Os livros
Gosto de afagar os livros que leio. Cheiro-os.
Vai chatear o Camões
Tinha a mania das grandezas. Sonhava com o Panteão. "Quando eu morrer - dizia -, vou chatear o Camões"...
As duas Senhoras
- Bom dia, Senhora da Misericórdia!...
- Olá, Maria das Dores, há um ano que não nos víamos...
- Saio pouco, enjoo na viagem...
- E eu também, são estes solavancos, estes salamaleques...
- Mas a senhora está muito bem.
- E senhora também.
- Porém os anos...
- A quem o diz...
- Por falar nisso, tinha qualquer coisa para lhe dizer...
- E eu também, mas não me lembro...
- Bem, vou-me lá...
- Realmente, são que horas...
- Então adeus, até para o ano...
- Se Deus quiser. Adeus.
Há palavras que nos beijam como se tivessem boca
A senhora sentada à minha frente faz croché. Eu leio um livro. O resto
do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no
telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O
metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois
refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora
sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia
um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a
cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num
misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos
Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill,
calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço
que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma
bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.
Limpa-nódoas
Se o defesa esquerdo for uma nódoa, lava-se com vinagre?...
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