quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Engana-me, que eu gosto...

Uma vez, um artista hipnotizador e talvez ilusionista veio dar um espectáculo ao Cinema e eu, que era mocico, não vi, porque era preciso pagar bilhete. E era uma bonita tarde de sol. Para chamar povo como no Poço da Morte, o artista hipnotizador e talvez ilusionista fez cá fora, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, o famoso número de conduzir um carro de olhos vendados, naquele bocado entre a esquina do Santo Velho e o ateliê do Zé Manel Carriço, exactamente nesse sentido, que era permitido na altura, nem cem metros sempre em linha recta, assim também eu, foi o que então pensei, e mais ainda hoje não sei conduzir. O número terá sido feito cá fora de mais a mais porque lá dentro decerto não daria jeito, cheguei igualmente a essa conclusão. Esperei pelas horas à sombra, no passeio em frente, encostado à casa-mãe dos Summavielles, como já lhe chamei. No final, os que pagaram para entrar disseram-me à saída que aquilo não prestou. Felizmente a saída era de graça...
Em Fafe apareciam de vez em quando uns fenómenos assim, e até nos quiserem impingir espectáculos de luta livre nos antigos Bombeiros, com cartazes sugestivos, os sensacionais Tarzan Taborda, José Luís, Carlos Rocha e tudo, vindos directamente do Coliseu dos Recreios, do Parque Mayer e do Pavilhão dos Desportos de Lisboa. Eu conto falar proximamente de mais algumas dessas extraordinarices fafenses, mas aqui atrasado lembrei-me do artista hipnotizador e talvez ilusionista armado em cego que nos veio enganar numa bonita tarde de sol. Hoje é Dia Mundial do Mágico, e lembrei-me dele outra vez. É o que eu estou farto de dizer à minha mulher: isto anda tudo ligado!...

Tão perfeita que ela era, a ignorância

Eu trabalhava num jornal que tinha uma revista de fim-de-semana muito dada àqueles rankings da treta que só servem para meter as fotografias dos "famosos" no júri de faz de conta. Eu trabalhava no Porto e o jornal era chefiado a partir de Lisboa. Uma vez o assunto devia ser música, já não me lembro, e pedi a ajuda do Luís Filipe Barros. "Luís Filipe quê?..." - disse o meu chefe, especialista em Big Brother. "Luís quê? Quem é esse gajo? Não arranjas ninguém conhecido?..."
Passou-se o mesmo com o Tozé Brito, que o meu chefe (outro) também não fazia ideia de quem fosse: "Esse tipo jogou onde? O que é que ele percebe de música?...", atirou-me, com aquele risinho telefónico e condescendente tão próprio dos sábios de Lisboa. Pouco tempo depois (e nem digo que tenha sido por causa de eu lhe ter sacudido o pó), Tozé Brito foi para jurado num programa de televisão e o jornal onde eu trabalhava nunca mais lhe largou a braguilha. Até fechar. O jornal.
Outra vez havia cá em cima uma iniciativa qualquer relacionada com cartunes e política, algo do género. Eu tentava convencer Lisboa para o interesse da coisa e agarrei-me a este argumento de peso: a obra do grande Sam era o destaque do evento. "Qual Sam?", inquiriu o chefe de serviço, com o fastio de quem tem mais que fazer do que estar outra vez a ensinar-me o que é notícia e o que não é notícia. "Então, pá, o Sam, o famoso cartunista, o Sam do Guarda Ricardo, pá, estás farto de saber, não estás?, o Sam...", respondi-lhe eu, já mais perto do que longe de o mandar à merda.
A palavra "famoso" fazia milagres naquele jornal. "Ok. Vai lá então e aproveita para entrevistar o gajo, o Sam", decidiu finalmente o chefe. Estive para lhe dizer que sim, que era o que eles gostavam de ouvir, mas resolvi contar-lhe a verdade: "Esta se calhar é mesmo impossível, pá. O Sam já morreu há uns anitos. Mas a culpa não foi da redacção do Porto, palavra de honra."
Aquela rapaziada era assim, profissionais formidavelmente informados. Estão hoje todos muito bem colocados nas grandes redacções da capital. São chefes e fazem por isso. Deus os abençoe e lhes dê muito dinheiro.

P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Fevereiro de 2012, sob o título "Quando me mandaram entrevistar o morto". Hoje, dia do centenário do nascimento de Samuel Azavey Torres de Carvalho, o cartunista Sam, abre em Lisboa, no Museu Bordalo Pinheiro, a exposição "Não ria. O humor é um assunto muito sério: 100 anos de Sam".

O melhor amigo do cão

Havia um cão que tinha um dono muito bem mandado. Um dono obediente, brincalhão, carinhoso, esperto - só lhe faltava ladrar.

Era um bebé muito antigo

"Quando for pequeno, quero ser palhaço e astronauta", disse o ancião, sonhador e triste. Com efeito, aquela sociedade funcionava às arrecuas: nascia-se velho e morria-se a chupar no dedo. Era naturalmente governada por garotos.

Da frente para trás

Ao contrário de todos os outros atletas, ele gostava de correr da frente para trás. Tácticas. Provocava muita confusão e inúmeros acidentes, realmente, mas cada um é como cada qual. É a liberdade individual...

P.S. - Hoje é o Dia ao Contrário.

Acima de sargento

A ver se nos entendemos, finalmente: os óculos graduados são todos para cima de sargento?

P.S. - Hoje é Dia Nacional do Sargento.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Um cavalo chamado Puzzle

Conspiravam. Viviam numa satisfatória clandestinidade, numerados de Um a Doze. Mas tinham as suas fontes. Geralmente bem informadas. Eram os meados da década de setenta do século passado. Na reunião de Março, pela noute, em absoluto respeito pelas cautelas catacumbais religiosamente estabelecidas, desligaram o aparelho de televisão por alturas do TV 7, ligaram a telefonia no relato de um Espanha-Portugal em hóquei em patins, colocaram os óculos e apagaram a luz, esbarraram-se uns nos outros, partiram meia dúzia de chávenas e três copos, e os óculos, juntaram as múltiplas informações recolhidas à socapa no mundo exterior, assopraram-lhes cerimoniosamente o pó, decantaram-nas, apreenderam as entrelinhas, montaram o Puzzle, que era um cavalo malhado que dava para todos, mas à vez, pediram mais uma rodada de finos e quatro pires de tremoços, e concluíram que estavam prontos e imperiosos. "É preciso fazer o 25 de Abril!", anunciou o Número Um. "E para quando é que marcamos isso?", perguntou o Número Dois.

P.S. - Hoje, 29 de Janeiro, é Dia Mundial ou Internacional do Puzzle. E 25 de Abril sempre!

sábado, 27 de janeiro de 2024

E se fossem lamber sabão?

Foto Hernâni Von Doellinger

A rede de carros eléctricos da STCP resume-se a duas linhas e chama-se, hoje em dia, Porto Tram City Tour, está-se logo a ver porquê: é produto para camones. A STCP é a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto, E.I.M., S.A. Isso. A STCP informa que o PTCT "é um ex-líbris incontornável da cidade do Porto". Do Porto - como o célebre vinho. E decerto por isso é que o eléctrico da Linha 18, ou Linha da Restauração, exibe garbosamente as cores do irlandíssimo uísque Jameson.
Que fique registado - eu não tenho nada contra o uísque Jameson, antes pelo contrário. Aliás, se o uísque em geral não soubesse a sabão e se eu gostasse de uísque, era Jameson que beberia. E bebi durante algum tempo, por armanço puro e sem gelo.
Aqui há coisa de trinta anos estive lá, na Old Jameson Distillery, em Dublin, ou na The Jameson Experience Midleton, em Cork - isso é que já não sei precisar, porque os ares da Irlanda, pelo que percebi daquela vez, para além de fazerem muito mal ao fígado, também não são grande coisa para a memória. Mas quase que posso jurar que estive lá, e fiquei convencido. O Jameson foi o único uísque que alguma vez pedi pelo nome, mais que não fosse para ex-pli-car ao resto do balcão que eu... estive lá. Depois cheguei à idade de ganhar juízo, e ganhei. Aprendi o vinho.

(Já aqui contei: havia o sabão azul, o sabão rosa e o sabão amarelo. O sabão azul era o sabão macaco, para lavar roupa de barba rija, o sabão rosa já naquele tempo era para peças mais delicadas e o sabão amarelo era para lavar as escadas e os soalhos, que, em muitas casas, depois eram encerados. E havia também o sabão para lamber, que eu nunca soube de que cor era nem que sabor tinha, mas era o que a minha mãe me mandava fazer, - Vai lamber sabão!, quando eu andava à roda dela a arengar conversa sem assunto.)

Posto isto, permito-me continuar inclinado a afirmar, aguardando entretanto comprovação laboratorial, que é com sabão de lamber que se faz uísque. Anda portanto meio mundo a lamber sabão, e era também ao que deveriam dedicar-se as cabeças da STCP que têm a distinta lata de deixar colar publicidade a uísque num "ex-líbris incontornável da cidade do Porto". Do Porto - como o célebre vinho. Nem que fosse o Três Velhotes, que o meu avô da Bomba guardava ou escondia na mala de enxoval, no quarto, mesmo em frente à cama, aferrolhada a sete chaves e ali debaixo de olho, somando todos os anos mais duas ou três, dadas ou abafadas, nunca percebi a razão daquele desenfreado açambarque. E nunca molhei o bico.
Devia ser só o prazer de não dar. E deviam ser milhões de garrafas na mala quando o meu avô morreu. E o meu avô da Bomba deve ter morrido bastante satisfeito.

Eu sei. O vinhinho em questão, modesto mas honrado, chama-se apenas Velhotes, mas o povo, que percebe muito bem os desenhos, chama-lhe desde sempre Três Velhotes. Nunca percebi por que razão produtores e distribuidores não lhe mudam o nome, aproveitando a abébia da publicidade popular. Quanto a isso, porém, Cálem-te boca...

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Vinho do Porto. E então, à nossa!...

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Saiu-me a reforma

Saiu-me a reforma, ontem. Isso. Às quintas-feiras anda a roda. Eu meti os papéis, aqui atrasado, no prazo certo, logo no primeiro dia possível, e ontem saiu-me a reforma, soube hoje. Eu preferia que me tivesse saído o euromilhões, a sorte grande, mas saiu-me a reforma, melhor que nada, e é com ela que tenho de contentar-me e governar-me daqui para a frente. Agora, com maioria de razão e papel passado, estou enfim capacitado para dizer mal de tudo e de todos e "é por isso que este país não vai para a frente" e "no meu tempo é que era" e "esta gente não quer trabalhar" e "era fodê-los" e assim sucessivamente. Portanto, estou pronto. No ponto. Que é que eu quero mais? Estou reformado. Vou tirar o passe de terceira idade, aprender a jogar à sueca, inventar netos, comprar um capacete, um par de botas de biqueira de aço e um colete reflector, ponho as mãos atrás das costas e vou para o pé das obras mandar palpites.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Da Capadócia a Freixo de Espada à Cinta

Paulo de Tarso, ou Saulo de Tarso, também conhecido como Apóstolo Paulo, São Paulo Apóstolo, Apóstolo dos Gentios ou simplesmente São Paulo, nem sempre foi o santo que hoje se pinta. Tem atrás de si um passado, como todos nós, mas um passado mais negro do que o da maioria de nós. Saulo era um fariseu radical, impiedoso, feroz, um zelota que se dedicava a tempo inteiro à perseguição dos seguidores de Jesus. Era portanto do piorio, mau como as cobras, o diabo em pessoa, e só amansou e ganhou juízo quando Deus Ele mesmo lhe saiu ao caminho, dando-lhe um valente safanão e cegando-o temporariamente, a ver se ele aprendia. E ele aprendeu.
Assim miraculosamente convertido, Paulo resolveu pôr a correspondência em ordem e desatou a escrever missivas. Para além da algumas cartas com destinatário individual, sempre para homens, que fique devidamente registado, epistolou aos Romanos, aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos Tessalonicenses e eventualmente aos Hebreus. Catequizou também os Gentios, e quando eu graças a Deus descobri a Bíblia, em pequenino, julgava que os Gentios eram um povo assim como os Helvéticos ou os Teutónicos, naturais e residentes num país de que era proibido ou eventualmente pecado dizer o nome, por indecente e má figura.
Os nomes na Bíblia sempre me fascinaram. Tanto que eu pensava (e ainda penso) que se São Paulo fosse hoje e se por acaso resolvesse escrever aos portugueses só se dirigiria, arrisco dizer, aos Albicastrenses, aos Egitanienses, aos Escalabitanos, aos Brigantinos, aos Nabantinos, aos Freixenistas ou Freixienses ou Freixonistas ou Freixonitas, gente assim de nome fidalgo ainda que indeciso e nunca abaixo disso. Creio que os fafenses, de tão simples, ficariam de fora.
E Melquisedeque? Ai o que eu gostava do nome Melquisedeque! E Ponto e Bitínia e Capadócia e Antioquia, nomes assim de perlimpimpim, de números de circo de Natal. Antioquia que me fazia sonhar aventuras das mil e uma noites, lamentando embora que São Paulo, que aqui terá pregado o seu primeiro sermão, nunca tenha mandado uma epístola na volta do correio aos simpáticos e desamparados Antioquenses, nem um postal sequer para amostra.
Já quanto aos sodomitas, habitantes de Sodoma, continuo a achar que ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem constam nos dicionários. A História às vezes é muito injusta e parece-me que a Bíblia devia ter aqui uma palavra a dizer...

P.S. - A conversão de São Paulo é comemorada no dia 25 de Janeiro. Hoje. No Brasil é Dia do Carteiro.

E o rio passa torturado, aflito

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Educação era antigamente

Os Antigos sabiam tudo. No tempo deles é que era. Havia respeito, havia educação, bondade, sabedoria, paz, saúde, velhice e emprego para todos. Havia Portugal.
Os Antigos sabiam de laranjas - de manhã ouro, à tarde prata e à noite mata. Sabiam do tempo - em Abril, águas mil. Sabiam de horas e alturas - deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer. Sabiam de curas e maleitas - o vinagre e o limão meio cirurgião são. Sabiam de tubérculos e famulagem - não comas caldo de nabos nem o dês aos teus criados. Sabiam de presigos e segurança pública - sardinha sem pão é comer de ladrão. Sabiam de magustos e viagras - a castanha excita o coito e alimenta muito. Sabiam de proporções - bom comer: três vezes beber. Sabiam de criação e divindades - ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo. Sabiam de prestidigitação e utopias - mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Sabiam saltar a cerca - a galinha da vizinha é sempre melhor que a minha. E sabiam guardar um segredo - o corno é o último a saber.
Os Antigos morriam muito, mas morriam muito velhinhos, isto é, por volta dos cinquenta, sessenta anos.
Os Antigos não andavam por aí aos tiros. Andavam às pauladas, às facadas, às sacholadas - e aos tiros.
Os Antigos não matavam por dá cá aquele palha. Matavam por causa da água - e geralmente por causa do vinho.
Os Antigos não emprenhavam raparigas solteiras a torto e a direito. Os filhos de pai incógnito eram realmente mais que as mães, mas eram milagres.
Os Antigos não toleravam e até perseguiam os maricas, isto é, os paneleiros, porém consideravam razoável que o senhor padre fosse ao pito às moças da paróquia e brincasse com as pilinhas dos meninos da catequese.
Os Antigos achavam que melhor que um Salazar só dois Salazares. Melhor ainda, um Salazar em cada esquina. Entre Salazar e Fátima, é que os Antigos não sabiam bem...
Os Antigos sabiam como fazer homens. Pegavam nos rapazes e mandavam-nos para a tropa, se possível para a guerra.
Os Antigos eram puros. Não gostavam de pretos. Nem de monhés. E iam muito à missa e à sagrada comunhão.
Os Antigos inventaram Deus, Pátria e Família.
Os Antigos batiam nos filhos. E nas mulheres. Davam pão e também educação.
Os Antigos sabiam o lugar da mulher. Em casa. Na cozinha. A fazer croché. E se saíam à rua, era marido à frente e mulher um passo atrás, como Nosso Senhor ensinou e está na Bíblia.
Os Antigos respeitavam as esposas. Por isso iam às putas.
Os Antigos andam por aí. E estamos outra vez no tempo deles.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Educação. Foi inventado pelos Antigos. Mais sobre as inúmeras vantagens dos Antigos, por exemplo aqui e aqui.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Nas mãos de Agustina

Foto Gaspar de Jesus

Agustina Bessa-Luís ocupou o cargo de directora de O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987. Digo bem: ocupou o cargo. Fazendo o favor a Diogo Freitas do Amaral, a quem o jornal da portuense Rua de Santa Catarina tinha sido dado pela família Pinto de Azevedo. Agustina entrou e mandou logo mudar de sítio a secretária do gabinete da direcção, a sua secretária de trabalho, para poder apanhar solzinho nas perninhas. É a grande marca do seu consulado. De resto, era bonito de se ver aquela mulherzinha de carrapito e xaile ou lenço pelas costas, sentada quase invisível, debruçada sobre o mesão, com os pés balançando a meio caminho do soalho, manuscrevendo laboriosamente numa letrinha mínima, encarreirada e esdrúxula que era preciso desvendar.
Agustina escrevia para o jornal uns "editoriais" extraordinários, que eram tudo menos editoriais. Eram pérolas literárias, histórias, contos, ensaios, que viam a luz do dia no cantinho superior esquerdo, ou talvez direito, da primeira página.
A directora não sabia nada do jornal e o jornal também não queria saber dela. E era pena. Um dia o chefe de redacção entrou-lhe no gabinete perguntando-lhe o que fazer com uma notícia eventualmente mais melindrosa e que agitava na mão. É, antigamente as notícias viajavam em folhas de papel. "Eu não sei nada disso", enxotou a directora, "vá falar com o chefe de redacção". E o chefe de redacção disse "Com certeza, senhora directora", e foi falar consigo mesmo, modalidade, aliás, em que ele era e ainda é campeão ibero-americano.
Agustina deixou O Primeiro de Janeiro depois dos pascácios da administração lhe terem feito a sacanagem de publicar, sem lhe dar cavaco, uma edição apócrifa do jornal, a pedido das bolachas Triunfo. A escritora exigiu a demissão dos administradores, que se mantiveram nos seus lugares, agarrados ao tacho como lapas. Saiu ela.
Sei disto tudo e outro tanto porque conheço muito bem o tipo que revia os "editoriais" de Agustina no velho Janeiro e que, vítima do efeito dominó provocado pela honrada renúncia da directora, acabaria por ter de tomar conta da redacção. Conheço-o tão bem que é como se me visse ao espelho.

