem o calçado que já não lhes serviam. Vendiam a roupa e o calçado, a pronto, aos pobres da parte de dentro da porta. Os pobres da parte de dentro da porta, passados alguns meses de uso, davam aos pobres da parte de fora da porta a roupa e o calçado que tinham comprado a pronto aos ricos. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.)

Graças a Deus, isto era só antigamente.

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Setembro de 2021, sob o título "A caridade tem dias". Hoje é Dia da Caridade. No Brasil.

domingo, 17 de julho de 2022

O dr. Castro e o dr. Vinagre

O dr. Castro resolveu desancar no dr. Vinagre. Fê-lo há dias, numa espécie de artigo de opinião, no DN, a propósito dos dois rapazes de Famalicão que faltam às aulas de Cidadania. O dr. Castro é ex-líder do CDS e antigo vice-presidente do Benfica. O dr. Vinagre é magistrado do Ministério Público e toma conta em tribunal daquele tão famoso caso.
O dr. Castro não foi manso. Chamou de tudo ao dr. Vinagre, apenas sugerindo ou pintando a manta com as letras todas. Argumentação é que nada. Sustentaçãozinha é que viste-la! Palavras e só palavras umas atrás das outras, palavras militantes, guerrilheiras, habilidosas, gratuitas, infelizes, pataratas, destratantes, numa linguagem jurídico-tasqueira raiando a onzenice e muito mais própria para ser utilizada por mim, que não sou dr. nem sou nada e percebo tanto de direito quanto o dr. Castro percebe de futebol - isto é: zero.
Ainda assim, tenho de admitir que no meio daquela tralha toda o dr. Castro possa ter acertado sem querer numa coisinha acerca do dr. Vinagre. Uma coisinha somente, mas é de justiça que aqui se diga. O tiro de sorte poderá ter acontecido quando o dr. Castro acusa o dr. Vinagre de ser "um comediante". Isso. Um comediante.
Ora bem. Eu não conheço o dr. Vinagre, e confesso que tal me causa um certo desgosto, mas conheci satisfatoriamente o Vinagre. Lembro-me muito bem. Posso portanto testemunhar, e a verdade é só uma: o Vinagre era realmente um pândego. Um brincalhão. Um cómico. Enfim, um indivíduo dado à pilhéria. E quer-se dizer: sem saber ler nem escrever, o dr. Castro, que por acaso é uma criatura triste, até parece que bateu no ponto, e contra isso nada...

A dança... das cadeiras?

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 16 de julho de 2022

O pecado original

Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje. 

O terceiro homem

O terceiro homem foi Abel. Adão foi o primeiro, como o próprio nome indica; Caim, o segundo; e Abel, o terceiro. A seguir veio Sete, que, pela ordem natural das coisas, deveria ter sido Quatro, mas a Bíblia é como é e quanto a isso nada. Caim matou Abel, numa história negra muito bem contada pelo jornalista, espião e escritor inglês Graham Greene, que morreu há coisa de trinta anos. O livro deu filme de Carol Reed, que meteu Orson Welles e ganhou Cannes, BAFTA e um Óscar da Academia. Óscar evidentemente acúrsio.

Cobras e lagartos

Dizia cobras e lagartos. E dizia sanguessugas e borboletas e gaivotas e cangurus e macacos e sardinhas assadas com salada de pimentos vermelhos, nomeadamente. Enfim, dizia o que lhe apetecia...

Como as cobras

Era mau como as cobras. E como as moscas tsé-tsé e como os cães domésticos e como os escorpiões e como os crocodilos e como os hipopótamos e como os elefantes e como os tigres e como os leões. Era realmente do piorio.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Cobra.

O teu ombro no meu, ávido, se insinua

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Para mim não me convém

Hoje é Dia dos Homens. Espero não ser acusado de misandria, mas eu passo... 

