quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

I want to ride my bicycle 80

Foto Hernâni Von Doellinger

José Fernandes Fafe 3

Sonho

A sua presença de mulher foi-se ausentando...
A um gesto seu, diáfano, alou-se o sofrimento...
Tudo era sua voz, mas sem significar
mais que o murmúrio dum encantamento...

Prendia-nos um fio de segredo, murmurado
pelos seus olhos baixados, antes dum sorriso,
com que a meus olhos as coisas se velaram
para lá do seu rosto assim preciso...

Pudor na sua alma ou nos meus dedos?

Como é indizível essa experiência de morrer!

O que me resta é regressar à Vida,
amá-la, delicadamente, como os mortos
- se os mortos pudessem reviver.


"O Anjo Tutelar", José Fernandes Fafe

(José Fernandes Fafe nasceu no dia 31 de Janeiro de 1927. Morreu em 2017.)

Natureza viva

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís de Montalvor 3

Entardecer

Sol-posto ungindo o mar: incensos de ouro!

Recolhe funda a tarde em sonho e mágoa.
Surdina fluida: anda o silêncio a orar -
E há crepúsculos de asas e, na água,
O céu é mármore extático a cismar!

E nas faces marmóreas dos rochedos
Esboçam-se perfis,
- Cintilações,
Penumbra de segredos!

Ó painéis de nuvens sobre a terra,
Ogivas delirantes
Na água refractando…
Encheis de sombra o mar de espumas rasas,
Iniciando
A hora pânica das asas!

E, à meia luz da tarde,
Na areia requeimada,
São vultos sonolentos
As proas dos navios…

Ó tristeza dos balões
Iluminando,
Na água prateada,
Os pegos e baixios…

Dormentes constelações
Que, em fundos lacustres
E musgosos,
Pondes reverberações
Em nossos olhos ansiosos.

Ó tardes de aquático esplendor,
Descendo em meu olhar!

Num sonho de regresso,
Numa ânsia de voltar,
Em mim todo me esqueço
E fico-me a cismar.

A tarde é toda um sonho moribundo.
É já olor da cor que amorteceu.
O céu vive no mar: sono profundo.
A asa do rumor no ar adormeceu!
 

Luís de Montalvor

(Luís de Montalvor nasceu no dia 31 de Janeiro de 1891. Morreu em 1947.)

Natureza morta

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Rui Caeiro

Pois morre-se de muita coisa, de muita coisa
se morre, morre-se por tudo e por nada
morre-se sempre muito
Por exemplo, de frio e desalento
um pouco todos os dias
mas de calor também se morre
e de esperança outro tanto
e é assim: como a esperança nunca morre
morre a gente de ter que esperar
Morre-se enfim de tudo um pouco
De olhar as nuvens no céu a passar
ou os pássaros a voar, não há mais remédio
ó amigos, tem que se morrer
Até de respirar se morre e tanto
tão mais ainda que de cancro
De amar bem e amar mal
de amar e não amar, morre-se
De abrir e fechar, a janela ou os olhos
tão simples afinal, morre-se
Também de concluir o poema
este ou qualquer outro, tanto faz
ou de o deixar em meio, o resultado
é o mesmo: morre-se
Data-se e assina-se - ou nem isso
Sobrevive-se - ou nem tanto
Morre-se - sempre
Muito


"Sobre a Nossa Morte Bem Muito Obrigado", Rui Caeiro

(Rui Caeiro nasceu no dia 27 de Junho de 1943. Morreu ontem.)

Interlúdio fotográfico 69

Foto Hernâni Von Doellinger

O homenageado

Fizeram-lhe rasgados elogios. O homenageado não gostou. Apanhou humildemente os papelinhos desirmanados, reorganizou-os com fita-cola e foi para casa...

