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domingo, 11 de maio de 2025

O horário de Deus

Vínhamos de votar para as eleições do próximo domingo e resolvemos passar pela capelinha da Obra do Padre Grilo, como costumamos fazer muito amiúde. Fica-nos mais ou menos em caminho. Sentamo-nos lá um bocadinho a pensar na vida, a Mi e eu, aproveitando a fresca e o silêncio. Gostamos disso. Mas hoje batemos com o nariz na porta, a capelinha estava fechada, talvez melhor dizendo, ainda fechada. Eram para aí oito e meia. É o que eu já suspeitava: Deus dorme, e anda a acordar cada vez mais tarde.

sexta-feira, 7 de março de 2025

O silêncio de Deus

- Deus diz-lhe alguma coisa?
- Não, Deus nunca me disse nada.
- É portanto ateu, agnóstico talvez, ou digamos indiferente...
- Por acaso até sou crente, religioso e bastante praticante.
- Mas diz que Deus nada lhe diz...
- Pois é. Falo muito para o boneco...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Oração.

Amem em vez de amém

Disse o Papa: "Proclamar o amor redentor de Deus é um dever prioritário, antes do dever moral e religioso. Mas hoje parece que muitas vezes acontece o contrário." Pois parece. Francisco falava da missão dos ministros da Igreja e eu gostei. Era um raspanete ao pessoal, mais um. E gostei também que o recado papal viesse nos jornais. Estou farto de dizer a mesma coisa, mas a mim ninguém me liga.
No fundo, o Papa apela aos cardeais, bispos e padres para que metam na devida ordem as suas próprias urgências pastorais, para que se organizem em bondade e misericórdia, para que (re)aprendam a distinguir o essencial do acessório, para que se deixem de cinismos. O Papa acorda-os para o mundo e para Deus. Pede-lhes que sobretudo amem - tão simples como isto.
O Papa quer que os cardeais, bispos e padres saiam das suas zonas de conforto, das cadeirinhas de fiscais de consciências e julgadores de comportamentos e práticas onde boloram há que séculos. E que amem o próximo, como foram ensinados a pregar aos outros. Mas podem ficar descansadas as almas mais conservadoras e sacristas. As palavras de Francisco não são senha para a revolução. Parecem-me até declarações retrógradas, reaccionárias sem sombra de dúvida: devolvem-nos ao princípio, aproximam-nos de Deus - que é Amor -, mandam-nos de volta ao que Jesus nos ensinou.
Isto foi há onze anos, o Papa está às portas da morte, e eu ainda não vi nada.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Oração.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Católico, abstinente e automortificante

É um católico à moda antiga: abstinente, observante, penitente e automortificante. Por isso não vai a Fátima no próximo 13 de Maio. Ir a Fátima todos os 13 de Maio seria para ele um enorme prazer, mas o prazer é pecado...
E na Quaresma? Quarta-Feira de Cinzas e todas as sextas-feiras, de castigo, come bife com batatas fritas ao almoço e bife com batatas fritas ao jantar. É que ele gosta mais de peixe. Com batatas cozidas...

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Não praticante

Dizia: - A minha religião é o trabalho. Mas não pratico...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Religião.

Para falar com Deus

Tomou horas, foi para a fila, tirou senha, esperou vez, chamaram-lhe o número, acostou finalmente ao balcão das informações e perguntou: - Para falar com Deus, falo com quem?...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Religião.