A humana graça natural

Foto Hernâni Von Doellinger

Homem que é homem coça-os

Homem que é homem coça-os. Esse gesto tão masculino de esfregar entusiasticamente o escroto enquanto se conversa com o amigo. Amigo homem. Aliás, coçam os dois, cada qual coça o respectivo, porque são ambos homens, muito homens. E esse outro gesto tão masculino de, acabada a conversa e a ecuménica coçadela, darem-se uma mãozada forte e bem abanada, machos até mais não, "um destes dias temos de ir jantar". Eu, se me dão licença, proporia um terceiro momento de afirmação varonil nestes (re)encontros entre velhos compinchas: findo o parlapiê, sossegados os tomates e despachado o cumprimento, que cada um fareje a mão do outro, e então, sim, "adeus e até à próxima".

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Ai que desgraça tão grande!

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima ou por aqueles degraus abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? Ai que desgraça tão grande! E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Esqueciam-se ali no relambório, a dar água sem caneco e a benzerem-se na direcção da Igreja Nova, convenientemente ao lado, mas sem perder pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote! Uma comoção! E nas cozinhas abandonadas e sombrias, os tachos esturricando ao lume pachorrento, azul e resmungão da máquina a pitroil...

Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem a CMTV.

P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Fevereiro de 2016. Hoje é Dia Mundial dos Hospitais. Porque é dia de São Camilo, protector dos enfermos e padroeiro dos hospitais.

Ângulo recto, obviamente com c

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 13 de julho de 2022

E tinha bailarinas

A comissão de festas tinha prometido um grande nome e cumpriu satisfatoriamente. Quando as luzes do palco se acenderam e foi anunciado, o cantor chamava-se, com efeito, José Manuel-António Ferreira Rocha Vieira da Silva Pereira Gonçalves Ribeiro e Castro Melo Antunes Bastos Monteiro Neves Brochado Macedo Nogueira Santos Oliveira Costa Rodrigues Martins Carvalho Marques Almeida Cunha Pires Lopes de Perestrelo e Lencastre-Maldonado. E tinha bailarinas...

P.S. - Hoje é Dia do Cantor, que também é no dia 27 de Setembro.

O rock e o amigo

Uma noite, altas horas, saíamos da casa de má fama ali para os lados da Estação e resolvemos passear descalços pelas ruas desertas e geladas da cidade. Não sei de quem foi a peregrina ideia, mas, de tão tola, decerto foi minha. Confesso que não me lembro do que pretendíamos exactamente provar, mas gosto de pensar naquele momento insólito como um ritual de fraternidade, a celebração de uma amizade antiga e inoxidável que nos ligava desde miúdos, apesar da evidente diferença de "estatuto social" entre as nossas duas famílias. Frequentara-lhe a casa - "de rico". Dava-me o lanche, apresentou-me ao pão com manteiga e ao café com leite. Ensinou-me os Queen. Emprestou-me "A Night at the Opera". Eu e a minha mãe deliciávamo-nos a ouvir "Bohemian Rhapsody" uma e outra vez, mais de vinte ou trinta vezes ao dia, no pequeno gira-discos francês que nos sobrara do meu pai.
Ali íamos, portanto. O Bertinho e eu. E, sim, era realmente liturgia, era festa. Glorificávamos a camaradagem desinteresseira e fiel. Éramos irmãos. Ali íamos afinal iguais, ambos de pés descalços, com as botas e as meias pela mão, trocando memórias e partilhando o riso. Passávamos em frente à Câmara e parámos - éramos, penso-o agora, uma procissão, os dois. Se naquele precioso instante soltassem revoadas de pombas brancas por sobre as nossas cabeças, creio que não nos espantaríamos...
Chamava-me "meu rico menino", e eu gostava. Eu gostava, meu rico menino!

P.S. - Publicado originalmente no dia 24 de Março de 2020. E já agora: Bob Dylan, aprendi-o com o Best noite dentro, em sua casa, no Lombo. Iniciei-me com "Hurricane" e sandes, e talvez também cerveja. Hoje é Dia Mundial do Rock.

Não vás ao mar, Tonho

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 12 de julho de 2022

A praia, crime e castigo

A praia, é preciso que se note, não é obrigatória. Podem ser férias e não ir à praia. Pode ser Verão e não ir à praia. Pode ser sol e não ir à praia. Pode ser calor e não ir à praia. Pelo contrário: se for sol, se for calor, muito calor, o mais sensato será até ficar em casa ou procurar uma fresquinha no quintal mais próximo. Acreditem-se no que eu digo, há quarenta anos que moro à beira-praia e sei muito bem do que falo. E palavra de honra: não ir à praia não parece mal, não é crime e tampouco falta de educação...