Hoje é Dia da Escrita à Mão. Li outro dia que esta habilidade está a perder-se e parece que faz diferença, sobretudo à cabeça. É capaz, pelo que vejo. No Janeiro, onde entrei como revisor, após concurso, ainda tive tempo de lidar também com os extraordinários gatafunhos do filósofo Sant'Anna Dionísio (1902-1991), um velhinho minúsculo, já algo distraído e inesperadamente simpático que nos visitava amiúde, com os bolsos do casaco quase pelos pés atafulhados de folhas de papel manuscritas, riscadas, emendadas e acrescentadas numa letra desengonçada e a bem dizer indecifrável que me calhava sempre a mim, por ordens expressas do chefe da revisão, o sábio Professor Horácio Moreira. Sant'Anna Dionísio escrevia uma infindável série de artigos sobre o também filósofo Leonardo Coimbra (1883-1936), que tinha sido seu mestre e era o seu ídolo, por assim dizer. José Augusto Santana Dionísio era talvez o mais notável colaborador do prestigiado suplemente literário do PJ, "Das Artes Das Letras", no meu tempo coordenado pelo poeta Alberto de Serpa (1906-1992), outro incorrigível praticante da escrita manual e, neste caso, evidente filho da mãe.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Uma questão de caracteres

Os especialistas têm toda a razão. É claro que as coisas não se resolvem em apenas 280 caracteres. É pura demagogia. Para que a vida das pessoas comece realmente a melhorar, são precisos pelo menos 23.157 caracteres

domingo, 21 de janeiro de 2024

Bienal, como o próprio nome indica


Vale a pena a recordação. E era a melhor das intenções, disso que não haja dúvidas. Na sua voz maviosa, a locutora da rádio fazia o elogio e o convite à visita à Bienal de Cerveira - "há 17 anos" a levar ao Alto Minho a nata da arte plástica nacional e internacional. Pois. Dezassete anos, contas bem feitas, porque naquele ano, 2013, era a décima sétima edição do evento e portanto não havia que enganar. A locutora da voz maviosa (já disse que a voz era maviosa, não já?) ignorava que a Bienal de Cerveira começou em 1978 - há 35 anos naquela altura, assim é que está certo - e que as bienais, como o próprio nome indica, realizam-se de dois em dois anos. Mas isso são pormenores.
Perdoo a ignorância da locutora. Eu próprio já escrevi que Vila Nova de Cerveira perde muito por não fazer a Bienal todos os anos. Mas era uma laracha das minhas: tenho a mania da piada tirado do cu com um dedo, não falo na rádio e raramente falo a sério. Perdoo a locutora por causa da sua voz definitivamente maviosa, minha companhia pelos nevoeiros matinais do Parque da Cidade, e porque a seguir ela me deu "Purple Rain", versão Urselle. Claro que era muito melhor o extraordinário original de Prince, mas se calhar não é suficientemente smooth...

P.S. - Jaime Isidoro - pintor, galerista e fundador da Bienal de Cerveira - morreu no dia 21 de Janeiro de 2009. Tinha 85 anos. A XXIII Bienal Internacional de Arte de Cerveira está marcada para este ano, de 20 de Julho a 30 de Dezembro, sobe o tema "És livre?" e comemorando os 100 anos do nascimento de Isidoro.

A desobra de Deus

Deus criou o homem. E o homem inventou a religião. E talvez não houvesse necessidade...

sábado, 20 de janeiro de 2024

O jornalismo e o seu fim

O que é curioso é que o jornalismo acabou, pelo menos em Portugal, quando toda a gente começou a saber de jornalismo, a ser especialista, exactamente no momento em que todos são jornalistas, menos nós os encartados, os jornalistas antigamente ditos.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Raios e Corisco

"Raisparta isto!", disse Zeus, meio distraído. E foi o fim do mundo.

Como se sabe, Zeus é o pai dos deuses, o deus dos céus, dos raios e dos relâmpagos, o fiscal que mantém em sentido toda a mitologia grega, e em Roma chama-se Júpiter. Os raios eram lanças muito grandes produzidas em série pelos gigantes ciclopes, criaturas de um olho só, como a gaita do Bitó. Estas lanças, suponho que de fogo, depois de prontas eram entregues ainda quentinhas a Zeus, que as atirava com toda a força sobre os homens pecadores e arrogantes, quanto mais longe melhor, e assim começaram os Jogos Olímpicos.

Foi aí que apareceu o Franklin. Benjamin Franklin, polímata americano que, entre outras habilidades, inventou o pára-raios, segundo aprendi na Escola da Feira Velha. E foi a nossa sorte. Assim se livrou a humanidade da fúria de Zeus, regra geral, e dos seus raios e coriscos. O Corisco, faço notar no entanto, era um cãozinho de banda desenhada no antigo jornal O Primeiro de Janeiro, que morreu sem que ninguém em Portugal se importasse.

E que se segue? Na mitologia nórdica, hoje, 19 de Janeiro, é dia do Festival de Thor, deus dos relâmpagos e trovões e das batalhas. E era o que faltava dizer.

Céu geralmente

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Espetadores aos milhões

"Cerca de 1,9 milhões de espetadores assistiram nos estádios aos jogos da primeira volta da I Liga de futebol, um registo que é o melhor das últimas 12 épocas, segundo dados da Liga Portuguesa de Futebol Profissional", leio no jornal O Minho, que copia a agência Lusa. Espetadores, isso, espetadores. E aos milhões. Milhões de espetadores. E a dúvida continua a perseguir-me:
Qual é a diferença entre um espetador e um espetador? Passemos do Estádio da Luz para o Campo Pequeno, a ver se eu entendo. Numa tourada, por exemplo, o que é que distingue os espetadores dos espetadores? Uns pagam bilhete e os outros fazem os touros pagá-las, é isso, não é? E espetadores de gelo: são adereços muito jeitosos para filmes de suspense ou uma audiência que não reage, por melhor ou pior que a fita seja? O que devo pensar quando leio um título de jornal que me diz que "Acidente em rali francês provoca a morte a dois espetadores"? Como morre um espetador? O que faziam dois espetadores num rali francês? E, já agora, no voyeurismo, quem é o verdadeiro espetador: o que fica a ver ou o que enfia?

Pimenta na língua

Hoje é Dia Internacional da Comida Picante. Isto é, comida para maiores de 18 anos, servida apenas em restaurantes com bolinha vermelha, de preferência à ceia, após a meia-noite.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

O especialiszt

Ele era o verdadeiro e definitivo especialiszt. Ouvissem-no tocar a "Sonata em mi menor" e perceberiam imediatamente porquê.

Aquela já é velha, aqui, mas é minha. Agora reparem na extraordinária coincidência: hoje é Dia Mundial do Compositor e também foi no dia de hoje, 15 de Janeiro, mas de 1845, que o famoso compositor e pianista húngaro Franz Liszt chegou a Lisboa, onde permaneceu até 25 de Fevereiro, para vários recitais.

Absolutamente solista

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Do normal ou do bô?

Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Eu e os meus irmãos tivemos bó e bô vezes dois, pela mãe e pelo pai, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos, em Basto, uma, muito velhinha, que certa vez deu-me uma batata assada no borralho que era muito saborosa, e é essa a extraordinária memória que guardo. Bô queria também dizer bom: binho bô; bô moço; estás bô? Depois, se calhar por soar a parolo não sei a que finaços de carregar pela boca, bô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Mas quem caralho teve a ideia?...

Para mim, e defendo-o de graça há muitos anos, o Minho começa em Fafe e acaba em Santiago de Compostela. E a Galiza também. Isto é: Galiza e Minho são-me o mesmo, chamem-lhe o que quiserem, mas Minho decerto fica-lhe melhor derivado ao rio que nos une. Somos a cara chapada uns dos outros, os minhotos e os galegos destes limites, labregos envernizados, crescemos das mesmas raízes, aprendemos de uma literatura comum, padecemos ainda hoje do mesmo ancestral atraso de vida, desfrutamos do mesmo amor à comida e à bebida, à água benta e à festa, partilhamos a maneira de falar, cheia de "ches", de "inhas" e de "inhos", de "xes" em vez de "ses", de "bes" em vez de "ves", não raro falamos até a mesma língua, consoante os sítios e a idade, repetimos nomes, palavras pândegas, debitamos caralhos atrás de caralhos como não há memória de tanto caralhar noutras latitudes deste mundo e de outros. Nós, os galegos do lado de cá, e eles, os minhotos do lado de lá, assim somos.
Em Fafe e nas terras de Basto chegadas a Fafe falava-se esse conversar comum quando eu era pequeno, aprendi-o naturalmente com os meus avós maternos, em Passos, Cabeceiras, com a minha mãe e com os meus tios. A querida tia Margarida ainda hoje o usa a cotio, com uma graça que me encanta e comove, e eu dou-lhe serventia da língua para fora sempre que posso, e hoje em dia, sem obrigações profissionais, posso quase sempre. Este modo de falar faz parte do nosso fafês.

