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Foto Hernâni Von Doellinger |
O futebol realmente
Aos domingos de manhã eles lá estão e são
os meus ídolos. Jogam à bola porque gostam, são amigos e compinchas,
para além disso dá-lhes imenso jeito ganhar apetite para o almoço, Deus
os farture. Jogam a sério, têm árbitro, capitães de equipa, minuto de silêncio, estão organizados, já vi assembleias
gerais antes dos prélios e minis ao intervalo. Há os da praia seca e, no quintal dos fundos,
os da praia molhada. A paixão pelo futebol é a mesma, tremenda e pura.
São amadores como quer dizer a palavra.
Eles são o meu Mundial, o meu Europeu, e jogam futebol na praia - não
confundir com futebol de praia. Em Matosinhos, fora da época balnear. São regra geral gordos e
não têm cortes de cabelo idiotas, se descontarmos os carecas. Aqui não
há mialgias nem lombalgias, ditas de esforço, mas haverá se calhar
diarreias e ataques de fígado, o que se compreende perfeitamente. Aqui
não há
hooligans nem claques "organizadas". Não há cláusulas de rescisão, mas há multas por atrasos ou faltas, provavelmente para serem gastas à mesa. Não há comentadores
nem considerações filosóficas, psicotácticas e tibiotársicas. Não há
último terço do terreno nem quarto segredo de Fátima. Para o espectador,
então, é um luxo: vê pelo menos seis jogos ao mesmo tempo e ao vivo,
enquanto faz a caminhada pela marginal, e depois é só direccionar a
cabeça para o campo certo quando ouve... "Gooolooo!!!"...
E isto, é preciso que se note, sem precisar de telecomando...
Nelo Barros
Tive
a sorte de conhecer Nelo Barros. Manuel Coelho de Barros (1917-2007)
foi um grande treinador de futebol e um mestre de treinadores de futebol
que nunca fez primeiras páginas de jornais porque sempre se recusou a
deixar o emprego no escritório da que era então a maior fábrica de Fafe,
e uma das maiores do País, a troco de trabalho a tempo inteiro numa
equipa da 1.ª divisão. O Nelinho era assim.
Pessoa excelentíssima, homem elegante, distinto,
culto, carismático, Nelo Barros era reconhecidamente um catedrático da táctica, sabia
muito de bola e dava gosto ouvi-lo falar de futebol. Ele
entusiasmava-se e entusiasmava. O futebol de Nelo Barros tinha pessoas e
histórias dentro. O futebol contado por Nelo Barros era simples,
percebia-se à primeira, batia certo, era lindo...
Uma noite, no
velho salão dos Bombeiros (Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os
dois palacetes), o treinador encantou uma plateia à pinha que o
foi ouvir falar de desporto e de futebol, de jogadores e de jogos, de
treinadores e de tácticas, como nunca se tinha ouvido falar por aquelas
bandas. O Nelinho falou como de costume, sem tabus, sem grandes teorias, sem peneiras. Até eu, que era um
rapazola, entendi tudo. E fiquei a gostar ainda mais de futebol.
Perguntaram-lhe
o que é que era preciso para se ser um bom treinador. Nelo Barros
respondeu assim, que esta cá me ficou: "Não há bons treinadores. Os
jogadores é que fazem os bons treinadores". E depois desenvolveu, mas
nem era preciso.
Eu gostava tanto de ouvir Nelo Barros, que ia
assistir a todos os treinos, que eram sempre ao fim da tarde, por causa
do tal emprego do treinador na fábrica. Uma vez, o jogo em preparação
era contra o Riopele. E digo contra de propósito, porque aquele era um
tempo de rivalidades à moda antiga, dentro e fora do campo, acabando
quase sempre tudo à trolha.
Mas, voltando ao treino, o Nelinho
reuniu os jogadores à sua volta e deu a táctica. E eu por perto, de
radar ligado. Fiquei deslumbrado: eram indicações precisas para cada um
dos jogadores, para o funcionamento da defesa, para o desempenho do
meio-campo, para o trabalho dos avançados, para as movimentações da
equipa como um todo, até o Berto Magalhães (um suplente muito fraquinho,
mas com um pulmão se faz favor) ia jogar como médio vadio para secar os
criativos riopelenses. Tudo encaixava, tudo fazia sentido. E tudo dito
com uma convicção, que no domingo só podia dar certo.
Mas não
deu. Do outro lado estava uma equipa poderosíssima (se a memória não me
atraiçoa, lá jogariam, por essa altura, o Piruta, o Vital, o Barros, o
Albano, o João, o Luís Pereira), treinada por outro que a sabia toda:
Ferreirinha. Saímos de Pousada de Saramago vergados a uma pesada
derrota, já não sei por quantos, mas eu não perdi a fé no Nelo Barros.
Pelo contrário. Na humilhação da goleada, aprendi a beleza original do
futebol, tal como ele o ensinava: onze contra onze e uma bola que é
redonda. O resto é treta.
Hoje, uma nova raça de
colunistas, comentadores, ex-treinadores-comentadores e ex-comentadores-treinadores, todos paineleiros enfim, quer fazer-nos acreditar que o
futebol é praticamente uma ciência oculta, só percebida por uns poucos
predestinados que, modéstia à parte, são eles próprios. E inventam
palavras e expressões para complicar o que é simples. E já não há bola
nem futebol. Eles, que sabem inglês, "inventaram" o jogo. Pois, pela parte que me cabe, parabéns à prima. Sou um simples já com razoável uso. E tenho é saudades de ouvir o Nelinho a falar de bola. De bola simplesmente.