Quem me dera o Inverno!

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 11 de julho de 2022

A minha avó tinha negócios com São Bentinho

A minha avó de Basto tinha uma sociedade infalível com São Bento da Porta Aberta. Em questões de pele e outras coisas ruins, os dois juntos eram uma limpeza.
Aí pelos meus vintes, eu tinha uma plantação de cravos no meu braço direito, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha querida avó Emília ia pessoalmente, a pé, pequerricha e já velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. Os cravos desapareceram.
Anos depois, o meu filho era criança e apareceu-lhe um cravo numa pálpebra, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha doce avó Emília ia pessoalmente, a pé, ainda mais pequerricha e ainda mais velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. O cravo desapareceu.
Se eu puxasse pela cabeça, tenho a certeza de que me lembraria de um terceiro e definitivo milagre da minha avó em promessa com São Bentinho, mas não quero arranjar problemas ao Vaticano.
O Vaticano tem muito mais que fazer do que ocupar-se com a comezinha história da Bó de Basto, que, cada vez mais velhinha e e cada vez mais pequerricha, continuava a ir a pé entender-se pessoalmente com São Bentinho sempre que era preciso - até morrer. O Vaticano tem coisas muito mais importantes a tratar: por exemplo, convencer-nos de que João Paulo II é santo. Vai levar muitos anos, e eu mesmo assim nunca vou acreditar.

P.S. - Publicado originalmente no dia 3 de Maio de 2014. Hoje é dia de São Bento.

O meu jugo é suave e o meu fardo é leve

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 10 de julho de 2022

O melhor dia do anho

Os domingos tinham esse pequeno problema, e quem for de Fafe e antigo sabe do que falo: tripas ou vitela assada? Era a verdadeira questão, o dilema do almoço dominical. Os fafenses, gente de bom comer e satisfatório beber, resolveram facilmente o assunto, há muito, muito tempo: isto é, em vez de tripas "ou" vitela assada, o almocinho de domingo passou a ser tripas "e" vitela assada. Nem Salomão, no seu ancestral e sábio critério, tomaria decisão mais acertada.
A vitelinha guiava-se em casa, com vagar e carinho, com as voltinhas todas, se possível em forno ou fogão de lenha, e as tripas, regra geral, iam-se buscar num tachinho à Esquiça ou à Pacata, consoante a ideia que cada um tinha acerca da sua própria posição social - o que agora até dá para rir, vendo-se assim a coisa à distância...
Começava-se portanto pelas tripas, e a seguir vinha a vitela. O apetite era gerido ao milímetro, mais ou menos um bocadinho daquelas, mais ou menos um bocadinho desta - porque, como determina o princípio da impenetrabilidade da matéria, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, e as vacas é que têm felizmente quatro estômagos. Ora bem: a malta nova, pouco dada à tripalhada, reservava-se para a chicha com batatinha de ouro e arroz seco e solto. Mas de quando em quando reservava-se mal. Como daquela vez em que o nosso Zé não tocou no feijão. Perguntaram-lhe se estava doente, se tinha fastio, se queria um caldinho branco, se queria meter o termómetro. Que não, que não, que não e que não, respondeu respectivamente, e explicou todo gaiteiro: - Estou a guardar-me para a vitela!
Naquele domingo não havia vitela. E as tripas já tinham saído da mesa...

Moral da história: contar com a vitela no cu da galinha, por assim dizer, e com licença de vossências, pode ser realmente uma merda.