Imaginem então a minha alegria com o que se passou aqui atrasado, numa das nossas habituais saltadas ao lado do Minho a que outros chamam Galiza. Foi assim. Como de costume, aproveitámos para atestar o depósito do carro, ali à entrada de Tui, logo depois da velha ponte de Valença. "Ga-só-le-o!", digo eu ao senhor gasolineiro. E o senhor gasolineiro, nunca tal nos tinha acontecido, pergunta-me sem mais nem menos, como se anunciasse pipa nova: - Normal ou do bô?...
Caralho! "Do bô", o senhor gasolineiro perguntou-me se o gasóleo era "do bô", palavra de honra, "do bô", perguntou, como fosse a minha avó, o meu avô, a minha mãe ou a tia Margarida a perguntar-me. E eu fiquei tão contente, tão criança, de repente tão outra vez abraçado ao avental da minha mãe a cheirar tão bem a sabão e felicidade, a casa, a nós, a Fafe antigo, fiquei tão comovido que quase me descompus. Apetecia-me abraçar o homem...
Por outro lado, o gasóleo era normal e fedia. Mas o senhor gasolineiro perguntou se era "do bô", foi o que ele disse, e disse tão bem, e eu gostei tanto. "Do bô", caralho!...

P.S. - Publicado originalmente no dia 6 de Dezembro de 2022, este foi o texto mais lido no Tarrenego! durante o ano de 2023.

De soidás morríase na vila, sospirando pola aldea

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Uma ponte para a eternidade

Na sua infinita insensatez, o presidente da Câmara de Lisboa resolveu baptizar a inefável ponte com o nome do cardeal Manuel Clemente, enfiando-lhe na toponímia ó meu deus o Dom e tudo. Inebriado decerto pelos vapores ainda quentinhos do que meio país atira à cara do outro meio país como tendo sido o extraordinário sucesso da Jornada Mundial da Juventude, Carlos Moedas estendeu-se ao comprido entre a capital e Loures, exactamente sobre o Trancão, arrastando desnecessariamente para a lama a graça do patriarca emérito, já enterrado em lixo até às orelhas mas por razões de força maior.
Moedas perdeu a noção por momentos, esqueceu-se da agenda, obliterou-se da realidade, entaramelou-se-lhe o entendimento, pedofilia deve ter-se-lhe confundido com columbofilia, encobrimentos soou-lhe a descobrimentos, Moedas, o presidente-padrão, perdeu de repente os sentidos, sobretudo o sentido de oportunidade, só pode ter sido, uma corrente de ar.
O meio país que atira à cara do outro meio país o extravagante desastre que terá sido a Jornada Mundial da Juventude levantou-se em armas contra a aleivosia monetária. Isto é, contra o heresia de Moedas, dar uma ponte a um homem que nunca viu abusos sexuais dentro da Igreja portuguesa, e se viu foi só um bocadinho, e portanto nada digno de registo. Um país levantar-se em armas, hoje em dia, quer dizer as alegadas pessoas irem para as chamadas redes sociais dizerem mal uma das outras, se possível insultarem-se e agredirem-se. Em nome da indignação. É assim que as nações se resolvem modernamente, muito em breve dispensaremos eleições. E as alegadas pessoas das chamadas redes sociais foram inclementes a respeito da ponte. Porque a questão era a ponte, não era?
Clemente desta vez percebeu, e, embora ainda outro dia tenha agradecida "a generosidade" da inesperada prenda autárquica, acabou por desistir e afinal já não quer a ponte para nada. Ficou tudo em águas de bacalhau. E Carlos Moedas mandou dar o caso por "encerrado" e fez saber, urbi et orbi, que depois do dia santo de ontem, vai à procura de um nome novo e inatacável, desta vez é que há-de ser.
Que tolo outra vez, o presidente da Câmara de Lisboa. Ele ainda não percebeu que a ponte já tem nome, e a culpa é só dele, Carlos Moedas, e não havia necessidade. A ponte ciclopedonal sobre o rio Trancão, entre Lisboa e Loures, chama-se Ponte Anti-Cardeal Dom Manuel Clemente em Memória de Todas as Vítimas de Pedofilia e de Outros Abusos Sexuais na Igreja Portuguesa Contra a Omissão o Encobrimento e o Esquecimento. Para todos os efeitos e para toda a eternidade.

Por outro lado. Já se terminava com os "balanços" sobre a Jornada Mundial da Juventude, não lhes parece? Toda a gente tem "O balanço que faltava", diariamente uns atrás dos outros, e já lá vão quase quinze dias desde que a coisa encerrou. De repente, em Portugal, o país inteiro é doutorado em Deus, Teologia, Fé, Religião, Igreja, Ateísmo, Agnosticismo, Indiferentismo, Laicidade, Beatismo, Concordata, Desconcordata, Clericalismo, Anticlericalismo, até parece que falamos de futebol, uns amém e outros contrém, morra o Papa, viva o Papa! E no DN, pairando sobre tudo e sobre todos, Fernanda Câncio e a Verdade.

P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Agosto de 2023, este foi o segundo texto mais lido no Tarrenego! durante o ano passado.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Acampado no multibanco

Sabe aquele senhor que vai à sua frente ao multibanco e paga a água e paga a luz e paga o gás e paga o telefone e paga a tv cabo e paga a prestação do colchão ortopédico e paga a consulta do cardiologista e paga o IUC e paga o IMI e paga o IRS e paga o seguro do carro e paga o lar da sogra e paga o infantário dos netos, que são seis, todos em infantários diferentes, e paga o condomínio dos filhos, que são quatro, todos em condomínios diferentes, e procura nos bolsos e mete nos bolsos e não tem bolsos que cheguem e está sempre a enganar-se e a anular e a recomeçar as operações? Sabe? Calhou-me um desses hoje, e estou aqui fraquinho, fraquinho, fraquinho. Na próxima que eu precise mesmo de ir ao multibanco, levo cadeira e lanche.

Anticomunismo ao serão

Foto Hernâni Von Doellinger

Portugal ardia no ano de 1975. Em Fafe, o ambiente político e social também se extremava, de uma forma particularmente artificial e burgessa, manobrada à distância, os artífices sem darem a cara e os burgessos na linha da frente, e com consequências tão trágicas, tão localmente desestruturantes, deixando feridas tão a céu aberto, que a nossa terra nunca mais foi a mesma - mas isso, a história dessa irreparável tristeza, fica para outro dia.
O País a ferro e fogo, e Fafe também. Havia ameaças, tiros, atentados, punham-se bombas, assaltavam-se e incendiavam-se sedes partidárias. Sobretudo a Norte. Sobretudo do PCP. Dava na televisão, saía nos jornais, que tomavam posições. No Comércio do Porto, dois jornalistas experientes e com agenda, Ercílio de Azevedo e Fernando Barradas, assinavam uma coluna que viria a dar brado, "Os Cravos na Ferradura", um espaço militante com o seu quê de reaccionário, como então se dizia à esquerda. Essas crónicas, geralmente bem esgalhadas, escritas às vezes com graça, foram o consolo e o farol doutrinário de muito boa e santa gente durante o PREC (Período Revolucionário em Curso) e o Verão Quente, do 11 de Março ao 25 de Novembro, e com tal sucesso entre os leitores mais conservadores ou fascistas recentemente desmamados que as tiragens do Comércio terão subido aos cem mil exemplares, contando-se até que houve jornais, em certos dias, a serem vendidos na candonga a 100 escudos cada um.
O êxito foi tal que alguns daqueles artigos transformaram-se rapidamente em livro, com prefácio de Paradela de Abreu. A obra, com o mesmo título da rubrica original, "Os Cravos na Ferradura", ainda hoje pode ser encontrada por aí, na internet, em diversos sítios de alfarrabistas e simpatizantes, mais ou menos recomendados.
O Comércio do Porto era objecto de culto. No país beato e de direita revanchista, guerrilheira, e em Fafe também. Um dia, 11 de Outubro de 1975, estava eu no tasco do Nacor com o meu tio Américo, eu e os meus 18 anos, na cozinha da Dona Isabel, que era um brinco e um mundo, e o Landinho Bacalhau, o antigo, anunciou que um grupo de ilustres fafenses iria homenagear naquela noite os jornalistas do Comércio. Seria com uma ceia, altas horas, no restaurante do Café Académico, e os homenageados fariam o favor de comparecer.
Eu quis logo saber se admitiam penetras, eu. Eu queria conhecer jornalistas a sério, precisava de ver como é que eles eram. Se eram praticamente como nós, as pessoas normais. O Landinho explicou-me que "a condição sine qua non" para participar na coisa era ser leitor do Comércio do Porto, e isso eu era, porque o Comércio do Porto era o meu jornal, isto é, o jornal do café, do Peludo, mas que tinha de perguntar ao organizador do evento, que era o Senhor Francisco Oliveira, que disse que sim. Por outro lado, aquela foi a primeira vez na minha vida em que eu ouvi a expressão cagona sine qua non e gostei bastante, embora esta seja também a primeira vez em que a uso motu proprio, e logo duas vezes.

