Isolamento. Mas também aquilo não é para qualquer. Exige força, perseverança, saber estar só. É o valor dos resistentes. Ainda aqui há uns bons anos havia fajãs, como a do Cerrado das Silvas, habitadas todo o tempo por uma única família. Cultivavam as suas precisões, invernavam o gado, vendiam lenha a lapas, ali apanhadas no seu calhau. A ingratidão dos elementos, os frequentes sismos que sucessivamente apequenam o espaço, o isolamento do resto da ilha, puderam mais. E quase todos abalaram para as vilas ou para a serra.
As comunicações também não ajudavam. Sem telefone, com o mar imprevisível como derradeiro recurso de ligação, os caminhos não passavam de trilhos, por rochas, escarpas e ravinas, desenhando a encosta. Em algumas fajãs foi até preciso construir um tipo especial de carro de bois, com um eixo mais curto. Mas nem assim se ultrapassavam vias constantemente cortadas por terras e pedras deslocadas. Hoje, de estradas melhoradas, há fajãs que servem às gentes serranas como casa de Verão, onde são passados os domingos e dias santos, ou sazões agrícolas, principalmente no Inverno.
As mais típicas e ainda activas fajãs de São Jorge pertencem ao concelho da Calheta, na parte oriental da ilha açoriana. Vamos conhecê-las. E, porque a jornada é dura, comecemos, para ambientar, pelo mais fácil, mesmo à beira, a Fajã Grande, no mesmo plano e a continuação natural da pacata e bonita vila. Uma fajã urbana, sem os exotismo que iremos encontrar lá mais para diante, do lado de lá da sede concelhia. Por isso - pensou a Câmara - aqui haveria que criar condições de chamamento, inventar o turismo. E vai de construir, encostado ao mar, um parque de campismo com todas as condições tidas por necessárias e servido, como bónus, por uma piscina natural e uma visão ideal do Pico, "o ponto mais alto de Portugal", e do Faial.
Uma carrinha apetrechada para a venda, minimercado ambulante aparelhado de potentes altifalantes, distribui música, engodando os habituais clientes: tornámos à vila. E enquando vamos ouvindo as lamentações do povo da terra, por via do porto - que as obras do Governo Regional melhoraram para pior, tornando o cais quase inoperacional e impedindo por sistema a acostagem do Cruzeiro do Canal ou do Cruzeiro das Ilhas -, aprestamo-nos para o ataque às histórias das fajãs dos Vimes e de São João, ainda a sul, a caminho da ponta do Topo. Vamos de automóvel e subimos a serra por boa estrada alcatroada. À nossa direita vemos e ouvimos o mar, batendo, lá muito ao fundo, numa pequena fajã desabitada, abandonada em ruínas: a da Fragueira. Estão lá, marcados pelo tempo, os restos da casa onde nasceu o maestro Francisco de Lacerda, talento que prestigiou o País pela Europa e pela América.
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Estou a repetir o texto então publicado. Amanhã há mais.)
sábado, 30 de agosto de 2014
Edifício do novo terminal de cruzeiros de Leixões
Foto Hernâni Von Doellinger |
Todos os dias alguém (ou alguéns) passa aqui pelo Tarrenego! à procura das últimas sobre o andamento das obras da nova estação de passageiros do Porto de Leixões. O que eu posso dizer é que a coisa por fora está assim. Por dentro, não sei - não me deixam entrar. A conclusão dos trabalhos esteve prevista para o ano de 2013, foi depois prometida para meados do primeiro semestre de 2014, mas a verdade é que as próximas eleições legislativas são só em Outubro de 2015. Se não chover.
sexta-feira, 29 de agosto de 2014
Fajãs de São Jorge: as terras esquecidas
Aprender dos 92 anos da Tia Maricas que aqueles ares saram maleitas, apaladar a conversa com um gostoso café roubado ao quintal, torrado, moído e coado: tudo na hora, quase, e - insondáveis são os desígnios do Senhor - ao domingo ir à igreja rezar a missa pelo rádio. Milagres das fajãs de São Jorge, nos Açores, paraísos perdidos à beira da desertificação. Ali o tempo não parou. Voltou para trás.
São, ao todo, quarenta e seis. Bordam toda a costa da ilha, mas em maior número na costa norte, mais escarpada. São as fajãs de São Jorge, terras baixas e chãs, de um modo geral formadas por derrocadas de grandes massas ou pela acumulação de materiais de aluvião, ali onde o monte acaba e o mar começa.
Pobremente semeados de casas simples, pequenas adegas rústicas ou palheiros, estes nacos de terreno de excepcional qualidade são um luxo para a vista mas também para os primores da Natureza. Um microclima especial oferece-lhes culturas tão variadas como a da vinha (o singular e controverso vinho-de-cheiro), da batata, da batata-doce, do milho, da banana, entre outros frutos, do inhame, nas encostas, e até do café.
Dois ou três casebres, construídos em pedra solta, quintais em socalcos, aproveitando todas as ribanceiras e os retalhos do solo, uma igreja modesta ou singela ermida, pintam a fajã por sobre o verde luxuriante e imponente da serra e o azul temperamental do oceano. Ambos parecem querer, à uma, engolir aquela indefesa língua de terra.
Parecem retalhos de paraíso, de um paraíso perdido, alheio ainda ao turismo por grosso (para gozo do passante solitário), um espaço esquecido no tempo no meio do arquipélago dos Açores. E, no entanto, são cada vez menos os jorgenses que escolhem a fajã como sítio de vida. O êxodo multiplica-se, as adegas arruinam-se. Sobra um ar de abandono, de vinhas mal cultivadas, de terras deixadas.
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Repito no Tarrenego! o texto então publicado, mas vamos por partes. Amanhã há mais.)
São, ao todo, quarenta e seis. Bordam toda a costa da ilha, mas em maior número na costa norte, mais escarpada. São as fajãs de São Jorge, terras baixas e chãs, de um modo geral formadas por derrocadas de grandes massas ou pela acumulação de materiais de aluvião, ali onde o monte acaba e o mar começa.
Pobremente semeados de casas simples, pequenas adegas rústicas ou palheiros, estes nacos de terreno de excepcional qualidade são um luxo para a vista mas também para os primores da Natureza. Um microclima especial oferece-lhes culturas tão variadas como a da vinha (o singular e controverso vinho-de-cheiro), da batata, da batata-doce, do milho, da banana, entre outros frutos, do inhame, nas encostas, e até do café.
Dois ou três casebres, construídos em pedra solta, quintais em socalcos, aproveitando todas as ribanceiras e os retalhos do solo, uma igreja modesta ou singela ermida, pintam a fajã por sobre o verde luxuriante e imponente da serra e o azul temperamental do oceano. Ambos parecem querer, à uma, engolir aquela indefesa língua de terra.
Parecem retalhos de paraíso, de um paraíso perdido, alheio ainda ao turismo por grosso (para gozo do passante solitário), um espaço esquecido no tempo no meio do arquipélago dos Açores. E, no entanto, são cada vez menos os jorgenses que escolhem a fajã como sítio de vida. O êxodo multiplica-se, as adegas arruinam-se. Sobra um ar de abandono, de vinhas mal cultivadas, de terras deixadas.
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Repito no Tarrenego! o texto então publicado, mas vamos por partes. Amanhã há mais.)
quinta-feira, 28 de agosto de 2014
Apolinário Porto-Alegre
O inverno desatava as madeixas emperladas de gelo, tão triste que magoava o coração e despertava idéias sombrias, como céus e e terras.
Não sei que íntima e mística afinidade existe entre a natureza e a alma humana, que a morte-cor de uma se reflete na outra como em bacias de límpidas águas, que o múrmur surdo e merencório desta, como num tímpano, encontra ecos naquela.
O inverno é um cemitério! Sazão de morte que não poupa a terna vergôntea, nem as catassóis da asa do colibri! Por isso o calafrio que se sente quando ele se aproxima, o terror que vaga na floresta e na campina, a palidez do manto de verduras, a ausência dos cantores plumosos... e depois o minuano! Como é cruel, ele que fustiga a árvore secular, que aspergia doce sombra no ardor da sesta, até lhe arrancar uma por uma as folhas de seu diadema! Que cresta a várzea há pouco vicejante alfombra! que torna a linfa de onda argentina e anodina, fria como uma geleira, silenciosa como um ermo, ingrata ao lábio na exsicação da sede!
Quem pode amar-te quadra sem sombras, brisas, cantos e flores? Período que espasma a vida e congela a flor das alegrias?
"O Vaqueano", Apolinário Porto-Alegre
(Apolinário Porto-Alegre nasceu no dia 29 de Agosto de 1844. Morreu em 1904.)
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
Ainda os nomes: Pica, 6 - Fareja, 0
Fafe tem nomes que são um mimo. Uma terra que tem um lugar chamado Pica e uma freguesia chamada Fareja só pode ser uma grande terra. E Fafe é realmente. Em dia de apuramento para a Liga dos Campeões, Pica e Fareja fizeram ontem um jogo-treino, e o resultado, sendo contundente, não significa nada por aí além, como muito bem explica o sempre atento blogue Montelongo Desportivo.
Mas é preciso que se note: para quem é de Fafe, como eu, Fareja e Pica são nomes absolutamente normais, que só fazem confusão ao jornalista Nuno Azinheira, que chamou Fajães a Fareja, e a uns caralhos de fora que não conseguem passar pela tabuleta da Pica sem lhe meter a cedilha.
Mas é preciso que se note: para quem é de Fafe, como eu, Fareja e Pica são nomes absolutamente normais, que só fazem confusão ao jornalista Nuno Azinheira, que chamou Fajães a Fareja, e a uns caralhos de fora que não conseguem passar pela tabuleta da Pica sem lhe meter a cedilha.
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Sá de Miranda 2
Este retrato vosso é o sinal
ao longe do que sois, por desamparo
destes olhos de cá, porque um tão claro
lume não pode ser vista mortal.
Quem tirou nunca o sol por natural?
Nem viu, se nuvens não fazem reparo,
em noite escura ao longe aceso um faro?
Agora se não vê, ora vê mal.
Para uns tais olhos, que ninguém espera
de face a face, gram remédio fora
acertar o pintor ver-vos sorrindo.
Mas inda assim não sei que ele fizera,
que a graça em vós não dorme em nenhuma hora.
Falando que fará? Que fará rindo?
Sá de Miranda
(Sá de Miranda nasceu no dia 28 de Agosto de 1481. Morreu em 1558.)
ao longe do que sois, por desamparo
destes olhos de cá, porque um tão claro
lume não pode ser vista mortal.
Quem tirou nunca o sol por natural?
Nem viu, se nuvens não fazem reparo,
em noite escura ao longe aceso um faro?
Agora se não vê, ora vê mal.
Para uns tais olhos, que ninguém espera
de face a face, gram remédio fora
acertar o pintor ver-vos sorrindo.
Mas inda assim não sei que ele fizera,
que a graça em vós não dorme em nenhuma hora.
Falando que fará? Que fará rindo?
Sá de Miranda
(Sá de Miranda nasceu no dia 28 de Agosto de 1481. Morreu em 1558.)
terça-feira, 26 de agosto de 2014
Quando o futebol não era para cátias vanessas
Os nomes interessam-me muito. "Diz-me o teu nome, dir-te-ei quem és" - acredito neste ancestral provérbio chinês que acabo de inventar, são as 13h38 do dia 26 de Agosto de 2014, e não no outro, bem intencionado e de autor incerto, "Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és". Millôr Fernandes explicava melhor do que eu o meu ponto de vista: "Judas andava com Cristo. E Cristo andava com Judas". Estamos percebidos?
Portanto, dou-me ao trabalho dos nomes. Quando eu era miúdo marcava no jornal os nomes dos jogadores de futebol que me pareciam esquisitos. Ainda não tínhamos chegado à babel que agora é, mas o Marreca, o Camelo, o Cansado, o Repolho, o Chouriça, o Torto, o Maneta, o Sacristão, o Mouco e o Aguardente enchiam-me de alegria as segundas-feiras. Também gostava muito do Araponga, do Alhinho e do Manaca. O Penteado e o Careca já me apareceram fora de tempo, mas isto é tudo nomes só por exemplo.
Com os nomes sublinhados eu fazia equipas que jogavam umas contra as outras, num campeonato de partir a moca, porque eu imaginava os jogadores exactamente conforme o nome, não sei se estão a ver o Marreca a driblar o Sacristão e o Repolho a entrar de pé em riste ao Camelo.
(Não é preciso ir mais longe: sou de Fafe, uma terra que deu ao futebol e ao mundo nomes tão extraordinários como Ricoca, Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Zebras, Caganito, Trolas, Feira Velha, Machica, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos.)
Sempre apreciei particularmente os jogadores de um nome só. Mas nome de barba rija, se me faço entender. O Freitas, o Gomes, o Antunes, o Meneses, o Martins, o Ferreira, o Oliveira, o Marques, o Almeida, o Lopes, o Carvalho - eram nomes que me punham em sentido. E se os nomes tivessem bigode farfalhudo, inclusive nas sobrancelhas, então ainda melhor. Nomes assim davam-me segurança, transpiravam autoridade, infundiam Respect. O agente Freitas, o chefe Gomes, o comissário Antunes, o nosso cabo Martins, o sargento Almeida, o capitão Carvalho... - estão a acompanhar-me?
Mas já não há nomes assim da boa e velha casca-grossa, e os bigodes de antanho foram de momento substituídos por falsas barbas jihadistas em caras de sobrancelhas depiladas. Temos agora em campo o Rúben Micael, o Emídio Rafael, o Rui Pedro, o Nuno Henrique, o Mário Rui, o Rui Miguel, o João Paulo, o Paulo Jorge, o Cristiano Ronaldo. Enfim, cátias vanessas.
Portanto, dou-me ao trabalho dos nomes. Quando eu era miúdo marcava no jornal os nomes dos jogadores de futebol que me pareciam esquisitos. Ainda não tínhamos chegado à babel que agora é, mas o Marreca, o Camelo, o Cansado, o Repolho, o Chouriça, o Torto, o Maneta, o Sacristão, o Mouco e o Aguardente enchiam-me de alegria as segundas-feiras. Também gostava muito do Araponga, do Alhinho e do Manaca. O Penteado e o Careca já me apareceram fora de tempo, mas isto é tudo nomes só por exemplo.
Com os nomes sublinhados eu fazia equipas que jogavam umas contra as outras, num campeonato de partir a moca, porque eu imaginava os jogadores exactamente conforme o nome, não sei se estão a ver o Marreca a driblar o Sacristão e o Repolho a entrar de pé em riste ao Camelo.
(Não é preciso ir mais longe: sou de Fafe, uma terra que deu ao futebol e ao mundo nomes tão extraordinários como Ricoca, Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Zebras, Caganito, Trolas, Feira Velha, Machica, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos.)
Sempre apreciei particularmente os jogadores de um nome só. Mas nome de barba rija, se me faço entender. O Freitas, o Gomes, o Antunes, o Meneses, o Martins, o Ferreira, o Oliveira, o Marques, o Almeida, o Lopes, o Carvalho - eram nomes que me punham em sentido. E se os nomes tivessem bigode farfalhudo, inclusive nas sobrancelhas, então ainda melhor. Nomes assim davam-me segurança, transpiravam autoridade, infundiam Respect. O agente Freitas, o chefe Gomes, o comissário Antunes, o nosso cabo Martins, o sargento Almeida, o capitão Carvalho... - estão a acompanhar-me?
Mas já não há nomes assim da boa e velha casca-grossa, e os bigodes de antanho foram de momento substituídos por falsas barbas jihadistas em caras de sobrancelhas depiladas. Temos agora em campo o Rúben Micael, o Emídio Rafael, o Rui Pedro, o Nuno Henrique, o Mário Rui, o Rui Miguel, o João Paulo, o Paulo Jorge, o Cristiano Ronaldo. Enfim, cátias vanessas.
sábado, 23 de agosto de 2014
Quaresma: requiem por um quase craque
Foto blogue OS CARROS DOS JOGADORES DE FUTEBOL |
O jogador de futebol Ricardo Quaresma, 29 anos, bateu ontem num polícia. Foi detido e vai hoje a tribunal. Há cerca de três semanas, Quaresma foi acusado de "urinar nos balneários" e "exibir os genitais" a uma funcionária do Besiktas, clube turco com o qual mantém contrato. Quaresma não está inscrito para jogar e treina à parte. É uma guerra que já vem da época passada. Quaresma não joga e dá pontapés na vida.
Ricardo Quaresma é um produto da excelentíssima escola do Sporting. Passou pelo Barcelona sem que se tivesse notado e regressou ao nosso país ainda a tempo de se fazer jogador a sério e decisivo no FC Porto, onde, em quatro épocas, ganhou três campeonatos, uma Taça de Portugal, uma Supertaça e uma Taça Intercontinental. Foi Futebolista Português do Ano em 2005 e 2006 e Personalidade Portuguesa do Ano em 2007. Brilhou. Brilhou tanto que o estrangeiro voltou a chamar por ele - mas a partir daqui a sua carreira foi sempre a descer (embora até pudesse parecer que era sempre a subir). Falhou no Inter de José Mourinho, falhou no Chelsea de Luiz Felipe Scolari, falhou novamente em Milão e depois rumou à Turquia e é o que se sabe. Recebido em apoteose em Istambul, teve um início empolgante nos campos turcos, para logo se embrulhar numa série de conflitos internos que lhe foram apagando a aura. Nos jornais, as notícias sobre Quaresma continuavam a sair nas secções erradas.
Quaresma prometeu muito. Há quem diga que prometeu tanto como Cristiano Ronaldo, e parece-me que essa comparação (em que ele sempre acreditou) é que lhe terá sido fatal. Eu ainda acredito em Ricardo Quaresma. A verdade é que o Mustang tem quase tudo para ser um verdadeiro craque da bola: tatuagens, brincos e anéis, cortes de cabelo idiotas, muito dinheiro, gajas boas, grandes carros e alguns comportamentos geralmente imperdoáveis em pessoas que não sejam jogadores de futebol. O que lhe falta, então? Talvez juízo. E já tem idadinha.
(Texto escrito e publicado no dia 15 de Novembro de 2012. Repetido pedagogicamente no dia 6 de Dezembro de 2013. Passam os anos e não adianta.)
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
Nelson Rodrigues 2
O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: - um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.
Nelson Rodrigues
(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu em 1980.)
Nelson Rodrigues
(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu em 1980.)
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
Josué Montello 2
Até ali os tambores da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria deixava cair o xale para os antebraços, recebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar.
Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear.
Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez cair do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das cabaças.
Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro.
"Os Tambores de São Luís", Josué Montello
(Josué Montello nasceu no dia 21 de Agosto de 1917. Morreu em 2006.)
Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear.
Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez cair do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das cabaças.
Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro.
"Os Tambores de São Luís", Josué Montello
(Josué Montello nasceu no dia 21 de Agosto de 1917. Morreu em 2006.)
Silly season 9
Quitério tinha dez anos quando fez a sua primeira selfie. Gostou muito. Depois foi à igreja e confessou-se.
terça-feira, 19 de agosto de 2014
Helton, arrumador de automóveis?
