quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Com tomates até às orelhas

Foto Hernâni Von Doellinger

Em Fevereiro de 2020 saiu à rua uma campanha publicitária ao tomate pelado Guloso. Uma desnecessidade para mim, que na cozinha sou utilizador habitual, para não dizer compulsivo, deste produto. Ora bem: aqui há uns anos o tomate pelado Guloso, como quem diz o tomate nudista, começou a aparecer-me cá em casa vestido, isto é, com pele. Seria pudor? Como já aqui contei, aproveitei a última década para passar de bovino come e cala a guerrilheiro da reclamação, e não me tenho dado mal. Dei-me até muito bem por exemplo num gramático protesto a propósito de uma alheira de caça à qual faltava a cedilha, como já aqui contei.
Que se segue: resolvi contactar o Sr. Guloso ele próprio, perguntando-lhe, preocupado e mais respeitosamente era impossível, se por acaso não estaria o Excelentíssimo passando por alguma crise de escrotal decoro (há que chamar as coisas, neste caso os coisos, pelo nome), e aproveitei para me queixar do cada vez maior verdor e da cada vez maior acidez do produto em questão. O tomate pelado, não esqueçamos.
O meu e-mail teve resposta em quinze dias. Uma resposta profissional, simpática e, pareceu-me descortiná-la, com uma pitada de ironia no estrugido, que foi o que melhor me soube. Fui informado de que os tomates de que eu reclamava tinham sido produzidos "na campanha de 2017, que, por condições extremas do tempo (chuvas em final de Abril e Maio), se traduziu em tomate mais ácido, com menos cor e que se separa da pele com mais dificuldade."
Como forma de "atenuar a imagem menos positiva" que em mim lamentavelmente provocara, o Sr. Guloso revelou a intenção de enviar-me "um cabaz de produtos da marca, incluindo pelado da campanha de 2018, na expetativa de" me "fazer chegar um tomate pelado mais condizente com o nome". Obviamente agradeci e recusei a oferta, hábito antigo do velho ofício.
Agora. Estamos no ano de 2022. O tomate pelado Guloso continua a chegar-me a casa com pele, verde e ácido, rigorosamente como o da famigerada e defeituosa colheita de 2017. Conclusão, das duas uma: em Portugal os anos são todos de "condições extremas do tempo (chuvas em final de Abril e Maio)", pelo menos para os tomates, ou então há meia dúzia de anos que todos os anos são 2017. O que é lamentável e vice-versa.
Por outro lado, fui ao calendário e descobri o uso que hei-de dar ao monte de embalagens de tomate pelado Guloso que acumulei na despensa por não me servirem para nada na cozinha. Hoje é Dia da Tomatina na cidade valenciana de Buñol. Estou a caminho, hermanos míos, com tomates até às orelhas. E olé!

O poder do sabão

Era muito cuidadoso com a ferramenta. Todos os dias, de manhã e à noite, lavava as intimidades com um bom naco de sabão azul. O sabão, se não me engano, é um poderoso desinfectante e antibacteriano. Um dia, faltando sabão azul em casa, lavou-se com sabão rosa. Nunca mais foi o mesmo homem.

Tomates aux gésiers de lapin

A minha receita de tomates aux gésiers de lapin. Livre de gorduras e lave em duas águas, uma pode ser das Pedras, as moelas de coelho. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto o vagaroso e lastimável ex-ministro da Finanças Vítor Gaspar conta até dez, que é aproximadamente durante duas horas e um quarto. Os ovos de codorniz deviam ter sido tirados antes da embalagem, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Aqueça a feijoada que sobrou de domingo e seja feliz.

Também faço isto muito bem

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Posso fazer um questão?

Não. É claro que não posso fazer uma questão. As questões colocam-se. As perguntas é que se fazem. E "fazer questão" é outra coisa. Como outra coisa é "colocar em questão". Mas siga para bingo.

A sorte do Benfica foi a baleia

Jonas era profeta com escritório em Israel e Deus mandou-o a Nínive passar umas gáspeas aos assírios, que eram maus como as cobras e de uma crueldade bíblica para com inimigos e povos vencidos em geral. Jonas acagaçou-se com os perigos da demanda e tentou desobedecer a Deus, fugindo, disfarçado de Hercule Poirot, numa viagem de cruzeiro pelo Mediterrâneo. Bons tempos! Deus levou a mal tamanha manifestação de cobardia e diletantismo, caiu-lhe em cima com uma tempestade de criar bicho e atirou-o borda fora. Jonas foi engolido por uma baleia e por lá se acomodou durante três dias e três noites. Ao fim da terceira noite, isto é, ao quarto dia, depois do pequeno-almoço, a baleia deu à Costa da Caparica e o resto da história é bem conhecido: Jonas assinou pelo Benfica e em cinco épocas e muitas lesões fez 183 jogos e marcou 137 golos. O que convenhamos.

(Jonas, o pistoleiro, pendurou as botas aos 35 anos e com as costas num frangalho. Tipo raro este Jonas, que também me incomodou bastante. Estimo-lhe as melhoras.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 228

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Muitos anos a virar frangos

A ele ninguém o levava, não! Como costumava dizer, eram "muitos anos a virar frangos". Mais de trinta, realmente, só naquela churrasqueira...

Contra os testes nucleares

Era sempre o primeiro e o mais aguerrido na luta contra os testes nucleares. Não, não e não. Não, obrigado! Testes nucleares, não! Na escola, na rua, nas redes sociais, até em casa, contra os testes nucleares marchar, marchar! Activista, militante, farol a pilhas, peito para balas, costas largas, mas compreende-se. Ele queria ir para Medicina. E Biologia, Geologia, Física, Química e Matemática realmente não são brincadeira...

E se fosse camionista?

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 28 de agosto de 2022

Despesas de manutenção efectivamente

"Despesas de manutenção?", perguntei. "Efectivamente despesas de manutenção, meu caro senhor", respondeu-me o senhor do banco. "Mas qual manutenção e qual efectivamente?", insisti, porque padeço dessa tola mania de insistir. "Efectivamente temos destacado um colega que diariamente e em exclusivo põe a arejar, limpa o pó e passa a ferro as vinte notas de cinquenta euros que o caro senhor em boa hora fez o favor de entregar à nossa guarda. É o gestor de conta de vosselência, assim lhe chamamos...", explicou-me o senhor do banco. "Ah, bom!, nesse caso efectivamente...", disse eu.

