segunda-feira, 13 de abril de 2020

O beijo de narciso no sinal-da-cruz

Foto Tarrenego!

Quem viu o Sporting-Braga na TVI deve ter reparado: depois de apitar para dar início ao jogo, o árbitro Marco Ferreira benzeu-se. Fez o sinal-da-cruz, versão resumida, "Em nome do Pai", mão direita na testa, "do Filho", mão no peito ou barriga, "e do Espírito", mão no ombro esquerdo, "Santo. Amém", mão no ombro direito. Tudo mais ou menos como manda a Santa Madre Igreja. Mas depois acrescentou-lhe o beijinho na mão propriamente dita, em seu nome pessoal, numa espécie de auto-adoração canonicamente desautorizada, para não lhe chamar outra coisa. Coisa feia.
São os árbitros, são os jogadores, são os treinadores. Não passam sem a chupadelazinha no dedo, que - perdoem-me que lhes diga - vale tanto no Céu como a entrada em campo com o pé direito. Deus está realmente à coca, mas vê pouco futebol e também é Pai do pé esquerdo.
E não é só no futebol. Nas nossas igrejas, com cada vez menos fregueses, esta entorse litúrgica vem passando de geração em geração e os fiéis de hoje até acreditam que foi sempre assim, que é assim. Mas não é: o beijo em mão própria está a mais, não faz parte do sinal-da-cruz.
Eu acho que sei como é que isto tudo começou. No tempo em que a missa era em latim e o povo, que já se via à rasca para perceber o português, aproveitava para ir rezando terços atrás de terços enquanto o padre, de costas voltadas para o mundo, se ocupava naqueles Dominus vobiscum que eram lá um assunto entre ele e o pobre do sacristão, que ajudava o melhor que sabia sem saber muito bem a quê.
Parece que ainda ouço. (As igrejas ecoam, sabiam?) O terço era sonoramente ciciado por mulheres enfiadas em bigodes e lenços pretos, bzzz, bzzz, bzzz, num cochicho ao despique remetido directamente a Nosso Senhor, embora devesse levar Nossa Senhora no endereço. O comendador Santos da Cunha, que era governador civil de Braga e ia a Fafe aos casamentos e funerais dos ricos do regime, também fazia bzzz, bzzz, bzzz, mas com voz de trombone, de terço na mão ostensiva, durante a missa inteira, e já ela era praticamente toda em português. E se o senhor comendador fazia, e fazia que se soubesse, é porque era a Bem da Nação - naquele tempo não havia dúvidas a esse respeito.
Ora bem. No fim da reza, e independentemente do que o padre estivesse a fazer lá à frente e do ponto em que a missa fosse, as pessoas benziam-se e beijavam respeitosamente o crucifixo do terço, que levavam aos lábios entre o dedo polegar e o indicador. Beijavam a cruz, não a mão, fiz-me explicar? Mas estão a ver a confusão que dali saiu? E por falar em Braga: narcisismos, só se meterem bacalhau, está bem?

P.S. - Publicado originalmente no dia 13 de Maio de 2012. Hoje, 13 de Abril, é Dia Internacional do Beijo ou Dia do Beijo ou Dia Mundial do Beijo - uma sorrateira ironia nestes estranhos tempos de afastamento profiláctico. António Maria Santos da Cunha (1911-1972) foi presidente da Câmara de Braga durante doze anos, governador civil do distrito e deputado à Assembleia Nacional. Ia muito a Fafe e era amigo do Mendes Ribeiro da Fábrica do Ferro e de outros figurões locais da situação fascista. Santos da Cunha tem um monumento na Cidade dos Arcebispos, mas não tem retratos no Google. A fotografia lá em cima, feita em Fafe, nos Bombeiros, descobri-a e trabalhei-a eu. A sua estreiteza não faz justiça à largura do homem. Ah! Aos beijos, guarde-os para já com todo o carinho: ainda nos vão fazer um jeitaço, desejo que mais cedo do que tarde...

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