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sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Boxers, trusses e espermatozóides

Viva a liberdade! Abaixo as cuecas!
Christina Aguilera informou que não usa cuecas. A cantora norte-americana fez saber que gosta de se sentir livre, e as cuecas não deixam. E eu ponho-me a pensar: às tantas, quando os nossos governantes nos mandam baixar as calças, só estão a pensar no nosso bem...

Um estudo de cientistas americanos publicado na revista Human Reproduction considerava que os homens que normalmente vestem boxers têm mais espermatozóides. A ideia já tem barbas, vem quase desde o tempo dos romanos, mas a palpitosa notícia foi-me então oferecida pelo nosso jornal Público, sempre atento a estas extraordinarices. Não me vou dar ao trabalho de procurar, mas tenho a certeza de que o estudo científico em questão contradiz um outro estudo científico, também americano evidentemente, que prova que os boxers prejudicam os espermatozóides. Como se sabe, os estudos científicos, sobretudo na América, tanto podem ser patrocinados por fabricantes de boxers como por fabricantes de slips - é a lei da livre concorrência, cada um puxa a brasa à sua sardinha, pelo menos no reino das cuecas.
Fixemo-nos, porém, no âmago da notícia, nos boxers. Será abusivo concluir que, se um homem com boxers tem mais espermatozóides, um homem sem cuecas de qualquer espécie tem muitos mais? E as famigeradas trusses? Sim, as trusses, como não se cansava de dizer o grande Zé Manquinho, contando e recontando as peças dos equipamentos da AD Fafe, carregando nos erres, com tanta graça, fazendo e refazendo sucessivos montinhos de roupa até que tudo batesse certo. E a tanga, como é? E o fio dental, prejudica? E um nudista a tempo inteiro, o que é que ele há-de fazer ao mais que certo excedente de espermatozóides, que às tantas até lhe saem pelas orelhas? E mulher que use boxers, como é que fica de espermatozóides?
A ciência, é o que tem, faz-nos pensar nas coisas importantes da vida.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

terça-feira, 12 de agosto de 2025

A Póvoa agora é em Fafe

Vá ver a neve, hoje!
A melhor altura para ir ver a neve à serra da Estrela, acho eu, é agora, no Verão, em pleno Agosto, hoje por exemplo. Não há neve, mas pode-se passar.

É extraordinário o que se passa em Fafe por estes dias. Finalmente sem precisar da Póvoa de Varzim para nada, quem havia de dizer, Fafe tem a sua própria época balnear, de papel passado, reconhecida pelo notário, anunciada em edital, com bandeira e diploma, talvez até com batata frita à inglesa, bolas de Berlim, língua da sogra e caladinhos, nadadores-salvadores, mirones, pedintes e carteiristas. Serviço completo. Que coisa tão estranha para um tipo antigo como eu! Sobral de Monte Agraço teve, à altura, o seu parque infantil, que saiu no Tide e dava na televisão, e Fafe agora também tem época balnear, como os outros brasis e algarves da concorrência, sem lhes ficar atrás. Que sainete! Foi preciso esperar pelo século XXI, aguentar pacientemente as patifarias das alterações climáticas, inclusive correntes de ar, mas valeu a pena: Fafe está realmente mais fresco.
O meu irmão Nelo bem dizia, em pequeno, que, quando fosse grande, ia mandar construir uma praia em Fafe, uma praia com mar e tudo. E a verdade é só uma. Não foi o nosso Nelo, por acaso, mas alguém a construiu, e em boa hora, ela aí está, a praia da Barragem de Queimadela, ele aí está, o nosso mar, o sexto oceano, aberto ao expediente e em glorioso funcionamento. O nome "de Queimadela", para praia, se calhar não será o mais feliz, o mais acolhedor, por assim dizer, antes pelo contrário, mas, pronto, já constava, vinha de trás e, portanto, não havia volta a dar, esqueçamos o pormenor. Qualquer dia, estamos mas é a receber camionetas de poveiros, que vêm à procura do que é bom.
Para mim, no meu tempo, antes da construção do nosso mar, Fafe tinha três esplêndidas estâncias balneares: o Poço da Moçarada, em Docim, o Comporte, na Fábrica do Ferro, e Calvelos, em Golães, pelos campos de Sá, atravessando a linha do comboio. Três oásis que eu, na minha boa fé ou ingenuidade infantil, supunha longínquos, praticamente inacessíveis e secretos. Sítios de banhos, puros e duros, sem facilidades, só para homens de barba rija. E nós, os putos, sorrateiramente desenfiados, lingrinhas de pé descalço e pila ao léu, autoprojectos assumidos de futuros ecoturistas, hippies sem sequer fazermos ideia, íamos para lá treinar para a Póvoa de que ouvíamos falar, porque algum dia havia de ser. O pior era a minha mãe, que parecia que tinha radar e, uma desgraça nunca vem só, sabia sempre por onde é que eu andava e o que fazia. E, portanto, ia-me buscar. Pelas orelhas. Eu chorava e prometia que nunca mais, pelo menos até à tarde do dia seguinte.
Eu sou, aliás, especialista em épocas e instalações balneares. Não ouso colocar Fafe no topo da lista nacional de estâncias termais, seria porventura um exagero, e eu não sou disso, mas a verdade é que conheci muito bem os balneários do Campo da Granja e ainda cheguei a entrar nos balneários do Campo de São Jorge, então já oficialmente desactivado, mas funcional para jogos escolares ou de solteiros contra casados. Eu seria miúdo de escola primária. Três ou quatro anos depois, quando o Estádio começou a ser construído, nas vésperas da década de setenta, os vestiários foram provisoriamente montados na cave do quartel dos Bombeiros e eu passei a ser freguês diário do Senhor Zé Manquinho, o roupeiro dos roupeiros, numa amizade sem fim. Como decerto sabeis, eu era neto do quarteleiro, estava sempre ali de plantão, era só descer as escadas. Nas férias do seminário, não tínhamos água quente em casa, e era no balneário da AD Fafe que eu tomava banho duas ou três vezes por semana, antes dos jogadores chegarem para os treinos e sem estorvar o despacho. Levava toalhão, sabonete e roupa interior para mudar. Por sugestão do Senhor Zé Manquinho, eu era conhecido nas catacumbas como "o homem que adormece no chuveiro", tamanho era o prazer que o duche me dava e o tempo que eu lá passava, debaixo de água, nem sei como é que nunca engelhei. Era uma espécie de Homem da Atlântida ou Aquaman, mas às pinguinhas.
Com o banho, eu tinha direito a uma bebida. Isto é, não tinha direito a bebida nenhuma, mas fazia-me e ela. Inventava um ligeiro afrontamento, queixava-me de uma pontada de azia, e o Senhor Zé já sabia. Mandava-me esperar pelo João Americano, o massagista, o único que tinha a chave da "Farmácia", palavra escrita a esferográfica azul no adesivo colado na testa do pequeno armário branco e vidrado com três prateleiras que era a própria "Farmácia" e pouco maior do que uma mesinha-de-cabeceira. O João chegava da fábrica, gozava comigo, falava muito alto, esganiçado, parecia a cantadeira de um rancho folclórico, mas também já sabia: dava-me um copo de água com uma colher de "sais de fruto", Eno, se bem me lembro, eu adorava aqueles piquinhos, bebia regalado, uma, duas goladas sem deixar cair, arrotava com toda a categoria e, boa tarde e muito obrigado, estava pronto, estava feito.
Admito que foi ali que o João Americano, o Senhor Zé Manquinho e eu inventámos o spa com champanhe, conceito hoje em dia tão coisa e tal, mas evidentemente não sabíamos.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

segunda-feira, 23 de junho de 2025

De régua e esquadro


Se eu mandasse ou sequer me perguntassem, comigo era assim: no futebol dos Jogos Olímpicos só valiam golos marcados de canto directo, e nem vou explicar porquê.
Uma vez eu vi um, fui testemunha, um golo olímpico a sério como requerem as devidas certidões, e foi de rir, obra-prima assinada pelo Palmeira, ele e o José Manuel emprestados pelo Braga à nossa AD Fafe, certamente na época de 1971/72, vem-me à cabeça que aquilo pode ter acontecido em Penafiel, mas tenho muitas dúvidas a esse respeito...