Foi ao Totta

Florêncio foi ao banco pedir um empréstimo. Quantia avultada. Pretendia construir e montar de raiz uma fábrica de papel canelado, investimento para cima de diversos milhões de euros e emprego garantido para cerca de 23 pessoas, talvez vinte e duas e meia ou vinte e três e meia, ainda não sabia bem. O senhor do banco riu-se: "Fábrica de cartão canelado? Vê-se logo que é golpe, vigarice das antigas". "Golpe, não, caríssimo senhor, e faça o favor de reparar que eu disse caríssimo sem saber sequer a taxa de juro. Em todo o caso, se eu fosse vigarista, e dos antigos, ter-lhe-ia indicado que precisava do dinheiro para abrir um banco", ripostou Florêncio, sem se rir, e foi roubar carteiras para outro lado.

Não confundir com banqueiro

Bancário. "Bancário, e com muita honra", insistia. Bancário. O medo dele é que o confundissem com banqueiro..

P.S. - Hoje é Dia dos Bancários. No Brasil

Vou-me embora, vou partir

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 27 de agosto de 2022

Quem vê caras não vê orações

Um daqueles famosos restaurantes de peixe aqui ao lado, na Rua Heróis de França, Matosinhos, estão a ver? Pouco passa das oito da manhã, uma velhinha varre cerimoniosamente a esplanada. Asseada como se fosse domingo, corpo franzino, cabelos brancos de neve, ajeitados, uma carinha doce, redonda como um minúsculo sol resplandecendo bondade, olhos apontados ao chão, espertos, criteriosos, a velhinha varre, varre, vagarosa e competente. Se os anjos varressem e fossem velhinhas, e competentes, eram ela certamente. A rua naquele sítio àquela hora éramos a velhinha e eu. Eu, que venho de mercar sardinhas, estremeço de comoção.
Varre, varre a velhinha doce e cerimoniosa, olhos espertos e belos. Olhos que não enganam. Bondosos. Cara de sol, de anjo. E diz, como se fosse um mantra ou, vá lá, a recitação do terço: - Filhos da puta! Era mas é fodê-los! Mandá-los a todos prò caralho! À puta que os pariu!...
É. Ninguém diga que está bem.

A coisa mais violenta que se pode dizer a um filho

O psicólogo Eduardo Sá disse uma vez no Diário de Notícias que "divórcio" é a coisa mais violenta que se pode dizer a um filho. Eu digo, aqui, que "sopa" é que é a coisa mais violenta que se pode dizer a um filho.
Outras coisas mais violentas do que "divórcio" que se podem dizer a um filho: "cama, já!", "esse telemóvel serve muito bem!", "uma semana sem sair!", "um mês sem tablet!", "meio ano sem gomas!", "come uma banana!", "peixe é bom", "não, ela não pode dormir cá!", "acabou-se a mesada!", "podes ajudar aqui?", "empresta à tua irmã!", "dá um beijinho à avó!", "pergunta ao pai!", "pergunta à mãe!", "o pai morreu", "a mãe morreu"...

P.S. - Hoje é Dia do Psicólogo. No Brasil.

O complexo 2

Trabalhadores despedidos e abandonados, falência fraudulenta, fábrica encerrada, dívidas ardilosamente insolúveis, fortunas abafadas, putas e vinho verde, Ferraris e Jaguares à porta da mansão com piscina, menino da lágrima e campo de ténis, missinha todos os domingos e rotários às sextas-feiras. Os psicólogos não têm dúvidas: é o chamado complexo industrial...

O complexo

Era evidentemente um complexo, com todos os seus sintomas. Estádio, pavilhão, piscina e quatro campos de ténis. Em Psicologia costumamos chamar-lhe complexo desportivo.

Da bibinha!...

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Estou velho para estas merdas

Três mulheres à mesa na pequena esplanada da confeitaria famosa, gozando uma amostra matinal de sol de Inverno. São jovens, alegres, morenas, e têm um cão. Um cão pequeno, rechonchudo, de focinho amarrotado, caricatura de um velho boxista na reforma. Será talvez um pug. O estupor do cão, o sortudo do cão, passeia-se irrequieto de colo em colo, de mama em mama, esfregando-se ao comprido na brancura sedosa de seis seios quase ao léu, lambendo, lambendo e mais não sei quê, e as mordomas ali na rua sem pudores, crescentemente excitadas, vermelhas, aos gritinhos, aos saltinhos, num fuzuê que só visto.
Ora bem. Foi na parte do mais não sei quê - e digo mais não sei quê porque realmente não faço ideia, o assunto interessou-me sobremaneira, eu estava ali concentradíssimo como o Futre, invejoso, confesso, mas não consegui perceber o que se passava até às últimas consequências -, portanto, foi na parte do mais não sei quê que a mulher menos jovem, com evidente cara de dona, largou os suspiros, ganhou fôlego, esganiçou ainda mais a voz e disse ao cão, imperativa: - Frederico! Não! Não! Não! Mamãe já falou! Isso não, Frederico!
Fiquei fodido! Não tanto por causa da gaja chamar Frederico ao cão. Também chamo Frederico ao meu filho e isso nunca me incomodou, antes pelo contrário. O que me confundiu foi aquilo de ela ser mãe do cão. Estou velho para estas merdas. Sou do tempo das estações do ano, alguém se lembra? Fico baralhado com estas modernices sorrateiramente edipianas mas ao contrário. Não consigo acompanhar estes tempos malucos em que a nova ordem parece ser tratar os animais como pessoas e tratar as pessoas como animais. Como animais que não são tratados como pessoas. Estou definitivamente fora de prazo. E fiquei fodido!

Dia do Cão

Hoje, 26 de Agosto, é Dia do Cão. Parabéns, Bobi! Parabéns, Tejo! Parabéns, Fiel! Quanto às cadelas, aguardam uma vigorosa tomada de posição por parte do Bloco de Esquerda e das Capazes. Nomeadamente.

Ladies first?

Ele disse, força do hábito, "As senhoras primeiro". Ui!, caíram-lhe todos em cima - feministas, machistas, indiferenciados e polivalentes -, derivado àquilo da igualdade de género...

