domingo, 31 de janeiro de 2021

Nada na mão, nada na manga

O grande prestidigitador
Era um mágico extraordinário: em vez de coelhos da cartola, tirava macacos do nariz.

Um coelho extraordinário
Era um coelho realmente incrível. Tirava ilusionistas da cartola.

O Mágico
É o número 10
finta com os dois pés
é melhor que o Pelé
é o Deco, allez, allez.

Fui ao circo e vi o mundo
Circo que é circo tem nome de circo. Ponto. Nome com pozinhos de perlimpimpim, nomes exóticos, inventados à la minuta, nomes de fazer sonhar. Nomes à antiga: Arena, Brasil, Cardinali, Circolândia, Chen, Cristal, Dallas, Dragon, Eddy, Flic Flac, Império, Leunam, Luftman, Mundial, Nederland, Nery Brothers, Oceanika, Soledad, Romero, Torralvo ou Twister. Ou Circo Royal, com Pierre Ivanoff e os seus leões da Abissínia, ou o meu melhor circo do mundo, Circo Merito, que ia a Fafe todos os anos, sem animais acima de cão, mas com um incrível número de transmissão de pensamento operado pelo senhor Merito em pessoa e sua partenaire, e sobretudo uns palhaços como nunca mais ri na minha vida e que contavam sempre a anedota de que a nossa era a única terra à face da mesma mas com maiúscula onde dormiam dezoito numa cama: o meu avô da Bomba, que era o 17, mais a minha avó. O meu avô afinava e eu achava um piadão.
O senhor Merito, que também era mestre-de-cerimónias do es-tra-or-di-ná-ri-ooo... ex-pe-ctá-cu-looo!!!..., padecia de uns óculos com lentes verdes de fundo de garrafa Carvalhelhos versão 1960, que, aos meus olhos infantis e crentes, justificavam à partida os poderes adivinhatórios de que ele estava evidentemente investido.
Coisas de outro mundo. No circo aprendi palavras sen-sa-ci-o-nais, que gostava de ouvir e de dizer e não sabia o que significavam: funambulista, malabarista, contorcionista, equilibrista, acrobata voador, faquir, trapezista, pirofagista, globista, faquista, mais engolidor de espadas, palhaço e ilusionista - estas três eu ia lá -, e que hoje percebo que todas são afinal meros adereços ou adjectivos para outra palavra do léxico circense que é a palavra... político.
Agora? Agora andam por aí circos com nomes paisanos, insossos, e a magia foi um ar que se lhe deu. Nomes de linha média em quatro-quatro-dois losango: Rúben, Cláudio, Leandro e Walter Dias. Nomes do dia-a-dia, corriqueiros, sem pés nem cabeça, como se fossem nomes de talhos ou retrosarias. Como se fossem: o Circo Almeida, o Circo Brochado, o Circo Ferreira, o Circo Gomes, o Circo Lopes, o Circo Magalhães, o Circo Santos. O Circo Celso. Sem o glamour de um Tony, sem o garbo de um Fredy, sem as lantejoulas de uma Nandy nem as meias de rede de uma Mirita no seu rola-rola, ainda que rotas, porque no circo é importante trabalhar com rede, posto que sem fio, portanto Wi-Fi.
E ainda haverá palhaços excêntricos musicais? E a profissão está devidamente reconhecida e enquadrada? Tem ordem? Carteira profissional?
Era um deslumbramento vivermos - digo bem, vivermos - de coração aos saltos e mãos a tapar os olhos, o perigosíssimo trabalho daqueles artistas cheios de is gregos e cabelo empastado, artistas in-tarrr-na-ci-o-nais de Ermesinde e Freamunde - Cuidado, Dany, cuidado! Res-pei-tá-vel público, silêncio, o mais completo silêncio, por favor, peço o silêncio dos senhores ex-pe-cta-do-reeesss... Vamos, Dany, cuidado, upa, ealé, bravo, bravo, Dany, bravo!...
O circo era o melhor faz-de-conta de todos os tempos! O famoso Pierre Ivanoff chamava-se Pedro Piloña Reina e era um espanhol de Valência nascido em Casablanca, Marrocos. Na jaula, com os leões, vestia de tribuno romano que eu sabia dos filmes - e ficou-me até hoje. Tinha eu se calhar sete anos quando o Pedro, aliás Pierre, desafiou o meu pai, saxofonista, a fazer-se ao mundo a bordo da orquestra do Circo Royal, mas o meu pai não foi. Foi para mim um desgosto muito grande, que já me via palhaço, a morar na rulote, a faltar à escola e a rasgar completamente as meias de rede da Mirita...

De Lotário a Mandrake
Lotário era neto de Carlos Magno e primeiro foi o terceiro imperador do Sacro Império Romano-Germânico, isto pelos inícios do século nono. Só muitos muitos anos depois, exactamente em 1934, é que se tornou ajudante do mágico Mandrake.

O flato mágico
O peido é uma insofismável verdade da vida, tal como a morte e dois mais dois serem quatro, e quem disser o contrário é néscio. Ou mentiroso. Ou néscio e mentiroso. Ou mentiroso e néscio. E infeliz.
Infelizes, sim, os que nunca ouviram o Moisés a peidar-se pelo soleno da noite, ali para os lados da Feira das Galinhas, hoje parece-me que parque de estacionamento e Praceta Egas Moniz. Aquilo é que era um artista, um verdadeiro predestinado. O Moisés. Os peidos do Moisés, impõe-se que aqui se diga, eram poderosos como pragas, abriam mares, incendiavam sarças, escreviam lei na pedra, abanavam os alicerces da Igreja Nova, mesmo em frente, Deus nos perdoe. Os peidos do Moisés seriam hoje considerados e explorados e exportados como energia alternativa. Mas também eram mansos, melodiosos, trinados, sin-co-pa-dos, contidos, meditabundos, quase confidenciais. O Moisés solfista trabalhava, com efeito, em vários registos, um dos quais, de execução particularmente exigente, mezzo piano, chamava-se "rasgar chita" e costumava encerrar o concerto, com mais dois ou três encores. (O Moisés aceitava pedidos.) Os peidos do Moisés eram um tremendo êxito, embora infelizmente nunca tenha gravado e apenas actuasse para plateias restritas e altamente seleccionadas. Cumpre-me finalmente fazer notar que o sintetizador, tal como actualmente o conhecemos, ainda não tinha sido inventado...

Piripirilampo mágico
piripiri pirilampo pirilau
piriquita piririca pirinola
catatua cataminha catatau
catazona catatraz que consola

P.S. - Hoje, 31 de Janeiro, é Dia Mundial do Mágico.

Cisne pálido do cinismo

Foto Hernâni Von Doellinger

José Fernandes Fafe 5

Poente

Compreende-se tudo,
de repente:

São oito séculos a ver o Sol morrer
afogado no mar,
diariamente.

"Poesia Amável", José Fernandes Fafe

(José Fernandes Fafe nasceu no dia 31 de Janeiro de 1927. Morreu em 2017.)

Interlúdio fotográfico 290

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 30 de janeiro de 2021

Notícias da retaguarda

O grande Asdrúbal
Encontrei ontem por acaso o Asdrúbal, o velho Asdrúbal, o grande Asdrúbal - aos anos que não nos víamos! Recordámos os tempos antigos, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, do coronavírus, do velho Marega, dos novos fascistas-racistas, de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia e à distância. Despedimo-nos calorosamente trocando abraços da boca para fora e números de telemóvel e apalavrando a marcação de um almoço para quando se Deus quiser. Cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Asdrúbal, nem sequer é parecido com o Asdrúbal, apesar da máscara. Na verdade, tenho agora a certeza absoluta de que não conheço este indivíduo de lado nenhum. Em todo o caso, gostei muito de falar com o Asdrúbal.

Em confinamento há três anos e quinze dias
Pratico quarentena há três anos e quinze dias, faz hoje exactamente. E não sabia que estava a fazer uma coisa extraordinária... 

O fim do mundo
Quando lhe disseram que vinha aí o fim do mundo, comprou setecentos e noventa e três rolos de papel higiénico e declarou: - Estou preparada!

O denunciante
Denunciado por ter tossido em casa, foi detido pela polícia, presente ao juiz e metido em prisão preventiva. O vizinho delator morreu de caganeira naquele mesmo dia.

Causa da morte: ida ao médico
Um gajo anda mais ou menos porreiro, uma dorzita aqui, uma pontada acolá, um bocadinho de falta de ar, ouras e fastio às vezes, coisas de nada, coisas da vida, se calhar do tempo ou, vá lá, da idade. Um gajo anda mais ou menos porreiro. Até que um dia, empurrado ou de livre vontade, vai ao médico. Análises, exames, diagnósticos, prognósticos, agnósticos, cancro, coração, rins, fígado, coluna, internamento, cirurgia, hemodiálise, quimioterapia, antipatia, utente, paciente, despistagem, despessoamento, isolamento, transferência, circunferência, alta, baixa, alta, baixa, piso 1, piso 2, piso 10, piso 1, doente da cama 13, bactérias, vírus, infecção, pneumonia, silêncio, cave. Um gajo andava mais ou menos porreiro. No competente certificado há-de constar, obitamente e por ser verdade: "Causa provável de morte - ida ao médico"...

Na sombra
Fechou-se em casa, com medo de ser contaminado. E manda a sombra fazer-lhe os recados.

E por falar em cavalos

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O 25 de Abril tinha um cavalo chamado Puzzle

Conspiravam. Viviam numa satisfatória clandestinidade, numerados de Um a Doze. Mas tinham as suas fontes. Geralmente bem informadas. Eram os meados da década de setenta do século passado. Na reunião de Março, pela noute, em absoluto respeito pelas cautelas catacumbais religiosamente estabelecidas, desligaram o aparelho de televisão por alturas do TV 7, ligaram a telefonia no relato de um Espanha-Portugal em hóquei em patins, colocaram os óculos e apagaram a luz, esbarraram-se uns nos outros, partiram meia dúzia de chávenas e três copos, e os óculos, juntaram as múltiplas informações recolhidas à socapa no mundo exterior, assopraram-lhes cerimoniosamente o pó, decantaram-nas, apreenderam as entrelinhas, montaram o Puzzle, que era um cavalo malhado que dava para todos, mas à vez, pediram mais uma rodada de finos e quatro pires de tremoços, e concluíram que estavam prontos e imperiosos. "É preciso fazer um 25 de Abril!", anunciou o Número Um. "E para quando é que marcamos isso?", perguntou o Número Dois.

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Abril de 2019. Pode parecer impossível, mas hoje, 29 de Janeiro, é Dia Mundial ou Internacional do Puzzle. Não do cavalo, suponho...

Quebra-cabeças

Foto Hernâni Von Doellinger

Os sonhos são como o algodão: hidrófilos

Ultimamente dá-me para sonhar com pessoas que já morreram. Pessoas de quem gosto - familiares e amigos, sobretudo amigos. Sou um simples, acho que são saudades. Mas dizem-me que não, que o assunto é muito mais complicado, especialistas em correntes de ar garantem-me que os sonhos querem dizer coisas, significam, e que não enganam. Como o algodão do Sonasol. Nos sonhos está lá tudo, e tudo acaba por bater certo. Limpinho.
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger naturais de Fafe e residentes em Matosinhos-sur-Mer. Pela miséria que me tem saído na rifa nos últimos tempos, suspeito que não, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado..., e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência urinária. A vida é tão breve, não foi?
Entretanto, gostaria de aproveitar a oportunidade para comunicar aos meus sonhos que, uma vez que desdenho a Raspadinha, o que me convinha mesmo era o Euromilhões. O jackpot do jackpot, se fazem favor. Agora vou dormir e passo à escuta.

Por falar nisso: sonhar com algodão dizem que é muito bom para a saúde e que traz uma vida cheia de dinheiro e de felicidade. Bem empregue. É preciso ser-se mesmo muito desgraçado para sonhar com algodão. Se ainda fosse com merda..

Mijar no Terrace custa pelo menos euro e meio
Aflitíssimo, entrei no Terrace e pedi: - Por favor, dá-me licença de utilizar a casa de banho? -. Estava preparado para receber uma de duas respostas, "sim" ou "não", mas deram-me a terceira: - Vai tomar alguma coisa? - Eu disse que beberia uma água e tornei a pedir: - Por favor, dá-me licença de utilizar a casa de banho? - Que assim sim. Utilizei então a casa de banho, isto é, mijei, fiz uma descarga de autoclismo, limpei do chão duas pingas que não souberam o caminho e lavei as mãos. Evidentemente eu poderia sair da casa de banho do Terrace e vir-me embora, mas fui tomar a água contratada. Aproveitei para explicar calmamente ao jovem e educado funcionário que um dia, quando ele for mais velho, talvez da minha idade, vai ficar tipo fodido por lhe fazerem a ele o que ele me fez a mim. O jovem e educado funcionário disse-me que é desta maneira que ali se trabalha, no Terrace, por ordens da gerência. Paguei um euro e meio pela água e estou arrependido: não sei se o dinheiro chegava, mas, em vez de beber a puta da água, devia ter comido um biju. A água pôs-me outra vez à rasca na viagem de metro da Trindade até Matosinhos. Vim a correr para casa e mijei-me pernas abaixo mal consegui abrir a porta...

O Terrace é um café situado no gaveto das ruas de Fernandes Tomás, da Trindade e do Estêvão, nas traseiras da Câmara Municipal do Porto. E tem gerência.

P.S. - Apontamentos publicados originalmente nos dias 11 de Setembro de 2014 e 20 de Outubro de 2018, respectivamente. Hoje, 29 de Janeiro, Portugal assinala o Dia da Incontinência Urinária. É também Dia Internacional do Hanseniano.

O homem do leme

Foto Hernâni Von Doellinger

Manuel Resende 2

Sai de casa

Rasga este poema depois de o leres
E depois espalha os bocados
Pelo vasto mundo
Ou então na tua rua, vai à aldeia, à praia,
Atira-o ao mar, deita-o ao lixo,
Para que venha o vento, o sol, a chuva, os homens do lixo,
Acabar com ele de vez.
Passado um dia,
Sai de casa e procura
Encontrá-lo de novo.

"Poesia Reunida", Manuel Resende

(Manuel Resende nasceu no dia 9 de Março de 1948. Morreu no dia 29 de Janeiro de 2020.)

Vida de cão 533

Foto Hernâni Von Doellinger

José Manuel Capêlo 5

E se tu não existisses?
 
E se tu não existisses? Se apenas fosses
um secreto lugar onde se escondem as montanhas?
Se ninguém fosse teu, como da terra os oceanos
e os lugares, os dons da luz e da cor?
Poderias ser como o oco das máscaras e dos falsos ocasos
a vulgar penumbra dos locais e dos rostos indescritíveis
um sorriso pleno aos lugares dos corpos
rio paralelo de uma ponte sem margens, sem dor
sem força. E se tu não existisses? Poderias ser
apenas sorriso que se fizesse em lugar reservado
um olhar por entre os corpos que se movimentam
num recinto de dança, entre abraços de ocasião.
Se apenas fosses esse lugar, talvez que os teus olhos
se tornassem azuis de tanto serem verdes. Sorrir-me-ias
com o mesmo encanto com que teus lábios suavíssimos
se me sorriam, pois longe está o corpo do homem próximo
como perto, está o meu de beleza indómita e salvagem.
Lembrei-te, porque se existisses, eras meu corpo
nesta terra de alegria. E como é triste esta terra
de alegria-assim, réstia de um lugar donde se vêem
os olhos, que, de tão sedentos, cegos são.

José Manuel Capêlo

(José Manuel Capêlo nasceu no dia 29 de Janeiro de 1946. Morreu em 2010.)

Na minha rua passa o mar 105

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Protecção de dados? Deixem-me rir...

O meu telefone sem fios Zon Slim perdeu o pio ao fim de apenas nove meses de trabalho. Peguei no telemóvel e liguei para a operadora do telefone sem fios. Menos de uma hora depois já tinha em casa um técnico. O homem da Zon detectou rapidamente a avaria (transformador pifado) e procedeu à substituição completa do material: transformador, base e telefone. Até aqui tudo bem.

Quando o técnico se preparava para guardar o meu telefone "antigo", perguntei-lhe, num misto de bons modos com queres-tu-ver-que-já-me-estão-a-foder:
- O senhor vai levar o telefone? Assim? Com os meus contactos? Não lhe passa pela cabeça que pode estar a violar a lei de protecção de dados?...
O homem corou. Parou. Pensou e disse:
- Olhe que nunca ninguém me pôs esse problema. Mas, agora que penso nisso, o senhor tem toda a razão. Deixe ver... Posso é fazer-lhe reset no aparelho antes de o levar, quer?
Eu quis. E ele fez.
É assim que as coisas são. E parece que ninguém quer saber.

No dia seguinte, o País acordou alvoroçado com o escândalo da "alegada" espionagem das secretas a um jornalista do Público denunciada pelo Expresso. Chamadas aos microfones, as costumeiras virgindades rasgaram as vestes de indignação, clamaram aos céus contra a gravidade da violação da lei, pediram inquéritos. Isso: seguindo a habitual cábula, sobretudo pediram inquéritos. Passos Coelho, primeiro-ministro, também pediu. E a Procuradoria-Geral da República vai investigar o caso.
Palavra de honra, não percebo as razões de semelhante escarcéu. Mas quê, esta gente toda acha mesmo que os serviços secretos fazem sempre o seu trabalho dentro da lei e que só desta vez é que mijaram fora do penico? Mas para que é que servem os serviços de espionagem? Não é para espiar? Estavam à espera de quê? E os jornalistas não podem ser espiados? Só podem espiar? Afinal o que é que tanto incomoda estes cavalheiros: o acto de espionagem em si ou o facto de se saber dele?
São ingénuos? Não. São hipócritas.

P.S. - Publicado originalmente no dia 28 de Agosto de 2011. Hoje, 28 de Janeiro, é Dia Europeu da Protecção de Dados. E há aqui, por vias travessas, tanta actualidade... 

Pois talvez, mas não vejo nada...

Foto Hernâni Von Doellinger

António Arnaut 4

A geografia

Noventa mil quilómetros quadrados
de ousadia e sofrimento:

A oriente, a Espanha,
A norte, a terra galega.
A sul e ocidente, a dor tamanha
Do mar que já não chega,

Mas onde ainda ficaram,
Talhadas em rocha dura,
As ilhas que semearam
as pegadas da aventura.


"Recolha Poética (1954-2017)", António Arnaut

(António Arnaut nasceu no dia 28 de Janeiro de 1936. Morreu em 2018.)

Close-up

Foto Hernâni Von Doellinger

Vergílio Ferreira 5

Por entre os sons da música

Por entre os sons da música, ao ouvido
como a uma porta que ficou entreaberta
o que se me revela em ter sentido
é o que por essa música encoberta

acena em vão do outro lado dela
e eu sinto como a voz que respondesse
ao que em mim não chamou nem está nela,
porque é só o desejar que aí batesse. 

"Conta-Corrente 1", Vergílio Ferreira

(Vergílio Ferreira nasceu no dia 28 de Janeiro de 1916. Morreu em 1996.)

Berecil Garay 5

A mão incontida
ligou a chave do amor
e acendeu a vida.


Berecil Garay

(Berecil Garay nasceu no dia 28 de Janeiro de 1928. Morreu em 1996.)