P.S. - Textinho publicado mo meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Olímpico.

domingo, 15 de junho de 2025

Fafe já tem época balnear

Foto Hernâni Von Doellinger

Leio no Facebook do Município de Fafe que a "época balnear abriu oficialmente hoje e a Albufeira da Queimadela está pronta para receber a visita de todos", e dou por mim a sorrir. Fafe tem a sua própria época balnear sem precisar de ir para a Póvoa, quem havia de dizer, que coisa tão estranha para um tipo antigo como eu! Sobral de Monte Agraço teve, à altura, o seu parque infantil, que saiu no Tide, e Fafe agora também tem época balnear, como os outros brasis e algarves. Que extraordinário!
O meu irmão Nelo bem dizia, em pequeno, que, quando fosse grande, ia mandar construir uma praia em Fafe, com mar e tudo. Não foi ele, por acaso, mas alguém a construiu, e em boa hora, ela aí está, a nossa praia, ele aí está, o nosso mar, o sexto oceano, como já aqui expliquei, e já aberta ao expediente, a praia, afinadíssima "para receber a visita de todos", tal e qual como, por exemplo, a congénere ali do retrato supra, a Praia de Matosinhos, mesmo debaixo do meu nariz e eu nem lá ponho os pés, tenho medo de me afogar no areal. Quem dera que "todos", na nossa Barragem, nunca sejam assim tantos...
Para mim, no meu tempo, antes da construção do nosso mar, Fafe tinha três esplêndidas estâncias balneares: o Poço da Moçarada, o Comporte e Calvelos. Eu sou, aliás, especialista em balneários. Conheci muito bem os balneários do Campo da Granja e ainda cheguei a entrar nos balneários do Campo de São Jorge, então já oficialmente desactivado, mas funcional para jogos escolares ou de solteiros contra casados. Eu seria miúdo de escola primária, se tanto, e era a minha época balnear. Quando o Estádio começou a ser construído, os balneários da AD Fafe foram atamancados na cave do quartel dos Bombeiros e passei a ser freguês diário das instalações, numa amizade sem fim com o Senhor Zé Manquinho. Nas férias do seminário, não tinha água quente em casa, e era ali que eu tomava banho duas ou três vezes por semana, antes dos jogadores chegarem para os treinos e sem estorvar o despacho. Mas isto já são histórias para contar um destes dias no meu blogue Mistérios de Fafe...

(Publicado ontem no meu blogue Fafismos)

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

A ordem natural das coisas

O Paços de Ferreira de José Mota, o Rio Ave de Carlos Brito, o Vitória de Setúbal de Manuel Fernandes, o Nacional de Manuel Machado, o Aves do Professor Neca, o Boavista de Manuel José, a Académica de Vítor Manuel, o Varzim de Henrique Calisto, o Marítimo de Nelo Vingada, o Salgueiros de Filipovic, o Vitória de Guimarães de Jaime Pacheco, o Chaves de Raul Águas, o Belenenses de Marinho Peres, o Farense de Paco Fortes, o Portimonense de Vítor Oliveira, o Gil Vicente de Álvaro Magalhães, o Beira Mar de António Sousa, o Braga de Manuel Cajuda, o Felgueiras de Jorge Jesus, parece impossível, o Riopele e o Tirsense de Ferreirinha, o Infesta de Augusto Mata, o Fafe de Nelo Barros, e o FC Porto campeão. Assim eram as coisas e estava tudo certo, ninguém ia para o Brasil ou para as Arábias abanar a árvore das patacas, eu entendia-me com o futebol e era feliz. Era adepto. Agora? Agora o futebol está de pernas para o ar, chamam-lhe "o jogo" e tem polícia de choque, cordões de segurança, jaulas, petardos, periodizações tácticas e claques profissionais, bandidas e amiúde assassinas, os treinadores duram dois ou três jogos, ninguém é de ninguém, o meu Fafe anda pela terceira divisão, o Sporting foi campeão, rebentaram com o FC Porto e eu também já não estou grande coisa...

P.S. - A Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF) foi fundada no dia 14 de Janeiro de 1986.

sábado, 11 de janeiro de 2025

A culpa é sempre do guarda-redes

É goleiro no Brasil e guarda-redes em Portugal, o que em certa medida explica logo à nascença a suprema necessidade e a utilidade sem medida dessa coisa escaganifobética e sonsa a que certos doutores chamam acordo ortográfico. Falando à nossa moda, o guarda-redes é-o, regra geral, porque, no que diz respeito à bola, não serve para mais nada, não joga um caralho, não dá uma para a caixa, é um trambolho, um cepo, um arrocho, e por isso vai para a baliza. Exactamente: o arrocho vai para a baliza. Ali pelo menos não estorva. E grita a torto e a direito "Sainde da frente!, Sainde da frente!", desarrumando imaginárias barreiras no miserável recreio da Escola Conde de Ferreira, no largo da Feira Velha ou entre as aprazíveis tílias do Santo Velho, fazendo todo o cuidado aos vidros das portas da frente da Milinha Modista, isto era em Fafe mas podia ser no Maracanã ou no Prater de Viena, era só pensar e escolher. Sei muito bem do que falo, da maneira de ser arrocho. E falo orgulhosamente por experiência própria, não sendo o único.
Albert Camus, Arthur Conan Doyle, Karol Wojtyla, conhecido como papa João Paulo II, que foi eleito santo, Che Guevara, Julio Iglesias e até Luís Marques Mendes tentaram ser ou foram mesmo guarda-redes. Do Luisinho lembro-me eu muito bem, nas camadas jovens da nossa AD Fafe, que agora tem uma extraordinária SAD que parece que vai para Felgueiras, suponho que na velha carreira, ida e volta todos os dias, como faziam antigamente as pessoas sérias, isto é, as pessoas que têm só uma família e trabalham...
Duas das melhores definições sobre o guarda-redes, digo eu, terão sido elaboradas pelos escritores Eduardo Galeano e Nelson Rodrigues. "Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito", sentenciou o uruguaio. Já o brasileiro Nelson Rodrigues afirmou um dia - "Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários."
Por mim, o que continua a interessar-se particularmente no ofício de guarda-redes é tentar perceber esse mistério do homem que entra em campo como "guardião", sim, chamam-lhe guardião, e sai do campo como "frangueiro", sim, chamam-lhe frangueiro, ao ex-guardião. Frangueiro e filhodaputa. E penso na desgraça que aí andou a respeito de Adán, o intermitente ex-guarda-redes do Sporting.

É preciso que se note, o menosprezo pelo guarda-redes não é de agora, vem desde o tempo da invenção do futebol. O guarda-redes nunca constou de esquemas tácticos, não entra nos fundamentos do jogo. Eram "onze contra onze", ficou estabelecido, mas o guarda-redes, nem que fosse "o melhor do mundo", não contava para o totobola. O guarda-redes era uma espécie de Santa Bárbara (embora esse fosse do andebol), só se lembravam dele quando toava, quer-se dizer, à hora do penálti. De resto, havia o 1-1-8, o WM, o 4-2-4, o 3-4-3, o 4-3-3 e o 3-5-2. Sobretudo. E é só fazer as contas, somar os algarismos e ver que dá dez, não onze. Até W mais M é igual a dez. O "onze contra onze" é uma fraude - eram dez contra dez e era um pau, e a bola era redonda mas nem sempre. Essa é que é essa. E hoje em dia, por mais losangos, faixas e terços do terreno que inventem, a desconsideração continua. O guarda-redes só é necessário porque é preciso um bode expiatório. E, no entanto, ele houve e há grandes guarda-redes, autênticos salvadores da pátria, valha-me Deus!

David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem o italiano Dino Zoff, nem outros de semelhante calibre - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de mais recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. Isso mesmo. O David era inteligente, culto e visionário, carismático, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com um par de décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Pensador por natureza, pedagogo, ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes para assistir. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era um acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Para ensinar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos grandes jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. Lembrei-me dele e deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, numa idade em que devia ser proibido morrer. O David morreu e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...

Já disse. Qualquer dia, quando eu estiver pronto, espero escrever a sério sobre David Alves, o nosso David Alves, guru natural e sem querer de uma ou duas gerações de jovens fafenses. Fomos uns sortudos!