Foto Hernâni Von Doellinger |
Se Helton terminou a carreira de jogador de futebol, como dizem e eu tenho pena, a vida para ele continua. Vi-o ontem a fazer de arrumador de automóveis na famosa zona de restaurantes de Matosinhos. Era só para amigos, é certo, mas o histórico guarda-redes do FC Porto desenrascou-se com toda a competência. Parecia que estava a orientar a barreira num livre à entrada da área: colocado no meio da estrada, entre o vou e o não vou, Helton esperou pacientemente pela vaga, parou o trânsito com um sorriso e comandou a manobra de estacionamento como um verdadeiro predestinado. De diferente para os outros arrumadores das redondezas, que são mais que as mães e aparentemente perigosos, apenas a simpatia e o cartão Gold na mão. De resto o futuro está garantido.
Cora Coralina 2
O lampião da Rua do Fogo
"Estórias da Casa Velha da Ponte", Cora Coralina
(Cora Coralina nasceu no dia 20 de Agosto de 1889. Morreu em 1985.)
Ali, naquele velho canto onde a Rua de Joaquim Rodrigues faz um recanteio, morava Seu Maia, casado com Dona Placidina, numa casa de beirais, janelas virgens da profanação das tintas, porta da rua e porta do meio. Portão do quintal, abrindo no velho cais do Rio Vermelho. Isso, há muito tempo, antes da rua passar a 13 de Maio e da casa ser fantasiada de platibanda.
Seu Maia era muito conhecido em Goiás e era porteiro da Intendência. Boa pessoa. Serviçal, amigo de todo mundo e companheirão de boas farras. Gostava de uma pinguinha em doses dobradas, dessas antigas que pegavam fogo. Então, se misturava vinho, conhaque e aniseta; só voltava para casa carregado pelos companheiros, que o entregavam aos cuidados da mulher.
Esta, acostumada, embora com a sina ruim, como dizia, não poupava a descalçadeira quando recebia o marido naquele fogo, arrastando a língua, de pernas moles, isto quando não virava valente, quebrando pratos e panelas e disposto a lhe chegar a peia.
Dona Placidina era muito prática, nessas e noutras coisas... Ajeitava logo um café amargo, misturado com frutinhas de jurubeba torrada, que o marido engolia careteando e o empurrava para a rede, onde roncava até pela manhã ou se agitava e falava a noite inteira.
- Coitada de Dona Placidina, comentavam as amigas. Seu Maia é um santo homem sem esse diabo da pinga.
E ensinavam remédios, simpatias, responsos, rezas fortes. Simpatia que dera certo em outros casos, era nada para ele. Remédios? Inofensivos como a água do pote. Os próprios santos se faziam desentendidos dos responsos, velas acesas e jaculatórias recitadas.
Dona Placidina, cansada daquele marido incorrigível, acabou botando o coração ao largo, embora achasse, no íntimo, que melhor seria uma boa hora de morte para ela... ou antes, para o marido, esta parte no subconsciente.
[...]
"Estórias da Casa Velha da Ponte", Cora Coralina
(Cora Coralina nasceu no dia 20 de Agosto de 1889. Morreu em 1985.)
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segunda-feira, 18 de agosto de 2014
Silly season 7
A diferença entre uma colcheia e uma colmeia está na medida. Isto é: uma
colmeia corresponde exactamente a uma semicolcheia. E deve servir-se de
preferência numa seminfusa.
sábado, 16 de agosto de 2014
António Botto
Venham ver a maravilha
Do seu corpo juvenil!
O sol encharca-o de luz,
E o mar, de rojos, tem rasgos
De luxúria provocante.
Avanço. Procuro olhá-lo
Mais de perto... A luz é tanta
Que tudo em volta cintila
Num clarão largo e difuso...
Anda nu - saltando e rindo,
E sobre a areia da praia
Parece um astro fulgindo.
Procuro olhá-lo; - e os seus olhos,
Amedrontados, recusam
Fixar os meus... - Entristeço...
Mas nesse lugar fugidio -
Pude ver a eternidade
Do beijo que eu não mereço...
"Canções", António Botto
(António Botto nasceu no dia 17 de Agosto de 1897. Morreu em 1959.)
Do seu corpo juvenil!
O sol encharca-o de luz,
E o mar, de rojos, tem rasgos
De luxúria provocante.
Avanço. Procuro olhá-lo
Mais de perto... A luz é tanta
Que tudo em volta cintila
Num clarão largo e difuso...
Anda nu - saltando e rindo,
E sobre a areia da praia
Parece um astro fulgindo.
Procuro olhá-lo; - e os seus olhos,
Amedrontados, recusam
Fixar os meus... - Entristeço...
Mas nesse lugar fugidio -
Pude ver a eternidade
Do beijo que eu não mereço...
"Canções", António Botto
(António Botto nasceu no dia 17 de Agosto de 1897. Morreu em 1959.)
Festival de Fotografia de Avintes
Festival de Fotografia de Avintes, de 3 de Outubro a 1 de Novembro de 2014. Dezoito exposições em 15 locais. Dezassete fotógrafos de seis países: Ailyn Rodriguez (Cuba), José Lopez Perez (Espanha), Taslima Akhter (Bangladesh), Ana Mokarzel e Luísa Dorr (Brasil), Ana Robles e Gabriel Magri (Argentina), Daniel Lopes, Fernando Liberdade, Fidalgo Pedrosa, Gaspar de Jesus, José Fitas, Luís Raposo, Luís Reina, Pereira Lopes, Victor Leorne e Vitor Tripologos (Portugal).
Mais informação, aqui.
Os médicos, as farmácias e o sistema
Fui à farmácia comprar o antibiótico. A senhora doutora farmacêutica perguntou-me:
- Marca ou genérico?
- O mais barato, se faz favor. Pode ser de saldo, se tiver, ou mesmo em segunda mão, se for em conta - respondi.
Veio o antibiótico. Genérico.
- São seis euros e setenta e nove - informou-me a senhora doutora farmacêutica.
- Seis euros e setenta e nove? - espantei-me. - Mas o senhor doutor médico escreveu aqui na receita que, e passo a citar, "esta prescrição custa-lhe, no máximo, 77 cêntimos, a não ser que opte por um medicamento mais caro"...
- Pois, mas não ligue a isso. É o que eles têm lá no sistema. O preço muda ao fim de três meses - disse-me a senhora doutora farmacêutica.
- Mas a receita é de hoje, fresquíssima - atalhei.
- Pois, mas é o sistema - reiterou a senhora doutora farmacêutica.
- E o sistema "deles" não é o mesmo sistema das farmácias? Entre 77 cêntimos e seis euros e setenta e nove vai uma diferença de quase dez vezes mais, como é que isto é possível? - inquiri e tornei a inquirir.
- Faça o favor de ver aqui no computador. Na verdade há mais barato, este de três euros e quinze, mas que hoje, por acaso, até já custa cinco euros e trinta e sete, e não temos - explicou-me a senhora doutora farmacêutica.
- Mas a custar 77 cêntimos é que nada - insisti.
- Nem de perto nem de longe, é o sistema - insistiu, por seu lado, a senhora doutora farmacêutica.
- E os senhores doutores médicos sabem? - eu.
- Sabem, sabem - a senhora doutora farmacêutica.
- Desculpe voltar ao mesmo: mas então porque é que os senhores doutores médicos escrevem estes preços nas receitas se sabem que estão a enganar os doentes?
- É para pressionar as farmácias - segredou-me a senhora doutora farmacêutica, chegando-se-me ao ouvido.
- E tem resultado, não tem? - devolvi-lhe eu, no mesmo tom confidencial.
- Marca ou genérico?
- O mais barato, se faz favor. Pode ser de saldo, se tiver, ou mesmo em segunda mão, se for em conta - respondi.
Veio o antibiótico. Genérico.
- São seis euros e setenta e nove - informou-me a senhora doutora farmacêutica.
- Seis euros e setenta e nove? - espantei-me. - Mas o senhor doutor médico escreveu aqui na receita que, e passo a citar, "esta prescrição custa-lhe, no máximo, 77 cêntimos, a não ser que opte por um medicamento mais caro"...
- Pois, mas não ligue a isso. É o que eles têm lá no sistema. O preço muda ao fim de três meses - disse-me a senhora doutora farmacêutica.
- Mas a receita é de hoje, fresquíssima - atalhei.
- Pois, mas é o sistema - reiterou a senhora doutora farmacêutica.
- E o sistema "deles" não é o mesmo sistema das farmácias? Entre 77 cêntimos e seis euros e setenta e nove vai uma diferença de quase dez vezes mais, como é que isto é possível? - inquiri e tornei a inquirir.
- Faça o favor de ver aqui no computador. Na verdade há mais barato, este de três euros e quinze, mas que hoje, por acaso, até já custa cinco euros e trinta e sete, e não temos - explicou-me a senhora doutora farmacêutica.
- Mas a custar 77 cêntimos é que nada - insisti.
- Nem de perto nem de longe, é o sistema - insistiu, por seu lado, a senhora doutora farmacêutica.
- E os senhores doutores médicos sabem? - eu.
- Sabem, sabem - a senhora doutora farmacêutica.
- Desculpe voltar ao mesmo: mas então porque é que os senhores doutores médicos escrevem estes preços nas receitas se sabem que estão a enganar os doentes?
- É para pressionar as farmácias - segredou-me a senhora doutora farmacêutica, chegando-se-me ao ouvido.
- E tem resultado, não tem? - devolvi-lhe eu, no mesmo tom confidencial.
sexta-feira, 15 de agosto de 2014
Millôr Fernandes 2
Tinha cabelos longos como trigo, pele da cor da avelã, um pescoço de ânfora, um andar de gazela. Que mulher ridícula e horrenda.
Millôr Fernandes
(Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de Agosto de 1923. Morreu em 2012.)
Millôr Fernandes
(Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de Agosto de 1923. Morreu em 2012.)
António Nobre 2
Poveiro
Poveirinhos! meus velhos pescadores!