O textinho acima publiquei-o originalmente no dia 16 de Setembro de 2018. Hoje, 10 de Julho de 2022, o dilema gastronómico creio que nem se coloca em Fafe. É domingo da Senhora de Antime, com a procissão de volta após dois anos de fastio imposto pela pandemia. A procissão e o encontro das duas senhoras, das Dores e da Misericórdia. A procissão da Senhora de Antime, costumo ensinar a quem não sabe, é provavelmente a melhor procissão do mundo. É o povo que desce inteiro com as senhoras até à vila a que agora chamam cidade. É uma procissão tremenda e comovente, multitudinária e única, uma procissão a sério - A Procissão -, como tenho a mania de explicar aqui aos meus vizinhos que ficam banzados com a meia dúzia de almas penadas e a dúzia e meia de cabeçudos da Câmara que todos os anos acompanham a imagem do Senhor de Matosinhos pelas ruas desta cidade, num deserto que só visto.
E depois da procissão, pezinhos debaixo da mesa que já se faz tarde e é outra liturgia. É. Gosto de contar assim: hoje é agnus day, quer-se dizer, dia do anho. E da vitela. E eventualmente das tripas, aquele meio tachinho que ficou estrategicamente guardado de ontem. E atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada". À moda de Fafe. A vitela assada à moda de Fafe, quando bem trabalhada, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo. A confraria da dita não veio ajudar nada, antes pelo contrário, mas, diga-se já agora em abono da verdade, veste e desfila que é uma categoria.

Só se perdem as que caem no chão

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 9 de julho de 2022

Desarmado em parvo

Era tão pacifista, tão pacifista, tão objector de consciência, tão objector de consciência, tão não-violento, tão não-violento, que havia quem dissesse que ele andava constantemente desarmado em parvo.

Missais terra-ar

Portugal acaba de enviar missais para a Ucrânia. Pequenos missais de rito bracarense praticamente novos. As ordens eram para mandar mísseis, mas alguém da intendência fez confusão ao aviar a encomenda.

Tanques para a Ucrânia

Portugal mandou tanques para a Ucrânia. Para além dos tanques, Portugal vai também mandar estendais, cestos e molas.

Contra os canhões

"Às armas, às armas! / Sobre a terra, sobre o mar, / Às armas, às armas! / Pela Pátria lutar! / Contra os canhões marchar, marchar!", manda o Hino Nacional.

Às armas! Às armas!

Mão ante mão, Portugal caminha para ser um país de pistoleiros. Há registos de mais de 210 mil licenças de porte de armas válidas, e só no ano de 2020 foram emitidas 13 mil novas autorizações. Portugal é um dos países da União Europeia com mais armas de fogo. As autoridades policiais estimam em mais de milhão e meio o número de armas legais, enquanto estatísticas citadas pela comunicação social contabilizam 21 armas por cada 100 habitantes. Agora imagine-se o que vai aí de revólveres, espingardas e carabinas sem bilhete de identidade! Os especialistas em segurança costumam dizer que a corrida ao armamento é um sintoma da crise. Pois deve ser. E temos então o faroeste à porta. Os políticos há muito que não nos são de confiança e a pobreza galopante com que eles nos castigam está a pôr-nos a desconfiar uns dos outros, cá em baixo, onde devíamos ser unidos mas os bagos de arroz pingam a conta-gotas, quando pingam, e não chegam para todos. Colegas de trabalho tramam-se uns aos outros em nome da sobrevivência, as passadeiras nas estradas são cada vez menos local de tréguas e até os irmãos já foram mais fraternos do que são. Se quem me lê ainda tem coragem para sair à rua, repare como as pessoas estão cada vez mais agressivas umas com as outras nas filas dos supermercados. E é para pagar! Um destes dias desata tudo aos tiros. E seremos as vítimas do nosso fogo cruzado.
Entre mortos e feridos, safam-se os de lá de cima. Como sempre.

P.S. - Hoje é Dia Mundial pelo Desarmamento.