P.S. - Acho que vem a propósito limpar outra vez o pó a este velho apontamento, já aqui publicado, corrigido e aumentado. Hoje é Dia Internacional do Obrigado. Obrigado, David!

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé...

Foto União de Tomar

Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Assim. É assim que os trago na cabeça há mais de cinquenta anos, e digo-os, aos nomes raros, antigos e melodiosos, como se fossem poema, letra de festival da canção escrita por Ary e cantada por Simone. 
Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Já lhes apreçaram o ritmo lanceiro de lengalenga, a precisão sincopada de ladainha, a musicalidade silábica de balada sustenida? E são apenas nomes, nomes de jogadores de futebol, protagonistas de uma famosa equipa do União de Tomar em tempo de primeira divisão, na passagem da década de sessenta para a década de setenta. Depois destes sete magníficos poderiam vir, mais adiantados no terreno, como hoje se diria, o Bilreiro ou o Araújo ou o Lecas ou o Leitão ou o Alberto ou o Dui ou o Totói, que era irmão gémeo do Djunga, também colega de equipa, ou outro ou outros, mas de todos estes não me lembro na velha oração que sei de cor. Tive de ir à procura...
Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Assim. Os meus amigos, que são também magníficos mas menos do que sete, estão fartos de me ouvir. Já se riem de mim quando eu começo. Fazem pouco. Mas eu insisto e digo, e recito, e canto: Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. É claro, não são os Cinco Violinos do Sporting fidalgo nem a superequipa do imparável Benfica da década de sessenta. Tampouco são o saudoso Belenenses de Vicente e Matateu ou aquela linha recuado do FC Porto afinada em érre e formada por Rui, Rodolfo, Ronaldo, Rolando e Guedes, só para destoar. Não são, realmente. Mas, palavra de honra, são os meus cromos preferidos.
Ainda por cima, o Cláudio, seguindo o bom exemplo do Djunga, viria depois a jogar no meu Fafe, parece-me que após passagem pelo Riopele. Creio que morou na "Torralta" praticamente a estrear e, se não me engano, era pai do Hélder e do Toni. Com os anos transformara-se em defesa central, um portento de técnica em souplesse, lento mas geralmente eficaz, imperial, suava em bica mesmo em pleno Inverno, evaporava-se em campo, era o primeiro construtor e líder da equipa, gostava de fintar os avançados adversários e fazia gala do passe de letra, inclusive na marcação de penáltis.
E para quem não sabe: os do União de Tomar eram e certamente são os nabantinos, por causa do rio Nabão, que atravessa a cidade. Ali chegou a jogar Eusébio, já preso por arames, abandonado pelo Benfica e, com todo o respeito, a estragar o final de carreira. O grande Eusébio, que se estreou pela Selecção, faz hoje anos, no dia 8 de Outubro de 1961, contra o Luxemburgo, marcando um golo, e que eu ainda vi em campo também pelo Beira Mar. Assinalo-lhe a efeméride, mas, lamento, não consta da cantilena mágica...

P.S. - Colhi a fotografia na página não oficial União de Tomar, de Leonel Vicente, autor do livro "União de Tomar - 100 Anos de História [1914-2014]". "Foto gentilmente cedida por Alexandre Rosa Freitas, enviada por José Jorge", segundo leio. Referente à época de 1967-68, ali estão, de pé, da esquerda para a direita de quem vê, Conhé, Alexandre, Cabrita, Bilreiro, Faustino e Santos; e em primeiro pleno, no mesmo sentido, Lecas, Djunga, Alberto, Cláudio e Totói.

domingo, 22 de setembro de 2024

Portugal num guardanapo

Foto Glórias do Passado

Por volta de 1980, Mário Wilson (1929-2016) era o seleccionador nacional e também treinador do Vitória de Guimarães, por onde passava pela segunda vez, se não me engano. No Inverno, para poupar o relvado, único, do velho e feiinho Municipal vimaranense, o Vitória vinha treinar a Fafe geralmente às quartas ou quintas-feiras, fazendo connosco o chamado jogo-treino. Connosco, quero dizer, com a Associação Desportiva de Fafe, que costumava ter uma equipa competente de segunda divisão - hoje é a desgraça que se sabe. Eu trabalhava na AD Fafe: tratava dos papéis, de alguns inocentes papéis, é preciso que se note.
Mário Wilson era uma jóia de pessoa e foi um treinador sobretudo afectivo. Gostava de falar com os seus jogadores um a um, como em acto de confissão mas passeando, colocando-lhes o braço paternal por cima dos ombros - vi-o assim muitas vezes.
Um dia, numa daquelas quartas ou quintas-feiras, o Senhor Wilson entrou-me no minúsculo gabinete, que era por baixo das bancadas e por cima dos balneários, cumprimentou-me elegantemente como se eu fosse alguém e pediu-me se podia usar o telefone para ligar para Lisboa, para a Federação Portuguesa de Futebol. Eu teria para aí uns 21 ou 22 anos e "dei-lhe" autorização, armado em parvo como só naquela idade. Depois de conseguir resposta do lado de lá da linha, o Velho Capitão pigarreou, cofiou a barbicha, foi ao bolso do casacão de cabedal, rapou de um guardanapo de papel marcado com beiçadas de verde tinto, vamos um supor, estendeu-o em cima da minha secretária, alisou-o o melhor que pôde e começou a ditar para a capital o que lá escrevera eventualmente ao almoço. Eram nomes, uma lista, a convocatória para a Selecção Nacional na campanha de apuramento falhado para o Europeu de 1980, em Itália. Exactamente: a Selecção de Portugal estava no guardanapo de Mário Wilson...

P.S. - O Vitória Sport Clube, Vitória de Guimarães, foi fundado no dia 22 de Setembro de 1922.

sábado, 21 de setembro de 2024

Gaspar, o recordista passou por aqui

Foto Zerozero
Gaspar, que defendeu as cores da AD Fafe na época de 1976/77, é o mais jovem guarda-redes de sempre a estrear-se na primeira divisão do futebol português. Fê-lo aos 16 anos, na baliza do Atlético, na temporada de 1966/67. E o recorde não se me afigura fácil de bater.
Internacional júnior por Portugal, Gabriel Gaspar estava já no SC de Braga quando, na recta final do campeonato de 76/77, veio emprestado para Fafe, para substituir o velho Antenor, que se lesionara. E foi a nossa sorte. Recebemos um grande guarda-redes para o lugar de um guarda-redes grande.
Gaspar, no treino e em jogo, era impressionante. A par de Quim, terá sido certamente o melhor guarda-redes que eu vi defender as balizas da AD Fafe. No final da temporada foi embora, evidentemente, mas antes ainda teve tempo de luzir a grande altura na nossa primeira meia-final da Taça de Portugal, contra o FC Porto, no Estádio das Antas, numa quarta-feira à noite de todas as memórias, os jogadores em campo a estrearem um equipamento futurista, de encher o olho, tipo "Espaço: 1999", e nós ali em peso no Superior Norte, orgulhosos, barulhentos e com uma pontinha de fé.
Perdemos brilhantemente por 3-0, com 1-0 ao intervalo, para nós, os das bancadas, foi praticamente um empate, pelo menos um empate, e viemos para casa todos contentes, com a honra intacta, ainda orgulhosos, ainda barulhentos e ainda com uma pontinha de fé, ai se não fosse aquele penálti...
Gaspar fez um jogaço, só não defendeu o impossível. No jornal A Bola, o jornalista Alfredo Barbosa fazia título de página inteira, a duas linhas: "Uma exibição memorável do guarda-redes Gaspar".
O FC Porto, treinado por José Maria Pedroto, alinhou com Torres, Rodolfo (Gabriel), Teixeira, Freitas e Murça; Octávio, Celso e Oliveira (Ailton); Seninho, Duda e Gomes. Uma equipa de champions, como hoje se diria.
O Fafe, orientado por Nelo Barros, apresentou-se com Gaspar, Lopes, Teixeira, Castro e Leitão; Manuel Duarte, Romão e Valença; Cartucho, Edvaldo e Jorge. Tomaram muitos, hoje em dia, uma equipa assim na primeira liga. E foi bonito de ver o Leitão todo o jogo à procura do supersónico Seninho, mas só lhe acertava de vista.
No ano seguinte, já sem Gaspar, haveríamos de repetir a façanha, a meia-final da Taça, contra o Sporting, em nossa casa, e outra vez o caralho do penálti, mas isso agora são outros quinhentos...