Na água quisera com vocês morar:
Trazer o lindo gorro de três cores,
Mestre da lancha Deixem-nos passar!
Far-me-ia outro, que os vossos interiores
De há tantos tempos devem já estar
Calafetados pelo breu das dores,
Como esses pongos em que andais no mar!
Ó meu Pai, não ser eu dos poveirinhos!
Não seres tu, para eu o ser, poveiro,
Mailo irmão do "Senhor de Matosinhos"!
No alto mar, às trovoadas, entre gritos,
Prometermos, Si o barco fori intieiro,
Nossa bela à Sinhora dos Aflitos!
"Só", António Nobre
(António Nobre nasceu no dia 16 de Agosto de 1867. Morreu em 1900.)
Poveirinhos! meus velhos pescadores!
Na água quisera com vocês morar:
Trazer o lindo gorro de três cores,
Mestre da lancha Deixem-nos passar!
Far-me-ia outro, que os vossos interiores
De há tantos tempos devem já estar
Calafetados pelo breu das dores,
Como esses pongos em que andais no mar!
Ó meu Pai, não ser eu dos poveirinhos!
Não seres tu, para eu o ser, poveiro,
Mailo irmão do "Senhor de Matosinhos"!
No alto mar, às trovoadas, entre gritos,
Prometermos, Si o barco fori intieiro,
Nossa bela à Sinhora dos Aflitos!
"Só", António Nobre
(António Nobre nasceu no dia 16 de Agosto de 1867. Morreu em 1900.)
Feira Medieval de Leça do Balio 2014
Os Hospitalários no Caminho de Santiago - Feira Medieval de Matosinhos, à roda do Mosteiro de Leça do Balio, de 11 a 14 de Setembro de 2014. Programa, horários, preços e mais informação, aqui.
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Em nome do Espírito Santo 6
No sábado, o recato das oito da matina é hora da distribuição de
esmolas, e na segunda-feira, derradeiro dia das festas, no fim da manhã
serve-se o bodo de leite e ao princípio da tarde prossegue o leilão de
alfenim ao domicílio começado na véspera. De casa em casa, com música e
cantigas. Tudo faz receita.
Explique-se: o alfenim é um doce feito com açúcar, água e óleo de amêndoa que mãos hábeis de pasteleiras domésticas adaptaram às linhas de flores, peixes, pombas, galinhas, cisnes, veados, coelhos ou outras. Às vezes serve como ex-voto, para resgate de graça, e, sendo o caso, toma então a forma da parte do corpo milagrada.
Quanto ao bodo de leite, perdeu, se calhar, alguma da sua pureza original. De facto, ao leite e ao pão tradicionalmente postos à disposição de todo o povo no final de uma procissão sumária, acrescem agora - fruto do indulgente correr dos tempos - os mais que óbvios copinhos de vinho, enquanto a mesma charanga paisana que, grave e lenta, acompanhava o cortejo religioso de há bocado, cumpre agora, toda gaiteira, de grupo de baile, debitando de um fôlego o repertório completo das suas modinhas. Sob a bênção cúmplice do padroeiro, que, do alto do andor florido, ali mesmo a tudo preside (parece que com um sorriso maroto...), come-se-lhe, bebe-se-lhe e dança-se-lhe como manda a ventarola. Que Deus lhes perdoe, mas há qualquer coisa de báquico no ar.
O programa remata com chave de ouro: a incontornável tourada à corda. Era o que faltava!, falamos da Terceira e por lá os toiros, só por si, são a festa. Acontecimento incrível, verdadeira instituição, capaz de arrastar e arrebatar as mais entusiasmadas multidões, a corrida à corda é o ponto alto e o fecho. Ou talvez não.
Deste este mesmo domingo que está escolhida a nova Comissão, para o próximo ano. Afinal, tudo torna ao princípio: a festa, a bem dizer, não acabou, está por começar. Renova-se o ciclo de devoção e da folia, tudo em nome do Espírito Santo. Que governa, imperial, a alma "cândida e tenaz" do povo das Ilhas Azuis.
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição, que hoje termina, é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos.)
Explique-se: o alfenim é um doce feito com açúcar, água e óleo de amêndoa que mãos hábeis de pasteleiras domésticas adaptaram às linhas de flores, peixes, pombas, galinhas, cisnes, veados, coelhos ou outras. Às vezes serve como ex-voto, para resgate de graça, e, sendo o caso, toma então a forma da parte do corpo milagrada.
Quanto ao bodo de leite, perdeu, se calhar, alguma da sua pureza original. De facto, ao leite e ao pão tradicionalmente postos à disposição de todo o povo no final de uma procissão sumária, acrescem agora - fruto do indulgente correr dos tempos - os mais que óbvios copinhos de vinho, enquanto a mesma charanga paisana que, grave e lenta, acompanhava o cortejo religioso de há bocado, cumpre agora, toda gaiteira, de grupo de baile, debitando de um fôlego o repertório completo das suas modinhas. Sob a bênção cúmplice do padroeiro, que, do alto do andor florido, ali mesmo a tudo preside (parece que com um sorriso maroto...), come-se-lhe, bebe-se-lhe e dança-se-lhe como manda a ventarola. Que Deus lhes perdoe, mas há qualquer coisa de báquico no ar.
O programa remata com chave de ouro: a incontornável tourada à corda. Era o que faltava!, falamos da Terceira e por lá os toiros, só por si, são a festa. Acontecimento incrível, verdadeira instituição, capaz de arrastar e arrebatar as mais entusiasmadas multidões, a corrida à corda é o ponto alto e o fecho. Ou talvez não.
Deste este mesmo domingo que está escolhida a nova Comissão, para o próximo ano. Afinal, tudo torna ao princípio: a festa, a bem dizer, não acabou, está por começar. Renova-se o ciclo de devoção e da folia, tudo em nome do Espírito Santo. Que governa, imperial, a alma "cândida e tenaz" do povo das Ilhas Azuis.
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição, que hoje termina, é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos.)
quinta-feira, 14 de agosto de 2014
quarta-feira, 13 de agosto de 2014
Em nome do Espírito Santo 5
Está então aí a deliciosa maré para confeccionar as tradicionais sopas
do Espírito Santo e a perfumada alcatra, que, à moda da Terceira,
constitui uma das principais jóias da preciosa cozinha açoriana.
A quinta-feira é dia de Pezinho. Em nome da Comissão, um rancho de cantadores e tocadores de viola vai de porta em porta agradecendo e, em muitos casos, recolhendo ainda ofertas retardatárias para a festa grande. Na sexta-feira, pelo meio-dia, as portas da despensa do império abrem-se à distribuição do pão e da carne, repartida em doses ricas, para consumo de toda a freguesia mas cuidando particularmente para que não faltem aos mais pobres. Todos os lares estarão precatados para receberem fidalgamente familiares, parentes, compadres, vizinhos, amigos e penetras.
De súpeto espetam-se no fim os dias contados dos dois, três ou mais animais que a Irmandade, comprados ou por oferta prometida, há um ano cativara e cevara para o efeito. Fatal como o destino, não há milagre que lhes valha. São cozidas centenas de quilos de pão branco para a sopa e em massa sovada. Requisita-se o melhor vinho da ilha. Venham então essas sopas do Espírito Santo, que já se irrequieta o pessoal, com os pés metidos debaixo da mesa. Mestre Nemésio conta, de fazer água na boca, em "Mau Tempo no Canal":
O bezerro esquartejava-se para esmolas de pão e carne estendidas em bancas improvisadas na rua com tabuões e toalhas, e postas nos seus pratos de barro coroados de ramos de hortelã. O pobre que dá ao pobre cobre a sua alma e empresta a Deus. Fartura é naqueles dias! Cozido e alcatra a amigos e compadres, nas panelas de arroba mexidas pela "mestra da função"... as mesas postas, carniça, potes de rosas, e os copos mostrando à transparência de vinho os confeitos de funcho e açúcar jogados pela vereança aos peitos das raparigas. Vivo e coberto de fitas, tonto das boninas e da pólvora do foguetório, o bezerro, à frente do cornetim e da rabeca do Pezinho, cheirava a pêlo e a chícharo, à jarroca das grotas sem fundo, trazido do lado de lá do nevoeiro que engorda os pastos e vela a alma da ilha. Ainda quente do breu que lhe segura a rosa de papel entre os cornos, ajoelhavam o bicho à força à porta do "imperador", como se o Espírito Santo quisesse lembrar aos ilhéus que são do mesmo barro que a vaca bafejou no filho da Virgem pobrinha.
Tal qual.
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.)
A quinta-feira é dia de Pezinho. Em nome da Comissão, um rancho de cantadores e tocadores de viola vai de porta em porta agradecendo e, em muitos casos, recolhendo ainda ofertas retardatárias para a festa grande. Na sexta-feira, pelo meio-dia, as portas da despensa do império abrem-se à distribuição do pão e da carne, repartida em doses ricas, para consumo de toda a freguesia mas cuidando particularmente para que não faltem aos mais pobres. Todos os lares estarão precatados para receberem fidalgamente familiares, parentes, compadres, vizinhos, amigos e penetras.
