A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. Os
homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos pelo
caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de
motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da
Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois,
havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras
cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta.
Mas quando ela tocava era para todos. Tocava também para os curiosos,
para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E faziam-se úteis.
Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros
largavam em pleno andamento ao chegarem ao quartel e um mirone encartado
ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho,
deixada sempre à frente dos portões a estorvar a saída dos carros de
incêndio.
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para
aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem
na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas
calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos,
cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis.
Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e
dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios
eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas
aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo.
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois
tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de
família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos
sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do
cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os
Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto
Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da
Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão
(avô do actual comandante, cá está!), o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho,
o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o Viagra em
pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e
já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o
Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel
descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que
era preciso levá-lo a casa.
Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para
apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses,
regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O
meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um
pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era
um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e
quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu
avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás
para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira
e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio
caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...
Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam.
Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam
para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a
"amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que
um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os
heróis
não voltam sempre?
Pois é. Pois é. Às vezes, não...
P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Novembro de 2011. Hoje, 21 de Dezembro, é Dia das Palavras Cruzadas. E eu acho que a memória do grande Casimirinho bem justifica esta enésima repetição...