Dance me to the end of love

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Ao menino e ao bolacho

A bolacha maria, torrada ou não, apareceu tarde na minha vida. Bolacha era luxo que não entrava lá em casa, e o mais parecido que a nossa mãe nos dava em pequenos era broa ou biju, e o biju já era um mimo. O caso só mudou de figura quando nasceu o nosso Lando. O Lando é o mais novo de quatro irmãos, decerto por isso teve direito a mordomias que os três anteriores nem sequer suspeitávamos, e as bolachas vieram com dele.
Entre outras alcavalas, o Landinho até fazia anos, coisa extraordinária, enquanto a nós só nos era permitido ficarmos mais velhos, somarmos dias, que remédio e a seco. Ao menino, a nossa mãe organizava-lhe uma festinha de aniversário, havia convidadozinhos, e do pequeno lanche constavam, só me lembro disso, umas curiosas sandes de bolacha maria com marmelada dentro, tipo oreos mas melhores e de fabrico caseiro. Eu, já espigadote, metia a mão sorrateira e rápida à passagem pela mesa, e foi assim que ficámos a conhecer-nos pessoalmente, eu e elas. As bolachas. Que estavam contadas, para mal dos meus pecados...
Mas não era de bolachas que eu queria aqui falar. É de bolachos. E o bolacho, faço deste já notar, é pitéu absolutamente indispensável, muito mais do que mero ornamento, nuns rojões à moda do Minho que se pretendam com todos os matadores. O bolacho é, versão curta e grossa, uma espécie de pão cilíndrico feito com farinhas de trigo, milho e centeio, a que se junta sangue de porco, fermento, caldo de carne, pimenta e cominhos. Depois de levedada, a massa é cozida em água temperada com sal, salsa, folha de laranjeira e louro. Cumprida a cozedura, o bolacho é cortado em rodelas e frito em pingue. O bolacho pode também chamar-se farinhato, pilouco, bica e, principalmente, beloura.
Mas também não era deste bolacho que eu queria aqui falar. É do bolacho de trigo. Do pão de cantos. Do pão de quatro cantos. Do trigo de ovelhinha. Do pão de padronelo. Desse. Esse fantástico pão, duro como cornos, que era vendido porta a porta em Fafe por umas senhoras que, dizia-se, vinham de Amarante. As abençoadas senhoras traziam enormes cestas à cabeça e dentro das cestas, carinhosamente envolto em toalhas de linho, o precioso pão. Um pão de longa duração que a minha querida avó de Basto guardava com todos os cuidados e também toalhas de linho na caixa de madeira que era o cofre e o frigorífico das coisas valiosas e boas numa terra por onde Jesus Cristo ainda não tinha passado e portanto não havia electricidade. Assim acondicionado, o pão aguentava-se bem uma semana ou mais e só era comido com o matinal café, que era cevada, aos domingos, feriados e dias santos. De resto, broa, que era o pãozinho do Senhor.
Leio agora que o bolacho é de ovelhinha porque teve a sua origem no lugar com aquele nome, Ovelhinha, na freguesia de Gondar, Amarante. E de padronelo porque decerto será sobretudo nesta outra freguesia amarantina, Padronelo, que hoje em dia ele é produzido e comercializado. Quanto a bolacho, é-o não sei porquê.

Eu trigo-me, tu trigas-te, ele triga-se

Biju, papo-seco, carcaça, molete, pada ou trigo, consoante a região de origem e a idade de cada qual. Assim se chamava e parece que ainda se chama ao pão pequeno, arredondado, regra geral de risca ao meio e feito à base de farinha de trigo. Em Fafe aprendi-o biju e trigo, sobretudo trigo, e é o que me tem bastado até hoje: vou à padaria e peço cinco trigos, se faz favor. Riem-se e eu acho muito bem, porque rir é porreiro, embora também possa ser ignorância. Em Fafe aprendi, ainda por cima, o verbo trigar - ou, talvez melhor dizendo, trigar-se -, que, naquele pedaço baixo-minhoto rural e de entranhável confluência galega, Monte Longo e Basto, significava acanhar, constranger, envergonhar, intimidar, embaraçar, coibir. Dizia-se, por exemplo, "Não se trigue, tire à sua vontade mais um bocadinho de presunto!", e eu achava um piadão àquilo. Ao presunto, quero dizer...