Portanto lá fui. O grupo de ilustres fafenses era composto, se não me engano, pelo vimaranense Fernando Roriz, que foi deputado, presidente do Vitória e vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol, entre outras encomendas, pelo Dr. Marques Mendes, Dr. Antunes Guimarães, Chiquinho Gonçalves, Manel da Pinta, o Landinho, o Francisco Oliveira, eu a um canto a tirar apontamentos de cabeça, decerto mais alguém ou alguéns de que não me lembro e, não sei porquê, gosto de pensar que o Dalmo Pinto também por lá passou ou esteve, antes, durante ou depois.
Um curioso painel, aparentemente heterogéneo, unido talvez, pelo menos naquela altura, por um certo anticomunismo, mais semântico do que primário, num ou noutro caso, se é possível dizê-lo, gente de alguma forma ligada ao PSD e ao PS locais, e eu, que não era de um nem de outro, antes pelo contrário, lá estava destoando como sempre e ainda hoje me sinto muito bem com isso.
Da parte do Comércio do Porto, o Fernando Barradas primou pela ausência, mas apresentou-se o Ercílio de Azevedo, acompanhado por dois futuros directores do jornal, o Silva Tavares e o Manuel Teixeira, que era então um rapazinho e que viria a ser também administrador da Lusomundo e chefe de gabinete de Rui Rio na Câmara do Porto, sendo mesmo considerado, ainda hoje, o principal conselheiro do ex-líder do PSD. Não eram os únicos, que nisto, quando é para comer e beber, os jornalistas aparecem sempre, mas varreram-se-me os outros.
A ceia foi a madrugada inteira e os pormenores mais delicados ficam, para já, comigo. Mal eu sabia como é que viria a ser a minha vida alguns anos mais tarde. Comeu-se e bebeu-se bem, isso posso desde já dizer. Falou-se muito. Eu não. O Dr. Guimarães meteu os jornalistas na ordem quando um deles, entusiasmado, se pôs em bicos de pés. Percebemos porque é que Ercílio de Azevedo, autor das famosas "Tripas à moda do Porto", escrevia melhor, segundo nos contaram, quando decilitrava. No centro da mesa havia um bolo que o Senhor Francisco Oliveira mandara fazer na Pastelaria Monumental. O bolo exibia uma ostensiva pena alegórica e decerto alguns dizeres alusivos aos plumitivos convidados. Não sei quem é que pagou a conta, bolo incluído, que deve ter tido uma saída do caraças, não faço sequer ideia se havia preço de inscrição ou multa de presença. Se havia, eu fiquei isento.

Agora. O Senhor Francisco Oliveira (1928-2021) era um querido amigo. Não naquela altura, mas nos últimos anos. Ligava-me de vez em quando, avisava-me que vinha ao Porto, a tratamento, mas só nos pudemos encontrar uma vez. Passámos um pedaço de tarde à conversa na Rua Sampaio Bruno, falou-me do livro que queria escrever, tirei-lhe o retrato que pus lá em cima, visitámos a Feira do Livro, que era ali ao lado, na Avenida dos Aliados. Ele comprou e eu não. Também ia sabendo dele pelo Bertinho Dantas.
O Senhor Oliveira, Francisco Oliveira Alves, era um homem bom, generoso, às vezes de uma desarmante pureza, e esforçava-se por fazer parte da História. Fez. Houve quem o usasse, e ele queixava-se. É um fafense excelentíssimo, certamente um dos melhores da sua geração. Para além disso, era pai do Chico, meu colega de escola e amigo de infância, mas isso já seriam outros quinhentos.
Só hoje, entre parágrafos deste texto, é que apaguei do meu telemóvel o número do Senhor Francisco Oliveira. Era assim que lá estava: Senhor Francisco Oliveira. Apaguei e, caramba, agora parece-me que perdi alguma coisa e não sei o que hei-de fazer ao velho cartão-de-visita corrigido à mão...

P.S. - Publicado no dia 24 de Novembro de 2023, este foi o terceiro texto mais lido no Tarrenego! durante o ano passado.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Gambozinos e outras aves raras

A caça ao gambozino é uma excelente e pacífica alternativa por exemplo à caça ao elefante ou à montaria ao javali. Mantém-se o lado lúdico e ecuménico, o são convívio, o almocinho e a merenda, a sacramental troca de mentirolas, mas poupa-se em perigo e em munições, dando-se uma mãozinha, por outro lado, à indústria nacional da serapilheira. Como se sabe, na caça ao gambozino os caçadores não usam armas de fogo, mas sacos e chibatas, e gritam: - Piopardo ao saco!...

É verdade, a caça ao gambozino, essa espécie amiúde cinegética também conhecida como piopardo ou vai ver se estou lá fora. Eu sei bastante de caça ao gambozino porque sou de Fafe e em Fafe, no meu tempo, nem se era fafense nem se era nada se não se caçasse o gambozino. Fui, aliás, um exímio caçador, não é para me gabar. Em Fafe, depois de se caçar muito o gambozino, assim com uma certa carreira feita, já se podia mandar caçar os outros. E foi o que eu fiz. E é o que eu faço.

É preciso que se note que o gambozino, ou piopardo, depois de caçado, medido, pesado, lavado, dentes incluídos, vacinado, fotografado, etiquetado e registado, era devolvido à liberdade, com dinheiro para o táxi e direito a levar o respectivo saco de serapilheira cheio com um rico merendeiro até à próxima. Fafe era assim. Fafe é assim. Um povo compassivo e magnificente.
Discotecas à parte, onde às vezes realmente há uns tiros e coisa e tal, nada de mais natural, Fafe é uma terra livre de armas nucleares e muito amiguinha dos animais, coitadinhos. Tem concurso de beleza canina, tem chega de bois, tem corrida de cavalos a passo travado, tem largada de perdizes, tem batida à raposa, tem exposição de columbofilia, tem grilos em gaiolas, tem gaiolas propriamente ditas e impropriamente feitas, porque é pecado, e até tem montaria ao javali.
O programa da montaria é uma coisa muito bem organizada, com particular destaque para o estacionamento gratuito, olha o luxo, e para o pequeno-almoço servido na cantina da Câmara Municipal, às nove da manhã em ponto, por causa do fotógrafo, que tem um baptizado às dez menos um quarto, e o senhor presidente tem mais que fazer e mais retratos para tirar.
Como toda a gente sabe, javalis em Fafe são mato, tais como, para não irmos mais longe, ursos tintos e morsas desdentadas nos aprazíveis glaciares da Lameira, tubarões-berbequins nos mares da barragem de Queimadela, camarões-tigres na bacia do rio de Pardelhas e crocodilos insones no lago do Jardim do Calvário. Importante: determinado por edital camarário, todos os javalis devem apresentar-se à montaria obrigatoriamente vestindo colete reflector, não vá passarem desapercebidos aos caçadores de carregar pela boca. No caso das largadas de perdizes previamente tontas, só são admitidas à matança as perdizes que usem capacete e após teste do balão.

E quem cuidava que não, pois que se desengane: Fafe também foi aos touros. No Campo da Granja, em 1963, provavelmente por ocasião das Festas da Senhora de Antime, que é o mais certo, mas também poderá ter sido por alturas das Feiras Francas, lembro-me é que era um belo dia de sol e, agora que penso nisso com mais vagar, não faço a mínima ideia de como é possível lembrar-me. Uma tourada que terá sido a primeira realizada em terras de Fafe e que, se não me engano, foi igualmente a única, até hoje, com touros propriamente ditos. O redondel não era assim tão redondo como o nome poderia indicar à partida: digamos que foi construída, com robustos troncos de madeira, uma espécie de lua cheia fanada, cortada em linha recta na zona da bancada, que era para o excelentíssimo público poder estar em cima do acontecimento. As digníssimas autoridades locais e a nossa mais distinta burguesia, orgulhosamente alapadas na bancada de cimento com tecto de zinco, quero crer que com umas discretas almofadinhas aliviando os respectivos traseiros, e o povo a pé, no meio do campo da bola, encostado às tábuas, mas seria muito pouco, meio dúzia de gatos-pingados, se tanto, e eventualmente já razoavelmente decilitrados, porque os bilhetes, mesmo os bilhetes mais baratos, eram caros como o caralho. Foram certamente ao engano e, diga-se em sua defesa, o calor era realmente muito e a situação deveras incómoda e eventualmente perigosa. Se naquele tempo já havia praças de toiros desmontáveis e alugáveis, não foi daquela vez que uma delas chegou a Fafe.
A tourada, segundo me lembro, e confesso que continuo sem perceber como é que me lembro, foi uma merda. Compreendo portanto que a autarquia fafense vire as suas modernas prioridades para outras lides. Recapitulando. Para as chegas de bois, para as largadas de perdizes, para as montarias ao javali, para as exposições e concursos de beleza canina ou columbófila, para as corridas de cavalo a passo travado e de salto alto, para as batidas à raposa, que é o que nos faz falta. Um destes dias ainda tornaremos, se Deus quiser, à nossa ancestral porém nunca desmentida caça aos gambozinos, com organização camarária, estacionamento gratuito, pequeno-almoço, almoço, merenda, jantar e tudo. Tenho uma fé muito grande nos nossos conspícuos guiadores e guiadoras, quem dera que não chova, e olé!

Por outro lado. A malta mais nova se calhar não faz ideia da revolução que é ter espectáculos à borla, como acontece hoje em dia, nomeadamente nas Festas da Cidade, e só tenho a elogiar a autarquia por isso. Antigamente, e naquele tempo a pobreza era modo de vida, regra geral, em Fafe pagava-se por tudo e por nada. Só faltava andarem os fiscais da Câmara a passar bilhete, no Largo e em Cima da Arcada, a quem fosse apanhado a olhar para o fogo-preso do Jardim do Calvário...

P.S. - Desenterro mais uma vez este textinho, hoje em sentida homenagem à faraónica vacuidade política do homem a quem chamam Luís Montenegro, líder do PSD, rei do stand-up nacional e irrefutável especialista em gambozinos e pipis.