Daqui não saio, daqui ninguém me tira

Foto Hernâni Von Doellinger

Castelao 6

O rapaz escrequenado entra, baril, no mundo das miserias

Rañolas era de certo un rapaz intelixente, con moitos anceios de saber. As contas que botaba non marraban, nin os seus ditos tiñan volta. Como dín alí, contáballe os pelos a un can e sabía o que esquecéu o demo.
Pouquiño a pouco o malpocado rapaz foi deprendendo o silabario que Pedriño lle ía ensinando a forza de peras, mazáns e pexegos; mais chegóu un dia en que a nai do Rañolas quixo que o seu fillo probase mundo e botóuno aos camiños, na compaña duns moinantes que vivían amostrando as súas lacras nas romerías. E o eivado desaparecéu da vila.
Nos primeiros tempos Rañolas choraba; pero con dúas ou tres malleiras que lle zorregóu o amo xa deprendera dabondo e non precisóu de máis consellos contundentes.
A poeira dos camiños e o sol do vrán fórono demudando, e ao pouco tempo Rañolas cheiraba ao burruallo i era un moinante máis.
Cos ollos adoecidos pola poeira e co coiro queimado polo sol, sempre a berrar nos camiños de romería, Rañolas pasóu catro meses e deprendéu máis cousas que deprendería o seu amigo Pedriño en vinte anos de escola.
[...]

"Os Dous de Sempre", Castelao 

(Castelao nasceu no dia 30 de Janeiro de 1886. Morreu em 1950.)

Caminho 606

Foto Hernâni Von Doellinger

Vidro temperado, mas com parcimónia

O vidro temperado é aproximadamente quatro vezes mais duro do que o vidro normal, tem maior resistência térmica e estilhaça-se em pequenos fragmentos quando é partido. Por outro lado, é uma das principais causas da hipertensão arterial.

Também faço isto muito bem 153

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Branco mais branco

Deu o braço a torcer. E depois pô-lo a corar. Era uma pessoa muito limpa.

Vida de cão 412

Foto Hernâni Von Doellinger

António Alçada Baptista 3

Pus-me a pensar nas minhas procuras e mais em todas as outras que me despertaram as buscas dos homens de Bangalore, Imaginei o mundo como o tal imenso formigueiro, com dois de cada dez homens, para um lado e para o outro, a ver se encontram o grão para comer na sua eternidade. Imaginei um Deus com um enorme sorriso - aquele sorriso da Rita ampliado à dimensão do tempo da história, desde o homem das cavernas até ao dia em que se realizasse o tal projecto pressentido. Disse-lhe:
- Rita: eu acho que Deus tem assim um sorriso como o teu quando nos vê amargurados...
- E eu acho que ele se ri mas é daqueles que andam por aí, muito contentes e convencidos, a fazerem o mundo como está...

Depois, ainda com o mesmo sorriso, levantou a roupa da cama, deitou-se e disse-me:
- Vá. Vem para a nossa Arca de Noé...

"O Riso de Deus", António Alçada Baptista

(António Alçada Baptista nasceu no dia 29 de Janeiro de 1927. Morreu em 2008.)

Só destes, tenho sete 53

Foto Hernâni Von Doellinger

José Manuel Capêlo 3

Ser

A razão de ser como sou
deve-se ao facto
de não ser como deveria ser!

"Fala do Homem Sozinho", José Manuel Capêlo

(José Manuel Capêlo nasceu no dia 29 de Janeiro de 1946. Morreu em 2010.)

A horse is a horse, of course, of course 20

Foto Hernâni Von Doellinger

Rafael Dieste 4

O neno suicida

[...]
De como despois o vello topou roupa e mantenza é cousa de moita risa. Chegou ás portas da cidade e como aínda non sabía falar, os ministros, despois de lle botaren unha capa enriba, levárono a diante do xuíz coma se tivesen sido testigos: Aquí lle traemos a este pobre vello que perdeu a fala coa tunda que lle deron uns ladróns mal entrañados. Nin roupa lle deixaron.
O xuíz deu ordes e o vello foi levado a un hospital. Cando saíu, xa ben vestido e mantido, dicíanlle as monxiñas: Vai feito un bo mozo. Ata parece que perdeu anos.
Daquela xa aprendera a falar algo e fíxose esmoleiro. Así andou moitas terras. Alá en Lourdes estivo dúas veces, da segunda tan amozado que, os que o coñeceran da primeira, coidaron que fora miragre da Virxe.

[...]

"Dos Arquivos do Trasno", Rafael Dieste 

(Rafael Dieste nasceu no dia 29 de Janeiro de 1899. Morreu em 1981.)

Caminho 605

Foto Hernâni Von Doellinger

Xosé Fernández Ferreiro 4

A cova do Sil

No fondo do Miño
está enterrado
o corpo do Sil.