sábado, 12 de outubro de 2024

Fátima, em suaves prestações semanais

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu avô da Bomba jurava que nunca pôs nem nunca na vida poria pé na praia. Que era muito sol ao desamparo, areia demais para a sua camioneta. Queixava-se: a água estava constantemente molhada e, ainda por cima, salgada. O meu querido avô era "uma pessoa muito doente" e precatada quanto ao sal. Portanto, o sol e o sal. "Se ainda ao menos houvesse a sombrinha de uma árvore", dizia, molageiro, aí que contassem com ele nem que fosse só para a soneca da tarde. Mas o meu avô era um exagerado, um mentirosinho sem tenção de ofensa - e aquela jura eu sabia que era a mangar.
Para o avô da Bomba, como para todo o fafense que então se prezasse, a palavra praia queria dizer Póvoa de Varzim. Exactamente. Ir à praia e ou ir para a praia (conceitos que importa diferençar) era ir à Póvoa ou ir para a Póvoa, via Guimarães e Famalicão. E no entanto o meu avô conhecia também satisfatoriamente os longínquos areais de Ofir, da Figueira da Foz e da Nazaré, o que já não era brincadeira! E de onde é que lhe vinha esta extraordinária mundivivência, este cosmopolitismo fafense tão antes do tempo? Pois bem: o meu avô organizava excursões - dois dias ao Alto Minho, com pernoita em Viana do Castelo, dentro do autocarro, no Largo da Agonia a esbordar de camionetas e parolos como nós, e umas senhoras cá fora a fazerem café de cafeteira em máquinas a petróleo, à luz do petromax até que o sol nascesse. Três dias a Fátima, pelo 13 de Maio. Em alnos alternados. Partida e chegada no quartel dos Bombeiros, sempre, então na Rua José Cardoso Vieira de Castro, ao lado da garagem do Zé Bastos e entre os dois palacetes. Com as estradas que tinha, Portugal era naquele tempo um país imenso. Ir de Fafe aos Arcos de Valdevez ou a São João da Madeira, por aquela altura, era como embarcar por engano numa expedição de Júlio Verne ao fim do mundo. Agora imaginem uma viagem praticamente de circum-navegação com escala no Portugal dos Pequeninos e no Mosteiro da Batalha, e com procissão de velas e tudo. Era um verdadeiro acontecimento, um marco de vida!

O meu avô era um videirinho, já aqui contei. Tinha casa e salário de quarteleiro dos Bombeiros, não sei se era muito ou pouco, mas não perdia oportunidade de fazer dinheiro extra no que lhe estivesse mais à mão: o tasquinho na cave do quartel, os tremoços, os bolinhos de bacalhau e o vinho na Festa da Bomba, a aguardente e o vinho, sempre o vinho, nas sessões nocturnas do cinema ao ar livre na parada das traseiras, muito antes de a sétima arte descer ao campo de futebol, a banca de sapateiro por baixo das escadas que subiam para o salão de festas, umas refeições especiais encomendadas por um certo grupo de amigos, respeitosos admiradores das mãos de ouro da minha avó para a cozinha. Uma vez há mais de cinquenta anos o papa Paulo VI veio a Fátima e pouca gente tinha televisão em casa. No salão dos Bombeiros foram montados um projector e uma tela para a transmissão em directo e em "ecrã gigante", com entradas a pagar. A sala encheu, o dinheiro da receita revertia naturalmente para a Associação Humanitária, mas de certeza que o avô também conseguiu sacar dali algum, nem que fosse a vender rebuçados para a tosse ou cascas de amendoins.
Ora é aqui que encaixam as excursões, que os candidatos a excursionistas pagavam em suaves prestações semanais desarriscadas nuns cartõezinhos que o meu avô mandava fazer na tipografia. Isto para aí durante um ano. O avô da Bomba fazia a cobrança aos sábados ou domingos de manhã, não sei precisar. Ia de motorizada e às vezes levava-me, primeiro numa Florett e depois na Lambreta, uma Vespa azul, antes e depois de haver sentidos proibidos nas ruas de Fafe. Para o meu avô nunca houve, o caminho foi sempre o mesmo e tinha sempre razão quando lhe apitavam ou gritavam para não ir por ali. Eu, nem pio.

(A Florett tem muito que se lhe diga em Fafe, era um veículo de pecado, mas por ser verdade aqui declaro que o meu avô nunca foi dado a essas actividades por assim dizer extracurriculares. A Florett calhou-lhe, e só isso.)