De tudo, como na padaria

Há uma senhora que mora na minha padaria. Digo que mora na minha padaria porque, seja qual for a hora a que eu lá vá - oito, onze, meio-dia, quatro ou seis da tarde -, ela está lá, na mesa do canto, ao lado do balcão, quem vai para os lavabos. É exactamente para esse endereço que as Finanças lhe mandam as contas dos impostos: Dona Fulana de Tal, Mesa do Canto Ao Lado Do Balcão Quem Vai Para Os Lavabos, 4450-275 Matosinhos.
As padarias hoje em dia são tudo: café, salão de chá, pastelaria, cervejaria, restaurante, casa de pasto, tasco, pensão, centro de convívio, sociedade recreativa, quiosque, tabacaria, meeting point, posto de turismo, guiché de informações variadas. E vendem de tudo, até pão, o que é curioso. São os tempos que correm: o meu talho também vende ovos, azeite, queijo, vinho, peixe congelado, feijão, ananás e pêssego enlatados. E a minha farmácia tem sempre a hortaliça mais fresca aqui da zona.
Sendo tudo, a minha padaria tem televisão e, portanto, milhões de opiniões. A campeona do palpite é a cliente residente, cuja, para mal dos meus pecados, padece de uma voz agreste e guinchada uma oitava acima como se fosse o Bruno de Carvalho mas ao contrário. Nunca a apanhei calada...
"Não. O meu filho não gosta de andar!...", anunciava um destes dias a senhora que mora na minha padaria. "Podes ter gosto", dizia eu cá para mim. "Um marmanjo com mais de trinta anos e que não gosta de andar. Está bem, Alfreda! Até eu ando, até eu me rendi à caminhada, e que bem que me faz...", continuei com os meus botões.
Mas ela insistia, parecia tola a mulher, cheia de orgulho no calaceiro: - O meu filho não gosta de andar. Não. Não gosta de andar...
"Ai que caralho!", ia eu pensar, quando a senhora que mora na minha padaria: - Não gosta de andar. Uma casa, nem que fosse pequenina, mas com tudo, ele preferia. Uma casinha. Andar, não!

P.S. - Publicado originalmente no dia 13 de Novembro de 2017.

Uma mulher de barba rija

Era a chamada mulher de barba rija. Feia, grande, cabelos espetados, seis dedos em cada mão e forte como um cavalo, sem ofensa para os presentes. E o nome, Brites de Almeida, também lhe ficava de modo, tal como um certo comportamento masculino e o bigode de que ninguém fala mas que certamente. Assim seria a Padeira de Aljubarrota, segundo a tradição popular, porém já se sabe: quem conta um conto acrescenta um ponto, e dessarte nasce o mito.
Esta padeira realmente nunca existiu. Ainda assim, a lenda liga-a à Batalha de Aljubarrota e ao massacre que se lhe teria seguido, mas que também nunca aconteceu. Brites seria a líder de um grupo de populares, tipo claque de futebol, que perseguiu os castelhanos em fuga. Brites emboscou-se, fez-lhes espera, aos desgraçados dos espanhóis, e matou com as próprias mãos uns tantos, se por acaso fosse verdade e o Benfica tivesse claques.
Nessa noite de 14 de Agosto de 1385, a padeira chegou a casa tarde e a más horas como de costume e descobriu sete espanhóis escondidos no forno onde costumava cozer o pão. Ela percebeu logo que eles eram espanhóis porque diziam muito "qué rico!", "vale, vale!", "qué tal, qué tal?" e outros nomeadamentes. Sem pestanejar, ou ainda que pestanejando derivado à farinha, Brites pegou na pá e bateu-lhes até os matar, um a um, à medida que os infelizes iam saindo do forno. Foi muito bem feito e desde esse dia glorioso e imaginário nunca mais ninguém viu a padeira.

P.S. - Hoje é Dia do Panificador ou, mais simplesmente dito, Dia do Padeiro. No Brasil, de acordo com o anedotário local, é praticamente Dia do Português.

Se um elefante

- E tive assim tipo uma reacção pélvica, passei-me...
- Reacção quê?
- Pélvica. Tipo à flor da pele, tás a ver? Pélvica.
- Queres dizer epidérmica?
- Não, essa cena é dos elefantes. Pélvica. Diz-se pélvica. Dããããã!...

O intolerante

Era realmente uma pessoa com um feitio difícil. Tinha um problema com o álcool. E outro com o betadine.  

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Alergia.

O Deus parado - ou o filho morto?

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Ele e os cigarros

Ele não fumava os cigarros. Ele comi-os, três a quatro maços por dia, um desastre para a saúde! Eram de chocolate e vinham embrulhados em pratinhas de cores variadas e apetitosas.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Chocolate.

L'été indien

Foto Hernâni Von Doellinger