Almas xenerosas,
se é que rezades,
rezade por il.


"Ribeirana do Sil", Xosé Fernández Ferreiro

(Xosé Fernández Ferreiro nasceu no dia 29 de Janeiro de 1931. Morreu em 2015.)

I want to ride my bicycle 79

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Dão-se alvíssaras

Perdeu a cabeça e pôs anúncio no jornal. Faz-lhe muita falta.

Também faço isto muito bem 152

Foto Hernâni Von Doellinger

António Arnaut 2

Os títulos

Rei de Portugal e dos Algarves
e o resto que o mar te deu.

Agora tens o aquém
Porque o além se perdeu.

Agora tens o que é teu.


"Recolha Poética (1954-2017)", António Arnaut

(António Arnaut nasceu no dia 28 de Janeiro de 1936. Morreu em 2018.)

Hora de recreio

Foto Hernâni Von Doellinger

Vergílio Ferreira 3

Veio ter comigo hoje a poesia

Veio ter comigo hoje a poesia.
Há quantos anos? Desde a juventude.
Veio num raio de sol, num murmúrio de vento.
E a ilusão que me trouxe de uma antiga alegria
reinventou-me a antiga plenitude
que já não invento.

Fazia-lhe outrora poemas verdadeiros
em fornicações rápidas de galo.
Hoje não sou eu nunca por inteiro
e há sempre no que faço um intervalo.

Estamos ambos tão velhos - que vens fazer?
- a cama entre nós da nossa antiga função.
Nublado o olhar só de a ver.
E tomo-lhe em silêncio a mão.


"Conta-Corrente 1", Vergílio Ferreira

(Vergílio Ferreira nasceu no dia 28 de Janeiro de 1916. Morreu em 1996.)

Music was my first love 35

Foto Hernâni Von Doellinger

António Feliciano de Castilho 6

Exclamou certo avarento
a um que se ia enforcar:
" - Feliz homem, que três dias
pôde comer sem gastar."

"Poesias", António Feliciano de Castilho

(António Feliciano de Castilho nasceu no dia 28 de Janeiro de 1800. Morreu em 1875.)

Globetrotter 27

Foto Hernâni Von Doellinger

Berecil Garay 3

Do fazer

Fazer uma vez
com perfeição. Ou então
duas vezes, três.

Berecil Garay

(Berecil Garay nasceu no dia 28 de Janeiro de 1928. Morreu em 1996.)

A mão que embala o boneco

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 27 de janeiro de 2019

Microcontos & outras miudezas 123

Uma questão de insondabilidade
Quando tirou a última pedra do caminho, enterrou-se em lama até aos tornozelos.

Os promocionistas
Só naquela semana o grande retalhista baixou o preço a mais de cem artigos, trezentos incisos e quinhentas alíneas. Os apensos é que continuavam em falta.

O mal dos nomes vulgares
"Opíparo!", gritou ela esfuziante no meio da esplanada. Píparo, que passava, voltou a cabeça desinteressado, confirmou que não era consigo, desvoltou e seguiu caminho insignificante.

A landre
A landre, é preciso que se note, já serviu para a nossa alimentação. O povo - isto é, o pobo - chama-lhe também bolota ou glande. Há quem agarre na glande e dela faça carvalho.

No país dos setores
Há o setor público e o setor privado. O setor público ensina sobretudo em escolas do Estado e o setor privado em colégios fardados e universidades altamente propinadas. Há também, por exemplo, o setor da saúde, que, regra geral, é médico. O setor da saúde também pode ser público ou privado. Ou público e privado...

O Teles Evangelista
O Teles Evangelista é operador de grua e, não sabe bem porquê, já foi convidado para dois governos estrangeiros. Declinou.

O bom racista
A olho nu não se percebe, mas ao microscópio (isto é, vestindo o olho) chega-se lá: o racismo divide-se em duas partes e há uma nanométrica diferença entre o racista bom e o racista mau. O bom racista começa as frases dizendo - Eu não sou racista, mas... 