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Fafismos.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Sarapintando


Ele era um extraordinário ciclista e não fazia caso à gramática. Dizia que gostava de correr "isolado, sozinho, sem mais ninguém", porque depois, na meta, "cada cal é cada cal e cada um sarapinta como pode". Não fazer caso da gramática fazia parte de ser ciclista antigamente. Ele venceu uma Volta a Portugal e era do meu FC Porto e das minhas memórias. Carlos Carvalho. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente anos mais tarde, eu moço, ele já reformado do pelotão mas não das bicicletas. E então o meu gigante das estradas era aquele homenzinho? Aquilo é que era o colosso de rodas? Era. E fiquei a admirá-lo ainda mais, como quem admira um fazedor de impossíveis.

Em 1976 a AD Fafe resolveu de repente montar de raiz uma equipa de ciclismo e apresentar-se à Volta a Portugal. Não terá sido bem a AD Fafe, mas algumas pessoas ligadas à AD Fafe e amantes das bicicletas, e tudo foi feito em cima do joelho, como convém às grandes empreitadas. Foi-se ao refugo do pelotão nacional e arranjaram-se dois ciclistas e mais dois ou três acompanhantes e desistentes garantidos. Os ciclistas eram o jovem António Alves, que posteriormente brilharia ao serviço do FC Porto, do Coimbrões de mestre Emídio Pinto, se não me engano, e do Boavista, entre outros clubes, e Manuel Martins, fafense de Golães e irmão mais novo do campeão José Martins. Dos outros, infelizmente, não reza a história. Foi-se praticamente à sucata e arranjou-se um velho Mercedes que seria, por assim dizer, recuperado e "preparado" para carro de apoio na garagem do Zé Bastos, ao lado dos antigos Bombeiros. O veículo, que avariava muito bem e parou vezes sem conta nas voltas da Volta, sobretudo quando fazia mais falta aos corredores, era o único acrescento logístico da equipa e seria guiado pelo Fredinho Bastos, condutor experimentadíssimo em corridas mas de automóveis. E foi-se a Pousada de Saramagos, Famalicão, tentar contratar um "treinador".
Uma embaixada fafense deslocou-se à loja-oficina de Carlos Carvalho, que ficava ali à face da estrada nacional, quem depois vira para o campo de futebol do Riopele de má memória pelo menos para nós. Iam talvez o grande Chico Marinho, de quem um dia falarei à parte, o despachado Machadinho, que também já era cobrador da AD Fafe, desse tenho a certeza, não sei se o Fredinho, o David Alves e o seu irmão Gabriel, eventualmente, e por certo alguém da direcção. Posso garantir é que eu fazia parte dessa delegação de alto nível, como modesto observador e porque, tratando-se de Fafe, naquele tempo da minha juventude eu ia com toda a gente para todo o lado. Em Fafe, não sei porquê, estive no meio de tudo ou tudo passou por mim. Fui portanto um espectador privilegiado da história da nossa terra naqueles anos imediatamente antes e após o 25 de Abril de 1974. Ou então, também admito estoutro ponto de vista, fui apenas um considerável emplastro, mas quase sempre a convite, é preciso que se note.

P.S. - A Volta a Portugal chega hoje, mais uma vez, a Fafe. Ontem foi em Paredes. E é curioso, lembro-me agora: naquele ano de 1976, por causa da nossa equipa, fomos ver a chegada precisamente a Paredes, no dia 21 de Agosto, o David, o Gabriel, creio que também o campeão José Martins e eu, evidentemente na pendura.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Chamavam-lhes "Águias-Clok"

No tempo do Valença, do Castro, do Cândido, do Leitão ou do Albano, só para nomear alguns, chamavam "Águias-Clok" à equipa de reservas da AD Fafe, isto é, aos crónicos suplentes e outros supranumerários que, a meio da semana, faziam o habitual "treino de conjunto" contra os titulares. "Águias-Clok", chamavam-lhes, era no gozo, dito e repetido até à exaustão, uma espécie de praxe para deixar bem vincada, de cima para baixo, a diferença entre os jogadores de futebol, os verdadeiros jogadores de futebol, e os "ciclistas", os "jogadores de futebol" que apenas corriam, atrevidos a quem a bola eventualmente estorvava, isto lá na gramática deles, e todos se entendiam, que remédio, sobretudo do lado dos mais novos.
Na verdade, Águias-Clok foi uma equipa de ciclismo que existiu mesmo, ligada ao histórico Clube Desportivo "Os Águias", de Alpiarça, com o patrocínio da cerveja Clok, Águias-Clok, portanto, um projecto desportivo meteórico que apareceu em 1977, fez a Volta a Portugal de 1978, com resultados até bastante interessantes, mas desfez-se logo no final desse mesmo ano. E não pensem que era um grupo de aleijados, nada disso, daquele plantel irrepetível faziam parte nomes tão marcantes da velocipedia nacional como Marco Chagas, Alexandre Rua, António Marçalo, Joaquim Carvalho, Joaquim Andrade ou Jacinto Paulinho, entre outros.
Pois em Fafe, no campo de futebol, "Águias-Clok" eram "os mais fracos", os "ciclistas" da bola, os das reservas, ex-juniores e outros jovens, maioritariamente fafenses, à procura ou à espera de uma oportunidade. A brincar, a brincar, o rótulo fora-lhes colado pelos mais velhos, os "craques" da equipa principal, quer-se dizer, os instalados da vida, sei lá eu se com receio de que algum dos miúdos, mais capaz e afoito, se lembrasse de repente de lhes roubar o lugar e as mordomias concomitantes.
Lembro-me do Moreno e do Tintas. Lembro-me de muitos mais jovens e promissores jogadores desse tempo, na nossa AD Fafe, para prefiro passar os olhos apenas pelas histórias do Moreno e do Tintas, a título de exemplo e porque eram ambos das minhas confianças. Que injustiça chamar-lhes "ciclistas"! Eram bons de bola, os dois, ainda que completamente diferentes um do outro, o Moreno, médio levezinho, com visão, habilidade e passe, e o Tintas, defesa lateral, mais físico e irreverente, às vezes rematador. O Moreno, se não estou em erro, ainda passou pelo Vianense e voltou, e o Tintas, que chegou a prestar provas no FC Porto ou andou por lá perto, era a vítima preferida do treinador Júlio Teixeira, que também padecia de uma grande pancada, chutava descalço, falava pelos cotovelos e dava a táctica para a bancada.
Se o Tintas e o Moreno engataram depois um percurso particularmente brilhante como jogadores de futebol, coisa constada, pelo menos ao nível dos cinco nomes lá de cima? Isso parece-me que não, ou então estarei mal informado. O Moreno e o Tintas tinham todas as capacidades físicas e técnicas para o sucesso, para altos voos, mas faltava-lhes, estou em dizer, um bocadinho de vocação. Um bocadinho assim. Talvez, ao fim e ao cabo, eles não estivessem realmente para ali virados.
Se, por causa do futebol, o Moreno e o Tintas foram, em última análise, dois excelentes ciclistas que se perderam? Não creio. Atleticamente falando, o Tintas desembaraçava-se com assinalável destreza no bilhar do Café Arcada, disso lembro-me bem, mas também não sei se seguiu carreira...