Respeitinho

Lá vão ligeiros, marido e mulher conversando pela rua, ele à frente e ela um passo atrás, coisa de antigos. Têm uma filha. Casou. Lá vai jovem e ligeira conversando pela rua com o marido a estrear, ela atrás, o homem um passo adiante, porque o respeito é muito bonito. Na minha rua, em pleno século XXI.

Dois amantes que são? Dois inimigos.

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Pianíssimo...

Estou como diz o outro: Bach leve, levemente...

O banheiro e a banheira

Havia o banheiro. Que era um senhor geralmente concessionário de um pedaço de praia camarária e que, pelo Verão, na chamada época balnear, alugava barracas e cadeiras, e disso fazia modo de vida para o ano inteiro. Havia o banheiro. Que era um senhor robusto de calças arregaçadas que se embrulhava numa vestimenta de oleado de cor mais ou menos berrante, velho salva-vidas que levava ao banho de mar, a bem ou a mal, adultos enfermos e sem poder de locomoção ou crianças renitentes e ganintes, como no meu tempo de miúdo, na Colónia Balnear Doutor Oliveira Salazar, na Gala, Figueira da Foz, ou ainda hoje em dia no ritual do banho santo de São Bartolomeu do Mar, Esposende. Havia o banheiro. Que era a retrete, a sentina, a latrina, a privada, o WC, a casa de banho, a casinha, o lavatório, a tina, o lavabo, o sanitário, a sanita, o toalete, sobretudo no Brasil. Portanto havia o banheiro. E havia a banheira. A banheira era a mulher do banheiro.

P.S. - Hoje é Dia de São Bartolomeu.

A Dama Branca que eu encontrei

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Sim, mas os cãezinhos, Senhor!...

"Portugueses já gastam mais com cães do que com bebés", dizia a capa do semanário Expresso, em Outubro de 2011.
Meados de Agosto de 2015. "Cão deixado no lixo dentro de um saco gera onda de solidariedade em Vila Real", anunciava o jornal Público, em título fim-de-semaneiro. E acrescentava: "Plataforma Proanimal alerta que nesta altura do ano há mais animais abandonados e menos pessoas disponíveis para os acolher."
Verdade como punho, ontem como hoje. Embora não gere nenhuma "onda de solidariedade", está curiosamente a acontecer o mesmo com os velhos e com os recém-nascidos, por assim dizer, humanos - cada vez mais abandonados e com cada vez menos pessoas disponíveis para os acolher.
Soube-se exactamente ontem, contado pelo JN: "Em cinco anos [2017-2021], 43 bebés foram abandonados à nascença ou nos primeiros seis meses de vida pelos pais". Quarenta e três, números oficiais, porque na verdade podem ser mais. Em Portugal. É. Vivemos realmente uma "altura do ano" filhadaputa. Mas os cãezinhos, Senhor...

Não há milagres

Abençoados os que não acreditam em milagres. Que sensação maravilhosa, que deslumbramento devem experimentar quando eles acontecem!...

Fafe, se não estou em erro

Abri recentemente um novo blogue, com textos exclusivamente dedicados a Fafe ou onde Fafe aparece, ainda que à tangente. O novo blogue chama-se "Fafismos" e encontra-se aqui ao lado. É sobretudo uma declaração de amor a Fafe. É lá que vou arrumar, revisto e aumentado, tudo o que já publiquei no Tarrenego! sobre a minha terra e o que penso escrever a esse respeito a partir de agora. Memórias, histórias, ideias, sarrabiscos e apontamentos não me faltam, assim me calhe a disposição e o vagar. Quanto ao Tarrenego!, por cá continuará evidentemente mais generalista - e firme e hirto como uma barra de ferro.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 226

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 21 de agosto de 2022

Não aldrabem o sinal-da-cruz, valha-me Deus!

Outro dia, nas cerimónias de Fátima, vi pela televisão e nem queria acreditar. Um sacerdote a fazer um sinal-da-cruz tão aldrabado, tão aldrabado, que se a minha mãe o visse naqueles atabalhoados preparos o mais certo era enfiar-lhe duas ou três lamparinas bem assentes. Um padre, e ainda por cima no altar, no altar do mundo, a dar o mau exemplo, a gatafunhar um sinal-da-cruz como se fosse jogador de futebol entrando em campo. Só faltou fazê-lo três vezes a trezentos à hora, destrambelhadamente, e depois beijar o dedo ou o pulso, levantar e assoar-se à sotaina e apontar para o emblema. Bem sei que a Igreja portuguesa anda um bocadinho nervosa derivado a isso da pedofilia e outros abusos, mas, valha-me Deus, é o nosso santo-e-senha, é o sinal-da-cruz...

Tem-te-não-caias

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 20 de agosto de 2022

Só tenho quem me... prejudique

Hoje é Dia Mundial do Mosquito. Quer-se dizer: estou fodido!

Eu tenho um cão que sou eu

Eu tenho um cão. É um cão imaginário. O meu cão chama-se Parkinson, porque quando quero chamar por ele nunca me lembro do seu verdadeiro nome que é Alzheimer. A raça do meu cão tem dias, vantagem de ser imaginário: às segundas é perdigueiro, às terças é labrador, às quartas é são bernardo, às quintas é pastor alemão, às sextas é dálmata e aos fins-de-semana é sobretudo rafeiro. O meu cão nasceu no país certo.
O meu cão fica-me muito em conta. Não come mas cala, dispensa vacinas e vitaminas, nunca vai ao veterinário, não precisa de casota nem de agasalhos para o Inverno, e só me custa o preço da trela. O meu cão conhece o dono e não morde a mão que não o alimenta. Se todos fôssemos cães assim, vínhamos mesmo a calhar ao Governo da Nação.
O meu cão faz-se muito bem de morto e corre atrás de qualquer coisa que lhe atire. Só lhe falta falar. O meu cão não ladra às pessoas, não fornica as pernas transeuntes, não abocanha, não caga no passeio, não mija nos pneus do carro do vizinho, não tem pulgas nem chatos, nem anda por aí a emprenhar cadelas mais ou menos oferecidas. É como se não existisse. O meu cão é um exemplo de cidadão. O meu cão sou eu.
Já mo quiseram comprar e eu não o vendi. Foi um vendedor de banha da cobra. Oferecia-me quatro embalagens das grandes e um país inteiro sem pretos e sem ciganos em troca do meu cão. Nã! Antes quero o cão. E os pretos e os ciganos!

P.S. - Hoje é Dia de São Bernardo. Do santo, mesmo, não do cão.

Aquela altura do ano

Meados de Agosto de 2015. "Cão deixado no lixo dentro de um saco gera onda de solidariedade em Vila Real", anunciava o jornal Público, em título fim-de-semaneiro. E acrescentava: "Plataforma Proanimal alerta que nesta altura do ano há mais animais abandonados e menos pessoas disponíveis para os acolher."
Verdade como punho, ontem como hoje. Embora não gere nenhuma "onda de solidariedade", está curiosamente a acontecer o mesmo com os velhos e com os recém-nascidos, por assim dizer, humanos - cada vez mais abandonados e com cada vez menos pessoas disponíveis para os acolher. É. Vivemos realmente uma "altura do ano" filhadaputa. Mas os cãezinhos, Senhor...

P.S. - "Portugueses já gastam mais com cães do que com bebés", dizia a capa do semanário Expresso, em Outubro de 2011. Hoje é Dia Internacional do Animal Abandonado. E está certo.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 225

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

A bisculeta

A bisculeta é um utensílio doméstico com pelo menos quatro rodas: a roda da frente, a roda de trás, a roda pedaleira e o pinhão. Vulgarmente conhecida como velocípede sem motor ou bicicleta, há também quem lhe chame automóvel derivado exactamente àquilo das quatro rodas.

P.S. - Hoje é Dia Nacional do Ciclista. No Brasil.

Cara de cu à paisana

No metro, direcção Senhor de Matosinhos-Fânzeres. Entro na estação Matosinhos Sul e o rapaz também. A carruagem está a rebentar pelas costuras, arranjo lugar sentado porque sou velho e momentaneamente aleijadinho, o rapaz fica de pé, encostado à porta. O rapaz, mais perto dos vinte do que dos quinze, vai ao bolso e saca do telemóvel (deve ter outro nome o aparelho, mas para mim é um telemóvel e já digo muito). Saca do telemóvel, dizia, eleva-o na mão direita bem acima da cabeça, aponta-o para a dita e, como se estivesse sozinho a fazer caretas ao espelho da casa de banho, veste de repente um sorriso de plástico que por acaso até lhe fica bastante mal, olha para o telemóvel, dispara, suponho, e volta à cara normal, como se não fosse nada. Um lado está resolvido. Agora o outro: o rapaz continua com o telemóvel na mão direita bem acima da cabeça, que revira para a esquerda num lamentável trejeito artístico, e, como se estivesse sozinho a fazer caretas ao espelho da casa de banho, veste outra vez e de repente um sorriso de plástico que por acaso até lhe fica bastante mal, olha para o telemóvel, dispara, suponho, e volta à cara normal, como se nada fosse. Feito extraordinário, de que tomo nota: o sorriso do rapaz é o exactamente o mesmo das duas vezes, o mesmíssimo, decalcado, sem tirar nem pôr, o mesmo sorriso da cara para fora, oco, palermóide, nanométrica réplica mimética um do outro, o mais profundo sorriso de cara de cu à paisana - posso garantir eu, que sei muito de sorrisos.
Penso então ali, respeitosamente: há que dar valor ao rapaz - para se atingir semelhante grau de perfeição, isto é preciso muito treino, muito ano, muita selfie!..

O rapaz saiu no Parque de Real, duas paragens acima, viagem de três minutos. Serviço feito, ala para casa, que se faz tarde! Nem tive tempo para lhe dar os parabéns.

E o número da máquina fotográfica?

- Passei o dia inteiro a ligar-lhe para o telemóvel, mas dava sempre impedido...
- Quando for assim, ligue-me para a máquina fotográfica.

No tempo em que

No tempo em que não havia telemóveis ligava-se da máquina fotográfica. O que é extraordinário!


P.S. - Hoje é Dia Mundial da Fotografia.

Olha, mar, o passarinho!

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Contra fatos

Eu tenho um fato. Um. Comprei-o pronto a vestir em 1987, se não me engano, para um casamento, isso é certo. O casamento para o qual eu comprei o meu fato já teve pelo menos dois divórcios. O meu fato, não. E nem sei se ainda me serve, sequer se estará em condições de ser vestido. Mas é o meu fato. E contra fatos...

A planta

Disse o arquitecto-chefe ao arquitecto estagiário: "Chegue-me aí essa planta". E o estagiário chegou. Era uma Dypsis lutescens, vulgo areca-bambu ou palmeira areca.

P.S. - Hoje é Dia do Estagiário. No Brasil.

De que mais precisa um homem senão de suas mãos e da mulher

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

As grandes decisões tomam-se em cuecas

No dia em que decidiu finalmente atirar-se de cabeça na piscina vazia, a piscina estava cheia. Ficou como um pito! Mudou de roupa e resolveu dali para a frente: as grandes decisões, as decisões definitivas, devem ser tomadas em cuecas.

Em dois sítios

Ele era um tipo manifestamente azarado. Caiu e partiu o braço em dois sítios: mais precisamente em Mirandela, há coisa de dez anos, e no Sabugal, fará amanhã quinze dias.

Desnecessidade

A frase diz: é preciso ter azar! E eu acho que não.

P.S. - Hoje é Dia do Gato Preto.

Tudo nos conformes, graças a Deus!

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 16 de agosto de 2022

O despertar do filósofo

- A vida é uma imensa linha recta cheia de curvas, e cada subida concomita-se numa irrefutável descida, vice-versando - disse o filósofo, ao pequeno-almoço.
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.

P.S. - Hoje é Dia do Filósofo. No Brasil. 

Levo-te como se me levasses

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 14 de agosto de 2022

Uma questão de respeito

- Nunca fumei à frente do meu pai.
- Porquê?
- Por uma questão de respeito.
- Mas o teu pai sabe que tu fumas?
- Sempre soube. Há que anos...
- E então?
- É uma questão de respeito.
- E o teu filho sabe que tu fumas?
- Claro que sabe.
- E tu fumas à frente do teu filho?
- Claro que fumo. Desde sempre...
- Porquê?

P.S. - Hoje é Dia dos Pais. No Brasil.

Oh, my dicky ticker!

Eu tinha um cardiologista e visitava-o de quatro em quatro meses. Falávamos de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto. E media a tensão, o que é extraordinário! Deixei. Deixei também o urologista e fiquei-me apenas com o dentista, que me sevicia de meio em meio ano, fora os inopinados. É a crise, é a vida. Um destes dias morro e vão dizer que foi por por causa de eu ter deixado de falar de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto com o meu ex-cardiologista.