Vida de cão 411

Foto Hernâni Von Doellinger

Matateu: o deus velho, segundo Baptista-Bastos

Matateu: o deus velho

Matateu-Monumento foi incubado nas Salésias, num famoso encontro de futebol que opôs as equipas do Belenenses e do Sporting. Fautor primeiro da clamorosa vitória do grupo de Belém, o rapaz foi sacado aos ombros por uma multidão congestiva, que o transportou pela provecta Rua das Casas do Trabalho, onde meninas se debruçavam das janelas, subtraindo da morfologia do negro atónito resquícios de uma beleza de Apolo. E exclamaram:
"Que simpático!"
"Bonito, mesmo!"
A coroação processou-se no dia imediato. Cronistas desportivos, em lufa-lufa de imagética, besuntaram o nome de Lucas Sebastião da Fonseca com cognomes bizarros: "O Napoleão do Futebol Português", "O Artilheiro Negro" ou "Perigo na Grande Área com Matateu ao Remate".
Foi assim. Depois, certa imprensa alvoroçou-se em atribuir-lhe comentários profundos aos sistemas de jogo, dissertações didácticas sobre a galeria de futebolistas portugueses, avisos esclarecidos sobre as grandezas e misérias da bola. Matateu (termo que, no dialecto landim, significa "crosta"), perplexo, deslumbrado, deixou-se ir nas sugestões da popularidade doméstica. Sofreu, de bom grado, as metamorfoses determinadas pela súbita celebridade - mas nada conseguiu destruir-lhe a pureza inicial. A metade-instinto de que o carácter do homem é formado permaneceu fiel em si. As subtilezas da corrente arte da hipocrisia não aprendeu nunca. Matateu não sabe nada de nada e confessa isso abertamente, honradamente, porque a honra, nele, não é uma conquista, mas um instinto nato.
Falo com Matateu. Pergunto:
- Costuma ler?
Ele:
- Jornais. A secção desportiva dos jornais. Gosto muito de ver o meu nome nos jornais.
- Sabe quem é Hemingway?
- Não.
- E Picasso?
- Esse também não.
- E Aquilino Ribeiro?
- N... Espere aí... Ribeiro, disse Aq... a quê? A-aqui-ni-lo Ribeiro?
- Não foi Aquinilo Ribeiro, foi Aquilino Ribeiro.
- Pois. Não, não conheço mesmo nada desse nome.
- Gosta de música?
- Um pouco.
- Sabe quem foi Beethoven?
- Não.
- E Wagner?
- Não.
- Mas gosta de música?
- Um pouco. Samba. Sim, gosto de samba.
- Sabe quem é Dick Farney?
- Não.
- E Maysa Matarazzo?
- Não.
- Que divertimentos prefere?
- O cinema. Mas é uma chatice. Adormeço sempre. As letras daquilo que eles dizem passam a correr. Adormeço sempre.
- Leu alguma vez um livro?
- Nunca até ao fim.
- Porquê?
- Não percebo o que os livros querem dizer.
- Você tem viajado muito. De que país gostou mais?
- Da Itália.
- Porquê?
- Por causa das mulheres. Lindas. Comi algumas. Muito boas. Gosto bastante da Itália. Que rico país para um preto viver!
- Ouça uma coisa, Matateu...
- Olhe, escreva o que quiser; é assim que eu faço sempre, quando estou com um jornalista que me parece bom rapaz. Escreva o que quiser e ponha essas palavras na minha boca. À vontade. Mas não ponha lá que eu disse mal... Matateu não diz mal de ninguém!
[...]

"As Palavras dos Outros", Baptista-Bastos 

(Matateu, ou o Eusébio azul e em bom, como eu gosto de chamar-lhe, nasceu em 1927 e morreu no dia 27 de Janeiro de de 2000. Sobre Baptista-Bastos e "As Palavras dos Outros", escrevi aqui.)