De súpeto espetam-se no fim os dias contados dos dois, três ou mais animais que a Irmandade, comprados ou por oferta prometida, há um ano cativara e cevara para o efeito. Fatal como o destino, não há milagre que lhes valha. São cozidas centenas de quilos de pão branco para a sopa e em massa sovada. Requisita-se o melhor vinho da ilha. Venham então essas sopas do Espírito Santo, que já se irrequieta o pessoal, com os pés metidos debaixo da mesa. Mestre Nemésio conta, de fazer água na boca, em "Mau Tempo no Canal":
O bezerro esquartejava-se para esmolas de pão e carne estendidas em bancas improvisadas na rua com tabuões e toalhas, e postas nos seus pratos de barro coroados de ramos de hortelã. O pobre que dá ao pobre cobre a sua alma e empresta a Deus. Fartura é naqueles dias! Cozido e alcatra a amigos e compadres, nas panelas de arroba mexidas pela "mestra da função"... as mesas postas, carniça, potes de rosas, e os copos mostrando à transparência de vinho os confeitos de funcho e açúcar jogados pela vereança aos peitos das raparigas. Vivo e coberto de fitas, tonto das boninas e da pólvora do foguetório, o bezerro, à frente do cornetim e da rabeca do Pezinho, cheirava a pêlo e a chícharo, à jarroca das grotas sem fundo, trazido do lado de lá do nevoeiro que engorda os pastos e vela a alma da ilha. Ainda quente do breu que lhe segura a rosa de papel entre os cornos, ajoelhavam o bicho à força à porta do "imperador", como se o Espírito Santo quisesse lembrar aos ilhéus que são do mesmo barro que a vaca bafejou no filho da Virgem pobrinha.
Tal qual.
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.)
terça-feira, 12 de agosto de 2014
E um grande tenkiu para ti também, pá
De manhã eu vou ao peixe. Cada vez mais de manhãzinha. E ontem de manhã, de manhãzinha, estava um camone numa das duas mesas de passeio de um daqueles pequenos cafés à beira da lota de Matosinhos. Vi que era camone à distância, por causa da enorme mochila que lhe descansava ao lado e do mapa na mão que ele olhava e revirava, e percebi logo que não me ia safar. Tenho cara de posto de turismo encerrado para obras, não é para me gabar, e eu que ia ao carapau, saiu-me o bife, se me permitem o chiste de carregar pela boca.
Que se passou: o camone viu-me sem mapa e também de mochila às costas (e eu não sei andar sem mochila, parece que me desequilibro sem ela) e portanto achou que eu é que sabia. Perguntou-me então du iu spikinglixe? E eu respondi-lhe o que sempre respondo aos gringos em Portugal: e tu, sabes falar português?
Que se passou: o camone viu-me sem mapa e também de mochila às costas (e eu não sei andar sem mochila, parece que me desequilibro sem ela) e portanto achou que eu é que sabia. Perguntou-me então du iu spikinglixe? E eu respondi-lhe o que sempre respondo aos gringos em Portugal: e tu, sabes falar português?
Em nome do Espírito Santo 4
Em Angra do Heroísmo, já pelo ano de 1492 se fazia um "esplêndido império", então chamado "dos nobres". Hoje, só nesta ilha são mais de cinquenta e, rivalidades à parte, um deles, o de São Carlos, nos arrabaldes da cidade, para si granjeou no antigamente a fama de ser "dos ricos". É claro, possui também o seu caso, muito falado.
Assunto sério, assombro de varar qualquer, acudimo-nos de atestado assim passado, a páginas tantas, por Alfredo da Silva Sampaio:
[...] por tradição se sabe que, pouco tempo depois de ter rebentado o fogo no local denominado Entre o Pico e a Serra, em 1761, desenvolveu-se um fumo denso que, descendo a cumeada da serra de Santa Bárbara, veio ter ao local onde hoje está o império. Assustados os Terceirenses com tal fenómeno, foi conduzido por alguns devotos para este último ponto um estrado de madeira onde colocaram uma coroa do Divino Espírito Santo, e em volta dela o povo implorou protecção. Durante semanas se conservou este fumo, sem passar aquém do estrado, até que, no domingo seguinte ao dia em que a Igreja venera o apóstolo São Mateus, desapareceu por completo este fenómeno sem deixar vestígios, e assim começou a ter lugar aquele festejo...
Pois neste império, exactamente plantado no sítio onde calhou o milagre da extraordinária barragem à ameaça vulcânica, a festa é da graúda. Apontada para a última semana de cada Agosto - do domingo até à outra segunda-feira -, com números organizados e variados, são, ainda assim, os espontâneos cantares e as músicas dos constantes foliões, os cantadores e contadores, a camaradagem imediata e genuína que verdadeiramente aquecem a alma a esta gente aberta e aconchegam o forasteiro.
Multiplicam-se os concertos e as tocatas por filarmónicas, os bailes de rua, os bazares, as ceias. Sucedem-se as noites: a noite da música popular, a da juventude, a do fado, a da morcela... Pretextos para descaminhos é o que são.
Apesar de tudo, as estrelas mais brilhantes que alumiam estes saraus são ainda os velhos cantadores de "Velhas" - a música mansa (triste?) das Ilhas, mais dita do que cantada, num marralhado ao jeito dos cantares ao desafio minhotos (e, no entanto, completamente diferente), afinado, afiado, irónico e crítico, colhendo assunto no quotidiano do ilhéu e misturando-o com os enredos e desenredos das telenovelas brasileiras dos pioneiros tempos.
Conversas de pé-de-orelha, versinhos assim que emparelham a alta do custo de vida com as agruras da Escrava Isaura, Sassá Mutema ou Dona Chepa; modinhas em que se casam os amores atribulados de Seu Nacibe e Gabriela com manobras de cala-te boca nos bataclãs locais; rimas que acertam as desventuras de jagunços, caboclas e bóias-frias com as aventuras dos figurões da praça açoriana. Dos entretantos aos finalmentes.
Aqui atrasado, à boleia da festa, fizeram-lhes uma homenagem, aos mais famosos cantadores de "Velhas" vivos: ao António Plácido e a mestre João Ângelo, o maior. Humildemente ouvidos os elogios da praxe e depois de largar um "Boa noute, apreciadores" que embrulhou no mesmo abraço homenageadores, cantadores da nova vaga, que fizeram questão (estavam lá, entre outros, o Mota e o Eliseu), e, minhas senhoras e meus senhores, o público em geral, mestre João Ângelo, como um alho, mangando esgravatar o repente da inspiração, mete-se num entre parênteses mais que ensaiado, desamarra-se do cigarro e, aos primeiros acordes da viola da terra, logo atira:
Agradeço aos cantadores
E também aos autores
Que fizeram esta homenagem.
Até talvez esteja certo
Porque cada um deles está perto
Daquela última viagem.
Não sei se é tarde ou cedo,
Eu cá por mim tenho medo
Daquela última viagem.
À homenagem apressada
O nosso povo vigia:
Quando a esmola é avultada
Até o cego desconfia.
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.)
Assunto sério, assombro de varar qualquer, acudimo-nos de atestado assim passado, a páginas tantas, por Alfredo da Silva Sampaio:
[...] por tradição se sabe que, pouco tempo depois de ter rebentado o fogo no local denominado Entre o Pico e a Serra, em 1761, desenvolveu-se um fumo denso que, descendo a cumeada da serra de Santa Bárbara, veio ter ao local onde hoje está o império. Assustados os Terceirenses com tal fenómeno, foi conduzido por alguns devotos para este último ponto um estrado de madeira onde colocaram uma coroa do Divino Espírito Santo, e em volta dela o povo implorou protecção. Durante semanas se conservou este fumo, sem passar aquém do estrado, até que, no domingo seguinte ao dia em que a Igreja venera o apóstolo São Mateus, desapareceu por completo este fenómeno sem deixar vestígios, e assim começou a ter lugar aquele festejo...
Pois neste império, exactamente plantado no sítio onde calhou o milagre da extraordinária barragem à ameaça vulcânica, a festa é da graúda. Apontada para a última semana de cada Agosto - do domingo até à outra segunda-feira -, com números organizados e variados, são, ainda assim, os espontâneos cantares e as músicas dos constantes foliões, os cantadores e contadores, a camaradagem imediata e genuína que verdadeiramente aquecem a alma a esta gente aberta e aconchegam o forasteiro.
Multiplicam-se os concertos e as tocatas por filarmónicas, os bailes de rua, os bazares, as ceias. Sucedem-se as noites: a noite da música popular, a da juventude, a do fado, a da morcela... Pretextos para descaminhos é o que são.
Apesar de tudo, as estrelas mais brilhantes que alumiam estes saraus são ainda os velhos cantadores de "Velhas" - a música mansa (triste?) das Ilhas, mais dita do que cantada, num marralhado ao jeito dos cantares ao desafio minhotos (e, no entanto, completamente diferente), afinado, afiado, irónico e crítico, colhendo assunto no quotidiano do ilhéu e misturando-o com os enredos e desenredos das telenovelas brasileiras dos pioneiros tempos.
Conversas de pé-de-orelha, versinhos assim que emparelham a alta do custo de vida com as agruras da Escrava Isaura, Sassá Mutema ou Dona Chepa; modinhas em que se casam os amores atribulados de Seu Nacibe e Gabriela com manobras de cala-te boca nos bataclãs locais; rimas que acertam as desventuras de jagunços, caboclas e bóias-frias com as aventuras dos figurões da praça açoriana. Dos entretantos aos finalmentes.
Aqui atrasado, à boleia da festa, fizeram-lhes uma homenagem, aos mais famosos cantadores de "Velhas" vivos: ao António Plácido e a mestre João Ângelo, o maior. Humildemente ouvidos os elogios da praxe e depois de largar um "Boa noute, apreciadores" que embrulhou no mesmo abraço homenageadores, cantadores da nova vaga, que fizeram questão (estavam lá, entre outros, o Mota e o Eliseu), e, minhas senhoras e meus senhores, o público em geral, mestre João Ângelo, como um alho, mangando esgravatar o repente da inspiração, mete-se num entre parênteses mais que ensaiado, desamarra-se do cigarro e, aos primeiros acordes da viola da terra, logo atira:
Agradeço aos cantadores
E também aos autores
Que fizeram esta homenagem.
Até talvez esteja certo
Porque cada um deles está perto
Daquela última viagem.
Não sei se é tarde ou cedo,
Eu cá por mim tenho medo
Daquela última viagem.
