sábado, 8 de janeiro de 2022

À Justiça o que é da Justiça

Foto Hernâni Von Doellinger

Ao contrário (nunca se deve começar um texto com a expressão "ao contrário"), mas, como dizia, ao contrário de uns certos e determinados palermóides, fafenses ou simpatizantes, que têm vergonha da Justiça de Fafe, eu não tenho. É verdade: tenho é muito orgulho. Gosto da lenda da Justiça de Fafe, acompanha-me desde que eu nasci, identifica-me pelo mundo fora, e até aprecio o monumento, embora o desejasse mais central.
Já disse: a Justiça de Fafe é a metáfora folclórica de uma gente de paz que não gosta de levar desaforo para casa, ou que costumava não gostar. Nós, os fafenses (deve ler-se e dizer-se fafénses). O resto é treta, mais ou menos erudita. Geralmente menos. "Com Fafe ninguém fanfe" quer dizer, tão-só, com Fafe ninguém se meta. Porque, quem se meter, quem nos ofender de graça, recebe o troco, e que mal tem isso? E, no entanto, muito boa gente confunde, hoje em dia, este velho sentido de verticalidade com fazer justiça pelas próprias mãos. Não é nada disso. A Justiça de Fafe deve ligar-se, antes, à defesa da honra. A coça é semântica.
É isto e mais nada. Nem luta de classes, nem administração de justiça privada, nem apologia da justiça popular, nem jogo do pau, nem fanfarronice, nem sacholadas, nem pistolas e navalhadas, nem Felizardos, nem bordoada por dá cá aquele copo. Tudo equívocos. As lendas (deve ler-se e dizer-se léndas) têm costas largas, de toda a conveniência (deve ler-se e dizer-se conveniéncia) para o caso em apreço, mas saber ler antes de escrever também nunca fez mal a ninguém, e sobretudo aos putativos historiadores.

Não vamos mais longe. Podíamos ir à Porca de Murça ou às pedras parideiras da serra da Freita, mas não vamos mais longe: deitemos os olhos a Guimarães, que após Arões é sempre ao baixo e sem portagens. A vaidade que os nossos vizinhos fidalgos têm na estátua de D. Afonso Henriques, esse gandulo que usava saias e batia na mãe! Ainda por cima, existiu mesmo, e a nossa Justiça de Fafe é só bazófia, invenção - mas é a coisa mais bonita a que nos podemos agarrar, para além da forca de Moreira do Rei, que também não consta da História a sério (à séria, se lido em Lisboa).
Os reis de Espanha vieram aqui atrasado a Portugal e o nosso presidente Marcelo (deve ler-se e dizer-se presidénte) levou-os a Guimarães e à estátua do tratante, do Afonsinho: a Letizia e o Felipe puseram-lhe flores. Em Fafe, a Câmara Municipal conhece o Monumento aos Mortos da Grande Guerra, o Monumento aos Combatentes da Guerra Colonial e o Monumento ao Bombeiro, conhece-os um dia por ano, e ignora durante o ano inteiro, todos os dias, o Monumento à Justiça de Fafe, que esconde quase em síncope, estúpida e militantemente, dos selectos visitantes, não vá dar na televisão. Se não fosse tão público e notório este asco, este ódio à Justiça de Fafe, suspeito que a Câmara já há muito lhe teria posto uma bomba pela calada da noite.

E não. O jogo do pau não é "uma das maiores tradições do concelho" de Fafe, ao contrário do que diz, por outro lado, a néscia propaganda autárquica. É tão tradição em Fafe como em Lisboa, em Trás-os-Montes, no Ribatejo, na Estremadura, no Algarve ou na Galiza. O jogo do pau é tão tradição em Fafe como a sueca, o futebol ou a malha, o esconde-esconde ou o dominó, que se jogam em todo o lado.
Não. O jogo do pau não foi inventado em Fafe, não deriva da Justiça de Fafe. A Justiça de Fafe é outra coisa, é lenda, lenda nossa, exclusiva, de honra, e, bem vistas as coisas, uma das poucas tradições genuínas do concelho de Fafe, que as há, como o nosso falar antigo, inimitável e pitoresco. Mas a autarquia fafense (deve ler-se e dizer-se fafénse), aflita de cosmopolitismo, embaraça-se com a nossa Justiça de Fafe, omite a nossa Justiça de Fafe, despreza-a, oblitera-a, e resolveu substituí-la por um pedregulho espetado no coração da cidade, Por Baixo da Arcada.
E no entanto a Justiça de Fafe lá está, que eu bem a vou visitar como quem vai a Fátima duas ou três vezes por ano. Lá está, escondidinha, um pouco acima, e, isto é que deve doer à Câmara, farta-se de jogar ao pau com os ursos...

P.S. - Publicado originalmente no dia 25 de Janeiro de 2017. Na mitologia romana, hoje, 8 de Janeiro, é Dia de Justiça, deusa da... justiça. Ah!, e militantemente também deve ler-se e dizer-se militanteménte.

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