Mostrar mensagens com a etiqueta vizinhos. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta vizinhos. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 27 de maio de 2025

O quinto dos infernos

Moro num terceiro andar. Direito. E dou-me muito bem com todos os vizinhos do prédio, isto é, não me dou de todo com vizinho nenhum, que é a melhor maneira de nos darmos todos bem. O meu vizinho do quinto entrou em obras, ou por outra, resolveu deitar a casa abaixo da porta para dentro e fazer lá dentro uma casa nova, isso é lá com ele. Paredes, soalhos, tectos, canalizações, instalações eléctricas, louças e móveis de casa de banho e cozinha, tudo destruído sem dó nem piedade, deitado abaixo à força de camartelos pneumáticos, sonoras rebarbadoras, explosões de dinamite, buldózeres, bolas de aço e outra maquinaria pesada de demolição, que eu bem a ouço lá em cima em manobras, um chinfrim medonho, um basqueiro insuportável, incessante, eu e a minha mulher já só falamos um com o outro por SMS para nos ouvirmos, é pó por todos os lados, sufocante e cego, a porta da rua sempre escancarada, de manhã à noite, os elevadores impraticáveis, o chão um nojo, é o inferno, o fim do mundo mesmo em cima das nossas cabeças em água, ouradas, doridas, cansadas, apenas com os vizinhos do quarto-direito de permeio, esses, coitados, completamente à beira da loucura, com a casa a tremer-lhes como varas verdes e episódios bidiários de histeria conjugal.
Será coisa para durar três ou quatro meses, a fazer fé no aviso gentilmente afixado no placar de cortiça do condomínio. E não me posso queixar. Ainda de acordo com a missiva do vizinho do quinto, a empreitada "decorre tal como permite o quadro legal em vigor", dando "cumprimento ao estipulado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 16.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo decreto-lei n.º 9/2007 de 17 de Janeiro". Ainda bem. Assim, estou muito mais descansado...

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Vizinhos.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Weather report

- Isto é que tem estado!...
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.

P.S. - Hoje é Dia do Vizinho. No Brasil.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Mataram os vizinhos

É. Mataram os vizinhos e agora somos condóminos. Éramos vizinhos, lembram-se? E a palavra vizinho queria dizer coisas boas: proximidade, amizade, companhia, ramo de salsa, comunidade, confiança, solidariedade, serões à soleira da porta, copinho de vinho novo partilhado, malga de marmelada, frasquinho de geleia, as primeiras uvas, cumplicidade, visita ao hospital, dar a camisa, porta aberta, conselho pedido e dado, comadre, quase família, melhor que família, tu cá, tu lá. Agora somos condóminos. E a palavra condómino tem uma carga que é um pesadelo: propriedade, despesa, individualidade, indiferença, reunião, ausência, chatice, discussão, impessoalidade, porta fechada a sete chaves (três, pelo menos), queixinha, fracção, má-língua, elevador, o tempo, bom dia e boa tarde, eu cá, tu lá.
E é irónico. Há mais de trinta anos que eu sou um condómino exemplar, um condómino da melhor pior espécie - não apareço, só pago -, mas hoje deram-me as saudades de ser vizinho. Sei que já vou tarde. Estamos todos condenados a sermos condóminos para o resto das nossas vidas. Se ainda ao menos fôssemos conDominus nobiscum...

Weather report

- Isto é que tem estado!...
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Vizinhos.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Notícias da retaguarda 2

As encomendas como as bombas
Para evitar contactos pessoais, as encomendas agora chegam-nos a casa sozinhas no elevador. Como as bombas. Nos filmes.

Contrafeitas
Eram máscaras contrafeitas. Se lhes dessem a escolher, referiam ser toalhetes.

Farto de tanta falta de respeito
Estava farto de tanta falta de respeito. Falta de respeito pela pandemia, falta de respeito pelo estado de emergência, falta de respeito pelo estado de calamidade, falta de respeito pela fila para a vacina, falta de respeito pelo estado a que isto chegou, falta de respeito pela quarentena, falta de respeito pelo confinamento, falta de respeito pela linha da frente, falta de respeito pela linha do tua, falta de respeito pelo desconfinamento, falta de respeito pela falta de respeito. Estava farto, farto, farto! E era hoje!...
Distanciou-se metro e meio da própria sombra, colocou a máscara, empunhou a bisnaga de álcool gel, subiu o lanço de escadas, aproveitou a porta apenas encostada, contou até três, entrou de rompante e gritou: mãos ao ar, isto é um assalto! Ficou admirado. O que ele queria dizer era: alto e pára o baile - desesperado com aquele forrobodó todas as noites mesmo por cima da cabeça, mais de vinte energúmenos, eles e elas, em sucessivas festas ilegais, estrondosas e orgíacas. Mas estava dito, estava dito: desceu com um LCD de 100 polegadas, uma mesa de DJ, seis colunas de som surround, um globo espelhado, oito CD do Quim Barreiros, dois tablets, quatro telemóveis, sete relógios - um de sala -, seis pulseiras, cinco colares, doze pares de brincos, dois pacotes de batatas fritas, meia piza familiar de cogumelos e fiambre, um pacote de Sugus morango e framboesa, nove gramas de haxixe, garrafa e meia de vodka, duas canecas de sangria, vazias, três garrafas de Casal Garcia, treze cartões de crédito, um vale de reforma e 837 euros em numerário.