O mal de Paulo Raimundo

Foto Partido Comunista Português

O mal de Paulo Raimundo é ser parecido com ele próprio. Isto é, o grande defeito de Paulo Raimundo é não ser parecido com ninguém. E o que é que se segue? Para a imensa maioria dos portugueses, mais do que uma incógnita, o secretário-geral do PCP continua a ser um incógnito.
Ainda anteontem. Eu e o Lopes vínhamos a sair da Conga, em direcção à Câmara do Porto, e passámos por três indivíduos conversando, um dos quais, dissemos nós um ao outro praticamente ao mesmo tempo, "Olha um tipo parecido com o Paulo Raimundo...", rimo-nos um bocadinho com a coincidência, porque é uma coisa que gostamos muito de fazer, rir um bocadinho, e seguimos com a nossa vidinha, que naquela tarde era entrarmos no carro e o Lopes trazer-me a Matosinhos, à porta.
À noite, em casa, varejando os títulos das notícias, é que eu dei fé que o líder comunista tinha andado de facto pela Invicta, o tipo parecido com o Paulo Raimundo era mesmo o Paulo Raimundo e os outros dois indivíduos afinal não eram indivíduos mas camaradas, evidentemente. E fiquei deveras aborrecido, porque faria muito gosto em ter-lhe dado uma mãozada, ao bom do Raimundo, até porque acho que o homem merece.
Merece, mas! Aquela aspecto de pessoa normal não o recomenda. Aquele ar mancebo, aquela cara de boa gente, aquele sorriso tímido e verdadeiro, aquela presença asseada, limpinha, aquela estampada honestidade, aquele porte de 16.º na lista de candidatos à assembleia de freguesia, aquele terra-a-terrismo, aquela normalidade toda, diria eu, só o desabonam. Invisibilizam-no. Apagam-no aos olhos e à memória dos demais. Na rua, Paulo Raimundo passa ao lado de si próprio, como se nada fosse. E, se for distraído, às tantas nem se reconhece. Paulo Raimundo devia ser parecido com outra pessoa qualquer, por exemplo Jerónimo de Sousa, para se saber imediatamente que aquele que ali está é o Paulo Raimundo em pessoa.
Ou então o secretário-geral do PCP devia ir muito mais às televisões e aos jornais e às chamadas redes sociais, montar lá banca, dizer uns tremendismos quaisquer, chamar nomes às pessoas, como os líderes do Chega e da Iniciativa Liberal (IL), que esses dois, assim, toda a gente sabe quem são.
Toda a gente, mas não é geral. Eu, por exemplo, se me pusessem o da IL numa fila de identificação policial, palavra de honra que não saberia apontá-lo. Assim de repente não faço ideia da cara dele, precisaria talvez de uma cábula, uma fotografia daquelas "Procura-se", porque, a verdade também é só uma, esse, o tal liberal, sem a máquina do Correio da Manhã por trás como o outro, nem sei o que me parece...

P.S. - Publicado originalmente no dia 14 de Dezembro de 2023, este foi o quarto texto mais lido no Tarrenego! durante o ano passado.

Se fosses só três sílabas

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 7 de janeiro de 2024

Zé do Boné, um herói impossível

O Zé do Boné andou mais de meio século pelas páginas de O Primeiro de Janeiro e hoje seria um herói impossível, cancelado. Porque politicamente incorrecto. Criado pelo cartunista britânico Reg Smithe, o malandro Andy Capp, assim se chamava de origem, foi visto pela primeira vez no dia 5 de Agosto de 1957 no jornal Daily Mirror. Internacionalizou-se em 1963, quando passou a ser editado nos Estados Unidos, e chegou a ser publicado em mais de mil jornais, cinquenta países e treze línguas.
Por cá, O Primeiro de Janeiro tomou conta de Andy Capp, pô-lo à beira das palavras cruzadas e rebaptizou-o, numa adaptação feliz, como Zé do Boné. E é com esse nome que o conhecemos até hoje. Zé, para ser "português" e porque sim. Do boné, como a própria imagem indica. Zé do Boné. Eu conheci-o em Fafe, na barbearia do Sr. António Grande, e mais tarde, já no Porto, viria a conviver com ele todos os dias, digamos, profissionalmente.
O Zé era o típico elemento da classe trabalhadora que na verdade nunca trabalhou. Cidadão imprestável, machista, engatatão sem sucesso, copofónico de gabarito, mentiroso, preguiçoso, implicativo, conflituoso e, numa só palavra, arruaceiro, passava a vida entre o sofá de casa e o balcão do bar da esquina, reservando algumas horas para andar à pancada nos jogos de futebol. Apostador inveterado, as suas modalidades desportivas favoritas eram, para além do pontapé na bola, a columbofilia, o bilhar e as corridas de cavalos. Para além disso, batia na mulher, Flo, trabalhadora esforçada que também gostava do seu copinho e que, quando não, lhe devolvia alguns sopapos.
Enfim, todo um compêndio de indecência e má figura. Ou por outra: acho que conheço este tipo de algum lado...

E que mais? Zé do Boné foi também o nome por que ficou conhecido mestre José Maria Pedroto, filósofo e treinador de futebol que morreu faz hoje 39 anos. Por ser Zé e por usar boné. E eventualmente também por causa do Zé do Boné propriamente dito.

A morte da bezerra

Antigamente as tragédias aconteciam com mais assiduidade, ao contrário do que se apregoa agora por aí, e nem é preciso recuarmos ao terramoto de 1755 ou ao lamentável dia, no ano de 1128, em que o jovem Afonso Henriques bateu na mãe, Dona Teresa. Não. Basta centrarmo-nos na segunda metade do século passado, anos sessenta, setenta e pelo menos oitenta. Morria uma vaca e era uma tragédia. Ora as vacas, naquele tempo, morriam bastante, e nem estou a falar de matadouro e de talhos, de abates e de choupas. Morriam sem querer, as vacas, isto é, por exemplo esturricadinhas num palheiro que se incendiou sem mais nem menos, afogadinhas ou irremediavelmente escangalhadas no fundo de um poço sem guarda ou, até arrepia, abertas ao meio por um raio. E era uma tragédia.
Era uma tragédia porque a vaca, o boi ou o bezerro eram a riqueza única do pobre lavrador de microfúndio e Portugal era sobretudo isso. As vacas, permito-me generalizar assim, davam leite, faziam estrume, lavravam e aravam o campo, puxavam a água, transportavam as colheitas, ajudavam nas obras domésticas, acartavam pedra, erguiam muros, tinham a força de trabalho de um rancho de homens e mulheres, procriavam e, como se ainda fosse pouco, emprestavam o seu próprio calor ao jugo que as dominava, para, a seguir, talhar trasorelhos, eventualmente acabando vendidas na feira ou feitas em bifes, em todo o caso transformadas em indispensáveis notas de conto, e aí tudo começava outra vez.
Era desta maneira em Fafe, o meu berço, terra de pequenos e remediados agricultores, nas aldeias à volta, principalmente, mas também no centro da vila mesmo, como outro dia aqui contei. A única diferença era que em Fafe a vaca era baca e o boi, em raros momentos de preciosismo linguístico, era voi. Tirante essa irrefutável idiossincrasia, Fafe era como o resto do Norte rural: em cada casa, uma, duas vacas, quer-se dizer, uma junta, quando muito, para fazer parelha no carro, turinas às vezes, leiteiras em alguns casos. As vacas eram a fartura, o dinheiro em caixa, a garantia de vida dos nossos persistentes lavradores. As vacas eram-lhes tudo.
Agora imagine-se que lhes morria um animal, tantas vezes o único, num desastre daqueles ou por doença fulminante e desconhecida. O gado não estava no seguro, é claro, o dinheiro da CEE ainda não tinha sido inventado e era o que faltava que alguém se lembrasse de pedir uma indemnização ao Governo. Dá para imaginar, então, o rombo? Era um prejuízo que só visto, a ruína de repente, a miséria, a fome à espreita, a vida parada, como se fosse ali o fim do mundo.
Mas não era. Podia muito bem não ser. A salvação do nosso desgraçado lavrador estava agora no peditório. Isso, no peditório, que era uma instituição. O peditório que ele fazia de aldeia em aldeia, nas ruas da vila antiga, de porta em porta, apresentando o seu triste caso, a sua tragédia, suscitando simpatias, solicitando ajuda, o que pudesse ser. Não era estender a mão à caridade, não, aquilo era um mecanismo de solidariedade, automaticamente accionado. Fazia parte, em Fafe.
Notáveis lá da terra, cidadãos de honra reconhecida, dois ou três, incluindo geralmente o presidente da junta ou o regedor da freguesia, acompanhavam o lavrador nesta sua via-sacra, atestando com documentos e tudo a veracidade do infausto acontecimento e as dramáticas condições em que ficaram o azarado homem e respectiva família.
E as pessoas davam. O que podiam. E é curioso porque as pessoas de dentro de casa eram, regra geral, ainda mais pobres do que o homem desesperado que lhes batia à porta a pedir. Davam, e não se fala mais nisso. Os modestos donativos ficavam assentes numa folha azul de 25 linhas, registados, consultáveis, até chegarem, conta certa, para comprar uma nova cabeça de gado, nem mais um tostão, mas nunca mais ninguém queria saber do assunto.
Terão acontecido umas quantas burlas, trampolinices das antigas, isso certamente, vacas que afinal eram virtuosas senhoras, lavradores que nunca puseram os pés na terra e presidentes da junta da colaça. Mas também terão sido assim criadas verdadeiras segundas oportunidades de vida para pessoas honestas, trabalhadoras, merecedoras, de repente atingidas pela tragédia a sério, e que sem a ajuda dos outros, sobretudo dos seus generosos camaradas de pobreza, nunca mais se levantariam. E Fafe era também isto.

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Novembro de 2023, este foi o quinto texto mais lido no Tarrenego! durante o ano passado.