P.S. - Hoje é Dia do Cardiologista. Pelo menos no Brasil.

Filho és, pai serás (regra geral)

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 13 de agosto de 2022

Cruzes, canhoto!

Hoje é Dia Mundial do Canhoto. Portanto hoje celebramos o Demónio. Ou os desajeitados. Ou o talão que não se destaca no livro de recibos, guias ou cheques. Ou o pedaço de lenha para a fogueira. E a mulher do canhoto é a canhota. Que é uma variedade de amêndoa algarvia, de fruto arredondado, com casca dura e miolo elíptico alargado de tonalidade clara. Ou um moinho de água, uma azenha. Ou a espingarda, na tropa. É. A língua portuguesa pela-se por uma boa brincadeira.

Menina branca de neve, me leve no esquecimento

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

O filho do meio

Hoje é Dia do Filho do Meio. E está bem. É um Dia De tão aceitável e tão palerma como a maioria do Dias De. Parece-me, em todo o caso, um Dia De algo injusto e até um desperdício para as famílias com número par de filhos.

Faziam-se homens e pronto

No meu tempo era mais fácil fazer homens. Levavam-se os rapazes às putas, mandavam-se os rapazes para a tropa, e estava o assunto resolvido. Hoje em dia a coisa exige outros mimos, ciência... 

Follow the leader

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

O advogado do Diabo

Acusavam-no de ser amiúde advogado do Diabo. Ele defendia-se alegando que tinha porta aberta, que por princípio nunca recusava clientes e que não queria problemas com a Ordem. Mas negava o pacto.

P.S. - Hoje é Dia do Advogado. No Brasil.

O homem e o cão (e vice-versa)

Todas as manhãs o homem e o cão passeiam pela praia, naquela incerta linha de sobe e desce onde o mar enrola na areia e acaba Portugal. Par pândego, haviam de ver. O homem atira a bola de ténis e o cão, dez-réis de cão, rasteirinho e de raça que não sei, corre e salta, como uma bala, como uma mola, abocanhando-a, à bola, ainda no ar. Cão danado para a brincadeira. E habilidoso. "Bem, muito bem, espectáculo!", diz o homem. E o cão regressa e larga a bola, e corre e salta à volta do homem, e ladra no verdadeiro ladrar que não morde, e abana o rabo, abana, que quer dizer "Obrigado, estou muito contente, mais, quero mais!...", e põe a língua de fora, que quer dizer "Ainda havemos de fazer isto ao contrário".
Um quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão da bola de ténis, matinais frequentadores de oceanos, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e definitivo. Decerto já viram nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.

Todas as manhãs, portanto. Eu também por ali ando comigo pela trela e por isso é que sei o que estou a contar. Ontem desatei a rir com o raio do cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas. (Não é que isto interesse, mas fez-me lembrar o Kelvin, o outro brinca-na-areia, e se calhar por isso é que me ri). Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia "Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex!...", nem de propósito Rex, eu seja cão se estou a inventar. O homem, que tomara nota do meu riso, resolveu pôr-me ao corrente, "É todos os dias a mesma merda, ele gosta, o caralho do cão mete-se no mar e eu depois é que tenho de lhe dar banho, secar e escovar, trabalho filho da puta, olha, lá vai ele outra vez, ó corno!, fode-me sempre..."

O cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para mim. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o açaime ao homem e levou-o para casa.

P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Junho de 2013. Hoje é Dia de Brincar na Areia.

Redacção (exactamente: cção)

A televisão é muito importante. Gosto de ver na televisão as redacções das televisões porque nas redacções das televisões que dão na televisão não há cadeiras partidas. Trabalhei em muitas e variegadas redacções, na rádio e sobretudo na imprensa, mas nunca na redacção de uma televisão.
Nas redacções onde eu trabalhei as cadeiras eram todas mancas e andávamos à pancada por uma que se segurasse mais ou menos. O sobrevivente marcava a sua cadeira para toda a vida, mas quando virava costas já ela estava debaixo do cu de outro. E andávamos outra vez à pancada. Foi por isso que, quando chegou a altura, estávamos sem forças para irmos às ventas dos bandalhos que fazem profissão de destruir redacções e que têm cadeiras da televisão. Feitas de cortiça.
A televisão é muito boa porque dá na televisão. Eu gosto muito da televisão.

P.S. - Hoje é Dia da Televisão. No Brasil. Portanto, redação.

No acto

Há aquele sugestivo aviso à porta dos cafés que cada vez mais se espreguiçam até à rua: "Serviço de esplanada pago no acto". No acto. E ponho-me a imaginar o solícito empregado - de toalha turca no braço, bandeja na mão e com a mão de vago a fazer festas ao bolso das calças - ali à espera que o casalinho termine e ele também. 

P.S. - Hoje é Dia do Garçom. No Brasil. Portanto, no ato.

De guarda

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Histórias de Fafe

Abri há uma semana um novo blogue, com textos exclusivamente dedicados a Fafe ou onde Fafe aparece, ainda que à tangente. O novo blogue chama-se "De Fafe, com muito gosto" e encontra-se aqui ao lado. É lá que vou arrumar tudo o que já publiquei no Tarrenego! sobre a minha terra e o que penso escrever a esse respeito a partir de agora. Memórias, histórias, ideias, sarrabiscos e apontamentos não me faltam, assim me calhe a disposição e o vagar. Quanto ao Tarrenego!, por cá continuará evidentemente mais generalista - e firme e hirto como uma barra de ferro.

Águas mil

Era um alcoólico que realmente sabia estar. Cada vez que se urinava pernas abaixo, ele dizia, sem entrar em pânico: - Rebentaram-me as águas. Levem-me à maternidade, por favor!

Aliás e há leões

Homem que é homem não teme leão. Já quanto aos ratos...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Leão.

A família foi à praia

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Alentejo profundo

O Ti Odoro, o Ti Noco, o Ti Móteo, a Ti Betana, o Ti Morato, o Ti Ófilo, o Ti Jolo, a Ti Ara, o Ti Pógrafo, o Ti Mor, o Ti Juca, a Ti Midez, o Ti Quetaque, a Ti Biotársica. Enfim, era a típica aldeia alentejana.

Please don't go

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Aqui há gato

"Aqui há gato", avisava o papel colado na janela escangalhada da velha casa de pasto. Isto às segundas. Às quartas eram iscas e às sextas caracóis.

Gato-sapato

Faziam dele gato-sapato. Quarenta e dois, biqueira larga.

Sete vidas

Cada vez que morria, o gato sabia que era a brincar. Chegou à sétima e fodeu-se!

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Gato. Que por acaso também é no dia 17 de Fevereiro.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 224

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 6 de agosto de 2022

Isto qualquer dia

Gosto destes filmes e destas séries da moda que contam o fim do mundo, os diversos modelos de fim do mundo, e a luta heróica e espectacular dos sobreviventes. Bombas atómicas, holocausto nuclear, invasões marcianas, asteróides desgovernados, pandemias assassinas, ataques de mortos-vivos, revolta dos macacos e outras claques, aquecimento global, acentuado arrefecimento nocturno, maternidades encerradas, caos no serviço nacional de saúde, catástrofes de proporções bíblicas, apocalípticas, deuteronómicas, cenários dantescos, destruições épicas, brutais, a estrada da morte, o teatro de operações, o dispositivo no terreno, os meios aéreos e os aéreos inteiros, a cinza, a lava, a escuridão, a luz, a asfixia, o nada, o silêncio, o-drama-a-tragédia-o-horror. O planeta desaparece e, no seu regenerador desaparecimento, traz à tona os melhores dos melhores de todos nós, americanos por certo. O pai-herói, a mãe-coragem, o bebé-milagre, o Sepúlveda Taberneiro, de quem ninguém sabia há mais de quarenta anos, desde que pôs os cornos à mulher no Sabugal e fugiu com a espanhola da casa de alterne. Para a América, Kansas City, Missouri. Dão bons títulos nos jornais.

Estes filmes fazem-me acreditar na redenção da humanidade. Os sobreviventes são a esperança num futuro melhor. Isto por um lado. Por outro: mas qual futuro e quais sobreviventes? Se o mundo acabou, como é que há sobreviventes? 

P.S. - Publicado originalmente no dia 1 de Maio de 2014. Hoje é Dia de Hiroshima.

Fale agora ou cale-se para sempre

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Fafe, a propósito

Abri um novo blogue, com textos exclusivamente dedicados a Fafe ou onde Fafe aparece, ainda que à tangente. O novo blogue chama-se "Fafismos" e encontra-se aqui ao lado. É lá que vou arrumar tudo o que já publiquei no Tarrenego! sobre a minha terra e o que penso escrever a esse respeito a partir de agora. Memórias, ideias, sarrabiscos e apontamentos não me faltam, assim me calhe a disposição e o vagar. Quanto ao Tarrenego!, por cá continuará evidentemente mais generalista - e firme e hirto como uma barra de ferro.

Não, não é o único

Foto Tarrenego!

Não. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, não é o único a esconder os crimes de pedofilia perpetrados no interior na Igreja. Não. Todos os bispos portugueses sabem de casos, recentes ou antigos, e a maioria do clero subalterno também. Mas fazem-se de virgens, encobrem-se uns aos outros, funcionam em cartel. Omitem, calam. E quando falam desfalam. Fazem números de circo com as palavras. Ou mentem. Mentem muito.
E isso revolta-me. Revolta-me tanto!
Tanto, que em 2018, mais ou menos por esta altura do ano, não consegui conter a minha indignação após nova ronda de declarações avulsas e falsas sobre o assunto, creio que por parte da Conferência Episcopal, e, em desespero de causa, cedi à ingenuidade momentânea de enviar um email a um bispo amigo a quem eu devotava o maior respeito e admiração. Era um apelo.

"Caro [...],
Perdoe-me o atrevimento. Em nome da nossa amizade antiga, infelizmente breve, porém limpa, quero fazer-lhe um pedido urgente:
Por favor, não deixe que os seus colegas bispos digam que não têm denúncias sobre casos de pedofilia. Têm. Têm. E o jogo semântico da afirmação hipócrita é de uma habilidade patética e criminosa. Os bispos não precisam de denúncias, os bispos sabem. Sabem. Sabem.
Caro [...],
Rogo-lhe: diga, faça alguma coisa. Em nome das vítimas e dos que, como eu, e eu sou o menos, ainda esperam uma igreja justa, misericordiosa, amparo dos pobres e fracos. Seja, por favor, a voz do Papa em português, já que os seus colegas bispos fazem questão de desperceber o que ele diz."

Convenientemente de férias, o bispo amigo teve, ainda assim, a amabilidade de responder-me.

"Do Algarve, apenas te diria que teria muito gosto em falar contigo. Não tenho problemas em abordar qualquer assunto. Aparece ou diz-me onde te poderei encontrar para conversarmos."

Estão a ver? Percebem o que eu quero dizer quando falo em hipocrisia? Eu não precisava de encontrar-me com o bispo nem gosto que me mandem calar. E conversarmos o quê? Eu não fui vítima de pedofilia ou de qualquer outro abuso sexual, felizmente não careço desse exorcismo. Eu, na minha boa intenção, só pedi ao bispo que fizesse ouvir a sua influente voz, que chamasse os seus colegas bispos ao bom caminho. Enfim, eu só implorei ao meu amigo bispo que ele revelasse o que eu sei que ele sabe. Mas quanto a isso, nem um pio...

P.S. - A propósito das notícias do Expresso de hoje, repito o texto que publiquei no passado dia 29 de Julho. Mais sobre o assunto, aqui.

Ruptura de stock

Ouço Tiago Nacarato no rádio. Canta "A Dança". Diz: "Mesmo que se acabe o stock / Da tão bem-vinda Super Bock / A vida é boa / A vida é tão boa / A vida é mesmo boa de se levar."
E lembro-me do Verão de 1990, na ilha do Sal, Cabo Verde. Agosto passava para Setembro, e a Super Bock esgotou sem remédio em toda a ilha. Fui eu.

O calor dilata os copos

Praticante de fino durante três quartos do ano, chegava ao Verão e dedicava-se à caneca. Dizia: - O calor dilata os copos...  

O tempo das cervejas

Uma vez, em pleno pino de Verão, de férias, passeei Lisboa durante um dia inteiro sem beber uma cerveja, e bem era o tempo delas. Bati as capelas todas. Entrava aqui, entrava ali, e pedia "Uma Super Bock, se faz favor!", ou perguntava "Por favor, a imperial é Super Bock?", que não há e que não é - era Sagres e Sagres, respondiam-me invariavelmente, como se estivessem todos ensaiados e me conhecessem de algum lado. Bebi água como a minha mulher, eu quase afogava, eu quase morria, e foi a maior e mais perigosa acção de protesto que levei a efeito em toda a minha vida. 

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Cerveja.

Delícias do mar, às vezes

Areia macia e morna, água, o sal da terra, cheiro a argaço, sol quando Deus quer, a brisa nas ventas, o falar das ondas, o silêncio do horizonte a ganhar de vista, madrugadas de pés molhados, ocasos de fogo, Apúlia, um fino bem tirado, pescadores, peixeiras, surfistas, parassurfistas, ciclistas e todos os tipos de nudistas, a Foz, Matosinhos, a ver navios, os números do Porto de Leixões, camarão da costa, gambas no Peixoto de Fafe que já não é, cracas em São Mateus, alcatra de peixe no Boca Negra, lapas em casa do Victor e da Ana, ilha Terceira, ilha Terceira, ilha Terceira, ecos de Nemésio, mexilhões de vinagreta, masoquistas esturricando agosto e areando os entrefolhos, amêijoas à Bulhão Pato no portinho de Âncora, o bacalhau assado na brasa do Senhor Álvaro em Valença, o bacalhau assado no forno pela minha mãe, o bacalhau de quarto da minha avó de Basto, os bolinhos de bacalhau da minha avó da Bomba, a punheta de bacalhau do meu cunhado Álvaro, as trutas "do Coura" do querido amigo Vilaça Pinto, que, palavra de honra, era como se fossem marítimas, polvo de molho-verde, o meu polvo frito, as lulas recheadas da minha sogra, as sardinhas da Dona Dina, navalhas na chapa, arroz de tomate com petinga, ou com jaquinzinhos, ou arroz de grelos com, ou arroz de feijão com, mas malandro, malandro, malandro, ou, supra-sumo dos supra-sumos, o arroz de feijão vermelho com grelos e bacalhau frito da minha cunhada Isabel, fanecas, biqueirão, marmotinha de rabo na boca, filetes de peixe-galo, a raia frita no Salta o Muro aqui à porta, a lagosta na ilha de São Jorge comida à ganância e à moina, as percebes na ilha do Sal, as bandejas nas rias galegas, carapaus grelhados no quintal do meu sogro, ostras de Setúbal degustadas em Bordéus, a mastodôntica cabeça de pescada que vou cozer para o jantar, os tremoços da Marrequinha da Recta. Isto são delícias do mar. Outra coisa não:
Fitas de nastro tingidas de cor-de-rosa gomitado, cortadas em palitos empacotados e refrigerados em vácuo e vendidos à babuge nos supermercados não são, por mais que lhes chamem, delícias do mar! Não, não e não! Serão tudo o que quiserem - delícias do mar, não!

P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Dezembro de 2017. Hoje é Dia da Ostra.

Vai um mergulho?

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

De Fafe, com muito gosto

Abri ontem um novo blogue, com textos exclusivamente dedicados a Fafe ou onde Fafe aparece, ainda que à tangente. Chama-se "Fafismos" e encontra-se aqui ao lado. É lá que vou arrumar tudo o que já publiquei no Tarrenego! sobre a minha terra e o que vou escrever a esse respeito a partir de agora, que não me faltam memórias, ideias, sarrabiscos e apontamentos, assim me calhe a disposição e o vagar. Quanto ao Tarrenego!, por cá continuará evidentemente mais generalista - e firme e hirto como um barra de ferro.

Close-up

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Novo blogue sobre Fafe

Abro hoje um novo blogue, com textos exclusivamente dedicados a Fafe ou onde Fafe aparece, ainda que à tangente. Chama-se "Fafismos" e encontra-se aqui ao lado. É lá que vou arrumar tudo o que já publiquei no Tarrenego! sobre a minha terra e o que vou escrever a esse respeito a partir de agora, que não me faltam memórias, ideias, sarrabiscos e apontamentos, assim me calhe a disposição e o vagar. Quanto ao Tarrenego!, por cá continuará evidentemente mais generalista - e firme e hirto como um barra de ferro.

Olha a triste viuvinha

O homem da casa falecia, por esta ou por aquela razão, mas geralmente por razão de força maior, e a família tinha logo uma carga de importantes decisões a tomar, a primeira e principal das quais era pegar na roupa toda da recém-viúva e mandá-la para a tinturaria, que, se não me engano, ficava ali ao lado do Foto Victor e da entrada para o Senhor Fernando Enfermeiro, junto aos Correios, na hoje muito bem chamada Rua Dr. António Marques Mendes. A roupa ia para tingir de preto, a roupa e a vida da viúva dali para a frente. Fafe sabia e não perdoava. A mulher ficava marcada, não lhe viesse a tentação. E ficava pelo menos quinze dias metida na cama, sem rádio, sem televisão que não havia e com as luzes sempre apagadas, sozinha, sozinha, sozinha, para se habituar...

Éramos cobóis e brincávamos com os índios

O Texas era um tasco e era em Fafe. Chamava-se também Quiterinha, derivado ao nome da dona, senhora respeitável, ou Pensão Império, e isso eu nunca soube derivado a quê. Estão a ver a Rua Monsenhor Vieira de Castro, quem vai para o Picotalho, do lado do Cinema, depois da padaria e encostado ao Noré, mesmo em frente à cabine, antes de chegar às Grilas e ainda mais às Turicas, nas barbas da procissão da Senhora de Antime? O Texas era exacta e geograficamente aí, previamente a ter-se instalado de armas e bagagens no sul dos Estados Unidos da América, resvés com o México, segundo vi depois nos filmes a cores.
O Texas, o nosso Texas, o verdadeiro Texas, era a preto-e-branco e tinha, após o balcão, um reservado com vista para a cozinha e para os campos do Santo, onde hoje se ergue o cimento do Pavilhão Municipal. Foi no nosso Texas, na sala da frente, que eu vi na televisão os jogos de Portugal no Mundial de 1966. Eu e a RTP éramos miúdos da mesma idade. Ao Texas fui com o meu pai, no Texas confraternizei com os músicos antigos da Banda de Revelhe, que tinha casa de ensaio ali a dois compassos, coisa tão a calhar, com o querido Senhor Ferreira do Hospital ou com o Queirós, meu camarada bissexto na fábrica e provavelmente o melhor tintureiro do mundo, desse-se o caso extraordinário de ele aparecer ao trabalho...