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Bola baixa, que o guarda-redes é anão

É goleiro no Brasil e guarda-redes em Portugal, o que em certa medida explica logo à nascença a suprema necessidade e a utilidade sem medida dessa coisa escaganifobética e sonsa a que certos doutores chamam acordo ortográfico. Falando à nossa moda, o guarda-redes é-o, regra geral, porque, no que diz respeito à bola, não serve para mais nada, não joga um caralho, não dá uma para a caixa, é um trambolho, um cepo, um arrocho, e por isso vai para a baliza. Exactamente: o arrocho vai para a baliza. Ali pelo menos não estorva. E grita a torto e a direito "Sainde da frente!, Sainde da frente!", desarrumando imaginárias barreiras no miserável recreio da Escola Conde de Ferreira, no largo da Feira Velha ou entre as aprazíveis tílias do Santo Velho, fazendo todo o cuidado aos vidros da Milinha Modista, isto era em Fafe mas podia ser no Maracanã ou no Prater de Viena, era só pensar e escolher. Sei muito bem do que falo, da maneira de ser arrocho. E falo orgulhosamente por experiência própria, não sendo o único.
Albert Camus, Arthur Conan Doyle, Karol Wojtyla, conhecido como papa João Paulo II, que foi eleito santo, Che Guevara, Julio Iglesias e até Luís Marques Mendes tentaram ser ou foram mesmo guarda-redes. Do Luisinho lembro-me eu muito bem, nas camadas jovens da nossa AD Fafe, que agora tem uma extraordinária SAD que parece que vai para Felgueiras, suponho que na velha carreira, ida e volta todos os dias, como faziam antigamente as pessoas sérias, isto é, as pessoas que têm só uma família e trabalham...
Duas das melhores definições sobre o guarda-redes, digo eu, terão sido elaboradas pelos escritores Eduardo Galeano e Nelson Rodrigues. "Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito", sentenciou o uruguaio. Já o brasileiro Nelson Rodrigues afirmou um dia - "Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários."
Por mim, o que continua a interessar-se particularmente no ofício de guarda-redes é tentar perceber esse mistério do homem que entra em campo como "guardião", sim, chamam-lhe guardião, e sai do campo como "frangueiro", sim, chamam-lhe frangueiro, ao ex-guardião. Frangueiro e filhodaputa. E penso na desgraça que aí vai a respeito de Adán, o intermitente guarda-redes do Sporting.

É preciso que se note, o menosprezo pelo guarda-redes não é de agora, vem desde o tempo da invenção do futebol. O guarda-redes nunca constou de esquemas tácticos, não entra nos fundamentos do jogo. Eram "onze contra onze", ficou estabelecido, mas o guarda-redes, nem que fosse "o melhor do mundo", não contava para o totobola. O guarda-redes era uma espécie de Santa Bárbara (embora esse fosse do andebol), só se lembravam dele quando acontecia penálti. De resto, havia o 1-1-8, o WM, o 4-2-4, o 3-4-3, o 4-3-3 e o 3-5-2. Sobretudo. E é só fazer as contas, somar os algarismos e ver que dá dez, não onze. Até W mais M é igual a dez. O "onze contra onze" é uma fraude - eram dez contra dez e era um pau, e a bola era redonda mas nem sempre. Essa é que é essa. E hoje em dia, por mais losangos, faixas e terços do terreno que inventem, a desconsideração continua. O guarda-redes só é necessário porque é preciso um bode expiatório. E, no entanto, ele houve e há grandes guarda-redes, autênticos salvadores da pátria, valha-me Deus!

David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem o italiano Dino Zoff, nem outros de semelhante calibre - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de mais recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. Isso mesmo. O David era inteligente, culto e visionário, carismático, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com um par de décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Pensador por natureza, pedagogo, ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes para assistir. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era um acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Para ensinar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos grandes jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. Lembrei-me dele e deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, numa idade em que devia ser proibido morrer. O David morreu e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...

Já disse. Qualquer dia, quando eu estiver pronto, espero escrever a sério sobre David Alves, o nosso David Alves, guru natural e sem querer de uma ou duas gerações de jovens fafenses. Fomos uns sortudos!

E, para fechar com chave de ouro, uma extraordinária curiosidade. Dino Zoff e Sepp Maier, dois dos melhores guarda-redes de todos os tempos, nasceram no mesmo dia, com uma diferença de dois anos. E estão hoje de parabéns. O italiano, o mais velho jogador de futebol a ser campeão do mundo, nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1942 e disputou 112 jogos pela Squadra Azzura. O alemão nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1944, jogou sempre no Bayern Munique e actuou 95 vezes pela selecção de seu país.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

E o árbitro saiu fardado de polícia


O grande Costeado. João Costeado, que, veio ontem nos jornais, regressa ao seu Vitória de Guimarães para tomar conta da braçadeira que o treinador Paulo Turra não pode usar. O grande Costeado, que jogou no meu Fafe na passagem da década de 1970 para a década de 1980 e que brilhou naquela extraordinária equipa de Nelo Barros que fez frente ao Sporting nas meias-finais da Taça de Portugal e que era assim, tal como a anunciei aos altifalantes do estádio cheio como um ovo: Zé Maria, Costeado, Cândido, Castro e Manuel Fernandes; Albano, Sousa Pinto e Valença, Valdemar, Daniel I e Nogueira. Que luxo! Que máquina! Quem no-la dera naquele ano administrativo em que fomos cheirar a primeira divisão! Nem teríamos descido, digo eu...
Mas a tal meia-final da Taça, e já era a segunda em apenas três anos. Nós na segunda divisão, que era o nosso sítio, e o Sporting que era o Sporting. Foi na época de 1978/79, no nosso campo, e roubaram-nos a glória da final no Jamor, ou pelo menos a hipótese de um segundo jogo em Alvalade, roubaram-nos, dizia, com um penálti produzido pelo árbitro e convertido por Jordão aos 94 minutos, isto é, já no prolongamento. A peregrina falta que deu origem ao castigo que teve tanto de máximo como de injusto foi assinalada, imaginem, ao nosso Costeado.
O João era uma riqueza de moço. E o Costeado, que depois até jogou quatro vezes pela Selecção, à pala de Saltillo, era um defesa direito velocista porém tecnicamente equilibrado, raçudo e amiúde sarrafeiro. Mas estava inocente naquele dia, diga-se em abono da verdade. A Bola, o insuspeito jornal do Benfica, fazia até notar que o árbitro "julgou mal o famigerado lance de Costeado, conferindo-lhe, primeiro, uma natureza e uma intencionalidade, depois, que a nosso ver não teve", e parece que estou a ouvir o Joaquim Rita, com vírgulas e tudo.
Ora bem. Acontece que naquele tempo não havia VAR, o que não era mau de todo, porque assim também não avariava, mas não havia VAR. O VAR daquele tempo eram o Carlos Manuel ou o André a andarem sempre à volta do árbitro a dizerem o que devia ou não devia ser marcado, e nunca falhava. À falta do Carlos Manuel e do André (e, já agora, do Bruno Fernandes, que é actualmente VAR em Inglaterra), o próprio Costeado deu conta do recado, colando-se ao juiz da partida, Santos Luís, agarrando-o respeitosamente pelo avental, pedindo-lhe, rogando-lhe, rezando-lhe, implorando-lhe, jurando-lhe, repetindo-lhe quase em lágrimas, estou em dizer que mesmo em lágrimas - Eu nem lhe teni, senhor árbitro! Nem lhe teni, senhor árbitro! Nem lhe teni!...

O árbitro, o senhor árbitro, não reverteu a decisão. Chamaram-lhe "o roubo do século". Conta A Bola que "Santos Luís saiu fardado de polícia". E Costeado, baptizado pelo Valença, ficou o "Teni"...

(Texto publicado originalmente no meu blogue Fafismos)

sábado, 26 de agosto de 2023

Excelentíssimos senhores jogadores de futebol

Foto enviada por Adelino Teixeira, ex-jogador da AD Fafe

Esta fotografia, esta extraordinária fotografia que o Adelino Teixeira fez o favor de enviar-me, vai dar-nos pano para mangas. Voltará aqui certamente mais vezes para ser dissecada até à exaustão, porque ela bem o merece, mas por hoje foco-me apenas na primeira coisa racional que me veio à cabeça logo que me passou a emoção de a ter recebido. "Olha-me estes tipos! Olha-me que categoria! Que classe!", pensei, sem me ter apercebido de que tinha falado alto, e a minha mulher acudiu aflita a ver o que era e concordou logo comigo, que nem é a sua especialidade.
Este é um documento de 1966 e apresenta a comitiva da AD Fafe posando nas escadarias de Santa Luzia certamente antes de um jogo contra o Vianense que acabaríamos por perder por 5-0, mas esta última parte não interessa para nada. O Adelino, que consta no retrato, atrás do Gil Lobo e do Costa, quis que eu tivesse finalmente um registo do Nelinho, como era meu desejo antigo, fez-me a gentileza e o grande Nelinho cá está na primeira fila, com o Dr. Marques Mendes, o Barrinhos e o Zeca Barros.
No pólo oposto, lá em cima, ainda dá para reconhecer o menino Berto Dantas na galhofa com o João Americano, realmente um pândego que se ouvia a quilómetros, tanto que até foi para o Riopele. E o Toneca. O Toneca, com quem tive a honra de acamaradar anos mais tarde numas belas saltadas à Pica para despacharmos numa fervurinha dois ou três quartilhos de tinto. O Toneca tomava conta da piscina e eu, moço de 21 ou 22, fazia a secretaria do Fafe. Fechávamos portas e lá íamos de motorizada com aqueles capacetes de plástico cómicos e irrelevantes enfiados na cabeça, o velho Toneca à frente e eu atrás, agarrado a ele. Era ir num pé e vir no outro. Mas isso já é outra história e por acaso dá-me saudades...
A fotografia, que é o que aqui interessa. A fotografia e os jogadores de futebol. Que conjunto perfeito! Um grupo onde nem faltam o motorista da Mondinense nem, espero estar a ver bem, o bom do Silvino, todo tirone. Num tempo em que não havia "fatos oficiais", em que os jogadores corriam por gosto, num amadorismo quase perfeito, assim se apresentavam, asseados por conta própria, os formidáveis representantes da AD Fafe, da vila e do concelho de Fafe, em última instância, por esse país fora. Não me lembrava disto assim, juro. Reparem na magnífica planta destes jovens! Que aprumo! Que pinta! Todos eles, a equipa completa, sem excepção, mas permitam-me que volte ao Costa, porque sobressai. O Costa, que toda a vida foi um homem elegante, em todos os sentidos, olhem bem para ele, é o primeiro da direita de quem vê na segunda fila, façam o favor de notar a presença, apreciem a pose - parece um modelo de catálogo, um artista de cinema. Tomaram muitos...

P.S. - Foto e texto publicados originalmente no meu blogue Fafismos.

domingo, 20 de agosto de 2023

O Febras levava tudo à frente

O Febras, o Armando Febras de Fafe, guiava um velho camião geralmente cheio de areia e era a única pessoa que eu conhecia que "fez a guerra" em Timor, se não me engano. Diga-se, para princípio de conversa, que o Febras era um tipo porreiro, bom amigo, e tinha uma grande pancada naquele tempo. Uma vez falhou a gasolina em Fafe e no resto do País, segundo as notícias, e os carros faziam longas filas que davam duas ou três voltas ao Largo para abastecer. O centro mais central da vila estava armadilhado com três bombas de gasolina, duas das quais, Sonap e Mobil, encostadas uma à outra, lado a lado, como na cantiga do Tony de Matos. Os condutores desligavam os carros, saíam e empurravam a respectiva viatura consoante a fila ia avançando a conta-gotas. O Febras tinha o camião apontado exactamente àquele par de bombas muito bem estabelecidas ali entre o Monumento e o Martins da Avenida e não largava o volante, até porque lhe faltava disposição para descer e levar o veículo pelas orelhas. Aquilo era preciso madrugar para garantir um bom lugar na fila, havia até quem fosse para lá de véspera, portanto é bom de ver que pelo meio da manhã já estava tudo com os nervos em frangalhos. E o que é que acontece? Assim que tal, a fila anda um bocadinho, metro, metro e meio, mas o carro imediatamente à frente do Febras nem se mexe. O Febras buzina. E o carro, nada. O Febras torna a buzinar. E o condutor do carro faz aquele sinal internacional descrito no código da estrada como "passa por cima". E o Febras arranca. Evidentemente não passa por cima do carro, isso só ocorre nos filmes americanos, mas leva-o à frente, empurra-o de zorra, um metro, metro e meio. O Febras sai então do camião, disposto à pancadaria, a polícia, que rondava por ali, faz de conta que intervém para evitar males maiores, mas nem toma conta da ocorrência, e fica tudo em águas de bacalhau, porque, lá está, era o Febras, e o que é que se havia de fazer?...

Curiosamente, anos mais tarde, o Armando Febras viria a ser agente da autoridade local e parece que ainda emigrou para a América, onde não sei se realmente chegou a passar por cima de automóveis. Mas antes disso, em Abril de 1977, ele fez parte de um extravagante grupo de fafenses que foi a Lisboa de camioneta para apoiar a AD Fafe no famoso jogo com a CUF para a Taça de Portugal. Desse bando, que viveu uma noite maluca pelas ruas do Bairro Alto, com a polícia atrás e tudo, constavam também, entre outros, o meu irmão Pimenta, que certamente organizara a excursão, o Machadinho e o Manel Caixeiro maila sua inseparável pistola. Eu não podia faltar, mas era o mais novo e inocente de todos, posso talvez dizê-lo. Esta parte da história fica, porém, para outra vez.
Quero contar é do amigo do Febras que veio ter connosco ao Campo das Cebolas, que era o sítio onde as camionetas das excursões pernoitavam. Um velho camarada de armas do Armando e a segunda pessoa que eu conheci que "fez a guerra" em Timor, se não estou em erro. Falava com cerrado sotaque lisboeta, alfacinha, malandro, gingão, "gajas" acima, "gajas" abaixo, tinha ouro ao pescoço, anéis, camisa havaiana, botas de cobói, navalha de ponta e mola e um suspeitíssimo Ford Capri que fazia piões de porta aberta.
Isso. Piões de porta aberta. Tantos, tão apertados e a tal velocidade, que no decurso de um deles o indivíduo saiu disparado do automóvel, caiu violentamente no chão, bateu com a cabeça, levantou-se de imediato como uma mola, num improvável pulo de kung fu, soltou um grito de guerra, sacudiu o pó da roupa, entrou no carro, que continuava a andar em círculo, fechou a porta e arrancou a todo o gás em direcção ao sol poente.
E eu passei a compreender muito melhor o Armando Febras.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Sainde da frente!...

Hoje é Dia do Goleiro. No Brasil. Se fosse em Portugal, seria Dia do Guarda-Redes, o que em certa medida explica logo à nascença a suprema necessidade e a utilidade sem medida dessa coisa escaganifobética e sonsa a que certos doutores chamam acordo ortográfico. Falando à nossa moda, o guarda-redes é-o, regra geral, porque, no que diz respeito à bola, não serve para mais nada, não joga um caralho, não dá uma para a caixa, é um trambolho, um cepo, um arrocho, e por isso vai para a baliza. Ali pelo menos não estorva. E grita a torto e a direito "Sainde da frente!, Sainde da frente!", desarrumando imaginárias barreiras no miserável recreio da Escola Conde de Ferreira, no largo da Feira Velha ou entre as aprazíveis tílias do Santo Velho, fazendo todo o cuidado aos vidros da Milinha Modista, mas podia ser no Maracanã ou no Prater de Viena, era só pensar e escolher. Sei muito bem do que falo. E falo orgulhosamente por experiência própria, não sendo o único.
Albert Camus, Arthur Conan Doyle, Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, que foi eleito santo, Che Guevara, Julio Iglesias e Luís Marques Mendes tentaram ser ou foram mesmo guarda-redes. Do Luisinho lembro-me eu muito bem, nas camadas jovens da nossa AD Fafe, que agora tem uma extraordinária SAD que parece que vai para Felgueiras, suponho que na velha carreira, ida e volta todos os dias, como faziam antigamente as pessoas sérias, isto é, as pessoas que têm só uma família e trabalham...
Sobre guarda-redes, percebia muito o David Alves, como sabia também da vida. E eu já aqui contei. E também já passei a limpo duas ou três definitivas ideias que concatenei sobre a problemática guarda-redística e suas derivadas e concomitantes subjacências. Embora, não é para me gabar, eu seja geralmente brilhante, admito que duas das melhores definições sobre o guarda-redes terão sido elaboradas pelos escritores Eduardo Galeano e Nelson Rodrigues. "Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito", sentenciou o uruguaio. Já o brasileiro Nelson Rodrigues afirmou um dia - "Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários."
Por mim, o que continua a interessar-se no ofício de guarda-redes é tentar perceber esse mistério do homem que entra em campo como "guardião", sim, chamam-lhe guardião, e sai do campo como "frangueiro", sim, chamam-lhe frangueiro, ao ex-guardião. Frangueiro e filho da.

