Sou devoto dos prazeres da mesa. Gosto da liturgia de uma boa refeição, em família ou com amigos, gosto de comer, gosto do que é bom, e sei o que é bom. Também sei fazer. Sou um apaixonado pela boa e honesta cozinha portuguesa. Gosto da cozinha portuguesa tal qual ela é, na sua pureza original: tradicional, apurada, robusta, variada, generosa. Um bom prato, uma especialidade daquelas de trás da orelha, é capaz de me fazer andar duzentos ou trezentos quilómetros pelo prazer de o degustar. Sei de sítios como quem sabe de ninhos. Sei de sítios que não conto a ninguém, nem sob tortura, e se a tortura não for a da fome.
Enquanto posso (e posso cada vez menos, como a maioria dos portugueses), vou a esses sítios onde já há muito eu e a minha mulher somos tratados como amigos ou família, e com mimos especiais, mas tenho que admitir que é sobretudo a comida que lá me leva. Vou pelo gosto, é este o meu parâmetro de aferição e escolha fundamental.
Mas respeito quem se deixa seduzir por outras variáveis gastronómicas ou paragastronómicas, como, por exemplo, essa coisa tão vaga ou talvez não como é "o serviço" ou "o atendimento".
Um velho compincha doutras vidas mas também da santa trincadeira - nas imortais palavras de mestre Aquilino Ribeiro, colocadas na boca de um abade, pois claro - contou-me que estava um destes dias numa bela jantarada, num grupo de gente boa e interessante, quando um dos convivas alvitrou um próximo repasto a realizar em determinado restaurante, que "tem um excelente serviço"...
O meu amigo, que é um brincalhão mas o outro não sabia, perguntou, com matreirice:
- Excelente serviço, pois... Mas o que é que se come? O que é que é lá muito bom? Uns bolinhos de bacalhau..., uns ossinhos da suã?...
- Quer-se dizer, não sei, tem muita coisa, nada assim de especial, mas o atendimento é óptimo... - colocou-se à defesa o homem da ideia.
- Está bem, mas eu não como serviço, o atendimento não me enche a barriga - insistiu o meu amigo e voltou a insistir, perante o cada vez maior embaraço de quem já se tinha arrependido de ter dado apenas uma sugestão e do resto do pessoal à volta da mesa.
Tudo acabou depois na risota, quando todos perceberam que o meu amigo afinal estava na tanga, e até tiveram sorte porque desta vez, tenho a certeza, ele não arrumou a questão com uma expressão que lhe é muito cara e que, neste contexto, seria algo do género:
- O serviço? Dá-me com o serviço nos
tomates aux gésiers de lapin. Livre de gorduras e lave em duas águas, uma pode ser das Pedras, as moelas de coelho. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto o ministro da Finanças conta até dez, que é aproximadamente durante duas horas e um quarto. Os ovos de codorniz deviam ter sido tirados antes, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Aqueça a feijoada que sobrou de ontem e seja feliz.
P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Setembro de 2011. O ministro das Finanças era então o vagaroso e lastimável Vítor Gaspar. Hoje é Dia Internacional dos Monumentos e Sítios. Sei também de monumentos, mas gosto mais dos sítios que sei e que de momento não posso frequentar. Uma infelizmência! Ao almoço estive vou e não vou para montar um piquenique só para mim ali em baixo no Senhor do Padrão, mas percebi a tempo o triste espectáculo que sou a comer com máscara...
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