Mas as excursões. Eram viagens épicas, cheias de cheirinho bom a merendeiro e muitas paragens para "mudar a água às azeitonas", enjoos e borracheiras de caixão à cova. Cheiravam também a gomitado, a naftalina, a sapatos novos, a botas ensebadas de fresco, a chulé, a urina, a tabaco, a suor, a desodorizante Lander, a perfume barato, a brilhantina, a laca, a mundo. A coberto da noite soltavam-se uns traques enfeitados com risinhos solertes que ajudavam à festa. Era uma convívio muito grande. A camioneta avariava, pessoas perdiam-se. Cantava-se o "Treze de Maio", o "Queremos Deus" e "O carrapito da Dona Aurora". Rezava-se o terço ao passar a Ponte de Fão, sobre o rio Cávado, porque constava que a estrutura estava a cair de podre. Morreríamos todos muito bem - iríamos para o céu, se Deus quisesse, embora o grupo excursionista do meu avô se chamasse, com todo o mérito, "Grupo Excursionista "Os Arrebenta Pipas" - Fafe", assim tal qual, num pano hasteado por dentro no vidro traseiro da camioneta. Na Póvoa as mulheres arregaçavam saias e combinações, os homens arregaçavam calças e ceroulas e os miúdos ficavam em cuecas ou em pelote, consoante a idade, e todos se agarravam com quanta força tinham à grossa corda que ligava o mar ao areal, brincando aos sustinhos e trambolhões de felicidade histérica ali no sítio onde o mar enrola na areia, que também se cantava.
Sei disto tudo porque estive lá. Que me lembre, fui uma vez a Fátima e outra ao Alto Minho, esta ainda com o meu pai. O meu irmão Lando ainda não tinha nascido. Eu, o Nelo e a Nanda queríamos ir sempre, mas não podia ser. O meu avô não dava borlas, nem aos netos. (Na verdade, o meu avô não dava nada a ninguém. Isto é: dava os bons-dias mas pedia recibo com número de contribuinte.) Ia portante só um, e no colo da mãe, mais do que isso seria prejuízo.
O meu pai, que gostava de fazer rir a minha mãe, dizia aos dois que ficavam: "Não é preciso chorar, vós também ides. Na sombra..."

Tanto relambório para chegar aqui: herdei do meu avô o horror à praia em dias de sol e gente, mas tenho a árvore que ele reclamava. Uma árvore na praia. Encontrei-a aqui em Matosinhos, mesmo ao pé da porta, encostada à esplanada do Lais de Guia, e agora até há mais duas de vago, à beira do paredão. Passo por lá todos os dias e vejo o avô à sombrinha, com os pés mansamente enfiados na areia morna. Gosto de o ver assim, peço-lhe a bênção e beijo-lhe a mão. Sossego as saudades. O avô da Bomba era molageiro e videirinho, forreta do piorio, mas é meu.

P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Maio de 2017. No dia 12 de Outubro de 1935, o bispo de Leiria declarou dignas de crédito as "aparições" e autorizou oficialmente o culto a Nossa Senhora de Fátima. No dia 12 de Outubro de 2007, foi inaugurada, em Fátima, a nova Igreja da Santíssima Trindade, que custou 70 milhões de euros.

terça-feira, 14 de maio de 2024

A 14 de Maio, na Cova da Iria

O peregrino chegou a Fátima, a mais de mil à hora, seriam talvez umas cinco da manhã, ainda a religião nem tinha aberto. Estacionou chiando pneus e perguntou, desnorteado e ofegante, como se tivesse ido a pé: - Nossa Senhora já apareceu?
- Isso foi ontem. - informou o segurança.
- E hoje?... - insistiu o peregrino.
- Não está previsto. - reportou o segurança.
- Nem um bocadinho?... - tentou o peregrino.
- Nicles batatóides! - confirmou o segurança.
- Vim de tão longe... - lamuriou-se o peregrino.
- Não posso fazer nada... - desculpou-se o segurança.
- Tenho a mulher e os putos no carro... - protestou o peregrino.
- Realmente é uma pena... - condescendeu o segurança.
- Carago!... - protestou o peregrino.
- É a vida... - filosofou o segurança.
O peregrino cabisbaxou finalmente, disse "Prontos!..." como se isso o animasse, mas não animou e ainda por cima dizer "Prontos!..." é uma estupidez, deixou o número de telemóvel ao segurança, desse-se o caso de Nossa Senhora aparecer mais tarde, talvez em horário de expediente, encolheu os ombros, fez meia volta, meteu-se outra vez no carro e desandou para cima, nas calmas, vidro aberto, braço de fora, Mira de Aire, Alcobaça, Batalha, Nazaré, Figueira da Foz, Coimbra, Buçaco, Luso e Curia até à Mealhada. E ao leitão. O leitão, graças a Deus, aparece sempre.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