Eu não dei para nada, nem para guarda-redes. Fui sempre uma nódoa, futebolisticamente falando, desportivamente falando. Mas sei muito bem de quem tinha jeito para tudo, era só chamá-lo, dar-lhe a experimentar, fosse o que fosse, e ele, pimba, era imediatamente um sucesso. Sem ir mais longe, chamo aqui, a esse propósito, o testemunho parceiro de Francisco Assis Pacheco, nas suas "Memórias de Um Craque". E ele conta assim:

De como fiz a minha iniciação desportiva, hesitando entre a arte de guarda-redes e a de pedróbolo da quinta do Lopes

O Eusébio marca livres de 30 metros, o Artur Jorge chuta em moinho, o Dinis faz fintas à bandeirola de canto, mas eu fui o maior craque da Rua Guerra Junqueiro e está para nascer um sucessor digno desse título.
A Rua Guerra Junqueira continua no mesmo sítio, isto é, em Coimbra, capital da Beira Litoral, e creio que já de nascença tinha o quintal do Luís Marques (12x2,5m) com a parede do prédio à esquerda de quem desce as escadas e um muro infelizmente não muito alto à direita, que era por onde galgávamos para o quintal do Lopes à procura da chincha. Uma tarde, estava o craque nos cinco anos, ouviu-se a frase entre todas decisiva:
"E se o miúdo jogasse à baliza?"

Vi-me subitamente presenteado com um boné e dois lenços de assoar para as joelheiras. A maltózia era mais velha, nove, dez anos, e num relance percebi que o meu futuro desportivo, assaz brilhante nas épocas seguintes, poderia nem sequer começar. Ora como isto de futebóis mais vale um mergulho para o fotógrafo do que dois meses no banco dos suplentes, o craque enfiou o boné bem enfiado na tola, arreganhou o pior dos sorrisos (grr!) e dispôs-se a gravar o nome completo sobre o cimento do quintal. É claro que a minha equipa ganhou: nem seria nunca de outro modo, pois logo à pri­meira investida do Tó Mané Magalhães esfola gatos mata cães fui­-me a ele, encostei delicadamente a biqueira do sapato esquerdo ao tornozelo do artista, fiz força (uma força "do catarino", como então se dizia) e apliquei-lhe o acelerador com algumas ganas e sobeja intenção de brilhar. O Tó Mané desandou para as escadas agar­rado ao tornozelo. Perguntaram-lhe se queria que trouxessem a bilha de água.
"Quero, pois", urrou. "Quero a bilha e quero um calhau pra partir os focinhos a esse gajo do cento e dezoito!"
Nessa tarde, afora o incidente relatado supra, correu tudo à me­dida dos meus mais veementes desejos: cinco defesas em reboleta, três por cima das sardinheiras, enfim um penáltie socado por cima do muro que ainda estou a ver o Luís Marques muito chagado ex­plicando-me assim:
"Vais lá tu que é pr'aprenderes a não armar ao Barrigana, òviste?" Fui, sim senhor, e deliciado. Daí a pouco terminava o prélio: vi­tória dos Portas Pares, um convite ad aeternum para aparecer sempre que entendesse. Durante mais de sete anos não faltei ao compro­misso.

Como depois da jogatana era preciso secar as camisas, Luís Marques e seus muchachos costumavam trespassar-se até ao quin­tal do Lopes e entreter os derradeiros ócios antes da sopa da noite com um exercício de arremesso. Destarte me tornei o mais artilheiro dos pedróbolos da rua, com um saldo de catorze gatos só na semana de estreia. Quando ouço contar que o Zsivotzky lança o martelo a - setenta metros e tal, batendo com isso os máximos reconhecidos e a reconhecer, debruço-me na janela da Travessa do Patrocínio e,

deitando a bia fora, ponho-me a pensar em quanto é cruel o mundo dos homens. Um recordista mundial que não dá nem uma calhoada num gato - então isto chama-se pontaria?

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

O Febras, de Timor ao Campo das Cebolas

A menina dos altifalantes avisa-me, numa voz metálica e sincopada, de andróide: "Próxima paragem, Timor." Sobressalto-me, de repente o coração enche-se-me de egrégios avós, de coragem que nunca tive, às armas às armas, digo, maubere people, canto, emociono-me de mim, Ai Timor!, os olhos afogados em lágrimas, olho pela vigia, o mar calmo e eu agoniado, faço as últimas orações, seja o que Deus quiser, dou o peito às balas... e dou também fé que estou no 500, o autocarro da STCP que faz a ligação entre o Mercado de Matosinhos e a portuense Praça da Liberdade, viceversando. Para quem vai, Timor, a paragem da Rua de Timor, fica entre as paragens do Castelo do Queijo e do Homem do Leme, Avenida Montevideu, Foz, e antes assim.

É claro que me lembrei também do Febras, do Armando Febras de Fafe, que guiava um velho camião geralmente cheio de areia e era a única pessoa que eu conhecia que "fez a guerra" em Timor, se não me engano. O Febras era um tipo porreiro, bom amigo, e tinha uma grande pancada naquele tempo. Uma vez falhou a gasolina em Fafe e no resto do País, segundo as notícias, e os carros faziam longas filas que davam duas ou três voltas ao Largo para abastecer. Os condutores desligavam os carros, saíam e empurravam a respectiva viatura consoante a fila ia avançando a conta-gotas. O Febras tinha o camião apontado àquelas bombas muito bem estabelecidas ali entre o Monumento e o Martins da Avenida e não largava o volante, até porque lhe faltava disposição para descer e levar o veículo pelas orelhas. Aquilo era preciso madrugar para garantir um bom lugar na fila, havia até quem fosse para lá de véspera, portanto é bom de ver que pelo meio da manhã já estava tudo com os nervos em frangalhos. E o que é que acontece? Assim que tal, a fila anda um bocadinho, metro, metro e meio, mas o carro imediatamente à frente do Febras nem se mexe. O Febras buzina. E o carro, nada. O Febras torna a buzinar. E o condutor do carro faz aquele sinal internacional descrito no código da estrada como "passa por cima". E o Febras arranca. Evidentemente não passa por cima do carro, isso só ocorre nos filmes americanos, mas leva-o à frente, um metro, metro e meio. O Febras sai então do camião, disposto à pancadaria, a polícia, que rondava por ali, faz de conta que intervém para evitar males maiores, mas nem toma conta da ocorrência, e fica tudo em águas de bacalhau, porque, lá está, era o Febras, e o que é que se havia de fazer?...

Curiosamente, anos mais tarde, o Armando Febras viria a ser agente da autoridade local e parece que ainda emigrou para a América, onde não sei se realmente chegou a passar por cima de automóveis. Mas antes disso, em Abril de 1977, ele fez parte de um extravagante grupo de fafenses que foi a Lisboa de camioneta para apoiar a AD Fafe no famoso jogo com a CUF para a Taça de Portugal. Desse bando, que viveu uma noite maluca pelas ruas do Bairro Alto, com a polícia atrás e tudo, constavam também, entre outros, o meu irmão Pimenta, que certamente organizara a excursão, o Machadinho e o Manel Caixeiro maila sua inseparável pistola. Eu não podia faltar, mas era o mais novo e inocente de todos, posso talvez dizê-lo. Esta parte da história fica, porém, para outra vez.
Quero contar é do amigo do Febras que veio ter connosco ao Campo das Cebolas, que era o sítio onde as camionetas das excursões pernoitavam. Um velho camarada de armas do Armando e a segunda pessoa que eu conheci que "fez a guerra" em Timor, se não estou em erro. Falava com cerrado sotaque lisboeta, alfacinha, malandro, gingão, "gajas" acima, "gajas" abaixo, tinha ouro ao pescoço, anéis, camisa havaiana, botas de cobói, navalha de ponta e mola e um suspeitíssimo Ford Capri que fazia piões de porta aberta.
Isso. Piões de porta aberta. Tantos, tão apertados e a tal velocidade, que no decurso de um deles o indivíduo saiu disparado do automóvel, caiu violentamente no chão, bateu com a cabeça, levantou-se de imediato como uma mola, num improvável pulo de kung fu, soltou um grito de guerra, sacudiu o pó da roupa, entrou no carro, que continuava a andar em círculo, fechou a porta e arrancou a todo o gás em direcção ao sol poente. E eu passei a compreender muito melhor o Armando Febras. 