Em lata
O confinamento fez dele um verdadeiro especialista em atum. Bom Petisco à segunda, Ramirez à terça, Tenório à quarta, Minerva à quinta, Pitéu à sexta e Inês ao sábado. Ao domingo, sardinha em tomate, evidentemente.

Os mórreres
Sim, os víveres, evidentemente os víveres. E os mórreres?...

Goze o confinamento
Aproveite a bênção da quarentena, sobretudo se for realmente mais do que quinzena. Fique em casa, leia, escreva, pense, e todas as tardes durma um sono, ou dois, consoante a disposição e a companhia, e dormir é aqui uma forma de dizer. E ouça a chuva a bater à janela. Mas não abra se bater leve, levemente, que a chuva não bate assim: é de certeza o Neves, e o Neves é um chato do caralho.

sábado, 30 de janeiro de 2021

Notícias da retaguarda

O grande Asdrúbal
Encontrei ontem por acaso o Asdrúbal, o velho Asdrúbal, o grande Asdrúbal - aos anos que não nos víamos! Recordámos os tempos antigos, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, do coronavírus, do velho Marega, dos novos fascistas-racistas, de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia e à distância. Despedimo-nos calorosamente trocando abraços da boca para fora e números de telemóvel e apalavrando a marcação de um almoço para quando se Deus quiser. Cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Asdrúbal, nem sequer é parecido com o Asdrúbal, apesar da máscara. Na verdade, tenho agora a certeza absoluta de que não conheço este indivíduo de lado nenhum. Em todo o caso, gostei muito de falar com o Asdrúbal.

Em confinamento há três anos e quinze dias
Pratico quarentena há três anos e quinze dias, faz hoje exactamente. E não sabia que estava a fazer uma coisa extraordinária... 

O fim do mundo
Quando lhe disseram que vinha aí o fim do mundo, comprou setecentos e noventa e três rolos de papel higiénico e declarou: - Estou preparada!

O denunciante
Denunciado por ter tossido em casa, foi detido pela polícia, presente ao juiz e metido em prisão preventiva. O vizinho delator morreu de caganeira naquele mesmo dia.

Causa da morte: ida ao médico
Um gajo anda mais ou menos porreiro, uma dorzita aqui, uma pontada acolá, um bocadinho de falta de ar, ouras e fastio às vezes, coisas de nada, coisas da vida, se calhar do tempo ou, vá lá, da idade. Um gajo anda mais ou menos porreiro. Até que um dia, empurrado ou de livre vontade, vai ao médico. Análises, exames, diagnósticos, prognósticos, agnósticos, cancro, coração, rins, fígado, coluna, internamento, cirurgia, hemodiálise, quimioterapia, antipatia, utente, paciente, despistagem, despessoamento, isolamento, transferência, circunferência, alta, baixa, alta, baixa, piso 1, piso 2, piso 10, piso 1, doente da cama 13, bactérias, vírus, infecção, pneumonia, silêncio, cave. Um gajo andava mais ou menos porreiro. No competente certificado há-de constar, obitamente e por ser verdade: "Causa provável de morte - ida ao médico"...

Na sombra
Fechou-se em casa, com medo de ser contaminado. E manda a sombra fazer-lhe os recados.

sábado, 5 de maio de 2012

Mataram os vizinhos. Agora somos condóminos.

Éramos vizinhos, lembram-se? E a palavra vizinho queria dizer coisas boas: proximidade, amizade, companhia, ramo de salsa, comunidade, confiança, solidariedade, conversa no passeio à noite, copinho de vinho novo, cumplicidade, visita ao hospital, dar a camisa, porta aberta, comadre, quase família, melhor que família, tu cá, tu lá. Agora somos condóminos. E a palavra condómino tem uma carga que é um pesadelo: propriedade, despesa, individualidade, indiferença, reunião, ausência, chatice, discussão, impessoalidade, porta fechada a sete chaves (três, pelo menos), queixinha, fracção, má-língua, elevador, o tempo, bom dia e boa tarde, eu cá, tu lá.
E é irónico. Há 25 anos que eu sou um condómino exemplar, um condómino da melhor pior espécie, mas hoje deram-me as saudades de ser vizinho. Sei que já vou tarde. Estamos todos condenados a sermos condóminos para o resto das nossas vidas. Se ainda ao menos fôssemos conDominus nobiscum...