À homenagem apressada
O nosso povo vigia:
Quando a esmola é avultada
Até o cego desconfia.
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.)
segunda-feira, 11 de agosto de 2014
Miguel Torga 2
Panorama
Pátria vista da fraga onde nasci.
Que infinito silêncio circular!
De cada ponto cardeal assoma
A mesma expressão muda.
É de agora ou de sempre esta paisagem
Sem palavras
Sem gritos,
Sem o eco sequer de uma praga incontida?
Ah! Portugal calado!
Ah! povo amordaçado
Por não sei que mordaça consentida!
Miguel Torga
(Miguel Torga nasceu no dia 12 de Agosto de 1907. Morreu em 1995.)
Pátria vista da fraga onde nasci.
Que infinito silêncio circular!
De cada ponto cardeal assoma
A mesma expressão muda.
É de agora ou de sempre esta paisagem
Sem palavras
Sem gritos,
Sem o eco sequer de uma praga incontida?
Ah! Portugal calado!
Ah! povo amordaçado
Por não sei que mordaça consentida!
Miguel Torga
(Miguel Torga nasceu no dia 12 de Agosto de 1907. Morreu em 1995.)
domingo, 10 de agosto de 2014
Tomás António Gonzaga
Obrei quanto o discurso me guiava,
Ouvi aos sábios quando errar temia;
Aos bons no gabinete o peito abria,
Na rua a todos como iguais tratava.
Julgando os crimes, nunca os votos dava,
Mais duro ou pio do que a lei pedia:
Mas devendo salvar ao justo, ria,
E devendo punir aos réu, chorava.
Não foram, Vila Rica, os meus projetos,
Meter em férreo cofre cópia d´ouro,
Que farte aos filhos e que chegue aos netos:
Outras são as fortunas que me agouro,
Ganhei saudades, adquiri afetos,
Vou fazer deste bens melhor tesouro.
Tomás António Gonzaga
(Tomás António Gonzaga nasceu no dia 11 de Agosto de 1744. Morreu em 1810.)
Ouvi aos sábios quando errar temia;
Aos bons no gabinete o peito abria,
Na rua a todos como iguais tratava.
Julgando os crimes, nunca os votos dava,
Mais duro ou pio do que a lei pedia:
Mas devendo salvar ao justo, ria,
E devendo punir aos réu, chorava.
Não foram, Vila Rica, os meus projetos,
Meter em férreo cofre cópia d´ouro,
Que farte aos filhos e que chegue aos netos:
Outras são as fortunas que me agouro,
Ganhei saudades, adquiri afetos,
Vou fazer deste bens melhor tesouro.
Tomás António Gonzaga
(Tomás António Gonzaga nasceu no dia 11 de Agosto de 1744. Morreu em 1810.)
Carlos de Oliveira 2
Vento
As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras
"Cantata", Carlos de Oliveira
(Carlos de Oliveira nasceu no dia 10 de Agosto de 1921. Morreu em 1981.)
As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras
"Cantata", Carlos de Oliveira
(Carlos de Oliveira nasceu no dia 10 de Agosto de 1921. Morreu em 1981.)
Jorge Amado 2
O mundo só vai prestar
Para nele se viver
No dia em que a gente ver
Um gato maltês casar
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha.
"O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá", Jorge Amado
(Jorge Amado nasceu no dia 10 de Agosto de 1912. Morreu em 2001.)
Para nele se viver
No dia em que a gente ver
Um gato maltês casar
Com uma alegre andorinha
Saindo os dois a voar
O noivo e sua noivinha
Dom Gato e Dona Andorinha.
"O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá", Jorge Amado
(Jorge Amado nasceu no dia 10 de Agosto de 1912. Morreu em 2001.)
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Gonçalves Dias
Canção do exílio
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Gonçalves Dias
(Gonçalves Dias nasceu no dia 10 de Agosto de 1823. Morreu em 1864.)
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Gonçalves Dias
(Gonçalves Dias nasceu no dia 10 de Agosto de 1823. Morreu em 1864.)
sábado, 9 de agosto de 2014
Redacção
A televisão é muito importante. Gosto de ver na televisão as redacções das televisões porque nas redacções das televisões que dão na televisão não há cadeiras partidas. Trabalhei em muitas e variegadas redacções, mas nunca na redacção de uma televisão.
Nas redacções onde eu trabalhei andávamos à pancada por uma cadeira que se segurasse. O sobrevivente marcava-a para toda a vida, mas quando virava costas já ela estava debaixo do cu do lado. E andávamos outra vez à pancada. Foi por isso que ficámos sem forças para irmos às ventas dos bandalhos que fazem profissão de destruir redacções e que têm cadeiras da televisão. Feitas de cortiça.
A televisão é muito boa porque dá na televisão. Eu gosto muito da televisão.
Nas redacções onde eu trabalhei andávamos à pancada por uma cadeira que se segurasse. O sobrevivente marcava-a para toda a vida, mas quando virava costas já ela estava debaixo do cu do lado. E andávamos outra vez à pancada. Foi por isso que ficámos sem forças para irmos às ventas dos bandalhos que fazem profissão de destruir redacções e que têm cadeiras da televisão. Feitas de cortiça.
A televisão é muito boa porque dá na televisão. Eu gosto muito da televisão.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
Mário Cesariny 2
Outra coisa
Apresentar-te aos deuses e deixar-te
entre sombra de pedra e golpe de asa
exaltar-te perder-te desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa
dizer-te que te amo amo amo
que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras
lançar a bomba onde vens no retrato
de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio terceiro acto
pôr-te na posição sexual
tirar-te todo o bem e todo mal
esquecer-me de ti como do gato
Mário Cesariny
(Mário Cesariny nasceu no dia 9 de Agosto de 1923. Morreu em 2006.)
Apresentar-te aos deuses e deixar-te
entre sombra de pedra e golpe de asa
exaltar-te perder-te desconfiar-te
seguir-te de helicóptero até casa
dizer-te que te amo amo amo
que por ti passo raias e fronteiras
que não me chamo mário que me chamo
uma coisa que tens nas algibeiras
lançar a bomba onde vens no retrato
de dez anos de anjinho nacional
e nove de colégio terceiro acto
pôr-te na posição sexual
tirar-te todo o bem e todo mal
esquecer-me de ti como do gato
Mário Cesariny
(Mário Cesariny nasceu no dia 9 de Agosto de 1923. Morreu em 2006.)
O Senhor Hernâni
Foto Hernâni Von Doellinger |
Nem de propósito. Está vivo e bem vivo o homem da música. Reencontrei-o ontem no banco do costume, com instrumental novo e a superbicicleta cada vez mais artilhada: agora até já tem relógio-despertador. O jeito para as engenhocas vem-lhe do ofício antigo, mais de trinta anos como afinador de máquinas numa grande fábrica em Rio Tinto. E o amor pela música é de sempre, desde que se lembra de começar a contar os 77 que já leva.
Há meses que não o via. Tem ido alegrar as tardes da rapaziada da idade dele que frequenta o centro de dia da Junta de Aldoar. É ele que me conta. Leva-lhes música, porque lhe apetece e faz gosto. Ninguém lhe encomendou o serviço, não. "Eles vêm cá para fora e eu toco", diz-me, quase envergonhado da felicidade que lhe salta dos olhos. "Quer ver? Quer ver?", e rapa da harmónica e do pandeiro e oferece-me uma modinha americana. Agradeço-lhe. Digo "Muito bem!", para esconder a comoção que também me embaraça. Digo-lhe que tenho sentido a falta dele no banco do Parque da Cidade e que andava preocupado. Não estou a mentir. O homem da música percebe, ri, rouba duas ou três notas ao teclado que tem em cima dos joelhos, para que eu saiba que a coisa funciona. E funciona.
Ele quer que eu fique mais um bocado. Fico. Gosto do homem da música. Ainda por cima tem um nome que, não desfazendo, lhe calha muito bem - é Hernâni. Senhor Hernâni, que eu não sou.
(Este texto foi escrito e publicado no dia 6 de Agosto de 2013. Acontece que ando outra vez em falta com o meu amigo Senhor Hernâni: a vida tem-me desviado do Parque da Cidade e dos nossos encontros ecuménicos. Ele adventista militante e eu católico casca-grossa, falávamos de artes, de paz, das crianças e dos velhos, de afectos, da memória, do mundo, de tudo e de nada, de Deus, da alegria de viver com Deus. O homem da música tentava missionar-me, contava-me da sua Igreja, cantava-me hinos de louvor à vida e ao "Senhor Jesus". Dava-lhes um toquezinho de fado, às vezes de folk - palavra de honra. Eu tinha para a troca o "Tantum Ergo" e o "Queremos Deus", mas guardava-os para mim, e creio que era sensato, o meu amigo não merecia semelhante castigo.
Para chegar aqui: se não me engano, o Senhor Hernâni faz hoje 78 anos. E eu, que não sei dele, o que mais lhe desejo é que faça.)
quinta-feira, 7 de agosto de 2014
Armindo Rodrigues 2
Homem, abre os olhos e verás
Homem,
abre os olhos e verás
em cada outro homem um irmão.
Homem,
as paixões que te consomem
não são boas nem más.
São a tua condição.
A paz,
porém, só a terás
quando o pão que os outros comem,
homem,
for igual ao teu pão.
Armindo Rodrigues
(Armindo Rodrigues nasceu em 1904. Morreu em 1993.)
Homem,
abre os olhos e verás
em cada outro homem um irmão.
Homem,
as paixões que te consomem
não são boas nem más.
São a tua condição.
A paz,
porém, só a terás
quando o pão que os outros comem,
homem,
for igual ao teu pão.
Armindo Rodrigues
(Armindo Rodrigues nasceu em 1904. Morreu em 1993.)
