O homem que ia desaparecer perdeu-se nas profundezas do seu problema... Ao voltar a si passou o lenço na testa úmida. A inexistência de todos os problemas. O compromisso que tinha assumido que cuidasse de si mesmo. Ele ia, isto sim, ver Maria Auxiliadora. Tomou o ônibus e no caminho deixou-se invadir pelo salgado travo de onda e de alga que subia das praias de alva areia, a infinita, angustiada fieira de areia que é a única coisa a impedir que as montanhas azuis e o mar azul se dissolvam num único e irreparável azul. O ônibus beirou primeiro a praia de Santa Luzia, depois Flamengo, Botafogo, as vastas areias brancas de Copacabana, Ipanema, Leblon. Quando parou no fim da linha o homem que ia desaparecer saltou e foi andando para a pequena casa em que morava Maria Auxiliadora. Aproximou-se das tábuas brancas do portão, espantadas de vê-lo àquela hora do dia. E lá estava a fascinante casa branca, feito um brinquedo esquecido na grama. Entrou, atravessou o jardim e espiou pela janela da sala de estar. Não viu Maria Auxiliadora, que ainda estaria dormindo. Abriu a porta da frente e ia atravessar a sala, em direção ao quarto de dormir, quando ouviu vozes e riso que vinham de lá. Ia chamar Maria Auxiliadora em voz alta, alegre, mas se conteve e andou até a porta. Ouviu as únicas duas vozes que realmente conhecia bem. Pela única e última vez em sua vida curvou-se até o buraco da fechadura. As venezianas estavam cerradas. Só havia no quarto aquela luz baça e enjoativa na qual se escondem aqueles que preferem não encarar nem o amor. O homem que naquele momento já quase havia desaparecido ouviu a voz do amigo, seguida do riso de Maria Auxiliadora.
"O Homem Cordial e Outras Histórias", Antônio Callado
(Antônio Callado nasceu no dia 26 de Janeiro de 1917. Morreu em 1997.)
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