terça-feira, 4 de novembro de 2025

O troglodita e os poliglotas

Ele diz que é troglodita, isto é, que fala várias línguas, e pôs no currículo. Poliglotas, costuma explicar, eram os gajos dos dinossauros, com uma moca ao ombro e as mulheres arrastadas pelos cabelos.

A última folha

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Sete minutos e quatro centímetros

Um pé assim e outro assado
Ele tinha um pé de laranja lima. O outro era normal, perfeitinho graças a Deus: cinco dedos, tarso e metatarso, planta ou sola, peito ou dorso, calcanhar e tornozelo, num total de 26 ossos em razoável estado de conservação. E era bom nas bolas paradas.

Eu não vi. Àquela hora tenho habitualmente mais que fazer, como por exemplo dormir, coisas de velho. Mas ouvi dizer, logo pela manhã, enquanto fazia a minha caminhada pelo Passeio Atlântico, ali em baixo, à beira do mar. Não se falava de outra coisa. Que passavam sete minutos e faltavam quatro centímetros, diziam, e eu fiquei deslumbrado com a descrição da "jogada", tão precisa, tão matemática, tão literária, tão fácil de imaginar, tão bela, tão diferente do tempo em que era uma bola a pinchar e onze contra onze, coisa de moços, de gente simples! Ó, a beleza do futebol moderno! Mas qual dominou com o peito e rematou sem deixar cair. Mas qual "ripa na rapaqueca", mas qual "vai buscá-la, Tibi", mas qual drible, ginga, revienga, trivela, cueca, frango, calcanhar, chapéu, fífia, rasteira, ressaca ou sarrafada, finta um, finta dois, finta três e dispara por cima do guarda-redes, sem hipótese, ao ângulo, na gaveta, "lá onde a coruja dorme!", mas qual "passa a bola!", como dizia o nosso Aníbal, mas qual golo de bandeira, estádio de pé, orgasmo do povo! Isso já não interessa. Não. Passavam sete minutos e faltavam quatro centímetros, isso sim, era disso que falavam no "pós-match" de café, foi isso que aconteceu para a história, minutos e centímetros, tempo e espaço, VAR. Compensação de neutralizações e linha virtual de fora-de-jogo. Tecnologias. Tácticas e habilidades não são assunto, a fantasia é dispensável, omitida, discute-se o relógio e o tamanho da chuteira, quarenta e três biqueira larga. Sete minutos e quatro centímetros. O futebol hoje em dia é de contar pelos dedos.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

domingo, 2 de novembro de 2025

Uma frase enigmática

Agora é assim. Uma pessoa famosa por ser famosa, equilibrada ou tola, por sistema ou em episódio, isso para o caso não interessa, escreve uma palermice qualquer sem sentido nem gramática nas redes sociais, os jornais apressam-se a "noticiar" que essa pessoa famosa por ser famosa, isto é, por dar nos jornais, publicou "uma frase enigmática". E publicam a "frase enigmática". Não se sabe o que é, ninguém sabe nem precisa de saber o que é, mas os jornais "metem" cá para fora. E nisto estamos.

Era tão fácil a morte em Fafe

O testamento
O notário vacilou. Mas leu. O defunto deixava beijos e abraços. Distribuídos pelos inúmeros herdeiros em fracções de zero a 145, consoante o julgado merecimento de cada qual. Dinheiro não havia. Tinha ido todo em putas e vinho verde. Isto é, em beijos e abraços.

Um folheto que me foi metido na caixa do correio convidava-me a escolher "um Plano Funerário adequado". Adequado a quê e para quem?, se conto estar morto quando for o meu funeral e quero lá saber de mordomias póstumas - foi o que então pensei, e já lá vão alguns anos. O papel dizia que havia um "Plano Magno", praticamente como o gelado, um "Plano Essencial", que não faz bem nem mal, e um "Plano Popular", como o ex-CDS. Em qualquer dos casos, eram garantidos "serviço personalizado a partir de 995 euros" e uma vasta "experiência", o que também deixa muito mais descansado o defunto mais exigente. "Florista, Campas e Lápides, Documentação Oficial, Serviço Internacional, Música na Cerimónia, Medalha Impressão Digital, Cinzas ao Mar, Financiamento sem Juros, Contrato de Funeral em Vida", estava trudo previsto.
A caixa do correio mete-me medo. Não tanto pelas contas da luz, da água ou do condomínio, tampouco pelos avisos das Finanças ou do Tribunal, mas principalmente pelos que me perguntam pelo meu ouro e eu não os conheço de lado nenhum, pelos que me pedem o meu voto e não me conhecem de lado nenhum, pelos que querem comprar a minha casa que eu não quero vender, pelos que me querem vender uma casa que eu não quero comprar, pelos que querem que eu mude de Deus, e agora até pelos que me querem vender a minha morte como se soubessem alguma coisa da minha vida que eu não sei, ainda por cima aliciando-me com extras e regalias redundantes, luxos próprios para defuntos vaidosos, como se por acaso eu estivesse mortinho por fazer figura.
Vamos lá com calma. Eu sei que ninguém fica cá para a semente e que se alguém ficar sou eu (mas não é isto que aqui interessa). Sei que fatalmente já por cá andei mais tempo do que aquele que me resta para andar. Mas, com franqueza, a vida é tão boa e dá-me tantas consumições, que tenho mais que fazer do que pensar na morte, do que organizar a minha morte. Quando eu morrer (se morrer), logo se verá. Eu é que já não verei, e não me faz diferença nenhuma. Que se amanhem! Essa é a herança que deixo de bom grado a quem me sobreviver. Se alguém houver.

Era tão fácil a morte em Fafe. Morria-se e tínhamos logo à porta, como se estivessem à espera, de fita métrica na mão, patrões ou emissários, o Albano da Costa ou o Damião Monteiro, que dividiam o mercado talvez ela por ela, cada qual já sabia quem eram os seus, e, mais tarde, também o Baptista de Antime, que alugava altifalantes e fazia funerais "de categoria", como afiançava o Zé Maria Sapateiro, e nunca ninguém o desmentiu. Na hora da morte, a escolha da funerária, para os fafenses, era simples: baseava-se nas amizades, nas ligações familiares e, definitivamente, em favores devidos a este ou àquele cangalheiro, homens importantes, influentes, e com negócios e interesses vários e poderosos na vida da vila antiga.
Às vezes, para enterros nas aldeias à volta, algumas delas, por aquela altura, ainda sem estradas de lei ou sequer caminhos transitáveis, os agentes funerários requisitavam a carreta dos Bombeiros, puxada e manobrada à mão por um piquete fardado de gala, com luvas brancas e capacetes dourados reluzindo ao sol, coisa bonita de se ver. Nestas infaustas e solenes ocasiões, os bombeiros de serviço recebiam uma pequena gratificação, a bem dizer simbólica, decerto saída do pagamento da funerária à corporação, e, após as exéquias, no regresso do cemitério, eram amiúde agraciados pela família enlutada com uma generosa merenda, que constava, regra geral, de bacalhau frito, broa e umas boas malgas de verde tinto, evidentemente, nem que fosse apenas manhãzinha.
Publicidade a respeito de funerais, naquela maré, em Fafe, a única que havia era a do gato-pingado biscateiro e apressado que andava de loja em loja, de café em café, de tasco em tasco, a deixar o tradicional aviso em papel do falecimento e do enterro, para colocar nas montras, mas explicando sempre de viva voz, em todos os locais, quem era exactamente o morto, o seu enquadramento familiar, irmãos, pais ou filhos, se fossem mais conhecidos, uma ou outra nota biográfica, empregos, alcunhas, se as houvesse, hora e morada, porque naquele tempo os defuntos saíam de casa, tudo dito muito rapidamente, entrada por saída, uma e outra vez, numa espécie de lengalenga previamente ensaiada, porém aberta a perguntas, e eu gostava muito de ouvir aquilo, como se fosse um teatro, uma récita, eu dava realmente valor ao trabalho do homem. O gato-pingado, para mim, era um artista.

Devo confessar, já agora, que o prospecto que me enfiaram na caixa do correio acabou por aguçar a minha curiosidade. Esse é, afinal, o truque do marketing, mesmo do marketing de trazer por casa. Porta a porta. Admito que estou a pensar pedir um orçamento para a minha morte. Seduziu-me aquela coisa da "Medalha Impressão Digital", que não sei o que é mas deve ser muito bom para o morto. E também quero que me expliquem muito bem explicadinho o "Contrato de Funeral em Vida". Isso é legal? E é saudável? Funeral em vida? Dasse!...

(Publicado ontem no meu blogue Mistérios de Fafe)

Novos Mistérios de Fafe


É no blogue Mistérios de Fafe que eu publico, desde o início do ano, os meus textos sobre Fafe, sobre vidas, pessoas, usos, falares e acontecimentos do meu tempo de Fafe e após, isto é, sobre o modo como o recordo ou quero recordar. Histórias e memórias pessoais, juvenis e profissionais, velhas amizades, cromos e admirações, cenas gagas ou desgraçadas, pilhérias, peripécias, é o que por lá conto. Entretanto, mantenho activos os blogues Fafismos e Tarrenego!, este, mais generalista e "nacional".