Interlúdio fotográfico 68

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 26 de janeiro de 2019

Quando os árbitros eram mais bar do que var

Comecei a ir ao futebol pela mão do meu pai. Íamos ao Campo da Granja ver o Fafe. O Campo da Granja tinha uma bancada pequena apontada ao grande círculo e uma nora atrás da baliza do lado de São Gemil. A nora, neste caso, era um engenho para tirar água de um poço e não funcionava. Mas ficava num altinho muito jeitoso para a assistência. A assistência naquele tempo não era passe para golo, era pessoas. Eu e o meu pai víamos os treinos, os jogos, os juniores em vez da missa (o que arreliava a minha mãe), as reservas e, ao domingo à tarde, o primeiro time. Os domingos à tarde da minha infância eram os melhores dias do mundo. Até tinham altifalantes com marchas do John Philip Sousa. Depois o meu pai deixou de ir à bola, por razão de força maior, e eu continuei.
O Campo da Granja desistiu para dar lugar a uma escola de pré-fabricados. E foi bom para todos. Ganhámos o ciclo preparatório e um estádio que havia de ser, mesmo encostado aos Bombeiros. Apareceu-me o buço e, embora uma coisa não tenha a ver com a outra, passei a acompanhar a Associação para todo o lado, pendurado na generosidade de amigos mais velhos e com emprego. Frequentei todos os campos e estádios do Norte do País e, já praticamente de bigode, até fui ao Barreiro arrancar à CUF um lugar nas meias-finais da Taça de Portugal que nos roubaram.
Quando mudei a minha vida para o Porto ainda se ia ao futebol em família. Quero dizer: famílias inteiras, com pai, mãe, avós e netos, sobrinhos, primos, namoradas e namorados. Podia-se ir, não era perigoso. Eu fui logo morar para o Estádio das Antas, Superior Norte, porta com porta com o meu tio Zé da Bomba, que já lá morava há que anos. Consegui converter a minha mulher ao FC Porto, fi-la também sócia e passámos a ir à bola os dois, eu e ela com a cesta do merendeiro atrás, porque naquele tempo não havia lugares marcados e para jogos grandes era mesmo preciso entrar de véspera. E quando digo merendeiro quero dizer exactamente merendeiro: frango assado, sandes de vitela ou lombo de porco, panados, bolinhos de bacalhau, bacalhau frito, pataniscas, feijoada, salada russa, iscas de fígado, rojões, moelas de coelho, arroz à valenciana, filetes de pescada, salpicão, presunto e rebentos de soja, uma toalha de linho em cima dos joelhos, uma garrafosa de verde tinto bem fresquinho, ou duas, e uma garrafa de litro de cerveja, ou duas, por causa dos descontos. Entrava tudo. E marchava tudo. Para não virmos carregados para casa. Aquilo é que era futebol!
Se o FC Porto não jogava nas Antas, então eu ia ao Mar torcer pelo Leixões ou ao Bessa ver o Boavista. Aos sábados puxava pelo Salgueiros em Vidal Pinheiro que Deus tem ou matava o vício no claustrofóbico campo do Infesta, que me dava falta de ar. Às quartas, dia da minha folga do trabalho, papava campeonatos de reservas, desempates da Taça de Portugal, liguinhas de subida de divisão e torneios de apuramentos de campeões. Em Santo Tirso, em Vila do Conde, na Póvoa de Varzim, em Espinho, em Aveiro, onde calhasse aqui à roda. Havia jogo, eu estava lá. E regalava-me. Mas depois chegaram as claques "organizadas", como se diz para o crime, e eu vim-me embora.

Às vezes tenho saudades. Tive saudades aqui atrasado ao ver as imagens da televisão em Alvalade, momentos antes de um jogo europeu do Sporting: um avô e dois netos (foi o que me pareceu) agarrados à marmita com o apetite a cem e o sportinguismo a mil. Ali os três que apanhei por acaso, puros, em paz, com espaço, na serena expectativa da capilota adivinhada, felizes da vida como era eu nos domingos à tarde do Campo da Granja ou nas ceias com a minha mulher lá no degrau mais alto da Superior Norte das Antas. (Quando era criança, o Kiko, meu filho, adorava também ir lanchar aos campos de futebol...) Claro que em Alvalade era jogo de meia casa e com um adversário de boas-festas. Claro que agora nos estádios não há bares à moda antiga, só se pode comer plástico. E claro que já não se ouve The Stars and Stripes Forever e o Toni Dantas também não. Mas o resto aqueles três da televisão tinham...

Desta vez, para chegar aqui: logo à noite (para pessoas da minha idade, aquela hora da tarde já é noite), logo à noite, dizia, Porto e Sporting discutem a final da Taça da Liga, em Braga, com grunhos das duas cores nas bancadas, e quem dera que não no relvado. Tanto quanto percebi, o jogo vai ser apitado directamente de Lisboa, por cabo, com dois-videoárbitros-dois mais não sei quantos ajudantes. Em campo, João Pinheiro fará papel de pau-mandado.

A horse is a horse, of course, of course 19

Foto Hernâni Von Doellinger

O velho tinha razão

- Estou velho - disse o velho.
- Não está nada - disse a visita.
- Um caco - disse o velho.
- Cada vez mais novo - disse a visita.
- Já não duro muito - disse o velho.
- Daqui a vinte anos ainda nos vamos rir - disse a visita.
- Estou fodido - disse o velho.
- Não diga isso - disse a visita.
- Estou como hei-de ir - insistiu o velho.
- Está porreiro, melhor do que da outra vez - insistiu a visita.
- Dói-me tudo - disse o velho.
- É da idade, quem andou não tem para andar - disse a visita.
- É o que eu digo, caralho: estou velho - insistiu o velho.
- Por acaso não acho nada, quem me dera a mim - insistiu a visita.

Para acabar de vez com a desconversa, o velho resolveu morrer. E morreu.

- Olha, o estupor do velho tinha razão - disse a visita, e comeu-lhe a maçã assada. 

Também faço isto muito bem 151

Foto Hernâni Von Doellinger

Afonso Lopes Vieira 5

O sapo

Não há jardineiro assim,
Não há hortelão melhor
Para uma horta ou jardim,
Para os tratar com amor.

É o guarda das flores belas,
da horta mais do pomar;
e enquanto brilham estrelas,
lá anda ele a rondar...

Que faz ele? Anda a caçar
os bichos destruidores
que adoecem o pomar
e fazem tristes as flores.

Por isso, ficam zangadas
as flores, se se faz mal
a quem as traz tão guardadas
com o seu cuidado leal.

E ele guarda as flores belas,
a horta mais o pomar;
brilham no céu as estrelas,
e ele ronda, a trabalhar...

E ao pobre sapo, que é cheio
de amor pela terra amiga,
dizem-lhe que é feio
e há quem o mate e persiga

Mas as flores ficam zangadas,
choram, e dizem por fim:
- "Então ele traz-nos guardadas,
e depois pagam-lhe assim?"

E vendo, à noite, passar
o sapo cheio de medo,
as flores, para o consolar,
chamam-lhe lindo, em segredo... 


"Animais Nossos Amigos", Afonso Lopes Vieira

(Afonso Lopes Vieira nasceu no dia 26 de Janeiro de 1878. Morreu em 1946.)

Só destes, tenho sete 52

Foto Hernâni Von Doellinger

Antônio Callado 3

O homem que ia desaparecer perdeu-se nas profundezas do seu problema... Ao voltar a si passou o lenço na testa úmida. A inexistência de todos os problemas. O compromisso que tinha assumido que cuidasse de si mesmo. Ele ia, isto sim, ver Maria Auxiliadora. Tomou o ônibus e no caminho deixou-se invadir pelo salgado travo de onda e de alga que subia das praias de alva areia, a infinita, angustiada fieira de areia que é a única coisa a impedir que as montanhas azuis e o mar azul se dissolvam num único e irreparável azul. O ônibus beirou primeiro a praia de Santa Luzia, depois Flamengo, Botafogo, as vastas areias brancas de Copacabana, Ipanema, Leblon. Quando parou no fim da linha o homem que ia desaparecer saltou e foi andando para a pequena casa em que morava Maria Auxiliadora. Aproximou-se das tábuas brancas do portão, espantadas de vê-lo àquela hora do dia. E lá estava a fascinante casa branca, feito um brinquedo esquecido na grama. Entrou, atravessou o jardim e espiou pela janela da sala de estar. Não viu Maria Auxiliadora, que ainda estaria dormindo. Abriu a porta da frente e ia atravessar a sala, em direção ao quarto de dormir, quando ouviu vozes e riso que vinham de lá. Ia chamar Maria Auxiliadora em voz alta, alegre, mas se conteve e andou até a porta. Ouviu as únicas duas vozes que realmente conhecia bem. Pela única e última vez em sua vida curvou-se até o buraco da fechadura. As venezianas estavam cerradas. Só havia no quarto aquela luz baça e enjoativa na qual se escondem aqueles que preferem não encarar nem o amor. O homem que naquele momento já quase havia desaparecido ouviu a voz do amigo, seguida do riso de Maria Auxiliadora.

"O Homem Cordial e Outras Histórias", Antônio Callado

(Antônio Callado nasceu no dia 26 de Janeiro de 1917. Morreu em 1997.)

Vida de cão 410

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Manuel Lopes

Soneto à liberdade

Primeiro tu virás, depois a tarde
com terras, mares, algas, vento, peixes.
trarás, no ventre, a marca das idades
e a inquietude dos pássaros libertos.

virás para o enorme do silêncio
- flor boiando na órbita das águas -
tu não verás o fúnebre das horas
nem o canto final do sol poente.

primeiro tu virás, depois a tarde
sem desejos e amor. virás sozinha
como o nome saudade. virás única.

eu não terei a posse do teu corpo
nem me batizarei na tua essência,

mas tu virás primeiro e eu morro livre.

Manuel Lopes

(Manuel Lopes nasceu no dia 23 de Dezembro de 1907. Morreu no dia 25 de Janeiro de 2005.)

Até fazem parar o trânsito...

Foto Hernâni Von Doellinger

O bom racista

A olho nu não se percebe, mas ao microscópio (isto é, vestindo o olho) chega-se lá: o racismo divide-se em duas partes e há uma nanométrica diferença entre o racista bom e o racista mau. O bom racista começa as frases dizendo - Eu não sou racista, mas...

Só destes, tenho sete 51

Foto Hernâni Von Doellinger

Judith Teixeira 3

Mais beijos

Devagar...
outro beijo... ou ainda...
O teu olhar, misterioso e lento,
veio desgrenhar
a cálida tempestade
que me desvaira o pensamento!

Mais beijos!...
Deixa que eu, endoidecida,
incendeie a tua boca
e domine a tua vida!

Sim, amor...
deixa que se alongue mais
este momento breve!...
- que o meu desejo subindo
solte a rubra asa
que nos leve!


"Antologia Poética", Judith Teixeira

(Judith Teixeira nasceu no dia 25 de Janeiro de 1880. Morreu em 1959.)

Na linha

Foto Hernâni Von Doellinger

Eusebio Lorenzo Baleirón 4

Unha muller está a soñar

Un pequeno país era o seu rosto
de costas para o mar
no que antigos mercaderes
encetaban as rotas do marfín
e as especias.
Unha rexión nevada ao pé dos bosques
que cruzaban carretas misteriosas
guiadas por cegoñas como pontos de luz.
E pequenos dedos foron tecendo
linguas de mar
até as ribeiras firmes
para gardar o sono da muller en calma.
Ela levaba nos ollos
un pálpito de seres e de voces;
o intenso silencio da noite
pesáballe nos brazos e nas tempas...
Como quen sempre está a soñar
e non acorda.


"A Morte Presentida", Eusebio Lorenzo Baleirón

(Eusebio Lorenzo Baleirón nasceu no dia 25 de Janeiro de 1962. Morreu em 1986.)

Caminho 604

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Anxo A. Rei Ballesteros

A flor da boca 

"A fala é a flor da boca". A frase paréceme que é de Hörderlin. A flor, a min, faime pensar, naturalmente, primeiro, no arrecendo; pero, tamén, na terra e na raíz. E coido que esa vinculación feliz entre signo e corpo, sema e soma; entre o semántico e o somático, axuda a poñer de manifesto a oralidade constitutiva e primordial da lingua, de calquera lingua das chamadas naturais; e remite, por tanto, directamente á fysis: Ó aparello de fonación e á voz humana.
A flor da boca non é a negra flor da tinta, non é a escritura: toda escritura implica xa unha considerable desactualización do idioma, un falar des-situado; afastado con respecto á súa orixe, separado de si mesmo por unha insalvable distancia histórica e espacio-temporal. O tempo e o espacio históricos acaban apoderándose case por enteiro - deixemos ese case prudentemente aberto - da fala orixinal. A presencia e maila actualización ceden o seu posto á ausencia e á representación. Toda escritura (non estou pensando, de momento, na poesía nin na Literatura) e, daquela, a fortiori, toda ortografía, é, na súa esencia, testamentaria e notarial: é ou tende a se-la expresión, o máis exacta posible, (ex-actitude, ex-acción, ex-acto) da vontade dun ausente ou dun defunto: daquel que se re-presenta no tempo - no encadeamento do discurso - precisamente porque xa non pode actualizarse.
[...]