António Feliciano de Castilho 7

As metamorfoses do macaco

Jacó, flor das raças monas
E aluno de um piemontês,
Fazia entre mil gaifonas
Coisas que o demo não fez.

Quanto via, arremedava
Por modo tão natural,
Que o piemontês lhe chamava
Daguerreótipo animal.

Se falasse assombraria;
Porém, mesmo sem falar,
Em toda a macacaria
Era um bichinho sem par.

Um dia em certa barraca
De uma feira, onde brilhou,
Com arte mais que velhaca,
Lustroso espelho empalmou.

Viu-se; pasmou. "Que diabo!
Pois eu tenho a cara assim?!
Ó bruxas, de mim dai cabo,
Ou condoei-vos de mim!

Machuchas mestras de tretas,
Se cabe em vós pio dó,
Deixai-me o dom das caretas,
No mais transformai Jacó."

Bruxinha de génio gaio
Despachou-lhe a petição.
Eis, o mono, papagaio!
Eis nova consumição!

"O meu falar é mui rico!
Quanto às penas, guapo estou!
Mas este bico!... este bico!
Quem tal ratice inventou?!

Bruxa honrada! eu to aconselho,
Vá nova transformação."
Diz: torna a encarar o espelho...
Vê-se estrelado pavão!

Espaneja-se garboso!
Ama-se; está como um dez.
Senão quando... ai, desditoso!
Repara... que horrendos pés!

Novo rogo impertinente:
"Por esta vez, e não mais",
Diz a velha impaciente,
"Quero ceder aos teus ais.

Do que tu mesmo aprovaste
Nas três formas que te dei,
Para teu consolo baste,
Que esta final te armarei;

Terás as visagens ricas,
O papagaial palrar;
Do pavão as galas ricas... 
Pegar no espelho! mirar!"

Mira-se, exulta. Só nota
Perfeições no todo seu.
Hoje chamam-lhe "janota",
Bicho incógnito a Lineu.

António Feliciano de Castilho

(António Feliciano de Castilho nasceu no dia 28 de Janeiro de 1800. Morreu em 1875.)

Deus nos livre do bom tempo

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Fala-me a cantar!

O orador
- Profissão?
- Orador.
- Faz discursos?
- Rezo pai-nossos.

O microfone
Cansado de tanta apresentação e de tanto elogio, o orador convidado levantou-se e pediu o microfone. Melhor dizendo: saltou da cadeira e exigiu o microfone, porque ele é que é o orador, a audiência o que quer é ouvir o orador, e blablablá de organizador vaidoso nem coisa nem sai de cima. O orador agarrou pois no microfone, coçou-lhe a cabecinha com a unhaca da cera, soprou-lhe o pó num imenso perdigoto e, sem mais delongas, dirigiu-se aos seus caríssimos e suspensíssimos ouvintes, praticamente quinze e em transe:
- Alô, chape, chape, um, dois. Um, dois, três, microfone, experiência. Chape, chape, um, dois. Um, dois, três, quatro, microfone...
E a multidão irrompeu em aplausos.

O primeiro pódio
Era a primeira vez que subia ao pódio. Chegou-se ao microfone e disse, pigarreando, "Chape, chape, um, dois; um, dois, três; um, dois, três, quatro, experiência". Que pena a sala estar vazia...

O número
Subiu ao palco, aproximou-se do microfone e anunciou que tinha um número para apresentar. Apresentou o cinquenta e três e foi um sucesso. 

P.S. - Hoje, no Brasil, é Dia do Orador. A nível global, é Dia Internacional de Comemoração em Memória das Vítimas do Holocausto e Dia Europeu de Memória do Holocausto.

Sigo-te

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Afonso Lopes Vieira 7

Linda Inês

Choram ainda a tua morte escura
Aquelas que chorando a memoraram;
As lágrimas choradas não secaram
Nos saudosos campos da ternura.

Santa entre as santas pela má ventura,
Rainha, mais que todas que reinaram;
Amada, os teus amores não passaram
E és sempre bela e viva e loira e pura.

Ó Linda, sonha aí, posta em sossego
No teu muimento de alva pedra fina,
Como outrora na Fonte do Mondego.

Dorme, sombra de graça e de saudade,
Colo de garça, amor, moça menina,
Bem-amada por toda a eternidade! 


"Cancioneiro de Coimbra", Afonso Lopes Vieira

(Afonso Lopes Vieira nasceu no dia 26 de Janeiro de 1878. Morreu em 1946.)

Gangster mais gangster não há

O Tatu está de volta. Perguntar-me-ão: mas qual Tatu?, e eu poderia dar uma certa e determinada resposta, rimada e bem conhecida aí por uns tantos, porém, pessoa educada que sou, digo simplesmente: o Tatu da "Ilha da Fantasia", que a RTP Memória em boa hora, dezanove em ponto, resolveu pôr a arejar. O Tatu (Tattoo) era o francês Hervé Villechaize, um excelente anão mas fracativo actor. Ainda assim, gosto mais de o ver trabalhar do que, por exemplo, ao ultrafamoso Tyrion Lannister (Peter Dinklage) da "Guerra dos Tronos", essa tão aclamada série de culto que a mim não me assiste. Exactamente. Se andavam à procura do gajo que, a nível mundial, nunca viu um episódio da "Guerra dos Tronos", spoilers tampouco, podem mandar suspender as buscas - c'est moi.
Anões e o mundo do espectáculo - assunto menor? Não creio. Falo primeiro por mim, que, perguntado ainda na escola primária acerca das minhas perspectivas de futuro, respondi que quando fosse grande queria ser anão para ir para o circo. E antes de mim já havia o Peter Pan e depois de mim saiu da cartola aquela improvável linha média - Adelino Teixeira, Alves, Vítor Martins e Octávio - com que mestre José Maria Pedroto calou Wembley-o-Velho e empatou a arrogante Inglaterra, no nosso mítico ano de 1974. Parece que ainda os estou a ouver, em Dolby 4-4-2, subindo em passinhos curtos a estrada dos tijolos amarelos: The house began to pitch. The kitchen took a slitch. It landed on the Wicked Witch in the middle of a ditch, Which was not a healthy situation for the Wicked Witch.
Dos pequenos, sim, reza a História. Coloquemos pois os anões em cima da mesa, porque merecem. Se me pedissem uma shortlist dos mais famosos, sendo que a fama se mede em televisão e cinema, eu escolheria:
Talvez a Thumbelina (Debbie Lee Carrington), de "Desafio Total". Talvez o Mini Me (Verne Troyer), de "Austin Powers: O Espião Irresistível". Talvez o múltiplo Oompas Loompas (Deep Roy)", em "A Fantástica Fábrica de Chocolate". Talvez o duende Marcus (Tony Cox), em "Um Pai Natal para Esquecer". Talvez o professor Filius Flitwick (Warwick Davis), na saga "Harry Potter". Talvez o Mickey Abbott (Danny Woodburn), na série "Seinfeld". Talvez o "Arnold" Gary Coleman. Talvez o R2-D2 (Kenny Baker), da "Guerra das Estrelas". Talvez o Wee-Man (Jason Acuña), do "Jackass" da MTV. Talvez o munchkin Karl Slover, do "Feiticeiro de Oz". Talvez James Cagney, Mickey Rooney, Edward G. Robinson ou o apalpador Dustin Hoffman. Evidentemente poderia juntar à lista o Danny DeVito e o Tom Cruise, mas estes, peço desculpa, dizem-me muito pouco. Talvez...
Ou talvez o fogoso Nelson Ned, que era de outras artes e me dava cabo da cabeça aos domingos à tarde, nos castigadores altifalantes dos Comandos, da Amadora a Santa Margarida. Ou talvez o anão do Multibanco. Ou talvez, porque não?, o Sr. José Nogueira, de Fafe, que, em meados do século passado, esteve quase a ir para Lisboa e ser famoso. Ou ainda talvez, puxando ao sentimento, as minhas duas queridas avós, a Bó de Basto e a Bó da Bomba, pequerrichas também, ou o senhor Flórido Engraxador ou o César da Recta ou o senhor Clemente que fazia pipas e escadas para as vindimas e decilitrava aguardente como um alambique. Talvez...
Mas que fique registado que o meu anão favorito é uma anã. Chama-se Cadence Roth, Cady para os amigos, e chegou a ser a mulher mais pequena do mundo, se tivesse de facto existido. Conheci-a num livro, "Talvez a Lua", de Armistead Maupin. Procurem o livro. Descubram a Cady.

P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Dezembro de 2017, então sob o título "De volta ao Tatu". Edward G. Robinson, aliás Emmanuel Goldenberg, nascido Emanuel Goldenberg, morreu no dia 26 de Janeiro de 1973. Como actor, foi o primeiro grande gangster de Hollywood, notabilizando-se com sucesso em papéis de homens rudes, num registo de interpretação que depois seria seguido por James Cagney e Humphrey Bogart.

Beyond the yellow brick road

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Quem sai aos seus

Deixe de ser parvo, disse o palerma. E você deixe de ser palerma, disse o parvo. Palerma é melhor que parvo, disse o palerma. Parvo é que é melhor que palerma, disse o parvo. Quem disse, perguntou o palerma. O meu pai, respondeu o parvo. O seu pai é parvo, disse o palerma. E o seu é palerma, disse o parvo. Mas o meu pai é mais palerma que o seu, disse o palerma. E o meu é mais parvo que o seu, disse o parvo. Mas não é palerma, disse o palerma. Nem o seu é parvo, disse o parvo. Dah!, disse o palerma. Dah!, disse o parvo.

Também faço isto muito bem 537

Foto Hernâni Von Doellinger

Judith Teixeira 5

Perfis decadentes

Através dos vitrais
ia a luz a espreguiçar-se
em listas faiscantes,
sob as sedas orientais
de cores luxuriantes!

Sons ritmados dolentes,
num sensualismo intenso,
vibram misticismos decadentes
por entre nuvens de incenso.

Longos, esguios, estáticos,
entre as ondas vermelhas do cetim,
dois corpos esculpidos em marfim
soergueram-se nostálgicos,
sonâmbulos e enigmáticos...

Os seus perfis esfingicos,
e cálidos
estremeceram
na ânsia duma beleza pressentida,
dolorosamente pálidos!
Fitaram-se as bocas sensuais!

Os corpos subtilizados,
femininos,
entre mil cintilações
irreais,
enlaçaram-se
nos braços longos e finos!

morderam-se as bocas abrasadas,
em contorções de fúria, ensanguentadas!

Foi um beijo doloroso,
a estrebuchar agonias,
nevrótico, ansioso,
em estranhas epilepsias!

Sedas esgarçadas,
dispersão de sons,
arco-íris de rendas
irisando tons...

ficou no ar
a vibrar,
a estertorar,
encandescido,
um grito dolorido...

Judith Teixeira

(Judith Teixeira nasceu no dia 25 de Janeiro de 1880. Morreu em 1959.)

Um, dois, esquerdo, direito...

Foto Hernâni Von Doellinger

Eusebio Lorenzo Baleirón 6

De como ao poeta A. Cunqueiro lle saíron flores por versos no poema

A luz dos barcos
chega sempre detrás dos primeiros vapores
da ría
a despertar as pombas polas prazas
e as aves que amañecen a beber nos caneiros.
O poeta soñaba
un horizonte de augas mansas
e princesas e illas en claras primaveras.
"Esa luz ben pode ser
o canto da pardela miña amiga,
un corazón de follas entre as chuvias
que precisa das hedras e da araxe
e das rosas de abril."
Como se todo resucitase
nesa flor
que nos medra nas mans
igual que o verso,
a sombra de outro tempo poderosa
e os sabores azuis do mar salgado.

"A Morte Presentida", Eusebio Lorenzo Baleirón

(Eusebio Lorenzo Baleirón nasceu no dia 25 de Janeiro de 1962. Morreu em 1986.)

Caminho 867

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 24 de janeiro de 2021

Botar é a direito e um beber cívico

- Botas tu ou boto eu?
- Bota tu, mas bota de alto.
- Boto em consciência.
- Então bonda, que já esborda.
- E agora?
- Agora dou-lhe um beijinho, mando-lhe uma pescoçada, e a seguir boto eu.

Mais vale só

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando chove e não é para todos

Coração de ouro
Tinha um coração de ouro. Pô-lo no prego e comprou um carro em segunda mão.

Os antigos sabiam tudo e morriam muito
Laranja. "De manhã ouro, à tarde prata e à noite mata", diziam os antigos, que tudo sabiam e morriam, de uma forma geral, muito antes de serem aquilo a que se chama antigos. Não interessa. Desde os seus dezassete, dezoito anos que Quitério, agora nos 97 e seis meses, tenta regularmente o suicídio antes de se deitar. Às vezes até com tangerinas...

Calou-se e enriqueceu
Disseram-lhe que o silêncio é de ouro. Nunca mais abriu a boca e está muito bem na vida.

A regra
Era uma regra de ouro. Com três pedras preciosas.

