Há
pelo menos uma grande superficie do Porto que está a vender fressura às
pessoas como se fosse para dar de comer aos cães. Mas é para a mesa das
pessoas. As pessoas andam com fome e pedem a fressura. Nas lojas de
congelados, as cabeças de pescada foram cortadas ao meio e as caras de
bacalhau saem como pãezinhos quentes. As pessoas, que andam com fome e
nunca na vida cozinharam (e não sabem cozinhar), agora olham para umas
postas esquisitas, perguntam "que peixe é este?, é bom para quê?", os
funcionários dos frigoríficos fazem o papel respectivo, inventam no
momento um nome qualquer para o peixe e dizem que "é bom para o forno,
para fritar, para a brasa, para estufar, para caldeirada, é bom, muito
bom", e o peixe é uma merda mas as pessoas querem acreditar que é bom,
muito bom, porque é multifunções e muito mais barato do que o peixe a
sério e estão com fome. E levam. E são levadas. E está bem: o polvo e as
lulas agora são potas. Filhos da puta que nos puseram assim. Nos
talhos, o fígado para iscas e os ossos da suã são hits nacionais.
Os pescoços de frango também e as asas é um ar que se lhes dá. As
pessoas estão sem dinheiro e têm fome. As pessoas não têm emprego e as
que têm trabalham para pagar impostos.
A
ver se me faço compreender: sempre fui praticante de asas e pescoços de
frango, de ossos da suã, de iscas de fígado, de caras de bacalhau e de
cabeça de pescada, se for inteira. Fui e sou. Sei dar-lhes o valor e as
voltas: cá em casa são petiscos. Ainda não necessidade. À fressura
(deixem-se lá de malícias) é que nunca mais tornei.
E
em miúdo até era eu quem ia ao Talho, a mando da minha mãe, comprar "um
quarto de fresura" para a massa do almoço, "se faz favor". Só havia um
talho na vila, e por isso era com maiúscula, e não há uma mãe como a
minha. Se acham que é lugar-comum, isto da minha mãe, estão redondamente
enganados. Perguntem em Fafe, chama-se Alexandrina e vão ficar
admirados. Mas a minha mãe hei-de contá-la como deve ser mais lá para
diante.
Já sabem que éramos pobres.
Comíamos "fresura" porque era o mais em conta que havia aparentado com
carne para comermos à semana. Eu aprendi a gostar e gostava sobretudo do
rinca-rinca do cano. Já a parte do bofe fazia-me uma certa impressão e
ainda hoje sou contra as chiclas. Ao domingo comíamos bife, é preciso
que se note, porque a minha mãe tinha artes de ilusionista, truques de
economia. A minha mãe fazia comida muito boa e devia ser ministra das
Finanças.
A
minha mãe passou por muito e diz que o 25 de Abril foi o melhor que
aconteceu em Portugal. Isso e os títulos do FC Porto, que eram, a bem dizer, proibidos. A minha mãe não
admite marcha-atrás. "Pobreza era no tempo do fascismo", diz a minha
mãe, e os títulos do Benfica também eram. Mas, ó mãe, deixe lá o relato
só por um bocadinho: estamos de volta à "fresura"?
P.S. - Publicado originalmente no dia 20 de Outubro de 2012, tempo da troika. A minha mãe tem razão quanto ao 25 de Abril. E a fressura estará de volta à mesa dos portugueses, mais dia menos dia. O desemprego já chegou, a crise bate à porta e o aperto de cinto será fatal como o destino - chamem-lhe austeridade ou outro nome qualquer...
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