(Mistérios de Fafe pode ser visto e lido em - https://misteriosdefafe.blogspot.com/)

sábado, 1 de novembro de 2025

Os dias trocados

A Igreja Católica tem mais de vinte mil santos e beatos com cartão passado e as quotas em dia. Santos populares, que são apenas três, nossos, e os outros todos. Muitos deles de uma santidade nefasta ou pelo menos altamente duvidosa, mas paciência, agarremo-nos então aos vinte mil. E hoje é dia deles todos. Dia de Todos os Santos. É portanto dia de festa de arromba, a romaria maior da Igreja inteira. Seria de multiplicar por vinte mil, digo eu, o pagode sem fim de um São João, de um Santo António, de uma Senhora de Antime, de um Senhor de Matosinhos, de uma Senhora da Agonia, de uma Senhora dos Remédios, até de um Corpo de Deus, mas não, o povo pega no feriado e vai chorar para o cemitério. Chorar os seus mortos, os Finados, os Fiéis Defuntos. Mas isso é só amanhã, criaturas!...

P.S. - Hoje é Dia de Todos os Santos.

Construindo o Natal

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Com cem mil coiotes!

Branca e radiante
Branca de Neve brincava às casinhas com a casa dos sete anões. Com os anões ela brincava aos médicos. Mas não sei se, hoje em dia, isto se pode dizer.

Conheci muito bem Walt Disney. Ele falava brasileiro e dava aos sábados ou domingos à tarde no televisor a preto e branco do café Peludo, em Fafe. O Sr. Walt Disney, que tinha um bigodinho à Peter Sellers com bigode, isto é, à inspector Clouseau, não só falava muito bem brasileiro como, para mim, era mesmo brasileiro, por isso é que se chamava Walt Disney, nome próprio de jogador de futebol, talvez centroavante, e podia muito bem ter vindo jogar para Portugal, mas parece que não veio. Uma coisa é certa: foi ele quem me apresentou a figuras extraordinárias e tão importantes para a minha vida como o Zé Carioca, o Professor Pardal e o Lampadinha, os Irmãos Metralha, o Tio Patinhas, o Pato Donald e os sobrinhos trigémeos Huguinho, Zezinho e Luisinho, todos também a falarem muito bem a língua portuguesa, quero dizer, o brasileiro, o que me enchia realmente de orgulho.
Tive bons mestres. O Sr. Walt Disney e o nosso Marreca, é esse o nome que trago na memória, esperto alfarrabista das mil e uma coboiadas estabelecido naquele "coté" encravado debaixo das escadas da Arcada, do lado do Club Fafense, minúsculo quiosque de um janelo só que era porta aberta para o mundo. "Mundo de Aventuras", "Condor Popular", "Ciclone", "O Falcão". Luís Euripo, Mandrake e Lotário, Tarzan, Kalar, Cisco Kid, Texas Kid, Kit Carson, Fantasma, Buck Jones, Major Alvega, Matt Dillon e Chester, velhos companheiros de jornada, heróis de trazer para casa. Os livrinhos, depois de lidos e relidos, levávamo-los de volta, para a troca, em perfeito estado de conservação, o que só os valorizava, num sistema que funcionava muito bem, entregávamos, por exemplo, seis e trazíamos, por exemplo, três, o negócio era feito a olho, mas mesmo assim valia a pena, principalmente para o quiosqueiro, isso também era fácil de ver.
Aprendi bastante. Foi por estas e por outras que eu fiquei a saber que forasteiros são pessoas que vêm de fora, no faroeste, e portanto deviam era ser faroesteiros, deve ter havido engano, fiz a proposta de alteração aos dicionários, em devido tempo, mas, como sempre, ninguém me ligou. Foi nestas leituras que eu me enriqueci com expressões tão magníficas e úteis ao nosso dia-a-dia como, para não irmos mais longe, "Por Manitu!", "Saca, cão!" ou "Com cem mil coiotes!", e está é a minha preferida. Nos livros aos quadradinhos, Walt Disney já era a cores e ensinou-me, por outro lado, palavras bem portuguesas e bonitas como cadê, sgrunf!, pilantra e sobretudo carona, de que eu gostava muito, quase tanto como gosto ainda hoje da palavra parreca, que eu já conhecia de ginjeira das nossas feiras e romarias, desde pequenino, parece impossível...

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

Não pirilamparás!

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Recordações da casinha amarela

A idade não tem idade
Às vezes penso. Que idade terá uma mulher que diz que tem cinquenta anos?

Fui tratar da renovação do cartão do cidadão e, é preciso ter azar, foi rápido, correu tudo muito bem. Despacharam-me em menos de um quarto de hora. Eu contava passar a tarde inteira refastelado numa das cadeiras partidas das instalações de Alferes Malheiro, embora tivesse marcado para as catorze um encontro com o Lopes e com as bifanas da Conga, mas ainda não era meio-dia e já me despejava no meio da rua sem saber o que fazer com os seguintes cento e vinte e tal minutos da minha vida. É isto, desabituei-me de ir à Baixa do Porto. E, ainda por cima, não sei falar inglês.
Ameaçava chover. Vi uma daquelas livrarias de campanha montada mesmo à frente do meu nariz, no largo da estação de metro da Trindade, e entrei. A mania dos livros apanhei-a em Fafe, mal aprendi a ler, na biblioteca que na altura se chamava da Gulbenkian e lembro-me muito bem da carrinha cinzenta em chapa canelada, a biblioteca itinerante, que frequentei uma ou duas vezes, mas o meu sítio já era edifício, creio que um primeiro-andar entre a loja do Damião Monteiro e a esquina que dava para a Polícia e em cima ou por baixo da Legião Portuguesa, o que certamente justificaria que fosse ali mesmo em frente a meta de partida e de chegada da corrida de jericos dos 16 de Maio. Entrei, dizia, tornando ao Porto e à livraria bimby. Lá dentro, o refugo do costume ao habitual preço da uva mijona, nada de razoavelmente interessante, mas às vezes nunca se sabe...
Uma simpática funcionária, diria entre os trinta e muitos e os quarenta e poucos, abeirou-se-me e perguntou, de sorriso engatilhado:

- Posso ajudá-lo?
- Ando só a ver, muito obrigado. Mas, já agora, diga-me, por favor: tem alguma coisa do Montalbán?
- De quem?
- Do Vázquez Montalbán, histórias do Pepe Carvalho...
- Quem?
- Pepe Carvalho.
- Saiu este ano?
- Não. No geral, são livros já com uns anitos...
- E o género?
- Policial, talvez. Mas dizer policial é dizer muito pouco. Policial literário e gastronómico, se for possível, e de repente não sei dizer melhor...
- Pepe Carvalho? Esse autor acho que não temos.
- Desculpe. O autor é Manuel Vázquez Montalbán. O herói dos livros é que se chama Pepe Carvalho, detective privado de origem galega e estabelecido em Barcelona, uma espécie de Sherlock Holmes espanhol, mas mais verosímil e versão séculos XX/XXI.
- Então é conhecido em Espanha...
- Quem? Eu?
- Não. Esse tal Pepe....
- Acredito que sim, e em Portugal também. E no resto do mundo, se calhar. Não é que seja abonatório por aí além, mas até já fizeram filmes de um ou dois livros do Montalbán, quer ver?

Resolvi ser eu a ajudar a solícita porém desinformada funcionária. Por falar em Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), eu andava exactamente a reler a Série Pepe Carvalho que as Edições ASA em boa hora começaram e em má hora interromperam, após a eucaliptal intervenção da Leya. Fui à mochila e saquei o "Assassinato no Comité Central", que por acaso acabei ainda na espera desse princípio de tarde. Expliquei à senhora:

- Vê?...
- Ah! Montalbán é que é o autor. Eu estava a perceber que Pepe Carvalho é que...
- Esta era uma belíssima colecção da ASA que infelizmente...
- Ah! Livros da ASA não tenho.
- Mas Montalbán já foi publicado em português por outras editoras, pelo menos pela falecida Regra do Jogo e pela Caminho, se não me engano, há até uns livrinhos de bolso, tenho um, "As Termas"...
- "Assassinato no Comité Central", esse aí...
- Olhe, foi um dos que deram filme. Neste, quem faz de Pepe Carvalho no cinema é, veja lá, o Patxi Andión...
- Quem?
- O Patxi Andión, o famoso cantor espanhol, o cantautor, o poeta, o escritor...
- Não estou a ver...
- Então, o Patxi Andión, ainda outro dia esteve aqui na Casa da Música...
- Não, não conheço. E até gosto de música espanhola, mas não da música pimba...
- Minha senhora, o Patxi Andión...