P.S. - Hoje é Dia de Timor-Leste. Também chamado Dia dos Heróis Nacionais.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

O Senhor Manuel Duarte

Foto Carlos Barroso/Record

Quero contar-vos duas ou três coisas sobre um fafense excelentíssimo. Manuel Almeida Duarte chegou a Fafe em 1972, andaria pelos seus 27 anos de idade. Vinha do Varzim para jogar pela nossa AD Fafe, por nós, e era uma lenda. Formara-se na Académica, jogara também no Leixões, no Sporting e no FC Porto, mas a grande aura que o rodeava derivava do facto de ele ter integrado a célebre selecção portuguesa que conquistou o terceiro lugar no Mundial de 1966, em Inglaterra. Ao lado de Eusébio, Coluna, Vicente, Simões, Hilário, Torres, José Augusto e outros colossos. Sim, Manuel Duarte era Magriço.
E era um jogador caro, para as modestas posses da AD Fafe. Apesar de ter vindo do Varzim, Manuel Duarte mantinha vínculo contratual com o FC Porto, que suportava parte do seu ordenado. Quando a ligação aos portistas cessou, o equilíbrio financeiro foi encontrado com um segundo emprego. A grande estrela de futebol começou a trabalhar como "fiel de armazém" na estamparia Marigam, de Moisés Teixeira, que era então o presidente da AD Fafe. E não lhe caíram os parentes na lama.
Posso estar enganado, mas creio que foi assim que as coisas se passaram.
Com o seu invejável currículo debaixo do braço, Manuel Duarte poderia ter sido um indivíduo vaidoso, sobranceiro, inatingível, intratável, um estoura-vergas, um bronco. Mas era exactamente o contrário. Era uma pessoa culta, educada, elegante, recatada, gentil, modesta, um homem de família, marido e pai. Tinha classe.
O estilo nervoso do seu futebol contrastava flagrantemente com a pessoa calma que ele fazia questão de ser, ainda que às vezes lhe custasse. E ao juízo da generalidade dos fafenses, digo-o porque a sua memória merece que se diga a verdade, Manuel Duarte era muito mais consensual como pessoa, isto é, como cidadão, do que como jogador de futebol, amiúde mal-amado. Em todo o caso, devo acrescentar que nunca na vida vi em campo alguém mais generoso, mais esforçado, mais disponível, mais entregue ao jogo e à sua equipa do que Manuel Duarte no meu Fafe. Era um profissional de mão cheia, um exemplo para os colegas, novos ou velhos. Tanto que, no tempo em que não havia adjuntos, foi ele o escolhido para começar a dar os treinos, diariamente ao fim da tarde, enquanto o o velho mestre Nelo Barros não chegava do seu trabalho nos escritórios da Fábrica do Ferro.
E só agora tomo nota desta curiosa coincidência: a fábrica na vida destes dois grandes homens do futebol. Na Marigam, Manuel Duarte era mais um entre as operárias e os operários, que o adoravam. Era competente e atencioso, respeitador, simples, de humildade e bonomia desarmantes. Sei disto tudo porque um dia ele teve de deixar a fábrica, para ir treinar o Limianos, se não me engano, e eu fui substituí-lo.
Conhecíamo-nos da AD Fafe, onde eu biscatara, e coincidimos na Marigam durante um ou dois meses, não me lembro ao certo, para que o Manel me passasse a pasta. Aprendi tudo com ele e vim a perceber mais tarde que ele me ensinara tudo o que havia para ensinar sobre aquele ofício - e nem sempre se encontra este tipo de abertura e lealdade profissional. Dávamo-nos bem, entendíamo-nos às mil maravilhas, acredito que nos fizemos amigos, o Manel fez-me o mapa dos alçapões, orientou-me sobre o sitio e as pessoas, sobre o trabalho, sobre a vida. Tratávamo-nos por você, como se fôssemos iguais, ele era o Manel mas na minha cabeça eu via-o sempre como o grande senhor que ele era, o Senhor Manuel Duarte.
Vim para o Porto e uma vez encontrámo-nos no cinema, no Estúdio Foco, se bem me lembro, e aproveitámos a ocasião única para pormos a conversa em dia. Depois passaram-se os anos. Vi o Manuel Duarte mais três ou quatro vezes, em Fafe, pela Senhora de Antime. Interessante. Íamos ver passar a Senhora no mesmo sítio, no cruzamento com semáforos da minha velha rua, entre o Paredes e o Zé Manco, eu do lado do Palacete, e o Manel, sempre distinto, sempre Senhor Manuel Duarte, do lado do Santo Velho. O meu lado. Nunca atravessei a estrada para o abraçar, como no meu íntimo desejava. E não me atrevia, por pudor e respeito. Também por medo. Receava que o Manel não me reconhecesse, que já não se lembrasse de mim...
Manuel Almeida Duarte nasceu em 1945 na freguesia de Vale de Azares, concelho de Celorico da Beira. E é um fafense excelentíssimo. Um dos fafenses mais excelentíssimos que tive o privilégio de conhecer. Fafense por direito próprio, excelentíssimo com todo o mérito.

Millôr Fernandes dizia: "Morrer é uma coisa que se deve deixar sempre pra depois". E também: "A ocasião em que a inteligência do homem mais cresce, sua bondade alcança limites insuspeitados e seu carácter uma pureza inimaginável é nas primeiras 24 horas depois da sua morte". Eu tento alargar o prazo.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Augusto, o das botas amarelas

Depois de ter sido o primeiro imperador romano e de ter imperado forte e feio durante 41 anos, menos sete do que o fascismo português, e depois de ter morrido fará no próximo dia 19 exactamente 2008 anos, RIP, Augusto, também conhecido como Caio Otávio ou Caio Júlio César Otaviano, apareceu em Fafe de chuteiras amarelas ou vermelhas, consoante, fazendo-se passar por defesa direito. Estávamos às portas do 25 de Abril de 1974 e era ainda tempo de botas negras. Menos o Augusto, que ia ao secador todos os dias e disfarçava muito mal como jogador de futebol.
A augusta figura coincidiu na AD Fafe com memoráveis jogadores como Zé Maria, Neto, Costa, Leitão, Cláudio, Ismael, Martinho, Cândido, Manuel Duarte, Nino, Testas, Alfredo, Daniel Lopes ou Valença, recém-tornado do Ultramar. Só Augusto destoava, quer-se dizer.
No entanto, apesar daquele aspecto colorido e aprumadinho, Augusto, não sendo génio, era genioso. Uma vez, num "amigável" com o Vitória de Guimarães, pegou-se à pancada tenho na ideia que com o sardento Romeu, que também era de gancho e acabou por jogar mais tarde no Benfica, no Porto e no Sporting. O Augusto, não.
As chuteiras de Augusto estavam muito à frente do seu tempo, como hoje se sabe. E o cabelo de Augusto marcou uma época em Fafe. Na época seguinte, de facto, Augusto foi enganar para outro lado. Em Barcelos, no Gil Vicente, e depois disso a História perdeu-lhe o rasto.

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Agosto de 2019. Otaviano (mais tarde conhecido como Augusto) entrou em Alexandria, Egipto, no dia 1 de Agosto do ano 30 a.C. Já agora: o mês em que hoje entramos chama-se Agosto precisamente em honra do Augusto.

sábado, 21 de maio de 2022

No tempo dos ralis

Havia o Carpinteiro Albino. E havia o Albino Carpinteiro. Carpinteiro Albino era de Elvas, corria em automóveis e ganhou o primeiro Rali de Portugal, em 1967. Albino Carpinteiro era nosso, de Fafe e do Fafe, artista de mão cheia e faz-tudo municipal.