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quinta-feira, 10 de julho de 2025

Lapsus linguae

Foto Hernâni Von Doellinger

Entrei de rompante e gritei: mãos ao ar, isto é um assalto! Fiquei admirado. O que eu queria dizer era: alto e pára o baile! Eu andava desesperado e insone com aquele forrobodó todas as noites no apartamento de cima, bailarico até às tantas, cantoria sem norma nem excepção. E na hora agá, com tanto maldormir, a minha boca baralhou-se, fez confusão. Mas estava dito, estava dito: desci com um LCD de 100 polegadas, uma mesa de DJ, seis colunas de som surround, um globo espelhado, oito CD do Quim Barreiros, dois tablets, quatro telemóveis, sete relógios - um de sala -, seis pulseiras, cinco colares, doze pares de brincos, dois pacotes de batatas fritas, meia piza familiar de cogumelos e fiambre com extra queijo, um pacote de Sugus morango e framboesa, nove gramas de haxixe, garrafa e meia de vodka, duas canecas de sangria, vazias, três garrafas de Casal Garcia, treze cartões de crédito, um vale de reforma, 837 euros em numerário, um porquinho-mealheiro com a Justiça de Fafe por fora e 350 escudos em imprestáveis moedinhas de 1 escudo por dentro, um santinho da Senhora de Antime, um par de canadianas praticamente novas - uma professora de Toronto e uma enfermeira de Otava - e a empregada doméstica que também quis vir comigo.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada do meu blogue Mistérios de Fafe. As Festas de Fafe, ou da Senhora de Antime, arrancaram no passado sábado, dia 5, e vão até dia 13, próximo domingo, o tal da inigualável procissão. Hoje é Dia Mundial da Pizza.

terça-feira, 27 de maio de 2025

O quinto dos infernos

Moro num terceiro andar. Direito. E dou-me muito bem com todos os vizinhos do prédio, isto é, não me dou de todo com vizinho nenhum, que é a melhor maneira de nos darmos todos bem. O meu vizinho do quinto entrou em obras, ou por outra, resolveu deitar a casa abaixo da porta para dentro e fazer lá dentro uma casa nova, isso é lá com ele. Paredes, soalhos, tectos, canalizações, instalações eléctricas, louças e móveis de casa de banho e cozinha, tudo destruído sem dó nem piedade, deitado abaixo à força de camartelos pneumáticos, sonoras rebarbadoras, explosões de dinamite, buldózeres, bolas de aço e outra maquinaria pesada de demolição, que eu bem a ouço lá em cima em manobras, um chinfrim medonho, um basqueiro insuportável, incessante, eu e a minha mulher já só falamos um com o outro por SMS para nos ouvirmos, é pó por todos os lados, sufocante e cego, a porta da rua sempre escancarada, de manhã à noite, os elevadores impraticáveis, o chão um nojo, é o inferno, o fim do mundo mesmo em cima das nossas cabeças em água, ouradas, doridas, cansadas, apenas com os vizinhos do quarto-direito de permeio, esses, coitados, completamente à beira da loucura, com a casa a tremer-lhes como varas verdes e episódios bidiários de histeria conjugal.
Será coisa para durar três ou quatro meses, a fazer fé no aviso gentilmente afixado no placar de cortiça do condomínio. E não me posso queixar. Ainda de acordo com a missiva do vizinho do quinto, a empreitada "decorre tal como permite o quadro legal em vigor", dando "cumprimento ao estipulado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 16.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo decreto-lei n.º 9/2007 de 17 de Janeiro". Ainda bem. Assim, estou muito mais descansado...

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Vizinhos.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