Ia gastar mais um pouco do meu atamancado latim para explicar à gentil funcionária o que é realmente música pimba e quem era Patxi Andión (1947-2019), também professor universitário, que visitava Portugal desde o tempo do Zip Zip - de Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz -, ia contar-lhe as amizades antigas do basco nascido em Madrid com Ary dos Santos e com Zeca Afonso, ia confessar-lhe as saudades que eu sentia de o ouvir cantar no rádio da nossa casinha amarela, no Santo Velho, em Fafe, eu ainda menino e moço de seminário, de férias, nas vésperas de nos mudarmos para o Assento, "ay Manuela, ay Manuela!", a minha mãe também gostava, punha mais alto, e eu cantava com ganas, engrossando a voz, comovido, revoltado, militante de não sei quê, "rúmbala, rúmbala, rúmbala", mas desisti. Preferi ser agradável e mentir com quantos dentes tenho, e eram todos menos os sisos inferiores. Disse:
- ... Pois, evidentemente a menina é nova demais para conhecer o Patxi, o Pepe e o Montalbán. A menina é de uma geração tipo mais... tipo.
- Ai não se deixe enganar pela aparência. Estou é muito bem conservada... - devolveu-me a amável funcionária, enfim sorrindo, e corando de satisfação e vaidade.

Ficou cientificamente provado: a ignorância é óptima para a pele, muito melhor do que baba de caracol. A ignorância é o verdadeiro elixir da juventude e quem não sabe é como quem não lê. Por outro lado, as bifanas estavam di-vi-nais, como, em apenas três palavras, diria o meu irmão Nelo, isto é, o Zé Manel. E o Lopes, que me dá livros e parece que é bruxo, trouxe-me naquele dia "O Seminarista", de Rubem Fonseca. "O Seminarista"! Só tenho quem me goze...

(Versão revista, actualizada e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

O novo administrador

Ele tomou posse e imediatamente operou uma revolução completa na frota da empresa. Os veículos passaram a chamar-se viaturas.

P.S. - Hoje é Dia Nacional da Desburocratização.

O fim do papel

Adepto ferrenho da modernidade e do digital, conseguiu finalmente acabar com o papel na sua empresa. Nas casas de banho notou-se logo.

P.S. - Hoje é Dia Nacional da Desburocratização.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O aeroporto é nosso!

Do monólogo ao solilóquio
Tomou a palavra logo a seguir a si próprio, desvanecido com tamanha facúndia. Falou, falou, falou, até que a voz lhe doeu. Então sentou-se e aplaudiu-se entusiasticamente.

Foi no final de 2023. A notícia saiu no insuspeito tablóide britânico The Sun e portanto só podia ser verdade: Fafe era "a cidade mais barata de Portugal". Pelo menos, para inglês ver. Quem me alertou para a magnífica novidade foi o nosso Pedro Dantas, que está lá na Velha Albion e sempre atento a estas extraordinarices. De acordo com o bem informado artigo, que, nem de propósito, confunde o Palacete dos Dantas com a Igreja Românica de Arões, Fafe, "uma cidade pouco conhecida em Portugal", ficou em primeiro lugar num ranking de barateza turística elaborado por uma entidade alegadamente chamada Porto Travel Guide. Mais de cem cidades portuguesas terão sido "analisadas por especialistas", e Fafe ganhou, à frente de Oliveira de Azeméis, Famalicão, Ovar e Amarante, só para se ter uma ideia.
E o que é que Fafe tem? Pois, para além da igreja e do palacete levados ao engano, Fafe tem a Casa do Penedo e a Casa do Santo Velho, na minha rua, e "um enorme parque aquático ao ar livre", embora os indígenas prefiram refrescar-se "no reservatório local chamado Barragem de Queimadela". Para além disso, garante o indesmentível The Sun, Fafe tem "comida e bebida baratas", "restaurantes baratos e hotéis económicos". É pouquinho? Mas é de boa vontade.
Isto aqui vai ser outra vez o fim do mundo, vamos ficar a nadar de camones. E convém que parem imediatamente os estudos uns atrás dos outros que só dão despesa e não vão a lado nenhum. Nem Portela, nem Portela + 1, nem Portela + 2, nem Montijo, nem Alcochete, nem Santarém, nem Pegões, nem Rio Frio, nem Poceirão, nem Beja, nem Monte Real, nem Alverca. Nada disso. O novo aeroporto de Lisboa só pode ser em Fafe! Em Fafe, mais exactamente na freguesia de Golães, cumprindo-se enfim a viperina profecia da maledicência de outros tempos - assunto que metia emigração, maridos fora, mulheres sozinhas, desejo, amantes, adultério, "cornos", portanto "aviões", portanto "campo de aviação", falatório desmoderado, boatos, calúnias pela calada, onzenices, muito veneno e ruindade por parte de quem falava só por falar, e talvez também inveja.
Aliás, Fafe tem uma história muito rica no que diz respeito a aviões, inclusive de papel, helicópteros, cestinhas, papagaios, bolinhas de sabão e produtos afins, uma longa e bonita tradição. Uma vez até caiu um avioneta na Cumieira, que saiu nos jornais e foi o nosso orgulho até hoje. E agora, finalmente, temos o aeroporto, o jackpot, a sorte grande. O novo aeroporto de Lisboa é como o Leites. "O Leites é nosso!" e o aeroporto também.
Ó gente da minha terra, abaixaide-vos! Vai vir charters...

(Versão revista, actualizada e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

Traz água no bico

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Ben-u-ron, uma questão de fé

Viciado em pastilhas
Tomava pastilhas atrás de pastilhas, mas não havia maneira de melhorar. Eram pastilhas de travão e ainda por cima davam-lhe gases. 

A minha sogra gosta muito do Ben-u-ron. Reclama "o meu Banuronzinho" por tudo e por nada, geralmente só para marcar posição de doente diplomada, inscrita na ordem e com as quotas em dia, questão de princípio, mas também para a insónia ou para a sonolência, para a garganta seca ou molhada, para o frio e para o calor, para as correntes de ar e para o mau-olhado, para a diarreia ou para a prisão de ventre, para os arrotos, soluços e espirros, para a flatulência ou para a surdez ou para a anosmia, para as unhas encravadas ou para os pêlos do nariz. A minha sogra só não quer Ben-u-ron para as dores de que se queixa como quem reza o terço em latim ou para a febre que felizmente quase nunca tem, por mais que meta o termómetro. Mas para o resto - isto é, para aquilo que não diz respeito ao Ben-u-ron -, a miraculosa pastilha é trigo limpo, farinha amparo. "Tenho muito fé no Banuron!", justifica a minha sogra. A Joaquininha decerto tem razão, vai a caminho dos 94 anos e, portanto, só pode ter razão. E eu, verdade seja dita, questões de fé não discuto...

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

Está na mala...

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Nem tanto ao mar nem tanto à terra

À batatada
Há muito que andavam esquinudos. Um dia sentaram-se à mesa, barafustaram-se, cresceram-se, amansaram-se, tomaram-se de palavras espertas e resolveram tudo à batatada. Com bacalhau.
 
O meu sogro tinha uma máxima a respeito de bacalhau que talvez não seja de deitar fora. O Sr. Carvalho, que foi um garfo de primeira enquanto pôde, declarava, na sua infinita simplicidade: - Se me derem bacalhau todos os dias, para mim está muito bem e até agradeço.
E o meu sogro só sabia de meia dúzia das mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Mas não era esquisito, estava servido.
Já a minha sogra, que vai a caminho dos 94 anos e continua sem razões de queixa do apetite, tem uma visão mais ampla do universo, outra sabedoria. E defende que a vida é composta por três qualidades. Costuma filosofar, aliás, a esse propósito: - Nem sempre carne e nem sempre peixe. De vez em quando também é preciso comer um bocadinho de bacalhau.
Exactamente. Carne, peixe e bacalhau, as três espécies sobreviventes após a liquidação dos dinossauros. A minha sogra, que nunca na vida deixou o meu sogro ter razão, é que está certa. Este mundo não é só bacalhau. Ainda por cima ao preço a que ele está.

P.S. - Versão revista e actualizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. 

Biblioteca pública (propriamente dita)

Foto Hernâni Von Doellinger

Hoje, 26 de Outubro, é Dia da Biblioteca Escolar. Os livros, como se sabe, são desperdícios que não servem sequer para amparar a perna manca de uma mesa de cozinha.

domingo, 26 de outubro de 2025

Agora lave-a!

Ouça lá: já mudou a hora? Não se esqueça de a pôr para lavar.

São Balsemão

Não me lembro de alguma vez ter falado com Francisco Pinto Balsemão (1937-2025). Nada tenho a contar a meu respeito, a propósito da sua morte. Sei que sou o único, mas é assim. Conheci-o, evidentemente. Sempre me pareceu um político sério e, como pessoa, um tipo porreiro. Sobretudo, eu gostava de o ouvir dizer "tamém" em vez de também, porque berço é berço, que se lixe a gramática. Dizem que era um bom patrão, quem me dera tê-lo tido. Agora, se bem conheço o Francisco Pinto Balsemão com quem parece que nunca falei, não creio que ele aprecie particularmente a canonização bacoca que se lhe sucedeu.