Em carga

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 6 de janeiro de 2024

Talvez por ter nascido em Fafe

Talvez por ter nascido em Fafe, e pobre, e nos finais da década de cinquenta do século passado, conheci primeiro as sostras e só mais tarde é que soube das ostras. Não estou a queixar-me da minha sorte, é apenas uma confissão que eu precisava de fazer há tantos anos, e agora, dito isto, fiquei em paz. Na verdade, "as ostras" e "as sostras" até são expressões aparentemente parónimas - ora tente lá pronunciá-las, uma e depois a outra, a ver se não soam à mesma coisa -, mas resultam muito diferentes no que significam.
Sostras, eu sabia. Desde pequenino, isto é, desde que tive noção. Sostras. Mulheres sujas e preguiçosas, badalhocas, regra geral o que elas se chamavam umas às outras quando disputavam homem ou coisa parecida. Putas, putéfias, vacas, vaconas, cabras, coirões, coironas. Fazia parte do léxico fafense metido a cotio, era o fafês no seu melhor. Aliás, a palavra sostra, para mim, já naquela idade, trazia com ela qualquer coisa de sexual, de lascivo, de atesoante, dito simplesmente. E, a esse respeito, é preciso que se note que eu, apesar de padreca, fui aquilo que se diz um rapaz precoce, outra palavra que por acaso também me arrebitava sobremaneira, mas eu, não desfazendo, ficava incomodado por tudo e por nada.
Já ostras, o mais parecido que eu lhes conhecia por aquela altura, sem sequer ter ideia da ligação, eram sardinhas fritas com arroz de tomate, e que bem que me sabiam. Assim pessoalmente, as ostras foram-me apresentadas teria eu talvez 24 anos, em Bordéus, França. Casado de fresco, cheio de vaidade, fui lá mostrar a minha bela mulher às minhas queridas tias São e Dores, que não puderam vir ao nosso casamento. Levei também a minha mãe e o meu irmão Lando e merendeiro para um regimento, fomos de comboio, de wagons-lits, num expresso do oriente para remediados e cagarolas, e tivemos um Natal bem porreiro.
Foi por aqueles gloriosos dias que eu finalmente provei as ostras, essa requintada francesice, assim achava, vinham nuns cestinhos muito jeitosos, deram-me a ferramenta para a mão, aprendi a abri-las sem desastre e a comê-las de imediato só com um esguicho de limão, coisa tão boa, coisa tão mar, em Bordéus, França, com champanhe evidentemente, o que eu andei para ali chegar, 24 anos de vida, e as ostras eram de Setúbal, Portugal, estava lá escrito, se calhar foram comigo no comboio, é preciso ser-se muito parolo, eu. E a verdade é só uma: as ostras eram realmente tão extraordinárias como sardinhas fritas com arroz de tomate, sardinhas compradas na Mocha, com sítio à beira da estrada, em frente ao tasco do Paredes e ao lado do Zé Manco, foi logo ali no estrangeiro que eu percebi pela primeira vez a inegável relação.

E pronto. Passaram-se quarenta anos, a minha mulher continua bela e eu ainda vaidoso e cada vez mais apaixonado por ela, coisa mais natural do mundo. Anteontem, sábado, foi Dia da Ostra. Mas anteontem não me apeteceu escrever e, por outro lado, assei bacalhau no forno, como fazia a minha mãe e como faz tão bem o minha irmã Nanda. Comidinha caseira, antiga, saborosa graças a Deus, e o Papa, coitadinho, na televisão em Lisboa e às tantas em jejum. Fomos felizes à mesa, a minha mulher e eu, como costumamos, e fizemos votos de longa vida ao Papa, porque, mal por mal, nós gostamos deste, deixem-no trabalhar! Estava tão bom o nosso bacalhau! Sabia a saudades e a futuro...

P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Agosto de 2023 - assinalando com dois dias de atraso o Dia da Ostra, enquanto decorria em Lisboa a Jornada Mundial da Juventude -, este foi o sexto texto mais lido no Tarrenego! durante o ano passado.

De fardas novas, vem o solidó

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Por causa de uma ateima...

E aquela tradição tão fafense da ateima? Era. Em Fafe ateimava-se por tudo e por nada, sabia-se de tudo, discutia-se tudo, afirmava-se tudo, contrariava-se tudo, apostava-se em tudo e no seu oposto. Por nada, e por uma questão de princípio, mas às vezes também por dinheiro. Era mais um jogo, numa terra viciada nisso mesmo, no jogo. Um jogo como o Totobola e a Lotaria da Santa Casa da Misericórdia, o nosso jogo da ateima, como o bilhar e os flippers do Peludo ou o pilas do Serafim Lamelas ou a batota no Club e no Fernando da Sede, isto para não falar nos sorteios da itinerante associação de invisuais, ainda os invisuais não tinham vergonha de serem cegos, e nas rifas da Comissão de Auxílio. Futebol e política, Deus e o Diabo, vinhos e petiscos, carros, gajas e motorizadas, pré-congelados e piratas, caça e pesca, pistolas, espingardas e canhões de Navarone, gramática e escafandrismo, meteorologia e teoria da relatividade, grandes escritores e livros nunca lidos, países e bandeiras do mundo, chá de cidreira e actores de Hollywood, rácios bolsistas e festival da canção, bandas de música e ranchos folclóricos, a cor dos olhos de Brigitte Bardot e a cor de burro quando foge - era só escolher. Fosse qual fosse o tema, éramos teimosos, tínhamos opiniões, pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos, cismas, birras e finca-pés, exageros de verde tinto e cerveja a copo que encorajavam certezas absolutas e desencontradas. E faltava dizer isto: a coisa passava-se realmente em tascos e cafés. Sobretudo.

Havia um extraordinário grupo de veteranos músicos da Banda de Revelhe que era particularmente dado à arte da ateimação. A cultura fafense deve-lhes muito, a essa meia dúzia de exímios ateimadores, mestres e guias de sucessivas gerações de jovens músicos da nossa terra, mas não é isso que aqui interessa. Estavam sempre naquilo, os velhos, nas ateimas. E uma vez que, também preguiçosos, não tinham vagar nem feitio para chegarem a vias de facto por forma a resolverem-se entre eles como adultos, precisavam amiúde de um juiz de fora, imparcial e sábio, que desempatasse as suas inumeráveis disputas, tolas e desnecessárias a maioria das vezes.
O Google ainda não tinha sido inventado, e portanto ligavam-me a mim, primeiro para o jornal e depois para o telemóvel, quando o telemóvel finalmente apareceu. Após a invenção do Google, ligavam-me na mesma, porque há coisas que eu sei e o Google não sabe. Ligavam-me, "Nane, por causa de uma ateima"...
Ligavam-me e o meu primeiro problema era perceber o que é que eles queriam. Do lado de lá havia facções, claques, vozes várias, interrupções, indisfarçáveis caralhadas. Eu já disse que aquilo passava-se principalmente em tascos e cafés, e acrescento que acontecia a certas e determinadas horas, horas cheias e bem bebidas. As palavras telefónicas dos meus estimados consulentes entaramelavam-se por norma e eu não raro também, porque quem sai aos seus a mais não é obrigado. Mas lá chegávamos. E então eu sentenciava, armado em parvo, resolvia a ateima, mas, que me lembre, por mais explicações que apresentasse, nunca consegui convencer a parte vencida, e tenho esse grande desgosto no meu currículo...

Fafe é uma terra de enormes tradições. E a ateima era uma bela tradição fafense. Não sei, porém, se ainda se pratica. Os velhos músicos deixaram de tocar na Banda de Revelhe e já não me ligam, estimo-lhes que ao menos continuem a beber. O Bertinho, meu rico menino, também já não me liga a perguntar, mas está desculpado. E eu para aqui, fafense exilado e imprestável, cheio de certezas para dar e vender, já que para mim há largos anos que não tenho nenhuma. E entretanto, em Fafe, as tradições multiplicam-se e medram, algumas tradições que não interessam a ninguém e até espantosas tradições inventadas ainda agora por uma autarquia que ostenta o gosto do croquete e a mania do novo-riquismo cultural. Sinceramente, espero e peço que a Câmara, e já nem falo em subsídio, pelo menos deite os olhos às nossas ateimas e não as deixe falecer...

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Julho de 2023, este foi o sétimo texto mais lido no Tarrenego! durante o ano passado.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Sérgio Conceição, perigoso cadastrado

Foto Hernâni Von Doellinger

Sérgio Conceição, treinador da principal equipa de futebol do FC Porto, foi castigado com 30 dias de suspensão e mais de dez mil euros de multa por causa do seu "sorriso jocoso". O Senhor Conceição, é preciso que se note, é, a este respeito, um perigoso cadastrado. Ainda aqui atrasado foi expulso de um jogo derivado ao seu "olhar fulminante". Está tudo nos relatórios, e o Conselho de Disciplina da FPF não podia fechar os olhos. Ademais, 30 dias e dez mil euros é o que manda a lei, está na tabela, que contempla a existência de 19 tipos de sorriso, mas apenas seis considerados como sinal de felicidade e somente um avaliado como genuíno ou verdadeiro - o famoso sorriso de Duchenne, utilizado sobretudo no campeonato francês.
A nível de moldura penal, o uso do sorriso jocoso no futebol, com ou sem licença de porte, é, com efeito, o mais penalizado pelo nosso conspícuo Conselho de Disciplina, seguindo-se, em moderado decrescendo de punição, o sorriso de desprezo, o sorriso malicioso, o sorriso falso, o sorriso forçado, o sorriso mais ou menos, o sorriso triste, o sorriso de medo e assim sucessivamente, para terminar no sorriso coquete, que certos árbitros também não apreciam, vá-se lá saber porquê. A legislação é omissa quanto ao sorriso Pepsodent e ao sorriso da Mona Lisa. Mas dois sorrisos amarelos dão vermelho.