(Isso. O Texas era como se fosse uma segunda casa de ensaio da Banda de Revelhe, centro de convívio líquido, a verdadeira sede da agremiação. Músicos e apaixonantes reuniam-se e discutiam ali, à volta de umas valentes infusas de vinho verde. Falava-se de música, cortava-se na casaca, celebrava-se a vida. Quando o meu pai foi para França, os compinchas que ficaram, incluindo o meu padrinho e tio Américo, irmão do meu pai, escreviam-lhe de vez em quando mandando-lhe novidades de Fafe, da banda e do tasco, e, malandros, castigadores, costumavam carimbar a assinatura colectiva da missiva com um fundo de caneca esborratado de tinto matão, acirrando-lhe saudades e apetites. Lembro-me como se fosse hoje.)

Vamos dizer, então, que o Texas, o nosso, era uma casa de pasto - sem ofensa para todos os verdadeiros americanos do faroeste, incluindo gado cavalar e vacum. As portas do Texas eram verdes, mas não eram de saloon. Cobóis, apareciam alguns, sobretudo às quartas-feiras, porém não me lembro de tiros, e os índios era como se fossem da família. Naquele tempo em Fafe, terra de paz e amor, matava-se mais à sacholada, domesticamente, e a Justiça de Fafe era um postal com quadras bairristas do Zé de Castro, poeta-cauteleiro, o nosso Aleixo. Borracheiras havia-as, e eram acontecimento de alta patente, é preciso que se note. Não tínhamos xerife, mas tínhamos o Chester, tínhamos o regedor de pistolete à cinta e tínhamos o Miguel Cantoneiro, que padecia de uma questão com os erres e, para todos os efeitos, também era autoridade. Às vezes, quando não era precisa, também tínhamos polícia.
Em todo o caso: o Texas foi sempre um sítio pacífico enquanto esteve nas nossas mãos. Quando foi para a América é que se tornou perigoso.

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Novembro de 2017. Hoje é Dia do Tintureiro, pelo menos no Brasil, e eu lembrei-me do meu querido amigo Queirós.

Pernas e cabeças na calçada

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Lourenço da Arrábida

O problema do Lourenço da Arrábida era o equívoco. Ou o gozo. O inocente equívoco ou o gozo premeditado, ele ainda não chegara à conclusão. O certo é que as pessoas estavam sempre a perguntar-lhe pelo Omar Sharif, pelo Anthony Quinn, pelo Alec Guinness, ou se realmente ele viu Judas a cagar no deserto. Chamavam-no à televisão para comentar a situação no Médio Oriente, mas admiravam-se por ele ainda estar vivo, uma vez que para os devidos efeitos morrera num acidente de mota. Perguntavam-lhe também, se, por falar nisso, a Guinness deve ser bebida fresca ou à temperatura ambiente como alguns têm a mania. Enfim, já se sabe como são as pessoas. 
O bom do Lourenço primeiro ia aos arames, afinava. Cego pelos nervos, num repente rapava da adaga e desatava a gritar "mouros!" e a matar a torto e a direito felizmente só da boca para fora. Quantas tragédias foram assim prometidas e adiadas, para enorme desconsolo da CMTV e assinalável prejuízo da indústria funerária da região. Mas com o tempo o nosso herói assentou, ganhou calo no cu, como se diz. Agora se o azucrinam com as tretas do costume, encolhe os ombros largos de desdém, pigarreia uma e outra vez, sacode duas valentes chibatadas no camelo de estimação e desaparece dali a galope, ondulando o manto branco por entre hordas descontroladas de turistas e outros infiéis que descem e sobem aos encontrões a completamente escangalhada Rua Mouzinho da Silveira.

P.S. - O actor Peter O'Toole nasceu no dia 2 de Agosto de 1932.

A praia dele

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Augusto, o das botas amarelas

Depois de ter sido o primeiro imperador romano e de ter imperado forte e feio durante 41 anos, menos sete do que o fascismo português, e depois de ter morrido fará no próximo dia 19 exactamente 2008 anos, RIP, Augusto, também conhecido como Caio Otávio ou Caio Júlio César Otaviano, apareceu em Fafe de chuteiras amarelas ou vermelhas, consoante, fazendo-se passar por defesa direito. Estávamos às portas do 25 de Abril de 1974 e era ainda tempo de botas negras. Menos o Augusto, que ia ao secador todos os dias e disfarçava muito mal como jogador de futebol.
A augusta figura coincidiu na AD Fafe com memoráveis jogadores como Zé Maria, Neto, Costa, Leitão, Cláudio, Ismael, Martinho, Cândido, Manuel Duarte, Nino, Testas, Alfredo, Daniel Lopes ou Valença, recém-tornado do Ultramar. Só Augusto destoava, quer-se dizer.
No entanto, apesar daquele aspecto colorido e aprumadinho, Augusto, não sendo génio, era genioso. Uma vez, num "amigável" com o Vitória de Guimarães, pegou-se à pancada tenho na ideia que com o sardento Romeu, que também era de gancho e acabou por jogar mais tarde no Benfica, no Porto e no Sporting. O Augusto, não.
As chuteiras de Augusto estavam muito à frente do seu tempo, como hoje se sabe. E o cabelo de Augusto marcou uma época em Fafe. Na época seguinte, de facto, Augusto foi enganar para outro lado. Em Barcelos, no Gil Vicente, e depois disso a História perdeu-lhe o rasto.

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Agosto de 2019. Otaviano (mais tarde conhecido como Augusto) entrou em Alexandria, Egipto, no dia 1 de Agosto do ano 30 a.C. Já agora: o mês em que hoje entramos chama-se Agosto precisamente em honra do Augusto.

Agosto

Desmaio, desjunho, desjulho, desgosto. Gosto de Agosto. Da palavra. Agosto. Isto é, q.b.

Cobarde

Mais vale sê-lo que estampilha.

P.S. - Hoje é Dia Nacional do Selo. No Brasil.

Não me levarás contigo

Foto Hernâni Von Doellinger