Apparício Silva Rillo
O começo da briga
- O senhor foi intimado para depor sobre a violenta briga acontecida ontem no seu armazém, lá no interior de São Borja. Cinco mortos, oito feridos, uma barbaridade...
- No meu bolicho, seu delegado! Quem sou eu para ter armazém? Armazém é do turco Salim, que foi mascate. Por sinal que...
- Não desvie do assunto. Como e porque começou a briga?
- Bueno, pos então historiemo a coisa. Domingo, como o senhor sabe, o meu bolicho fica de gente que nem corvo em carniça de vaca atolada. O doutor entende: peonada no más, loucos por um trago, por uma charla sobre china. A minha canha é da pura, não batizo com água de poço como o turco Salim. Que por sinal...
- Continue, continue, deixe o turco em paz.
- Pos então bamo reto que nem goela de joão-grande. Tavam uns trinta home tomando umas que outras, uns mascando salame pra enganar o bucho, quando chegou o Taio Feio. O senhor sabe, o índio é mais metido que dedo em nariz de piá; deu um planchaço de adaga no balcão e perguntou se havia home no bolicho. Todo mundo coçou as bolas. Home tem bola, o senhor sabe. O Lautério - que não é flor de cheirar com pouca venta - disse que era com ele mesmo; deu de mão numa tranca e rachou a cabeça do Taio Feio. Um contraparente do Taio Feio não gostou do brinquedo e sentou a argola do mango no Lautério. Pegou no olho - lá nele - e o Lautério saiu ganiçando como cusco que levou água fervendo pelo lombo.
Um amigo do Lautério se botou no contraparente do Taio - que já tava batendo a perninha - e enfiou palmo e meio de ferro branco no sovaco do cujo, que lhe chamam Pé de Sarna. Um irmão do Sarna, chateado com aquilo, pegou um peso de cinco quilos da balança e achatou a cabeça do homem que faqueou o Sarna. Os óio saltaram, seu doutor! E eu só olhando, achando tudo aquilo um tempo perdido. Um primo do homem do ferro branco rebuscou um machado no galpão e golpeou o irmão do Sarna.
Errou a cabeça, só conseguiu atorar o braço do vivente. Aí eu fui ficando nervoso, puxei meu berro pro mole da barriga, pronto pra um quero. Meu bolicho é casa de respeito, seu delegado, e a brincadeira já tava ficando pesada. Mas bueno, foi entonces que o Miguelão se alevantou do banco, palmeou uma carneadeira, chegou por trás do homem do machado, pé que te pé, grudou ele pelas melena e degolou o vivente num talho, a coisa mais linda! O sangue jorrou longe como mijada de cuiúdo. Aí eu e mais uns outros - tudo home de respeito - se arevoltemo com aquilo. Brinquedo tem hora, o senhor não acha?
- Acho, sim. Mas e aí?
- Pois, como lhe disse, nós se arevoltemo e saquemo os talher. E foi aí que começou a briga, seu delegado...
"Rapa de Tacho", Apparício Silva Rillo
(Apparício Silva Rillo nasceu no dia 8 de Agosto de 1931. Morreu em 1995.)
- O senhor foi intimado para depor sobre a violenta briga acontecida ontem no seu armazém, lá no interior de São Borja. Cinco mortos, oito feridos, uma barbaridade...
- No meu bolicho, seu delegado! Quem sou eu para ter armazém? Armazém é do turco Salim, que foi mascate. Por sinal que...
- Não desvie do assunto. Como e porque começou a briga?
- Bueno, pos então historiemo a coisa. Domingo, como o senhor sabe, o meu bolicho fica de gente que nem corvo em carniça de vaca atolada. O doutor entende: peonada no más, loucos por um trago, por uma charla sobre china. A minha canha é da pura, não batizo com água de poço como o turco Salim. Que por sinal...
- Continue, continue, deixe o turco em paz.
- Pos então bamo reto que nem goela de joão-grande. Tavam uns trinta home tomando umas que outras, uns mascando salame pra enganar o bucho, quando chegou o Taio Feio. O senhor sabe, o índio é mais metido que dedo em nariz de piá; deu um planchaço de adaga no balcão e perguntou se havia home no bolicho. Todo mundo coçou as bolas. Home tem bola, o senhor sabe. O Lautério - que não é flor de cheirar com pouca venta - disse que era com ele mesmo; deu de mão numa tranca e rachou a cabeça do Taio Feio. Um contraparente do Taio Feio não gostou do brinquedo e sentou a argola do mango no Lautério. Pegou no olho - lá nele - e o Lautério saiu ganiçando como cusco que levou água fervendo pelo lombo.
Um amigo do Lautério se botou no contraparente do Taio - que já tava batendo a perninha - e enfiou palmo e meio de ferro branco no sovaco do cujo, que lhe chamam Pé de Sarna. Um irmão do Sarna, chateado com aquilo, pegou um peso de cinco quilos da balança e achatou a cabeça do homem que faqueou o Sarna. Os óio saltaram, seu doutor! E eu só olhando, achando tudo aquilo um tempo perdido. Um primo do homem do ferro branco rebuscou um machado no galpão e golpeou o irmão do Sarna.
Errou a cabeça, só conseguiu atorar o braço do vivente. Aí eu fui ficando nervoso, puxei meu berro pro mole da barriga, pronto pra um quero. Meu bolicho é casa de respeito, seu delegado, e a brincadeira já tava ficando pesada. Mas bueno, foi entonces que o Miguelão se alevantou do banco, palmeou uma carneadeira, chegou por trás do homem do machado, pé que te pé, grudou ele pelas melena e degolou o vivente num talho, a coisa mais linda! O sangue jorrou longe como mijada de cuiúdo. Aí eu e mais uns outros - tudo home de respeito - se arevoltemo com aquilo. Brinquedo tem hora, o senhor não acha?
- Acho, sim. Mas e aí?
- Pois, como lhe disse, nós se arevoltemo e saquemo os talher. E foi aí que começou a briga, seu delegado...
"Rapa de Tacho", Apparício Silva Rillo
(Apparício Silva Rillo nasceu no dia 8 de Agosto de 1931. Morreu em 1995.)
quarta-feira, 6 de agosto de 2014
Em nome do Espírito Santo 3
Com mais ou menos respeito pelos cânones litúrgicos e rigor na tradição, todas as comunidades açorianas festejam o Espírito Santo como o seu mais importante acontecimento sócio-religioso. De Santa Maria ao Corvo, cada qual à sua moda, nos Estados Unidos da América, no Canadá, no Brasil e, desde há uns poucos anos, em Lisboa e no Porto. Ninguém passa sem o seu "império", mais ou menos rico, com mais ou menos dias de programa. Consoante as posses.
Será decerto na Terceira, porém, que as festas alcançam a sua expressão mais vibrante. Ricas em especificidade, têm aqui uma maior duração, prolongando-se, em votos e promessas ao Divino, desde o Domingo de Pentecostes até aos finais do Verão. São os meses da "primavera das Ilhas". Este afã de folia bem o entendeu Vitorino Nemésio, ilhéu e terceirense:
Esta nossa ilha Terceira
Sempre foi alto lugar:
Em amores, bodos e toiros
Fica sempre a desbancar.
Ou:
Alcatra, confeitos, vinho,
Enchei o meu coração.
Que faz mais barulho ardendo
Que um tambor de folião.
Tudo começa pelo Domingo da Trindade, com o sorteio dos que serão os mordomos na função do ano seguinte. (Aqui que ninguém nos ouve, sempre será de confidenciar que o dito sorteio está, na verdade, condicionado à partida pelos interesses de ilustres pagadores de promessas ou de notáveis da paróquia...). Seja como for: o primeiro, consintamos, bafejado pelos desígnios da "sorte" recolhe na sua casa as insígnias dos Espírito Santo - a coroa e o ceptro - até à Pascoela, ponto do início dos festejos.
Na igreja da freguesia realiza-se então a coroação, cerimónia na qual a coroa é colocada na cabeça de uma criança ou adulto - o imperador -, que depois a leva em procissão a casa de um outro mordomo, que a guarda por uma semana. Mordomos, coroas, alvas rainhas em mantos magníficos, foliões, tambores, pandeiros, ferrinhos, bandeiras vermelhas, estandartes, quadros, varas, bandas de música compõem um cortejo garrido, sonoro, alegre.
Domingo após domingo renova-se a cerimónia, passando a coroa e o ceptro pelas casas dos vários mordomos aprazados, até ao dia grande da festa, em que são expostos no império. O império é uma pequena construção acapelada, ingénua, típica da arquitectura popular açoriana, e também chamada de teatro do Espírito Santo. Distingue-se pelo frontão trabalhado e colorido, em geral rematado por uma coroa e pomba simbólica. Aqui são saldadas as promessas, depositadas as esmolas, adquiridas as relíquias e entregues as oblatas que a seu tempo irão servir aos mais necessitados.
(Enquanto no lar de cada qual, coroa e ceptro merecem as maiores reverências. Da família, têm garantida a melhor divisão da casa, um trono, a reza diária do terço ao Senhor Espírito Santo, note-se!; e das visitas, todas, crentes ou agnósticas, o respeito e a deposição de uma esmola e de um ósculo no Divino, "aberto numa pomba de prata ao topo de uma coroa real".)
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.)
Será decerto na Terceira, porém, que as festas alcançam a sua expressão mais vibrante. Ricas em especificidade, têm aqui uma maior duração, prolongando-se, em votos e promessas ao Divino, desde o Domingo de Pentecostes até aos finais do Verão. São os meses da "primavera das Ilhas". Este afã de folia bem o entendeu Vitorino Nemésio, ilhéu e terceirense:
Esta nossa ilha Terceira
Sempre foi alto lugar:
Em amores, bodos e toiros
Fica sempre a desbancar.
Ou:
Alcatra, confeitos, vinho,
Enchei o meu coração.