Anxo A. Rei Ballesteros

(Anxo A. Rei Ballesteros nasceu no dia 24 de Janeiro de 1952. Morreu em 2008.)

Vida de cão 409

Foto Hernâni Von Doellinger

Dois copos e um quarto

Bem medida, uma garrafinha de cinquenta centilitros (50 cl), isto é, meio litro, ou, chamando a coisa pelo nome, um quartilho, dá dois copos e um quarto. Era exactamente dessas que ele bebia: para ter onde dormir...

Os passarinhos, tão engraçados 70

Foto Hernâni Von Doellinger

António Manuel Couto Viana 3

Pedra tumular

A minha geração fugiu à guerra,
Por isso a paz que traz não tem sentido:
É feita de ignorância e de castigo,
Tão rígida e tão fria como a pedra.

Desfazem-se-lhe as mãos em gestos frágeis,
Duma verdade inútil por vazia,
E a língua imóvel nega o som à vida,
Por hábito ou por falta de coragem.

Se há rumores lá de fora, às vezes, lembra:
Porque é que pulsa o coração do mundo,
Precipitado, angustioso, ardente?

Mas depressa submerge na indiferença
- Que lhe deram um túmulo seguro;
E o relógio dá-lhe horas certas, sempre.


"Mancha Solar", António Manuel Couto Viana

(António Manuel Couto Viana nasceu no dia 24 de Janeiro de 1923. Morreu em 2010.)

Como braço erguido ao céu

Foto Hernâni Von Doellinger

Augusto Meyer 5

A paleta do poeta

Tortura do desenho! Horas a fio,
seguindo o risco ideal de um vivo traço
que está dentro de mim, faço e desfaço,
e sinto-o cada vez mais fugidio...


A cor e a luz! Encher de vida o espaço
nu da tela, retângulo vazio,
sol interior que o visionário viu
e o pincel torna cada vez mais baço...


Fecho os olhos; no escuro tumultua
todo um formigamento furta-cor:
arco-íris, aureolado astro violeta...


E tudo o que eu não pus na tela nua
vejo-o de novo em luz, em linha, em cor,
nas manchas coloridas da paleta!


"Poesias 1922-1955", Augusto Meyer

(Augusto Meyer nasceu no dia 24 de Janeiro de 1902. Morreu em 1970.)

I want to ride my bicycle 78

Foto Hernâni Von Doellinger

Amílcar Dória Matos 2

Madrugal

A madrugada treme no meu peito.

O cobertor, bandeira esfarrapada.
Há legiões de duendes sobre o leito.
Mil sons de passos sobem da calçada.

Do teto a cal mortiça se derrama.
O travesseiro me pressiona a nuca.
Da cabeceira jorra uma maluca
onde a luz que incide sobre a cama.

Ouço o relógio perfurar, insano,
do vil silêncio o torturante pano
e respingar de sangue o meu pijama.

Meus dedos, quais formigas no lençol,
avançam temerosos para o sol
do teu indiferente corpo em chama.

Amílcar Dória Matos 

(Amílcar Dória Matos nasceu no dia 24 de Janeiro de 1938. Morreu em 2010.)

Prò boneco 2

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Ariosto Teixeira

Depois do jantar

Faca.
Garfo.
Colher.
A espuma suja desce pelo cano.
Prato.
Panela.
Pano.
Tua mulher pôs um copo de veneno em cima da mesa.
Pegue-o.
Beba-o.
Não morra.
Deixe que doa.
 
"Poemas do Front Civil", Ariosto Teixeira

(Ariosto Teixeira nasceu em 1953. Morreu no dia 23 de Janeiro de 2010.)

Music was my first love 34

Foto Hernâni Von Doellinger

O Teles Evangelista

O Teles Evangelista é operador de grua e, não sabe bem porquê, já foi convidado para dois governos estrangeiros. Declinou.

Também faço isto muito bem 150

Foto Hernâni Von Doellinger