No tempo dos jornais

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 25 de outubro de 2025

Os 160 mil benfiquistas

Que seis milhões de portugueses são benfiquistas, isso toda a gente sabe. Fomos assim ensinados desde os bancos da escola de cartilha fascista e, hoje em dia, temos aí as televisões democráticas, de manhã à noite, a baterem no ceguinho, para que não nos esqueçamos de quem realmente manda. Desses inquestionáveis seis milhões de benfiquistas, 400 mil são mesmo benfiquistas, isto é, sócios. Desses exactamente mais de 400 mil benfiquistas, mesmo benfiquistas, 160 mil são mesmo mesmo benfiquistas, isto é, pagam quotas. Destes 160 mil benfiquistas com os papéis em ordem, 7.572 de carne e osso votaram hoje "nas primeiras duas horas", de acordo com a SIC Notícias, e mais de 21 mil "votaram até ao meio-dia", segundo a TVI, provavelmente à boca das urnas, logo à noite então é que vai ser. Há recorde na costa! Um sucesso para o País e, verdade seja dita, isto é melhor do que ver autocarrões de clubes de futebol a irem de um lado para o outro na auto-estrada com os alegados jornalista atrás, a fazerem o relato da viagem, geralmente em nome dos seis milhões de portugueses que são benfiquistas.

Testes em massa

Quando, por ocasião da pandemia, o Governo anunciou e promoveu testes em massa, ele pensou e disse: - Sim, evidentemente testes em massa, estou absolutamente de concordo. Mas testes em arroz? E testes em batatas? Que é deles?... 

P.S. - Hoje é Dia Mundial das Massas.

Massa ao quartilho

Um conto de Natal era geralmente uma seca. Já um conto de réis eram mil escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note.

P.S. - Hoje é Dia Mundial das Massas.

As extraordinárias descobertas da ciência

Os cientistas descobriram: os neutrinos têm massa. Os portugueses, de uma forma geral, antes pelo contrário.

P.S. Hoje é Dia Mundial das Massas.

A casa dos horrores

Foto Hernâni Von Doellinger

Mais uma vez. Esta casa e este telhado na Vilarinha, Porto, devem ser muito famosos nas redes sociais, virais, desconfio que é assim que se diz, e fotografias em semelhantes preparos devem andar por aí em todo o lado, mas disso não sei. Porque lá passo todos os dias da semana, sei é que os donos desta casa e deste telhado gostam de assinalar com grandes encenações mais ou menos horrorosas as principais datas comerciais do ano, do Natal ao Dia das Bruxas, do Carnaval à Páscoa, do Dia dos Namorados ao Dia de Comer Caracóis pelo Nariz. Eles, os de dentro, chamam-lhe "Casa das Maravilhas". A mim não me parece. Este ano, para o Halloween, a coisa apresenta-se nestes preparos...

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Os cinemas também se abatem

Fitas...
Não vá em fitas! Máscara de ferro é uma coisa, testa-de-ferro é outra.

O cinema foi sempre a coisa mais importante da minha vida, até deixar de ser. Creio que a última vez em que entrei numa sala de cinema convencional levava pela mão o meu filho, ou vice-versa, para vermos "O Rei Leão", portanto no Verão de 1994 e, lamentavelmente, era a versão portuguesa.
Comecei cedo, ainda de calças curtas e a dar uso nas legendas às primeiras letras que trazia aprendidas da escola. Era o tempo do cinema ao ar livre na parada das traseiras dos velhos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes. Debaixo da escadaria do quartel foi montada uma espaçosa e saudabilíssima cabina de projecção toda ela construída em lusalite, e o terreiro enchia-se de cadeiras e bancos corridos com costas. O operador era o Porinhos, se não me engano, eu via os filmes da janela do quarto do meu padrinho e tio Américo, derivado à falta de idade, depois o cinema acabou sem mais nem menos, sem me avisarem ou explicarem, a parada lá ficou, como o próprio nome indica, e o barraco, de tão jeitoso, aproveitou-se para arrecadação das tralhas do meu avô.
Ainda em Fafe, mais tarde, tornei-me ferrinho do Teatro-Cinema, andei pelas aldeias com o Pimenta, de catrel e altifalantes, a anunciar os "ma-gní-fi-cos" filmes que, pelo Verão, passavam no campo de futebol e eram tão fraquinhos, frequentei bissextamente o salão inacabado do Martinho da Granja, se a memória não me atraiçoa, e fui uma ou duas vezes ao Estúdio Fénix. Entretanto, levado pela vida, tinha-me virado para Braga - São Geraldo e Teatro-Circo -, e para Guimarães - São Mamede e Jordão. Vi cinema, de forma avulsa e por exemplo, em Vila Real, Figueira da Foz, Amadora, Lisboa, Dublin, Roma, Manchester ou Bordéus, onde de momento estivesse e pudesse.
Instalei-me no Porto e não me escapou um: Águia D'Ouro, Batalha, Carlos Alberto, Charlot, Coliseu, Estúdio, Estúdio Foco, Estúdio 400, Júlio Dinis, Lumière, Nun'Álvares, Passos Manuel, Olímpia, Pedro Cem, Rivoli, Sá da Bandeira, Terço, Trindade, Vale Formoso, Chaplin, em Leça da Palmeira, e até o Vitória, na Circunvalação, mas tecnicamente do lado de Rio Tinto, Gondomar.
E agora, que é deles? Onde estão os velhos cinemas do Porto? Fecharam todos? A cadeado? Foram todos ao shopping e perderam-se? Eu sei que também não vou ao cinema há mais de um quarto de século, mas a culpa não é minha: é do meu filho, que cresceu, e isso realmente faz-me diferença.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. O jornal Público faz título hoje: "Neste ano fecharam 37 salas de cinema em multiplex e mais nove estarão em vias de se apagar".

Compras na net

Hoje é Dia de Compras na Net. Mas tenha muito cuidado! Olhe para os dois lados, atravesse a rua e vá ao Lidl.

P.S. - Hoje é Dia de Compras na Net.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Corino de Andrade, o génio imperfeito

O princípio da sabedoria
O princípio da sabedoria é a letra esse. Essa é que é essa.

Uma vez saiu-me a sorte grande e pude falar com o Dr. Corino de Andrade. Mário Corino da Costa Andrade (1906-2005) foi médico, investigador e humanista, uma das figuras de proa da neurologia portuguesa do século XX. Um génio. Foi o cientista que descobriu a paramiloidose, ou doença dos pezinhos, identificada nos meios académicos e clínicos, a nível mundial, como doença de Andrade ou Corino-Andrade. E achava pouco. Fundou, com Nuno Grande, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto.
Corino de Andrade tinha então uns belíssimos 87 anos, em impecável estado de conservação e conversação. Recebeu-me em sua casa, depois de eu lhe ter andado a chagar a cabeça, via telefone, durante mais de quinze dias. Ele não queria nada com jornalistas, recusava-se a "aparecer", estava farto de "chatices". Incomodavam-no a paráfrase, a elaboração escusada, as repetições. "A gente deve reduzir ao mínimo o que tem para dizer, e dizer só as coisas fundamentais, ou que assim nos pareçam, e que possam ajuntar qualquer coisa ao já dito", explicou-me.
Contou-me: aliciaram-no para que escrevesse as suas memórias - recusou, era "uma chatice". A lisonja, a ele, batia-lhe com o nariz na porta. Pretenderam homenageá-lo. Disse-me: "Não quero homenagem nenhuma, Deus me livre! Eu tenho horror, uma espécie de alergia urticária contra as homenagens. É uma chatice. O excesso de homenagens em Portugal é um mau sintoma".
Entusiasmado pelo singularidade daquele encontro, não segurei em mim que não fizesse uma das perguntas mais estúpidas de toda a minha vida profissional: - Mas o senhor doutor deve estar orgulhoso por ter descoberto uma doença, por ver o seu nome ligado a essa doença, não é?...
"Não, meu caro senhor, não é", atalhou mansamente o Dr. Corino de Andrade, com a paciência dos sábios e a astúcia dos malandros, para imediatamente me martelar pelo chão abaixo, com toda a veemência: "Seria um orgulho muito grande ter o meu nome ligado a uma cura, isso é que era genial, mas tê-lo ligado a uma doença, essa é a maior das chatices"...
O Dr. Corino morreu seis dias depois de ter completado 99 anos. E era diferente, não era?

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. De acordo com um estudo hoje revelado, Portugal continua a ser o país do mundo com mais casos de paramiloidose, esmagadoramente no Norte do País, com o distrito do Porto à frente de Braga e Aveiro.

Não coma, fotografe! (e verá que emagrece)

As melhores intenções
De boas intenções está o frigorífico cheio. Depois, evidentemente, é preciso saber cozinhar.