Agora. Vamos supor o Estantio. Sim, o nosso Zé Carlos Estantio. Em Fafe, perguntem por ele aos mais velhos e descobrirão uma figura estimável e singular. Mas tinha uma cara. Admitamos que a cara do Estantio - e não era por acaso que o Estantio se chamava Estantio -, admitamos que a cara do Estantio, dizia eu, com todo o respeito, era considerada uma cara de riso. Ou de sorriso, vá lá. Estava fodido o Estantio, se fosse vivo e jogasse futebol em Portugal hoje em dia. Porque a cara do Estantio era sempre a mesma, e era daí que lhe vinha o nome. Não ganhava para multas e as suspensões seriam umas atrás das outras. Realmente, se o bom do Estantio, cansado de tanto alombar, resolvesse mudar de vida e enveredasse pela carreira de futebolista ou até de míster, às tantas teria também de emigrar para um país de amplas liberdades tipo Arábia Saudita, como fez o outro, porque o futebol na "Europa perdeu muita qualidade" e em Portugal o riso - ou o sorriso, vá lá - é violentamente reprimido.
No fafês antigo havia, se não estou em erro, expressões idiomáticas, ou idiotismos, como também se diz, que sabiamente pressagiavam os sisudos tempos que hoje infelizmente vivemos. Lembro-me daquela, muito batida - E se te fosses rir prò caralho? Ou da outra, não menos usada e igualmente assertiva - Vai-te rir pra quem te monta!
Era. Os antigos sabiam muito! E havia educação.

P.S. - Publicado originalmente no dia 28 de Julho de 2023, este foi o oitavo texto mais lido no Tarrenego! durante o ano passado.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

O mundo do Comendador

Foto Delta Cafés

Falei uma vez com Rui Nabeiro. Pelo telefone. Seriam os finais de 2008 e a Universidade de Évora acabara de anunciar uma parceria com a Delta Cafés para a criação da Cátedra Rui Nabeiro - Biodiversidade. Eu precisava de fazer uma notícia sobre o assunto, e o famoso e certamente atarefado empresário, não me conhecendo de lado nenhum, concedeu-me gentilmente uma dúzia de minutos do seu precioso tempo, logo que consegui ultrapassar a burocraciazinha da ordem, a redoma em que o tinham metido, nada de mais.
Rui Nabeiro contou-me que a ideia da cátedra nascera de uma conversa com o reitor da universidade, de quem era amigo. Um quase por acaso motivado pela ligação da Delta à academia e, no geral, às questões da biodiversidade, nomeadamente em tudo o que dissesse respeito a café e à sua produção. "Ele achou que era bonito a cátedra ter o meu nome, e eu aceitei", disse-me então, assim simplesmente.
A relação da Nabeiro com a universidade foi toda a vida apenas esta - ajudar. "Ajudar os outros", como fazia questão de enfatizar. "Sou um sonhador dessa área, gosto que a universidade seja cada vez melhor e que os alunos aprendam cada vez mais", explicava. Ele ficara-se pela velha instrução primária. "Estávamos no interior do interior do país. As condições eram muito difíceis e era preciso ir trabalhar, quanto mais cedo melhor. Mas a 4.ª classe daquele tempo já era um curso", atirou-me, para rematar a chamada, e eu quis-me parecer, assim à distância de 300 quilómetros, que o Sr. Rui se ficou a rir...

Vi ao vivo Rui Nabeiro, talvez algum tempo depois, em Paredes de Coura, mas nem eu me apresentei nem ele se apresentou. Ficámos quites. Foi por ocasião do festival de música, de que a Delta seria muito provavelmente um dos principais patrocinadores. O empresário e o seu estado-maior, sobretudo familiar, subiram ao Minho e decerto aproveitaram para fiscalizar no local como é que o seu dinheiro estava a ser gasto. Isto sou eu a dizer.
Nabeiro e os seus fizeram a escolha dos sábios e foram almoçar ao excelentíssimo e infelizmente já desaparecido Restaurante Conselheiro, do meu saudoso e querido amigo Manuel Vilaça Pinto. Eram uma mesa enorme. Eu e a minha mulher já lá estávamos no mesmo, como era costume quase todos os fins-de-semana dos bons tempos, na nossa mesinha, no nosso canto. E então passou-se algo de extraordinário...
Com avanço de cerca de meia hora em relação à hora de chegada prevista do patriarca da família e líder do conglomerado empresarial, uma pequena equipa de executivos da Delta entra tipo comando no restaurante, armada até aos dentes com os seus vinhos, com o seu café, com as suas chávenas e os seus pires. Vinhos do Grupo Nabeiro, café Delta e chávenas e pires Delta. Os operacionais são rápidos e eficientes, vê-se que estão bem treinados. Ao cronómetro. Parecem da Missão Impossível. Desencaixam, desembrulham, entregam. Já fizeram isto milhões de vezes. São homens de acção. De boas acções.
Não é daquilo que o Conselheiro gasta, não é aquilo que o Conselheiro serve, mas o impecável amigo Vilaça alinha de boa vontade na ilusão, no mimo, na mentira bem intencionada, coisa combinada secretamente de véspera. E é aquele vinho que vai para a mesa, e será café Delta em chávenas e pires Delta que encerrará a refeição da família Nabeiro. O patrão e pai virá, enfim, e verá, porventura com renovada satisfação mas sem surpresa, que o seu império chega realmente a todo o lado, mesmo onde não chega...

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Março de 2023, este foi o nono texto mais lido no Tarrenego! durante o ano passado.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Tirones, camones e outros tarzões

Foto Vintage Everyday

Um homem saía de casa com fato novo, sapato engraxado, talvez flor na lapela e até chapéu, que eu ainda sou desse tempo, e na rua diziam-lhe - Eh pá, estás todo tirone! E quereis saber? Era um elogio, melhor cumprimento era impossível para começar bem o dia. Falava-se assim em Fafe, mas este aqui não era um falar exclusivo nosso, fafês autêntico, seria, antes, de uso particularmente nortenho, isso estou em crer que digo bem.
O termo, tirone, remonta certamente a meados do século passado e virá do cinema, do famoso e elegantérrimo actor americano Tyrone Power, que fazia então um enorme sucesso sobretudo entre o público feminino. A estrela apagou-se, o galã acabou por desaparecer, mas ficou o nome, a alcunha, esta espécie de adjectivo a calhar tão bem aos vaidosos sessentões fafenses, tirone, sinónimo de elegante, bem-posto, aprumado, chique, catita, peralta, peralvilho, casquilho, janota, pimpão, boneco, emperiquitado, dândi, indivíduo bem vestido com o seu quê de preciosismo, bem ajambrado, que veste à moda, nos trinques, como se diz agora no português das telenovelas brasileiras.
Em Fafe, naquele tempo, as pessoas ricas vestiam muito bem. Ou então as pessoas ricas vestiam bem em todo o lado, mas eu não sabia, porque eu só conhecia Fafe e, como mundo, Fafe bastava-me. A minha mulher ri-se quando repetidamente lhe conto, com todos os pormenores e mais um, como as pessoas ricas de Fafe vestiam bem, os casacos assertoados ou em tweed ou em linho, os blazers azuis, as calças em lã, com pinças e dobra em baixo, muito vincadinhas, ou em terilene cinzento, que era uma novidade, as camisas triple marfel, os sapatos italianos clássicos, com sola alta de Inverno e com sola baixa de Verão, os sobretudos impecáveis, esculturais, colados ao corpo, as gabardinas double-face, o guarda-chuva irrepreensivelmente enrolado, londrino até dar com um pau, porém comprado na selecta Chapelaria Antunes, e os lenços e as gravatas e os perfumes e a cigarreira e o isqueiro pelo menos de prata e às vezes a boquilha, eles realmente todos tirones, como mandava o figurino, e nós de calças de cotim remendadas no cu e nos joelhos, os pés arrastando chancas e uma vergonha enorme de sermos pobres.
É preciso que se diga que Fafe tinha uma colecção de alfaiates de altíssimo coturno, e espero falar deles com mais vagar um destes dias. Os nossos tirones iam ao alfaiate, tinham alfaiate privativo, escolhiam modelo, cor e tecido, e vestiam-se por medida. Mas não iam à Riopele comprar o corte, atenção, isso era para os remediados. Por outro lado, os fatos prontos a vestir chegaram às excelentíssimas Lobas já em plena década de setenta, eram Corte Inglés, eu bem lhes namorava a montra, como boi olhando para palácio, mas aquilo também ainda não era para nós. Nem para os tirones fafenses, que, classe acima de tudo, continuaram a preferir a exclusividade, o serviço personalizado e impecável da nobre alfaiataria local, honra lhes seja. Só depois é que vieram as calças vermelhas, os pulôveres amarelos ou cor-de-rosa e os sapatos com berloques...

Em todo o caso, Tirone também foi um nome regularmente usado em Fafe para cães. Mas, quanto a isso, não sei que diga.

P.S. - Publicado originalmente no dia 8 de Novembro de 2023, este foi o décimo texto mais lido no Tarrenego! durante o ano passado.

A dignidade do cão

Foto Hernâni Von Doellinger