O preço da fé

No tempo em que a fé era de graça, copo e vela dez tostões. Isto em Fátima. No Pérola Negra, copo e bela um conto e quinhentos.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Complexo de culpa

Como todo o bom católico, ele tinha um grande complexo de culpa. Edifício principal, duas unidades de produção, quatro armazéns, uma garagem com oficina, refeitório e zona social, parque de estacionamento e parque florestal, abrangendo uma área total de 51 hectares. Era realmente um enorme complexo.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Para falar com Deus

Tomou horas, foi para a fila, tirou senha, esperou vez, chamaram-lhe o número, acostou finalmente ao balcão das informações e perguntou: - Para falar com Deus, falo com quem?...

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Não há milagres

Abençoados os que não acreditam em milagres. Que sensação maravilhosa, que deslumbramento devem experimentar quando eles acontecem!...

terça-feira, 19 de julho de 2022

terça-feira, 14 de junho de 2022

A omissão de Deus

- Deus diz-lhe alguma coisa?
- Não, Deus nunca me disse nada.
- É portanto ateu, agnóstico talvez, ou digamos indiferente...
- Por acaso até sou crente, religioso e bastante praticante.
- Mas diz que Deus nada lhe diz...
- Pois é. Falo muito para o boneco...

P.S. - Hoje é Dia Universal de Deus.

sexta-feira, 18 de março de 2022

Volta ao mundo em dois dias (três, se for a Fátima)

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu avô da Bomba jurava que nunca pôs nem nunca na vida poria pé na praia. Que era muito sol ao desamparo, areia demais para a sua camioneta. Queixava-se: a água estava constantemente molhada e, ainda por cima, salgada. O meu querido avô era "uma pessoa muito doente" e precatada quanto ao sal. Portanto, o sol e o sal. "Se ainda ao menos houvesse a sombrinha de uma árvore", dizia, molageiro, aí que contassem com ele nem que fosse só para a soneca da tarde. Mas o meu avô era um exagerado, um mentirosinho sem tenção de ofensa - e aquela jura eu sabia que era a mangar...

Para o avô da Bomba, como para todo o fafense que então se prezasse, a palavra praia queria dizer Póvoa de Varzim. Exactamente. Ir à praia e ou ir para a praia (conceitos que importa diferençar) era ir à Póvoa ou ir para a Póvoa, via Famalicão. E no entanto o meu avô conhecia também satisfatoriamente os longínquos areais de Ofir, da Figueira da Foz e da Nazaré, o que já não era brincadeira! E de onde é que lhe vinha esta extraordinária mundivivência, este cosmopolitismo fafense tão antes do tempo? Pois bem: o meu avô organizava excursões - dois dias ao Alto Minho, com pernoita em Viana do Castelo, dentro do autocarro, no Largo da Agonia a esbordar de camionetas e parolos como nós, e umas senhoras cá fora a fazerem café de cafeteira em máquinas a petróleo, à luz do petromax até que o sol nascesse; três dias a Fátima, pelo 13 de Maio. Ano sim, ano não. Partida e chegada no quartel dos Bombeiros, sempre, então na Rua José Cardoso Vieira de Castro, ao lado da garagem do Zé Bastos e entre os dois palacetes. Com as estradas que tinha, Portugal era naquele tempo um país imenso. Ir de Fafe aos Arcos de Valdevez, por aquela altura, era como embarcar por engano numa expedição ao fim do mundo...