O jornal Público ensinou-nos o que se deve fazer quando "um prato absolutamente fenomenal (ou não tão fenomenal assim) chega à mesa". Foi aqui atrasado, mas vale a pena relembrar. E então como é que é dado fazer? O que fica bem, hoje em dia? "Come-se? Não, primeiro fotografa-se". E coloca-se no Instagram. Isso. Foi o que o jornal mandou. Depois, suponho, mas isto já sou eu a dizer, pede-se a continha, paga-se sem comer, porque a comida entretanto ficou fria, sai-se de casa ou do restaurante chique, enfia-se o boné até às orelhas e vai-se à Esquiça enfardar duas ou três doses de tripas, bem quentinhas, tão em conta, tão comidinha simples, de confiança, previsível, maravilhosamente monótona e humilde, dispensando, por isso, retratos, emojis e outras peneirices. Eu não sei o que é o Instagram (aliás cuidava que se chamava Instragam e só mudei de ideias ainda agora, depois do computador me corrigir cinco vezes), e nem me aquece nem me arrefece que pensem que estou a mangar. Sei é de cozinha, de comida, e de jornalismo também dou uns toques, modéstia à parte.
Quem escreve sobre gastronómicas matérias no excelente jornal da Sonae vê-se que tem inúmeros mestrados e consideráveis doutoramentos em Técnicas de Titulagem, mas também se percebe que é gente que só entra na cozinha para perguntar à mãezinha "o que é o comer". Não nego à partida que estas senhoras e estes senhores jornalistas sejam experts em lasanha pré-cozinhada do Lidl ou em rissóis e bolinhos de bacalhau congelados do Pingo Doce, posto que o patrão, também dono do Continente, não saiba. Falta-lhes é o resto, a basezinha, como diria o nosso Eça, que, esse sim, sabia de mesa.
Vamos supor: um prato realmente "absolutamente fenomenal" como, para não irmos mais longe, um arrozinho de grelos com fanequinhas fritas, à moda do que se fazia em Fafe e eu faço cá em casa. Chega à mesa e tira-se-lhe fotografias - deste e daquele lado, do direito e do avesso, de ângulo aberto ou fechado, visto de cima ou de baixo, de luz acesa ou com flache, esperando que o vapor se evapore, que só embacia - em vez de se lhe garfar com toda a galhardia? Então vou explicar o que se passa neste ínterim: o malandro do arroz coalha, fica arroz de hospital, como lhe chamávamos, argamassa de atirar às paredes, e as fanecas, esse peixinho tão honesto e merecedor, esfriam, perdem a graça, afeiam-se, desapetitam-nos. Uma calamidade!
E atenção que as fanequinhas frias ainda vá lá, mas no tasco e no Verão. E verão que tenho razão (esta veia poética que não me larga), quando um dia perderem a cabeça e experimentarem, o Verão e o tasco. Já o arroz segue directamente para o balde do lixo, tamanha dor de alma ainda por cima nestes tempos agrestes de cotão nos bolsos e tanta fome na rua.
Também é verdade: há pratos que são como a vingança, devem ser servidos frios, e por isso até se chamam pratos frios. E estes podem ser fotografados à vontade, à moda das sessões de casamento, quero dizer, entre as oito da manhã e as seis da madrugada do dia seguinte, sempre a dar-lhe. Quanto ao resto, se for possível, ficai quietos! Creio que posso dizer melhor: respeitosamente, comei fotografias à vontade se, tipo, vos souber bem, se vos fizer bem, ele há dietas para todos os gostos e de todos os feitios, mas, e este é o limite, a famosa linha vermelha, não me instagreis a comidinha a sério (à séria, se por azar lido em Lisboa).
Já agora, para os mesmos: um tasco é um tasco. Uma tasca ou uma tasquinha são outra coisa...

A este respeito e outros. Gosto muito do seguinte poema de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), que faço questão de partilhar:

Dobrada à moda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

O Céu pode esperar

Para falar com Deus
Tomou horas, foi para a fila, tirou senha, esperou vez, chamaram-lhe o número, acostou finalmente ao balcão das informações e perguntou: - Para falar com Deus, falo com quem?...

Manhã cinzenta de Outono a ameaçar chuva. No chão de cimento do pequeno cemitério, bem varrido, jaz, abandonada e fria, uma senha de vez. Aos meus pés, o famigerado ticket, ou tiquê, como nos dá muito mais jeito dizer, e dá-nos sempre muito mais jeito dizer mal. Vergo-me e apanho. "Sua vez", avisa a senha número E29, como se soubesse alguma coisa da minha vida que eu não sei. Da minha vida ou da minha morte. E manda, "Puxe". Puxei, quero dizer, pensei: poderia dar-se o caso de ser esta a solução desenterrada por espertos sepultadores para organizar as dezenas ou centenas de defuntos que diariamente se acotovelam aos portões dos cemitérios sobrelotados, à espera de vez, à espera de vaga. (Os mortos portugueses têm geralmente medo de serem queimados vivos e, como resultado, num país com uns económicos 92 mil quilómetros quadrados, os nossos campos-santos rebentam pelas costuras, as campas não chegam para as encomendas.) Mas não: a coisa não é assim tão terrena, pensei melhor, isto vem, upa, upa, lá de cima. É assunto de almas e não de corpos. É. O Céu está equipado com pelo menos um dispensador de senhas de vez, tive a certeza e tinha a prova na palma da mão. Percebi tudo. Queres a salvação eterna? Tira o número e vai para a fila, essa é que é essa! "Mas que bizarra epifania, mas que desgosto tão grande, lá se me foram os fundamentos" - lamuriei-me, rangendo os dentes. - "Até Tu, meu Deus?! Que tristeza! Onde o negócio e a burocracia já chegaram"...
O meu número é o E29, calhou-me, não sei em que número vai, mas, palavra de honra, estou sem pressa. Dou a vez.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

terça-feira, 21 de outubro de 2025

O autógrafo do Tino

Foto Tarrenego!

O Tino, o imprescindível Tino, estava de partida para a "Quinta das Celebridades" da TVI com a missão mais que encomendada de fazer figura de urso, isto lá pelo ano de 2005, se não estou em erro. O meu jornal, que só tratava de assuntos assim importantes, mandou-me a Rans cobrir a festa de despedida do herói local, que meteu comes e bebes, família, vizinhos, amigos, os dois penetras do 24horas, muitos abraços e algumas lágrimas. Um exclusivo à moda antiga. O Tino, que é um cromo mas não é tolo, teve a gentileza de oferecer-me o seu livro "De Palanque em Palanque", inesperadamente prefaciado por D. Manuel Martins, e acrescentou-lhe uma profética dedicatória, sarrabiscada mesmo antes de entrar para o carro rumo à capital. Escreveu: "Hernâni, espero-te quando sair da Quinta em ombros. Rans sairá em ombros também." E assinou: "Tino de Rans".
Eu não sei se o Tino saiu em ombros, decerto não, mas sei que não fez figura de urso enquanto esteve na Quinta. Fez com que outros fizessem por ele, e já não foi pouco. Repito: o Tino não é lerdo, apenas se esforça por parecer. E goza o prato...
De resto, para mim, o Tino de Rans é praticamente presidente da república. Por isso guardo com tanta vaidade o livro e o autógrafo com que ele me agraciou.

P.S. - O Tino voltou às notícias, conforme tanto gosta. Diz que vai ser outra vez candidato à Presidência da República, e faz ele muito bem.

Matosinhos convida

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Fafe era o fim do mundo

Dou abraços em segunda mão
Caro Amigo,
Lembrei-me de te escrever hoje. Há que tempos, não é? Andei a mexer nas gavetas, faço-o uma vez por ano, sei lá eu porquê, e no meio da papelada encontrei meia dúzia de abraços antigos mas ainda em razoável estado de conservação. É o que me resta. Acho que é uma pena deitá-los fora. Vou mandar-te um. Espero que te sirva.

Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e, quase sem dar fé, quando acordava já estava em Fafe, porque não havia volta a dar, o mundo acabava ali mesmo, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era também o fim da linha da CP. Ou o princípio, consoante o ponto de vista. Mas, chegando a Fafe, saía-se do comboio e da estação, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo através da Avenida e fazia-se vida. Se vierem num instante à minha terra, que agora tem um comboio de corpo presente, ainda vão encontrar quem conte como conseguiu. Perguntem ao Gino, que se fez fafense assim. Fafe acolhia realmente bem.
De Fafe, ia-se para a guerra de comboio. A Fafe, chegava-se da França de comboio. Fafe e o comboio eram unha com carne. A Estação, assim com maiúscula, era a nossa praça de despedidas e reencontros, o nosso vale de lágrimas.
Passou-se. Depois, sem mais nem menos, os fafenses foram todos para os carros a duzentos à hora, pelo menos três carros em cada família, e a automotora começou a madrugar só para mim, para me levar ao namoro no Porto e tornar-me a casa à noite, eu sozinho como passageiro, às vezes no Inverno lá à frente na cabina, gentilmente convidado, junto com o maquinista e o revisor, para aproveitar o aquecimento. Fafe desistiu do comboio, mas em grande estilo, coupé, mandou-o dar uma curva e queixou-se muito quando lho "tiraram". Hoje em dia faz-lhe festas.
E que se segue? Actualmente o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria, tomaram eles - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde, nem tem comparação, espraiando-se pelos quintais e campos de Sá. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo - muito à frente em termos de sexo, género ou lá o que é.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, para que partilhássemos olás de boca, para que nos abraçássemos com abraços de carne o osso, para que vivêssemos ao vivo, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, cada um por si e todos digitais em parte incerta, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos. E depois levamos com pandemias que nos transformam em ilhas, e quase morremos com um simples "apagão", sós e abandonados. Assustados. Até parece que estamos definitivamente condenados, proibidos uns dos outros.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada o meu blogue Mistérios de Fafe. Mais sobre Fafe, os fafenses e o comboio, aqui, aqui e aqui. Hoje é Dia do Maquinista ou Dia do Maquinista Ferroviário... no Brasil.

Em português diz-se bullying

Foto Hernâni Von Doellinger

Hoje é Dia Mundial de Combate ao Bullying. Isso, ao bullying. Bullying quer dizer bullying, que é como se diz e escreve bullying em português, isto é, bullying. E há quem diga que tudo começou em Fafe. Por outro lado, o uso da palavra "Combate" neste contexto parece-me assim um bocadinho desajustado para a gramática wok de hoje em dia, mas isto sou eu, que sou um tolo - como diz a minha mãe.

(Publicado originalmente no meu blogue Fafismos)

domingo, 19 de outubro de 2025

De bucho cheio

Pela família, tudo!
Convidou a parentela considerada mais próxima, vinte pessoas e treze crianças. Marcou restaurante para as duas em ponto. Encomendou azeitonas, bacalhau assado no forno e tripas à moda do Porto, bebidas e sobremesa à escolha de cada qual. Pediu pratos de plástico, copos de plástico, talheres de plástico, correntes de ar, moscas e se possível formigas. Era a sua vez de organizar o tradicional piquenique de família e ele queria tudo como deve ser.

O bucho é muito importante. Alguns dirão, discordantes e escatológicos, eventualmente especulativos, que o bucho é uma merda, falso e impante, como se tivesse o rei na barriga, e vai-se a ver são gases. Respeito as opiniões. Eu, porém, cinjo-me aos factos, e não há muita volta a dar. E o que sabemos e está provado é o seguinte: o bucho é tão importante que até tem dia internacional. Exactamente. O dia 24 de Outubro, por acaso também adstrito a outras celebrações talvez mais atinadas, é Dia Internacional do Bucho. Pelo menos no Brasil, que tem dias para quase tudo, até tem o Dia do Pirulito, mas não é por aí que vamos agora. Assim simplesmente chamado, bucho, o bucho é bucho de porco. E que mais? O bucho serve para a nossa alimentação, como se dizia antigamente nas redacções da escola primária, e reconheço-o arranjado de três maneiras diferentes. Estufado como se fosse tripas, isto é, dobrada, mas sem outro acompanhamento senão o molho, tipo moelas nomeadamente de coelho. Recheado, como no Florêncio, em Guimarães, mas aviso já os principiantes que pode ser uma tremenda desilusão e uma despesa escusada e chorada. Ou com molho verde, como eu prefiro guiá-lo cá em casa, embora já não o faça há muito tempo.
A solo, como petisco, para picar, o bucho nunca foi presença habitual nos balcões e escaparates das casas de pasto fafenses. Os nossos tascos, cafés, restaurantes ou pensões, que eu me lembre, que eu tivesse alguma vez provado, nunca estiveram para aí virados. Moelas, iscas de fígado, polvo em molho verde, codornizes, ovos cozidos, filetes ou postas de pescada frita, sardinhas e fanecas fritas, bacalhau frito, pataniscas, bolinhos de bacalhau, punheta de bacalhau, chicharro de cebolada, chispe ou rabo do porco, até ossinhos da suã, isso sim, eram o pão nosso de cada dia, urbi et orbi, mas bucho não, pelo menos não tenho na ideia. Talvez, por extravagância, possa ter acontecido, uma ou outra vez, aqui ou ali, sem o meu conhecimento, sem a minha autorização, mas é como digo, senhor doutor juiz, com os meus olhos eu nunca vi.

Quem lhe dava bom uso, ao bucho, era a querida Tia Laura, que era uma cozinheira de mão-cheia e fazia uma feijoada com tripas de porco tão extraordinária e constada que até os sinos da Igreja Nova tocavam à hora certa só para avisar que a comida estava pronta, meninos à mesa! As "tripas" tradicionais, com sola e folhada de bovino, também lhe saíam às mil maravilhas, e não apenas sete, aliás tudo em que as mãos da tia tocassem, na cozinha, nem que fosse batatas cozidas com bacalhau, transformava-se imediatamente em ouro, era de comer e chorar por mais, de lamber o beiço e ver estrelas. Isso, estrelas, disse bem.
E a Tia Laura guardava sempre um bocadinho para mim, contava sempre comigo após as refeições. Logo desde o princípio, quando casou com o Tio Mérico, e começou, ipso facto, a ser minha tia. Era ainda o tempo da Bomba, eu rapazito mas nunca faltava, e havia um mosqueiro na cozinha, logo à entrada, no canto do lado esquerdo, quem ia por dentro, quase em cima da banca. Mosqueiro, para quem não saiba, era um pequeno armário feito em madeira e com portinhola de rede fina, colocado na parede geralmente ao nível dos olhos de um adulto, e servia para guardar alimentos já cozinhados, mantendo-os arejados e, principalmente, protegidos das moscas. Era desse cofre-forte de miminhos requintados que a minha tia retirava, mal eu chegasse, e só nós dois, um bolinho de bacalhau, um taquinho de bacalhau frito, um filetinho de pescada, duas ou três sardinhinhas, um toquinho de frango ou uma mãozinha de coelho, um rojãozinho, umas lasquinhas de vitela, o que fosse naquele dia, e, apanhando o meu avô de costas, punha-me também uma pinguinha. Eu, valha-me Deus, ficava no céu!
Quando os tios foram para o Lombo, eu segui-os, evidentemente. Era já adulto, passara pelo seminário e pelos Comandos, trabalhava na Marigam, namorava no Porto aos fins-de-semana, mas o meu bocadinho e a minha malguinha estavam sempre lá à minha espera. Quando a Tia Laura fazia a famosa feijoada com bucho e tripas de porco, coisa rara, é verdade, mas creio que geralmente à quarta-feira, ao almoço, no anexo multiusos, garagem, cozinha rústica e salão de refeições, convidava-me de véspera, e isso, na nossa família, era uma distinção inigualável, uma quase medalha, uma coisa, enfim, para ser levada muito a sério, e não se fala mais nisso, senão ficamos todos a chorar...
E eu ia. Dos Fiéis de Deus ao Lombo e vice-versa, sempre a dar-lhe, a penantes, que é a única carta de condução que tenho, ainda hoje, aproveitando todos os atalhos e a inexistência de semáforos, saindo um bocadinho mais cedo do trabalho, chegando um bocadinho mais tarde, a suar por todos os poros, por todos os lados, feito num oito, com os bofes de fora, no limiar da congestão, nem sei como nunca morri e mais do que uma vez. E, no entanto, morreria satisfeito.

(Versão revista e substancialmente aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

Cozinha para o povo

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 18 de outubro de 2025

Às vezes mando passear o telemóvel

Contra tudo o que mais prezo, o meu lamentável telemóvel também está equipado com aquela extraordinária e inutilíssima aplicação a que chamam "pedómetro", embora fosse melhor chamar-lhe "podómetro", mas a que eu chamo "contador de passos". Para ficar satisfeito como um tamagotchi, o contador precisa de dez mil passos diários - e então arrota. E o que é que eu faço? Em dias assim de maior preguiça, peço ao meu filho que me leve o telemóvel a dar uma volta...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Preguiça.

Pó tacho

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Ser pobre é uma chatice

A gula é pecado. Mas a fome não. O catecismo só pode estar errado.

Ser pobre é lixado. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, vaga ideia, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O respeitável jornal Público anunciava, no tempo da troika: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vede bem o que se escrevia e escreve em Portugal e já vamos no século XXI, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles, culpa deles, fossem para a Universidade, aprendessem Inglês. Os pobres não são leitores do Público.

Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é deveras dada a promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Pediam-nos a nós, porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.

Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974. E era desde os bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim acontecia na minha Escola Conde Ferreira. Era só atravessar a estrada, mesmo em frente.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco feito pelo professor armado em médico. Pôr um  carimbo vitalício na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado pudesse saber imediata e inequivocamente quem podia ou não comer a sopa, teria sido talvez uma melhor ideia, mas a verdade é que a coisa não foi por aí.
Claro que já então - no antes do 25 de Abril de 1974, repito, que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa, não sei se me faço entender.

Para quem não sabe ou não se lembra. No casarão onde era servida a sopa às crianças pobres da escola de Fafe, em condições sem condições nenhumas, funcionaram também, que me lembre e não sei se coincidindo, a Câmara Municipal, o centro de saúde e os serviços municipalizados de água e electricidade. Fui lá uma vez, à sopa, para ver como era. E não gostei.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios der Fafe. Hoje é Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza.

Menos dois vereadores

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Comer com os olhos

Miss Universo
Miss Universo desejou paz mundial, amor e pão para todas as crianças. Aniceto desejou Miss Universo.

Eram dois homens, já na segunda metade da idade. Um deles fica à porta, enquanto o outro entra no restaurante. O proprietário, que o recebe no hall, pergunta-lhe "É para almoçar?" e o homem responde "É para dar uma vista de olhos". O dono do estabelecimento, embora lhe apeteça, não disparata: "Faça favor. Isto não é nenhum museu, portanto não paga para ver."
Um ou dois minutos depois, o homem sai. Olha para o amigo que o espera, não falam, e desandam dali no mesmo passo descomprometido com que tinham chegado. Deixo de os ver. Fico a imaginar que vão a outro restaurante, fazem a mesma cena mas trocam de papéis. Assim, à vez, vão comendo com os olhos e já ficam almoçados. Melhor do que ir mastigar o papo seco de nariz amarrotado contra a montra do talho, como vi uma vez em Fafe.
É. Comer com a boca, qualquer dia, vai ser só uma força de expressão.

P.S. - Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Mundial do Pão e Dia Mundial da Alimentação.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Chancas à porta

Foto Hernâni Von Doellinger

Gato-sapato
Faziam dele gato-sapato. Quarenta e dois, biqueira larga.

As chancas eram de pobres. De gente do campo, rota e remendada. Suja. E de choro e ranho em casa, ó mãe eu tenho vergonha de ir assim para a escola, quero uns sapatos como os outros meninos. Efectivamente, os meninos ricos tinham sapatos, botas e sandálias, consoante a estação do ano no tempo em que havia estações do ano, e os paizinhos dos meninos ricos, depois de razoavelmente gastos os sapatos, as botas e as sandálias dos filhos, vendiam o calçado aos pais dos meninos pobres. Vendiam. Na minha terra, os paizinhos dos meninos ricos eram muito ricos e muito da religião e da santamissinha e das procissões e vicentinos, mas vendiam aos pobres - não davam. Vendiam. Se calhar por isso é que eram ricos. Quem dá aos pobres empresta a Deus, quem vende aos pobres é que se safa. Alguns safaram-se, amém.

Chancas é calçado de pau, valha-me Deus! E, no entanto, chancas era bom. Porque abaixo de chancas eram socos, ainda mais miseráveis e lavradorescos, e abaixo de socos era descalço. Sim, descalço. Andava-se descalço no Portugal pré-25 de Abril. Andava-se descalço por necessidade, e quem andasse descalço era multado pela polícia, ia para o posto e até podia acabar na Pide e na cadeia.
Ora, as chancas. As chancas, exactamente como as galochas, estão agora na moda e caras. Suponho que os netos, as netas, os bisnetos e as bisnetas dos ricos da minha terra correm todos a comprar chancas, envergonhando os antepassados que faziam pouco dos pobres chancudos e antigos. Anacrónicos por maldição, os pobres da minha terra calçarão modernamente sapatinho dirópito - e choram por andarem toda a vida ao contrário. Choram. E eu só me dá para rir.

À conclusão: ao andar, as chancas e os socos, batendo em cheio no chão, faziam um basqueiro desgraçado. Dentro de casa, naqueles velhos soalhos gastos, carunchosos e periclitantes, então era um autêntico terramoto, aliás muito bem aproveitado como fundo musical pelos ranchos folclóricos. Mas no dia-a-dia antigo, doméstico, as chancas e os socos ficavam à porta, do lado de fora. Por causa do banzé, da lama e da terra que traziam agarradas dos campos e do quintal, e evidentemente derivado ao insuportável chulé. Insuportável mas honrado.

P.S. - Versão publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Mulher Rural.

A reinvenção das galochas

As mulheres do campo, as lavradeiras, sempre andaram de galochas. Era assim em Fafe, era assim o mundo. Antigamente, para os demais, uma mulher de galochas era de rir, era parola. Agora andar de galochas é moda, as mulheres vão de galochas para o escritório e para o café. Fico à espera do avental. Ainda hei-de ver as madamas a tomarem chá de mindinho esticado e com um molho de couves à cabeça.

P.S. - Versão publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Mulher Rural.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Eleições, futebol, tropa e alguma batota

Dão-se alvíssaras
Perdeu a cabeça e pôs anúncio no jornal. Faz-lhe muita falta.

As eleições locais corriam sempre bem, chovesse ou fizesse sol. Com novas ou velhas freguesias, uniões de facto ou aldeias desavindas, o mapa oficial não interessava para nada, a logística era um pormenor, as chapeladas eram as do costume. Bebiam-se uns copos à boca das urnas e nas urnas propriamente ditas, fazia-se uma almoçarada com o pessoal de serviço de todos os partidos, que eram o PPD e o "da mãozinha", o snobe do CDS mais o comunista, que vinha de fora e era desconfiado e picuinhas. O pai votava pelo filho que, coitadinho, "é deficiente", o filho votava pelo pai que já morreu mas "fazia muito gosto de votar", pai e filho votavam pela avó que "está muito atacadinha" e não pôde vir, e depois a avó vinha, toda gaiteira, e votava também. Havia quem votasse em dois lados, havia quem votasse duas ou três vezes no mesmo lado, havia quem votasse em dois partidos, e valia, havia quem votasse em quantas freguesias fosse preciso, era só pedir, havia quem quisesse e pudesse votar mas não deixavam, havia quem se fizesse de ambulância, havia quem se fizesse de parvo, havia quem chamasse a polícia, havia quem chamasse o gregório, agarrado ao garrafão levado pelo presidente da mesa a mando do presidente da junta. Chegada a hora das contas, ia-se aos cadernos e à acta, acrescentava-se aqui, desarriscava-se ali, seguindo a lei dos vasos comunicantes, rasgavam-se uns papéis que só estorvavam, queimavam-se só para não fazer lixo, noves fora nada, o chato do PCP também assinava, e no fim batia tudo certo. Podeis crer: batia tudo certo. Eram trafulhicezinhas consensuais, amigáveis, vigaricezinhas proporcionais, comedidas, batotazinha no mais escrupuloso respeito pelo método D'Hondt. Ganhava quem tinha mesmo de ganhar. Era, ó meus amigos, a democracia a funcionar, a manifestar-se de dentro de si própria. Autêntica, transparente, normal. Participada.

As primeiras eleições livres, democráticas, com sufrágio universal, realizaram-se em Portugal no dia 25 de Abril de 1975, celebrando o primeiro aniversário da Revolução dos Cravos. Eram as eleições para a Assembleia Constituinte, para a organização da democracia nova em folha, tendo votado cerca de 92% dos eleitores, isto é, quase seis milhões de portugueses. Nunca mais houve uma participação assim.
O acto eleitoral foi vigiado urna a urna pelas Forças Armadas, que enviaram um pequeno destacamento para todos os concelhos do País sem guarnição. Em Fafe, os militares montaram posto de comando no quartel dos Bombeiros, suponho que para aproveitarem a incipiente central de comunicações já existente na corporação. E eu ali, mais uma vez no meio da História, embora correndo por fora, como sempre, rindo-me como um perdido dos velhos polícias fafenses, naquele tempo Fafe tinha PSP, batendo a pala desajeitadamente a um aspirante imberbe e com cara de copinho-de-leite, se bem que quem realmente mandava naquela tropa toda era o Dr. Parcídio Summavielle, em funções de presidente da Comissão Administrativa da Câmara de Fafe, sempre de um lado para o outro, ele é que dava as ordens que eram para levar a sério, ele é que dizia onde se ia ou não ia, o que estava bem e o que estava mal, o que se fazia ou deixava de fazer.
Os soldados traziam rações de combate para o almoço, e foi o que comeram, coitados. A minha tia Laura é que não concordou com aquilo, "não tinha jeito nenhum", teve pena dos rapazes e fez-lhes um tachinho de comidinha boa, quanto mais não fosse para os desougar. Regalam-se os magalas que por ali estavam àquela hora. Já lhes valera a pena a vinda a Fafe. A Tia Laura era uma cozinheira de mão-cheia e, feitio e vocabulário à parte, tinha um enorme coração.