O ambiente tem dias

Foto Hernâni Von Doellinger

No Parque da Cidade do Porto há cisnes-mudos, guarda-rios, gansos-bravos, gansos-do-egipto, patos-reais, galinhas-d'água, galeirões-comuns, guinchos-comuns, piscos-de-peito-ruivo, gaivotas-argênteas, gaivotas-d'asa-escura, melros-pretos, marçaricos-das-rochas, rolas-do-mar, chapins-reais, garças-brancas-boieiras, garças-reais, corvos-marinhos, mergulhões-pequenos, pardais-comuns e pegas, enguias-europeias, gambúsias, peixes-gatos, percas-sol e pimpões. Esta é a população oficialmente recenseada. Mas também há coelhos e toupeiras, tartarugas, gatos e cães vadios, pombas e pombos, galinhas que eu bem as vejo, papagaios e outros benfiquistas, corredores, andadores e passeadores afins, rãs, sapos e salamandras, lesmas e caracóis, grilos e gafanhotos, borboletas a certa hora, sardaniscas e lambisgóias, sardões com e sem rabo, espreitas e bicicletas, cavalos-republicanos às vezes, burros de um modo geral. E mais de cem espécies vegetais, nomeadamente muito erva e muitas flores, que apreciam particularmente, tanto quanto se sabe, a quietude e o devaneio que lhes são de natureza.
No tempo do Primavera Sound, que, nem de propósito, é agora e rebenta com toda a potência já amanhã, no Parque da Cidade do Porto há também camiões, guindastes e contentores, dezenas de geradores, quilómetros de fios e cablagens, megapalcos, supertendas, barracas, tonéis de cerveja cheios e escorropichados e cheios e escorropichados vezes sem conta nem medida, toneladas de lixo e pés, decibéis à solta, ameaços de terramotos, aluimentos, quem dera que não chova, Deus queira que não caia. Há vedações e avisos, pedimos desculpa pela interrupção, o parque segue dentro de dias, prometemos deixar tudo como estava. E quem estiver mal, que se mude...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Ambiente.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Lapsus linguae

Entrou de rompante e gritou: mãos ao ar, isto é um assalto! Ficou admirado. O que ele queria dizer era: alto e pára o baile! - desesperado com aquele forrobodó todas as noites no andar de cima. Mas estava dito, estava dito: desceu com um LCD de 100 polegadas, uma mesa de DJ, seis colunas de som surround, um globo espelhado, oito CD do Quim Barreiros, dois tablets, quatro telemóveis, sete relógios - um de sala -, seis pulseiras, cinco colares, doze pares de brincos, dois pacotes de batatas fritas, meia piza familiar de cogumelos e fiambre com extra queijo, um pacote de Sugus morango e framboesa, nove gramas de haxixe, garrafa e meia de vodka, duas canecas de sangria, vazias, três garrafas de Casal Garcia, treze cartões de crédito, um vale de reforma e 837 euros em numerário.

P.S. - Hoje, 1 de Outubro, é Dia do Leitor de CD.

sábado, 10 de julho de 2021

Lapsus linguae

Entrou de rompante e gritou: mãos ao ar, isto é um assalto! Ficou admirado. O que ele queria dizer era: alto e pára o baile! - desesperado com aquele forrobodó todas as noites no andar de cima. Mas estava dito, estava dito: desceu com um LCD de 100 polegadas, uma mesa de DJ, seis colunas de som surround, um globo espelhado, oito CD do Quim Barreiros, dois tablets, quatro telemóveis, sete relógios - um de sala -, seis pulseiras, cinco colares, doze pares de brincos, dois pacotes de batatas fritas, meia piza familiar de cogumelos e fiambre com extra queijo, um pacote de Sugus morango e framboesa, nove gramas de haxixe, garrafa e meia de vodka, duas canecas de sangria, vazias, três garrafas de Casal Garcia, treze cartões de crédito, um vale de reforma e 837 euros em numerário.

P.S. - Hoje, 10 de Julho, é Dia Mundial da Pizza.

domingo, 15 de julho de 2018

Luísa Villalta 3

Ritos de resisténcia

Isto é poesia, un ruido provocado.
Non ornamento, arabesco para as pontas dos dedos:
inecesários encaixes para a alma dormir ou sentir
a levedeza da onda cando apenas chega a romper.
Provocación de boca con fame, isto.
E a fame adormece
ou reclama.
Fronte á rutina, o rito da palabra tensa a pel
do mundo: un tambor que desperta.

A pel estremece-se
porque recoñece a morte que baila fóra da tumba.
Isto é tamén unha muller que resiste.


"Ruído", Luísa Villalta 

(Luísa Villalta nasceu no dia 15 de Julho de 1957. Morreu em 2004.)  

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Luísa Villalta

O ceu cobrou unha cor que facia pensar.
Era a hora en que as botellas se rompen para dar paso ás
profundidades.
Atrás quedaban as cores álxidas, mortas de sono. O calor
enfriaba-se no bisturí do horizonte.
Os nenos, de cóbados na xanela, enfrontaban a história
inconscientes, nun palpebrexo tan veloz como a infancia.
Pero aínda hai un cambio posíbel que se reserva no
bolso, un remanente da derrota, para mirar arredor.
Non nos estábamos separando, por iso nos recoñecemos.
Fitabamo-nos na cita imprevista, sen saber quen nos
chamou ao fio da noite.


"Ruído", Luísa Villalta

(Luísa Villalta nasceu no dia 15 de Julho de 1957. Morreu em 2004.)