O meu avô era um videirinho, já aqui contei. Tinha casa e salário de quarteleiro dos Bombeiros, não sei se era muito ou pouco, mas não perdia oportunidade de fazer dinheiro extra no que lhe estivesse mais à mão: o tasquinho na cave do quartel, os tremoços, os bolinhos de bacalhau e o vinho na Festa da Bomba, a aguardente e o vinho, sempre o vinho, nas sessões nocturnas do cinema ao ar livre na parada das traseiras, muito antes de a sétima arte descer ao campo de futebol, a banca de sapateiro por baixo das escadas que subiam para o salão de festas, umas refeições especiais encomendadas por um certo grupo de amigos, respeitosos admiradores das mãos de ouro da minha avó para a cozinha. Uma vez há cinquenta anos o papa Paulo VI veio a Fátima e pouca gente tinha televisão em casa. No salão dos Bombeiros foram montados um projector e uma tela para a transmissão em directo e em "ecrã gigante", com entradas a pagar. A sala encheu, o dinheiro da receita revertia naturalmente para a Associação Humanitária, mas de certeza que o avô também conseguiu sacar dali algum, nem que fosse a vender rebuçados para a tosse ou cascas de amendoins...
Ora é aqui que encaixam as excursões, que os candidatos a excursionistas pagavam em suaves prestações semanais desarriscadas nuns cartõezinhos que o meu avô mandava fazer na tipografia. Isto para aí durante um ano. O avô da Bomba fazia a cobrança aos sábados ou domingos de manhã, não sei precisar. Ia de motorizada e às vezes levava-me, primeiro numa Florett e depois na Lambreta, uma Vespa azul, antes e depois de haver sentidos proibidos nas ruas de Fafe. Para o meu avô nunca houve, o caminho foi sempre o mesmo e tinha sempre razão quando lhe apitavam ou gritavam para não ir por ali. Eu, nem pio...

(A Florett tem muito que se lhe diga em Fafe, era um veículo de pecado, mas por ser verdade aqui declaro que o meu avô nunca foi dado a essas actividades por assim dizer extracurriculares. A Florett calhou-lhe, e só isso...)

Mas as excursões. Eram viagens épicas, cheias de cheirinho bom a merendeiro e muitas paragens para "mudar a água às azeitonas", enjoos e borracheiras de caixão à cova. Cheiravam também a gomitado, a  naftalina, a sapatos novos, a botas ensebadas de fresco, a chulé, a urina, a tabaco, a suor, a desodorizante Lander, a perfume barato, a brilhantina, a laca, a mundo. A coberto da noite soltavam-se uns traques enfeitados com risinhos solertes que ajudavam à festa. A camioneta avariava, pessoas perdiam-se. Cantava-se o "Treze de Maio", o "Queremos Deus" e "O carrapito da Dona Aurora". Rezava-se o terço ao passar a Ponte de Fão, sobre o rio Cávado, porque constava que a estrutura estava a cair de podre. Morreríamos todos muito bem. Na Póvoa as mulheres arregaçavam as saias, os homens arregaçavam as calças e os miúdos ficavam em cuecas ou em pelote, consoante a idade, e todos se agarravam com quanta força tinham à grossa corda que ligava o mar ao areal, brincando aos sustinhos e trambolhões de felicidade histérica ali no sítio onde o mar enrola na areia, que também se cantava.
Sei disto tudo porque estive lá. Que me lembre, fui uma vez a Fátima e outra ao Alto Minho, esta ainda com o meu pai. O meu irmão Lando ainda não tinha nascido. Eu, o Nelo e a Nanda queríamos ir sempre, mas não podia ser. O meu avô não dava borlas, nem aos netos. (Na verdade, o meu avô não dava nada a ninguém. Isto é: dava os bons-dias mas pedia recibo.) Ia portante só um, e no colo da mãe, mais do que isso seria prejuízo...
O meu pai, que gostava de fazer rir a minha mãe, dizia aos dois que ficavam: "Não é preciso chorar, vós também ides. Na sombra..."