A tropa esteve em Fafe mais duas vezes naqueles tempos de festa e brasa, mas chamada de urgência para meter o povo na ordem. Logo em Maio de 74, com a revolução ainda no ar, o árbitro Porém Luís (1929-2010) só conseguiu sair do Estádio, escoltado por militares que vieram, creio, de Braga, três horas após o fim do jogo da AD Fafe com o Gil Vicente, que terminou 0-0. O Fafe lutava pela subida à primeira divisão e o trabalho do juiz de Leiria (nascido no Barreiro) deixou muito a desejar, principalmente junto dos adeptos fafenses, que, a verdade também é só uma, sentindo-se "roubados", e de cabeça perdida, queriam, a todo o custo, chegar-lhe a roupa ao pêlo. Pelo menos. Em todo o caso, ainda hoje estou convencido de que, se tivessem revistado Porém Luís à saída, as autoridades talvez lhe descobrissem dois penáltis nos bolsos. Um não marcado sobre o nosso Manuel Duarte e o outro não marcado sobre o nosso Valença. A AD Fafe ficou em segundo da zona, foi à liguinha nacional e não subiu.
No Verão Quente de 1975, logo em Junho, quando tudo começou, a sede do PCP de Fafe foi atacada, houve resposta, tiros, um morto, feridos, ameaças de nova investida e de destruição total. Durante a noite chegam os fuzileiros, cabeludos, barbudos, com autocolantes de esquerda nas fardas. Apartam águas, serenam os ânimos e protegem o edifício. O resto foi uma ferida que nunca mais sarou.

(Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe)

Na oposição

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

As rosas do coveiro Gusto Sardão

O caminho da Felicidade
É fácil, facilíssimo. Sempre em frente até ao largo da igreja, vira à direita pela rua com árvores, passa pelo campo da bola e pela sede, torna à esquerda e logo na esquina, encostada ao café e depois do funileiro, há uma casa pequenina com porta vermelha e vasinhos floridos na janela: é aí que ela mora. Ela e os dois filhos. Cuidado com o cão!

No jardim dos meus sogros havia meia dúzia de roseiras razoavelmente produtivas e formiguentas. As flores vinham sempre cá para casa, as formigas às vezes também. Cinco das seis roseiras do jardim dos meus sogros davam rosas vermelhas, mas daquele vermelho sanguíneo, belíssimo, rosas de livro, de cartaz e de filme, e cheiravam a nada, coisa nenhuma, como se fossem de supermercado, de plástico. A outra roseira, exemplar único, logo à entrada, dava umas rosas cor-das-mesmas, numa corzinha envergonhada e pálida, quase pedindo desculpa, e porém manda-me cá para fora um perfume que inebriava a léguas.
Era um cheiro bom que eu já conhecia e me tornava a Fafe, aos meus aromas de infância, enchia-me de saudades. Havia umas rosas assim, selvagens e vibrantes, ao fundo do esmerado quintal da Dona Maria Margarida, na espécie de alameda que descia a propriedade desde a Rua Monsenhor Vieira de Castro, partilhando muro com os terrenos do casarão do Zé de Freitas, que agora é o Aldi, e ia desembocar à Quelha, evidentemente com portão no fim, sempre fechado, quase em frente à velha nora de alcatruzes às vezes movida por boi ou vaca, por inexplicável falta de burros. Que bem que cheiravam aquelas rosas! E logo ali ao lado, na senhorial entrada da Casa do Santo, no pátio empedrado após o portal com brasão, eram as glicínias que emprestavam o seu perfume doce ao ambiente. Que bem que cheirava geralmente a Quelha, sítio de prazeres, amor, pecado e outras necessidades! Que tempos! Entretanto, a casa da Dona Maria Margarida, com vista, foi depois casa do Chiquinho Gonçalves, sem vista, e consta por lá hoje em dia o McDonald's, se não me engano. São outros cheiros...
Mas a nossa roseira. A roseira perfumosa, extraordinária, fora oferecida ao meu sogro, há muitos muitos anos, pelo Gusto Sardão, então coveiro titular do cemitério da então freguesia de Nevogilde, Foz rica, concelho do Porto. Para os registos: Augusto Francisco da Costa Almeida, enterrador de categoria e decilitrador condecorado, creio que uma coisa tem a ver com a outra. O Senhor Augusto - Senhor, para mim, com todo o respeito - era um homem pequeno, queimado, irrequieto, malandro, tinha a voz mais bagaceira que Deus ao mundo botou, muito mais completa do que a do incompreendido disc jockey Bruno de Carvalho ou a do incompreensível actor Joaquim de Almeida, parece que ainda o estou a ouvir, ao coveiro, o que é tecnicamente impossível. Com efeito, um dia o Senhor Augusto resolveu seguir as pisadas da clientela, faleceu ele próprio para não empecilhar o negócio, e actualmente confraterniza com os seus antigos ossos do ofício. Isto é: continua ao serviço, mas agora do lado de dentro. Não sei como nem quem lhe paga a féria. O bom Gusto Sardão era, ou por outra, podia ter sido, penso-o agora, uma figura típica de Fafe, um cromo dos nossos tascos, do Peludo, parece impossível como é que só vim a conhecê-lo no Porto.
Quando o nosso Kiko nasceu, o Senhor Augusto ofereceu logo mil escudos para a conta que a Mi e eu haveríamos de abrir para o menino, e abrimos. O Gusto foi o primeiro dador, no dia 1 de Maio de 1984, antes ainda da Dona Senhorinha Bastos e do abono, está tudo registado no livrinho. Eu não sabia deste uso pós-natal, e, confesso, aquilo, na altura, comoveu-me bastante.
Mas a roseira. A roseira extraordinária, delicada e odorosa, veio exactamente do cemitério, e isso é que eu ainda não tinha contado, e isso é que a torna realmente extraordinária. Do cemitério de Nevogilde, lugar do "santo" Menino Quim, de bruxedos ao portão e de outros espantos. As rosas, por exemplo. Rosas que não alcançavam a exuberância cardiofálica e escandalosa dos antúrios de ficção do fotógrafo Jorge Tadeu, na telenovela brasileira Pedra Sobre Pedra, mas que, na sua modéstia, se ofereciam abertas e feminis, reais, a quem as quisesse e soubesse desfrutar.
Abençoado cemitério que semelhantes rosas deu. Abençoado. Um cemitério assim é uma provocação, um desafio lançado a quem não acredita em nada para além do óbito. Um cemitério como o do coveiro Gusto Sardão dá sentido e utilidade ao serviço pós-morte, mesmo ao pós-vida dos incréus. Deve ser um conforto morrer sabendo que ao menos seremos estrume. E de rosas. Rosas subtis e perfumadas, rosas extraordinárias.

(Versão revista e muito aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

domingo, 12 de outubro de 2025

Até os mortos se salvaram

Os fiéis defuntos
A vantagem dos fiéis defuntos, com o devido respeito, é que não se armam em mortos-vivos. E isso, hoje em dia, já é um descanso.

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao portão de um dos cemitérios da cidade do Porto, zona chique. O bruxedo apareceu ali da noite para o dia, toda a gente se queixou, toda a gente se desviou e ninguém teve coragem de mexer na coisa, de a mandar para o lixo. Nem o padre da igreja ao lado nem os coveiros propriamente ditos. Trabalhar com almas e mortos está bem, desafiar maus-olhados é que não, faxavor de desculpar.
Passou-se um, passaram-se dois, três, quatro, cinco dias, e o galo ali, possivelmente já com o serviço feito e portanto sem mais poderes para gastar, mas nem assim alguém ousou sequer tocar-lhe. O pessoal da Junta de Freguesia, executivo e funcionários, reuniu extraordinariamente e foi unânime, cada um passou a encomenda para o que vinha atrás, ou abaixo, "Eu não, bruxedos comigo não", até que a vizinhança viva reclamou que já não aguentava com semelhante fedor, ciciando padres-nossos e ave-marias, de terço na mão e muitos sinais da cruz mas feitos ao contrário, não fosse o diabo tecê-las...
Ora, o fedor, como toda a gente sabe, é problemática que sobe a instância superior, à alçada camarária. Em conformidade, foram requisitados os serviços de limpeza da cidade, que chegaram ao local do sinistro tarde e a más horas e resolveram o assunto em três penadas. Isto é: não fizeram nada. "Eu também não, bruxedos comigo não", disseram os almeidas, que no Brasil são garis.
Perante o impasse, alguém tirou a mola de roupa do nariz e alvitrou que o Governo mobilizasse os Comandos da Amadora ou enviasse para o terreno o Grupo de Intervenção de Operações Especiais da GNR, outro pediu a presença da Brigada de Minas e Armadilhas da PSP, o espertalhão do costume recomendou o Putin ou o Netanyahu, se era para rebentar com aquilo tudo, um dos dois chegava e sobrava, e a Ermelindinha, catequista e sacristã derivado à escassez de mão-de-obra qualificada, ainda sugeriu que se mandasse chamar o Bruxo de Fafe para fazer a competente marcha-atrás à coisa, tornando seguro o seu manuseamento. Mas a Junta não dispunha de verba orçamentada para pagar a especialistas.
Foi quando um dos da Câmara se lembrou que o Canil Municipal tem um camião com um gancho hidráulico muito jeitoso, uma espécie de braço mandado que podia solucionar mecanicamente aquele problema bicudo, com os homens ao largo e, portanto, sem risco de contraírem agoiros, porque os agoiros, como é do conhecimento geral, têm um certo e determinado raio de acção, potente mas limitado. E assim foi. Ao sexto dia, o todo-poderoso veículo veio e levou a coisa, para sossego enfim de todos os moradores da zona, vivos e mortos, amém.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)