P.S. - A primeira pepita de ouro do estado da Califórnia foi descoberta pelo carpinteiro James W. Marshall no dia 24 de Janeiro de 1848.

Golden man

Foto Hernâni Von Doellinger

António Manuel Couto Viana 5

Natal cada Natal

Quando na mais sublime dor,
A mulher dá à luz,
Há sempre um Anjo Anunciador
A murmurar-lhe ao coração - Jesus!

Cada criança é o Céu que vem
Pra nos remir do pecado
E as palhas d’oiro de Belém
Espalham-se no berço, como um Sol espelhado

Por sobre o lar presepial , o brilho
Da estrela abre o convite dos portais:
- Vinde adorar a floração do filho
No alvoroço da raiz dos pais.

"Mínimos", António Manuel Couto Viana

(António Manuel Couto Viana nasceu no dia 24 de Janeiro de 1923. Morreu em 2010.) 

Interlúdio fotográfico 289

Foto Hernâni Von Doellinger

Augusto Meyer 7

Minuano

Este vento faz pensar no campo, meus amigos,
Este vento vem de longe vem do pampa e do céu.

Olá compadre, levanta a poeira em corrupios,
assobia e zune encanado na aba do chapéu.

Curvo, o chorão arrepia a grenha fofa,
giram na dança de roda as folhas mortas,
chaminés botam fumaça horizontal ao sopro louco
e a vaia fina fura a frincha das portas.

Olá compadre, mais alto mais alto!

As ondas roxas do rio rolando a espuma
batem nas pedras da praia o tapa claro...

Esfarrapadas, nuvens nuvens galopeiam
no céu gelado, altura azul.

Este vento macho é um batismo de orgulho:
quando passa lava a cara enfuna o peito,
varre a cidade onde eu nasci sobre a coxilha.

Não sou daqui, sou lá de fora...
Ouço o meu grito gritar na voz do vento
- Mano Poeta, se enganche na minha garupa!

Comedor de horizontes,
meu compadre andarengo, entra!

Que bem me faz o teu galope de três dias
quando se atufa zunindo na noite gelada...

Ó mano
Minuano
upa upa
na garupa!

Casuarinas cinamonos pinhais
largo lamento gemido imenso, vento!
Minha infância tem a voz do vento virgem:
ele ventava sobre o rancho onde morei.

Todas as vozes numa voz, todas as dores numa dor,
todas as raivas na raiva do meu vento!
Que bem me faz! mais alto compadre!
derruba a casa! me leva junto! eu quero o longe!
não sou daqui, sou lá de fora, ouve o meu grito!

Eu sou o irmão das solidões sem sentido...
Upa upa sobre o pampa e sobre o mar...

"Poemas de Bilu", Augusto Meyer

(Augusto Meyer nasceu no dia 24 de Janeiro de 1902. Morreu em 1970.)

Em manobras

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 23 de janeiro de 2021

Uma vez fui corajoso e afinal não era preciso

Vamos supor que era a Grand Central Terminal de Nova Iorque e estávamos no quentinho do cinema. Mas na verdade estávamos em Vila do Conde à chuva e era um tanque público no quarteirão da Santa Casa da Misericórdia. Eu passando. Um carrinho de bebé sem condutor sai lentamente do lavadouro, primeiro em câmara lenta como nos filmes e depois, rapidamente embalado pela força da realidade, adeus passeio, vou para a estrada da morte que se faz tarde. Ia. Naquele momento exacto sinto o primeiro e único impulso de heroísmo de toda a minha vida, voo para o carrinho a pensar na CMTV, na TVI, no YouTube, em Marcelo Rebelo de Sousa, na medalha do 10 de Junho, na reforma vitalícia (pensa-se em muita merda numa fracção de segundos), rezo a Nosso Senhor e a Nossa Senhora e a Santiago, meu padrinho e protector, falta-me o ar de repente, é o coração que me entope cobardemente a garganta, as pernas tremem-me como varas verdes mas desta vez não falham, voo para o carrinho e agarro-o já no milagroso resvés com um Toyota Yaris que passa nas horas e me enche de nomes, mas é o menos. Graças a Deus. Respiro. A mãe grita, de mãos espetadas na cabeça desgrenhada, Ai o carrinho!, e o pai berra Olha o carrinho!, e dá mais uma puxa no paivante.
O carrinho?, interpelo eu e repito, mais fodido do que outra coisa, O carrinho? E a criança, caralho?, A criança?, as palavras saem-me aos soluços e eu preciso de uma cadeira para morrer ali sentado. Mas qual criança?, dizem-me os dois, com caras combinadas de quem me manda à merda com a senha número um e portanto sem cadeira, Qual criança?, e riem-se afinadíssimos da minha agonia. Tinham praticamente razão: olhei para o carrinho que mantinha nas minhas mãos cerradas e aflitas, o bebé eram quatro passadeiras lavadas, enroladas e ainda pingantes - as quatro filhas da puta pelas quais eu só não faleci prematuramente porque sou um gajo cheio de sorte.

Nota final. A famosa cena do carrinho de bebé descendo a escadaria, com a criança dentro, no meio do tiroteio, em "Os Intocáveis", de 1987, já tinha sido vista em "O Couraçado Potemkine", de 1925. O cineasta Sergei Eisenstein, realizador de "O Couraçado Potemkin", nasceu em Riga, Letónia, no dia 23 de Janeiro de 1898.

Offshore, se fashavore 279

Foto Hernâni Von Doellinger

Ariosto Teixeira 3

Transgressão

Por aí sussurram segredos
Falam de crimes e escândalos
de Ian Curtis
de Curt Cobain
de Jim Morrison
de Sam Shepard e Tarantino

Por aí sussurram segredos
sobre o saxofone de Chet Baker
esbugalhado como sexo
no passeio público 

Dizem que a mente de Wittgenstein
repetiu mil vezes um verso de Rilke
E incendiou-se numa geleira da Noruega 
Da minha parte não guardo segredos
cometo sempre a mesma transgressão
Um estupro consentido Um ou outro adultério

Delicadamente tumultuo
o cérebro e o mistério das minhas vítimas

"Poemas do Front Civil", Ariosto Teixeira 

(Ariosto Teixeira nasceu em 1953. Morreu no dia 23 de Janeiro de 2010.)

Aos domingos, a família

Foto Hernâni Von Doellinger

João Ubaldo Ribeiro 7

Até a morte eu me atormentarei
Pelo que descobri e não encontrei,
Pelo que, pascaliano como sou,
Eu compreendi, e ainda assim maldigo.
Sou o idiota mais perfeito, aliás,
Por feito mais de carne que de gás.
É esse o fado que me leva adiante,
Num mundo para o qual não sou prestante.
Tudo o que tenho as mulheres me deram,
Consolação, razão para existir.
Benditas Berenices, Beneditas.
Também sejam benditos meus amigos,
Pois gosto deles, tenham longa vida,
E até eu mesmo que não a mereço,
Mas que a observo e sei qual é seu preço.

João Ubaldo Ribeiro

(João Ubaldo Ribeiro nasceu no dia 23 de Janeiro 1941. Morreu em 2014.)

Na minha rua passa o mar 104

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Amor à camisola

Marcou golo. Golaço! Deslizou de joelhos pela relva, arrancou a bandeirola de canto, fez um coração com aos mãos para a câmara mais próxima, bateu no peito como tarzan, abraçou-se-se à camisola suada, beijou-a com acrisolada paixão, puxou-a mais para si, no limite do amarelo, e... assoou-se-lhe copiosamente.

Vida de cão 532

Foto Hernâni Von Doellinger

Lyad de Almeida 5

Diante da máquina
hesita a operária. Tece
o pano ou o sonho?

"Tankas e Haikais Selecionados", Lyad de Almeida

(Lyad de Almeida nasceu no dia 22 de Janeiro de 1922. Morreu em 2000.)

Caminho 866

Foto Hernâni Von Doellinger

Aureliano Pereira 7

O zorro

Era unha noite inverniza,
sin luar e sin estrelas;
o Xan de Cajaraville
viña pol-a carretera
d' a casa d' o seu compadre
o Benito de Pradeda:
entrambos esbaleiraban
unha xarra bén compreta,
pra remollar unhas libras
de chacina bén resesa.

O Xan moi craro non via
nin camiñaba á direitas,
y algunha vez mesmamente
se lle dobraban as pernas;
mais por eso el ind' andaba
com' home que leva presa,
tirándolle on cigarriño
d' os de cadela pequena,
que mais que ser de tabaco
parecía de cerdeira.
[...]

"Cousas d'a Aldea: Versos Gallegos", Aureliano Pereira

(Aureliano Pereira nasceu no dia 22 de Janeiro de 1855. Morreu em 1906.)

Interlúdio fotográfico 288

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Religiosamente

Quando a religião bate à porta
Bateram à porta e Dona Amélia abriu. Pensava que era o carteiro. Eram duas senhoras muito simpáticas com uma revista nas mãos. A revista chamava-se A Sentinela e as duas senhoras muito simpáticas queriam falar, mas Dona Amélia não as queria ouvir. Que não tinha vagar para revistas nem para jornais, que fizessem o favor de ir andando, que ela tinha mais que fazer. As pessoas com 84 anos e sós são mesmo assim, estão sempre muito ocupadas. As duas senhoras muito simpáticas, e pacientes, insistiam de pé enfiado na porta e revista em riste, falavam do fim do mundo, da Bíblia, de profecias, do Reino de Deus, de Jesus Cristo, de religião, e aqui, alto e pára o baile, Dona Amélia arrebitou as orelhas e perguntou: - Ai vocês são da religião?...
- Somos Testemunhas de Jeová - responderam as duas senhoras muito simpáticas e pacientes.
- Olha, ainda por cima jeovás! Rua, andor daqui para fora! - mandou Dona Amélia, sacando do toco de vassoura, mais rápida que a própria sombra. - Eu não acredito nessas lérias. Eu não acredito na religião católica, que é a verdadeira, e ia agora... Xô, xô, xô, já disse!

E diz o preguiçoso ateu
A minha religião é o trabalho.

O Velho Lau e o Lausperene
Que fique assente de uma vez por todas: o Velho Lau e o Lausperene não são uma única e mesma pessoa, como muito boa gente cuida, e, aliás, Lausperene nem sequer é pessoa. O Lausperene, ou Sagrado Lausperene, é a exposição e adoração permanente do Santíssimo Sacramento nas igrejas ou capelas. O Velho Lau é Venceslau Fernandes, ex-ciclista realmente de longeva carreira e pai da triatleta Vanessa Fernandes, Velho porque ganhou a Volta a Portugal de 1984, tinha então 39 anos, e correu até aos 46, derivando talvez daí a compreensível confusão...

O fim do Inferno é mau para o negócio
Evidentemente o Inferno não existe. O Papa Francisco tinha razão quando o disse, e se calhar ouviu-me ou leu-me antes, não sei quando nem onde. Mas a Igreja - que se apressou a desmentir o chefe, dizendo que ele não disse o que disse - não pode admitir semelhante franqueza: porque o Inferno é a bomba atómica do catolicismo. Sem Inferno, o que é que a Igreja em sotaina tem para ameaçar ou dissuadir os seus fiéis? "Olhai, amai-vos uns aos outros"? Seria de rir, se não fosse obsceno. Para além disso, o fim do Inferno é mau para o negócio.

Ben-u-ron, uma questão de fé
A minha sogra gosta muito do Ben-u-ron. Reclama "o meu Banuronzinho" por tudo e por nada, geralmente só para marcar posição de doente diplomada, inscrita na ordem e com as cotas em dia, questão de princípio, mas também para a insónia ou para a sonolência, para a garganta seca ou molhada, para o frio e para o calor, para as correntes de ar e para o mau-olhado, para a diarreia ou para a prisão de ventre, para os arrotos e para os espirros, para a flatulência ou para a surdez ou para a anosmia, para as unhas encravadas ou para os pêlos do nariz. A minha sogra só não quer Ben-u-ron para as dores de que se queixa como quem reza o terço em latim ou para a febre que nunca tem por mais que meta o termómetro. Para o resto - isto é, para aquilo que não diz respeito ao Ben-u-ron - a miraculosa pastilha é trigo limpo, farinha amparo. "Tenho muito fé no Banuron!", justifica a minha sogra. E eu, verdade seja dita, questões de fé não discuto.

P.S. - Este texto não teve o patrocínio da Bene Farmacêutica, Ld.ª. Infelizmente. 

O preço da fé
No tempo em que a fé era de graça, copo e vela dez tostões.

O reino dos céus por uma mobília de sala de jantar
Andam aos pares, como o Senhor mandou para a arca, aos pares e de Bíblia na mão, e vê-se logo que são boas pessoas. Missionam a bom missionar, de porta em porta, no meio da rua, sujeitam-se a malcriadezas em nome da fé que têm para dar e vender, e dou-lhes valor por isso. Um par interpelou-me um destes dias, ali em baixo, no passeio à beira-mar onde às vezes montam banca:
- Um minutinho, por favor, já pensou no que lhe acontecerá quando morrer? E porque morremos? Não quer saber a verdade acerca da morte?
Eu, que achei a abordagem um bocado desajeitada e tétrica, desnecessariamente radical, resolvi dar-lhes uma ajuda, recentrando o assunto:
- Não é nada da morte que me querem falar, pois não? A morte até poderia ser um bom princípio, em termos de marketing, de aproximação tablóide à clientela, quero dizer, mas vocês querem é falar-me da vossa Igreja, querem converter-me à vossa Igreja, querem anunciar-me Deus, o único verdadeiro, Jeová, é ou não é?
Era.
- Então, em verdade vos digo, assim será feito - disse eu, com voz de sarça ardente ditando leis -, ouço-vos, vocês falam-me da vossa Igreja e de Jeová, mas só se também me derem tempo de antena para eu vos falar de uma mobília de sala de jantar muito jeitosa que tenho para vender.
- Mas para que queremos nós ouvi-lo falar acerca da mobília de sala de jantar, se temos uma praticamente nova, estamos tão bem servidos e não precisamos de mudar? - respondeu o par em coro e percebi logo que, para além de par, formava também casal.
A resposta era mesmo a que me calhava, portanto sentenciei:
- Pois, caríssimos irmãos, eu e Deus é a mesma coisa: já tenho um e estou muito contente com Ele. Vou agora trocar, porquê?

Moral da história: vendi-lhes duas mobílias de sala de jantar. E amém.

À capela
Cantava muito bem à capela. Pediram-lhe que cantasse à igreja. Disse que ainda não estava preparado...

O distraído
Quando deu fé, já era ateu.

Judas
Sejamos direitos: sem Judas não haveria salvação. 

P.S. - Hoje, 21 de Janeiro, é Dia Mundial da Religião. Há quem diga que deve ser celebrado no terceiro domingo de Janeiro.

Na minha rua passa o mar 103

Foto Hernâni Von Doellinger

Branca e radiante

Um bobsleigh em segunda mão
No tempo dos sonhos eu tive um: comprar um bobsleigh em segunda mão, pegar na mulher, no filho e no futuro e mudarmo-nos os quatro para Santiago de Compostela, que era o estrangeiro que me estava mais à mão e nós gostávamos razoavelmente derivado às ruinhas, às tapas e às cañas e por a bem dizer nem ser estrangeiro. Melhor dito, gostamos muito. Mas hoje em dia: a Galiza anda tão à rasca como a gente, já não é oficialmente estrangeiro e saraiva por mais que saraive, ainda que em galego, não é neve nem embala. Ia fazer o quê com o bobsleigh na Praça do Obradoiro? Do Obradoiro, que nome extraordinário. Ainda por cima, os gandulos do lado de cá cortaram-me as vazas, entesaram-me até ao cutão. Desisti portanto do bobsleigh e tirei o passe do metro para a Senhora da Hora. Segundo julgo saber, na Senhora da Hora não neva há variados anos por uma questão de princípio. Que se segue: de bolsos vazios e sonhos roubados, fico olimpicamente em casa à espera do Verão de que não gosto. Sem bobsleigh, sem ruinhas, sem tapas e sem cañas. Uma seca que só visto.

Sou dado a invernos. Melhor que chova em Santiago. E que neve, e que a neve se faça gelo. Ou então nada disso, que ao ponto a que chegámos também não interessa, mas Santiago, sempre Santiago, mesmo sem bobsleigh e ainda que faça sol. Um dia destes lá iremos, eu, a mulher, o filho e o futuro - pobres e a pé, se Deus quiser, mas vamos. E tem de ser rápido, antes que uns certos e determinados bandalhos nos matem de doença e à fome em primeira mão.

O Neves foi ver a neve
O Neves pegou na família e foi ver a neve. Não viu. A estrada estava cortada. Por causa da neve. 

Goze o confinamento
Aproveite a bênção da quarentena, sobretudo se for realmente mais do que quinzena. Fique em casa, leia, escreva, pense, e todas as tardes durma um sono, ou dois, consoante a disposição e a companhia, e dormir é aqui uma forma de dizer. E ouça a chuva a bater à janela. Mas não abra se bater leve, levemente, que a chuva não bate assim: é de certeza o Neves, e o Neves é um chato do caralho.

Branca e radiante
Branca de Neve brincava às casinhas com a casa dos sete anões. Com os anões brincava aos médicos, há quem diga. 

P.S. - O passado domingo, terceiro do ano, foi Dia Mundial da Neve.

Pela estrada plana, toc, toc, toc

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A super-heroína

Era realmente uma super-heroína. Com uma pureza a rondar os noventa e cinco por cento.  

Nem que chovam picaretas

Foto Hernâni Von Doellinger

Francisco José Tenreiro 3

Canção do mestiço

Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...

Francisco José Tenreiro

(Francisco José Tenreiro nasceu no dia 20 de Janeiro de 1921. Morreu em 1963.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 208

Foto Hernâni Von Doellinger

O homenageado

Fizeram-lhe rasgados elogios. O homenageado não gostou. Apanhou humildemente os papelinhos desirmanados, reorganizou-os com fita-cola e foi para casa...

Interlúdio fotográfico 287

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

A última a morrer

Era uma família convencional. Morreram, naturalmente por esta ordem, o Acúrsio, a Adelaide, o Tibério, a Catarina, a Rosa, o Celestino e finalmente a Esperança. É daí que vem.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 207

Foto Hernâni Von Doellinger

Uxío Novoneyra 7

Novas verbas de door

Pechouse a noite riba do ucedo
i eu non vin einda a cor da miña amiga.
Agora é cando ún treme e ten medo.

Iste desacougo! Este cousa! Esta mao xorda que tira!
Iste querer irse sin saber para onde!

Agora o meu cor é unha chaga encendida.
Unha mao loba anda escalazándome a ferida.

Esta door que se oi!
Iste cor meu!
Esta door que me veo ela de seu
Sin saber polo que foi!

Foi coma se caira nunha cova.
Antes era noite i era día
Agora é todo unha negrura loba.


"Os Eidos", Uxío Novoneyra

(Uxío Novoneyra nasceu no dia 19 de Janeiro de 1930. Morreu em 1999.)

Caminho 865

Foto Hernâni Von Doellinger

Eugénio de Andrade 8

[Foi para ti que criei as rosas]

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.

"As Mãos e os Frutos", Eugénio de Andrade

(Eugénio de Andrade nasceu no dia 19 de Janeiro de 1923. Morreu em 2005.)