Tanto relambório para chegar aqui: herdei do meu avô o horror à praia em dias de sol e gente, mas tenho a árvore que ele reclamava. Encontrei-a aqui em Matosinhos, mesmo ao pé da porta, encostada à esplanada do Lais de Guia. Passo por lá todos os dias e vejo o avô à sombrinha, com os pés mansamente enfiados na areia morna. Gosto de o ver assim, peço-lhe a bênção e beijo-lhe a mão. Sossego as saudades. O avô da Bomba era molageiro e videirinho, forreta do piorio, mas é meu.

P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Maio de 2017.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Vendedores de Céu e de mobílias de sala

Andam aos pares, como o Senhor mandou para a arca, aos pares e de Bíblia na mão, e vê-se logo que são boas pessoas. Missionam a bom missionar, de porta em porta, no meio da rua, sujeitam-se a malcriadezas em nome da fé que têm para dar e vender, e dou-lhes valor por isso. Um par interpelou-me um destes dias, ali em baixo, no passeio à beira-mar onde às vezes montam banca:
- Um minutinho, por favor, já pensou no que lhe acontecerá quando morrer? E porque morremos? Não quer saber a verdade acerca da morte?
Eu, que achei a abordagem um bocado desajeitada e tétrica, desnecessariamente radical, resolvi dar-lhes uma ajuda, uma segunda oportunidade, recentrando o assunto:
- Não é nada da morte que me querem falar, pois não? A morte até poderia ser um bom princípio, em termos de marketing, de aproximação tablóide à clientela, quero dizer, mas vocês querem é falar-me da vossa Igreja, querem converter-me à vossa Igreja, querem anunciar-me Deus, o único verdadeiro, Jeová, é ou não é?
Era.
- Então, em verdade vos digo, assim será feito - disse eu, com voz de sarça ardente ditando leis -, ouço-vos, vocês falam-me da vossa Igreja e de Jeová, mas só se também me derem tempo de antena para eu vos falar de uma mobília de sala de jantar muito jeitosa que tenho para vender.
- Mas para que queremos nós ouvi-lo falar acerca da mobília de sala de jantar, se temos uma praticamente nova, estamos tão bem servidos e não precisamos de mudar? - respondeu o par em coro e percebi logo que, para além de par, formava também casal.
A resposta era mesmo a que me calhava, portanto sentenciei:
- Pois, caríssimos irmãos, eu e Deus é a mesma coisa: já tenho um e estou muito contente com Ele. Vou agora trocar, porquê? E amém.

Eu sei que fui (sou) um bocado parvo. Mas correu bem. Vendi-lhes duas mobílias de sala de jantar.

P.S. - Publicado originalmente no dia 30 de Dezembro de 2015. 

A mulher que não acreditava na religião verdadeira

Bateram à porta e Dona Amélia abriu. Pensava que era o carteiro com a reforma. Eram duas senhoras muito simpáticas com uma revista nas mãos. A revista chamava-se A Sentinela e as duas senhoras muito simpáticas queriam falar, mas Dona Amélia não as queria ouvir. Que não tinha vagar para revistas nem para jornais, que fizessem o favor de ir andando, que ela tinha mais que fazer. As pessoas com 84 anos e sós são mesmo assim, estão sempre muito ocupadas. As duas senhoras muito simpáticas, e pacientes, insistiam de pé enfiado na porta e revista em riste, falavam do fim do mundo, da Bíblia, de profecias, do Reino de Deus, de Jesus Cristo, de religião, e aqui, alto e pára o baile, Dona Amélia arrebitou as orelhas e perguntou: - Ai vocês são da religião?...
- Somos Testemunhas de Jeová - responderam as duas senhoras muito simpáticas e pacientes.
- Olha, ainda por cima jeovás! Rua, andor daqui para fora! - mandou Dona Amélia, sacando do toco de vassoura, mais rápida que a própria sombra. - Eu não acredito nessas lérias. Eu não acredito na religião católica, que é a verdadeira, e ia agora... Xô, xô, xô, já disse!

P.S. - Publicado originalmente no dia 20 de Abril de 2016.