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sexta-feira, 4 de abril de 2025

O rato roeu a rolha

Revoltaram-se os ratos. E pudera. Acusados de serem os primeiros a abandonar o navio, atropelando mulheres e crianças, apontados como sinónimo de cobarde, ladrão, manhoso ou vigarista, introduzidos à força em trocadilhos idiotas e em provérbios e ditos amiúde populares, estavam fartos de levar e calar. Os ratos e inclusive as ratas, muito mais doridas e por maioria de razão.
Revoltaram-se portanto os ratos. Organizaram-se. Chegada a horinha, meteram-se na fila, esperaram pela vez respectiva, marcaram o ponto e abandonaram ordeiramente o navio. Foram os últimos a sair. E apagaram a luz. Já em terra firme, os ratos dirigiram-se sem mais delongas à montanha que os pariu e roeram a rolha da garrafa do rei da Rússia. Todos, menos o Alcides, que era um rato de biblioteca e foi para o Café Avenida beber um dedal de rum e ler com todos os vagares "A Saga/Fuga de J.B.", de Gonzalo Torrente Ballester.

P.S. - Hoje é Dia do Rato. Não confundir com Dia da NATO, que por acaso também é hoje.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Eu e as correntes de ar

As pessoas vivem fechadas em caixotes. Em caixinhas dentro de caixotes. E cada caixinha tem um respiradouro chamado varanda. E as pessoas fazem marquises e esganam as varandas.
No prédio onde eu moro, o meu apartamento é o único que não tem marquise ou paramarquise na varanda. Dá nas vistas, é verdade, destoa, incomoda os vizinhos, aliás condóminos, e todos os dias tenho a caixa de correio assediada por uns quantos panfletos em quadricromia e papel couché que me oferecem o sufoco a xis euros o metro quadrado. Muito agradecido, mas passo: a varanda é-me de toda a conveniência tal qual está. E não a tapo, pelo menos enquanto a falta de ar for apenas opcional.
Gosto de correntes de ar, que hei-de fazer? Gosto de terra e gosto de mar. E gosto de levar com a terra e com o mar nas ventas. Gosto dos cheiros. Gosto de pensar (ou de pensar que penso), gosto de refrescar ideias. A minha varanda é o meu retiro. E é o meu quintal, a minha esplanada, o meu posto de vigia. Gosto de semear, de regar os vasos, de espreitar o nanocrescimento dos coentros, da salsa e do tomilho, e até tenho um loureiro e um carvalho, já lá não fumo a minha cachimbada nem bebo o meu CRF "em balão previamente aquecido", por penúria e indicação médica. Gosto de ver passar navios. A isto estou condenado, a ver navios, mas eu gosto. E sou um gajo cheio de sorte: moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado.