No tempo em que as pessoas falavam, as paredes tinham ouvidos. Mas as pessoas falavam, mulheres e homens, porque era preciso, falar era respirar, e não vai assim há tanto tempo. Os cafés, as mesas de restaurante costumavam ser sítios de conversa, de
tertúlia, de crítica, de protesto, de esgrima de argumentos. Ainda os nunos rogeiros e os marcelos rebelos de sousas não
tinham sido inventados pela televisão e já nós sabíamos tudo de tudo,
primeiro no Peludo
e depois no Peixoto, evidentemente em Fafe. Futebol, política, Mário
Soares e Álvaro Cunhal, pesca e caça, religião, padres fodilhões,
música, alterações climáticas, vinho, teoria da relatividade, teorias da
conspiração, medicamentos, bolo com sardinhas, gajas e automóveis,
festival da canção, rácios bolsistas e sobretudo motorizadas, Zundapp vs. Sachs, sabíamos na ponta da língua e cada qual dava a opinião que se impunha, a opinião definitiva.
Tínhamos pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e
até ângulos. Amontoávamo-nos em duas ou três mesas, perdíamo-nos noite
dentro naquela conversa transversal, ecuménica, polifónica, finamente
regada, em que toda a gente metia o bedelho, até os filhos da puta dos
bufos da Pide, que aproveitavam para incendiar o assunto a ver o que
aquilo dava. De uma forma geral, os bufos da Pide não eram nada bufos da
Pide: autoproclamavam-se, faziam-se passar por bufos da Pide, salazares
dos pequeninos, só para meterem medo, que era a coisa mais parecida
com sexo que conheciam, ou para pavonearem um poder que nunca tiveram,
nem em casa. Eram filhos da puta, isso é certo, e em Fafe havia.
O
25 de Abril de 1974 veio realmente liberalizar o paleio à roda do
cimbalino, mas nós nem precisávamos. Já há muito que falávamos pelos
cotovelos e comíamos tremoços. Ou cascas, à falta de conteúdo e de
dinheiro no bolso. Mas não interessava - a conversa, para nós, era tudo.
Portanto agora dá-me pena: de conversa, que é livre, estamos conversados -
acabou-se, até no café, parece-me impossível. Eu, que actualmente não
frequento, passo pelas montras e vejo: uma pessoa em cada mesa, cabeça
enfiada no computador portátil, telemóvel colado ao ouvido, dedo
saltitante a gatafunhar mensagens analfabetas e com carinhas redondas e
amarelas, ninguém conhece ninguém, ninguém fala com ninguém, parece
que estão todos proibidos uns dos outros.
Nos restaurantes, o mesmo
desconsolo. A família senta-se à mesa e ninguém pia. Vai-se ao bolso,
rapa-se do telemóvel (permitam-me que continue com a generalização, para
mim aqueles aparelhos que não distingo são todos telemóveis) e
ignora-se com assinalável obstinação o irmão do lado direito, o
padrinho do lado esquerdo, o pai e a mãe em frente, a avó na cabeceira
para pagar a conta, ainda por cima. E não são só os miúdos. Também os
graúdos, nomeadamente graúdas, cinquentonas, casadas assim assim ou
tias praticamente por estrear, esfregando, esfregando o ecrã da
lamparina mágica, vai ser desta que vão ser felizes...
É. As pessoas
julgam que falam umas com as outras, mas não falam. Aquela ideia
romântica de conversa morreu e foi enterrada. As pessoas hoje em dia
são perfis, esgotam-se na "conversa" com os "amigos" do Facebook
que não conhecem de lado nenhum, talvez valha uma pinadela. As pessoas
esbanjam todas as suas doutas opiniões, todos os seus espertíssimos
achismos, na Antena Aberta da rádio Antena 1 e no Fórum Sport TV.
(Desculpem-me o parêntese: para mim nem é dia nem é nada se não ouço o
que têm a dizer o senhor José Fonseca, 45 anos, informático, da
Amadora, sobre a problemática do 4-1-3-2 de Jorge Jesus, ou o senhor
Afonso Palheta, 53 anos, aposentado, do Marco de Canaveses, a propósito
da política de reflorestação do País.). Depois, as pessoas chegam ao
café, chegam à mesa do restaurante, ou chegam a casa, sítios da
conversa antiga, cara a cara com outras pessoas de carne e osso, e
ficam caladas e sós. Sós umas das outras. São criaturas sem assunto,
estão vazias: já disseram tudo e não era nada.
(Atenção! As
cascas de tremoços eram roubadas da mesa do lado e são, é preciso que
se note, o melhor que há logo a seguir aos tremoços propriamente ditos,
sobretudo em caso (e era o caso) de cotão nos bolsos. Melhor, só mesmo
lamber e raspar com os dentes o papel do pão-de-ló, que era a segunda
coisa melhor logo a seguir ao pão-de-ló propriamente dito, que eu via
ao longe uma ou duas vezes ao ano...)
P.S. - Texto publicado
originalmente no dia 17 de Agosto de 2016. E estamos na semana do 25 de Abril.
Sou teu fã. SEMPRE me divirto com o que escreves.
ResponderEliminar