Que faz mais barulho ardendo
Que um tambor de folião.
Tudo começa pelo Domingo da Trindade, com o sorteio dos que serão os mordomos na função do ano seguinte. (Aqui que ninguém nos ouve, sempre será de confidenciar que o dito sorteio está, na verdade, condicionado à partida pelos interesses de ilustres pagadores de promessas ou de notáveis da paróquia...). Seja como for: o primeiro, consintamos, bafejado pelos desígnios da "sorte" recolhe na sua casa as insígnias dos Espírito Santo - a coroa e o ceptro - até à Pascoela, ponto do início dos festejos.
Na igreja da freguesia realiza-se então a coroação, cerimónia na qual a coroa é colocada na cabeça de uma criança ou adulto - o imperador -, que depois a leva em procissão a casa de um outro mordomo, que a guarda por uma semana. Mordomos, coroas, alvas rainhas em mantos magníficos, foliões, tambores, pandeiros, ferrinhos, bandeiras vermelhas, estandartes, quadros, varas, bandas de música compõem um cortejo garrido, sonoro, alegre.
Domingo após domingo renova-se a cerimónia, passando a coroa e o ceptro pelas casas dos vários mordomos aprazados, até ao dia grande da festa, em que são expostos no império. O império é uma pequena construção acapelada, ingénua, típica da arquitectura popular açoriana, e também chamada de teatro do Espírito Santo. Distingue-se pelo frontão trabalhado e colorido, em geral rematado por uma coroa e pomba simbólica. Aqui são saldadas as promessas, depositadas as esmolas, adquiridas as relíquias e entregues as oblatas que a seu tempo irão servir aos mais necessitados.
(Enquanto no lar de cada qual, coroa e ceptro merecem as maiores reverências. Da família, têm garantida a melhor divisão da casa, um trono, a reza diária do terço ao Senhor Espírito Santo, note-se!; e das visitas, todas, crentes ou agnósticas, o respeito e a deposição de uma esmola e de um ósculo no Divino, "aberto numa pomba de prata ao topo de uma coroa real".)
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.)
As pombinhas da catrina
As pombinhas da catrina andaram de mão em mão. Acabaram por casar, é certo, mas nunca mais se livraram da fama.
terça-feira, 5 de agosto de 2014
Em nome do Espírito Santo 2
As irmandades promovem a celebração das festas, ano após ano, sempre como manda o figurino: empresa a merecer desde logo, para afinação de prolegómenos, convocatória em jornal, assembleia geral e tudo. O espírito que lhes preside é ainda o da caridade cristã, em escrupulosa obediência às suas origens. Na verdade, chamando ao caso a Rainha Santa, reza a velhinha Revista dos Açores que, condoída com "a parte desgraçada dos seus súbditos que, cobertos dos humildes andrajos e com a escudela, aguardavam o pão da caridade às portarias dos conventos e mosteiros [...], a piedosa Soberana, amante do seu povo, quis que os pobres também um dia se banqueteássem, quis que tivessem um dia jubiloso, um dia verdadeiramente popular". Ora aqui está: por invocação e louvor do Paráclito, assim nascia o bodo aos pobres.
Ao par, desenvolvem-se rituais gentios, manifestações exteriores de grande colorido e riqueza etnográfica cujo cunho ousadamente profano bastas vezes serviu de justificação à intromissão disciplinadora da autoridade eclesiástica (que proibiu nos templos a presença das folias, mais os seus cantares e danças) ou a outros insucessos tutelares votados a "desterrar da região insulana aquelas estranhas práticas". Jamais, no entanto, apareceu quem ousasse interferir na realização das coroações, dos impérios ou dos arraiais do Espírito Santo. Ademais, hoje em dia, do melhorzinho que os festejos têm para oferecer é exactamente essa estimulante dualidade preservada de rituais, sacros, pagãos, que convivem e se completam.
Da festança, além dos cerimoniais santos e dos divertimentos populares, faz parte, em lugar cimeiro, uma farte e colectiva refeição comida à base do pão e da carne, também partilhados em esmola pelos mais precisados. São as tão apreciadas sopas, assim chamadas, embora do cardápio conste a carne cozida, que se ajunta à sopa propriamente dita, seguindo-se a carne assada à maneira e a alcatra, que nalguma ilhas se acompanha com a típica massa sovada, esse pão tão especial. Mandando o serviço, assistindo de mesa em mesa, cuidando para que nada falhe: a figura omnipresente e eficaz do marchante.
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.)
Ao par, desenvolvem-se rituais gentios, manifestações exteriores de grande colorido e riqueza etnográfica cujo cunho ousadamente profano bastas vezes serviu de justificação à intromissão disciplinadora da autoridade eclesiástica (que proibiu nos templos a presença das folias, mais os seus cantares e danças) ou a outros insucessos tutelares votados a "desterrar da região insulana aquelas estranhas práticas". Jamais, no entanto, apareceu quem ousasse interferir na realização das coroações, dos impérios ou dos arraiais do Espírito Santo. Ademais, hoje em dia, do melhorzinho que os festejos têm para oferecer é exactamente essa estimulante dualidade preservada de rituais, sacros, pagãos, que convivem e se completam.
Da festança, além dos cerimoniais santos e dos divertimentos populares, faz parte, em lugar cimeiro, uma farte e colectiva refeição comida à base do pão e da carne, também partilhados em esmola pelos mais precisados. São as tão apreciadas sopas, assim chamadas, embora do cardápio conste a carne cozida, que se ajunta à sopa propriamente dita, seguindo-se a carne assada à maneira e a alcatra, que nalguma ilhas se acompanha com a típica massa sovada, esse pão tão especial. Mandando o serviço, assistindo de mesa em mesa, cuidando para que nada falhe: a figura omnipresente e eficaz do marchante.
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram publicados em Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.)
Em nome do Espírito Santo
(Sou apaixonado pelos Açores e mantenho uma relação muito especial
com a ilha Terceira. Reencontrei este texto, escrito talvez em
1992/1993, a propósito das famosas festas do Espírito Santo. Claramente
datado, e generosamente adjectivado, aqui o deixo, em fascículos, para
matar saudades.)
Envolta na bruma das lendas, adornada pela magia das superstições e abonada por insondáveis espantos, impera há séculos no coração do povo das Ilhas a devoção ao Senhor Espírito Santo. Uma contínua, sempre renovada e abrangente procissão de beatos, fiéis, crentes, simpatizantes e até ateus vela por que não se extingam os sinais singulares desta tradição santa-profana que individualiza os Açorianos, na sua terra ou pelas lonjuras da diáspora.
Esta é uma crença muito antiga. As folias ao Espírito Santo, ainda que aparentem uma origem pagã no druidismo, ou na superstição grega, chegam a Portugal pelas mãos da Rainha Santa Isabel e são levadas para os Açores logo pelos primeiros povoadores. Convertidas na maior devoção e piedade, conservam-se até aos nossos dias: chamam-se, ali e agora, os impérios do Espírito Santo.
Os Açorianos são uma gente católica, extremamente crente e devota, e mesmo os mais fundamentalistas em matéria religiosa ou os ateus desobrigados fazem fé nos casos relacionados com o Divino Espírito Santo e temem as Suas "vinganças". É, como quem diz, uma questão de respeito.
Infinito é o rosário das salvações, grandes assombros ou modestos arranjos que o povo atribui à intervenção providencial do Divino - como gosta de chamar-Lhe, carinhoso, numa antiga e meiga confiança de nome próprio. Crises sísmicas e vulcões, pestes, o ror de maleitas e apertos do dia-a-dia, a vida difícil e o isolamento congregaram os ilhéus numa devoção que depressa se espalhou por todas as cidades, vilas e aldeias. E recorre-se-Lhe por tudo, coisa assim pataqueira ou missão a meio do impossível: simplesmente implorando saudinha em pró-forma de clínica geral ou prescrevendo cirúrgico tratamento de especialista; requerendo que o filho atine com os livros ou suspirando que calhe indulgência aos professores; convocando bênção para casamento novo ou clamando por intervenção de emergência em avaria conjugal; pedindo feliz termo para a viagem, que culturas e gado medrem, que as vinhas farturem, que o negócio corra, que o dinheirinho não falte. Tudo, edecétrea atrás de edecétera, até aos limites de encomendas de alto lá com elas. O Divino por tudo olha, tudo remedeia - que não é Pessoa, e isto é o povo a fazer constar, de desmanchar contratos.
P.S. - Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. O texto acima foi aqui publicado no dia 8 de Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pessoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.
Envolta na bruma das lendas, adornada pela magia das superstições e abonada por insondáveis espantos, impera há séculos no coração do povo das Ilhas a devoção ao Senhor Espírito Santo. Uma contínua, sempre renovada e abrangente procissão de beatos, fiéis, crentes, simpatizantes e até ateus vela por que não se extingam os sinais singulares desta tradição santa-profana que individualiza os Açorianos, na sua terra ou pelas lonjuras da diáspora.
Esta é uma crença muito antiga. As folias ao Espírito Santo, ainda que aparentem uma origem pagã no druidismo, ou na superstição grega, chegam a Portugal pelas mãos da Rainha Santa Isabel e são levadas para os Açores logo pelos primeiros povoadores. Convertidas na maior devoção e piedade, conservam-se até aos nossos dias: chamam-se, ali e agora, os impérios do Espírito Santo.
Os Açorianos são uma gente católica, extremamente crente e devota, e mesmo os mais fundamentalistas em matéria religiosa ou os ateus desobrigados fazem fé nos casos relacionados com o Divino Espírito Santo e temem as Suas "vinganças". É, como quem diz, uma questão de respeito.
Infinito é o rosário das salvações, grandes assombros ou modestos arranjos que o povo atribui à intervenção providencial do Divino - como gosta de chamar-Lhe, carinhoso, numa antiga e meiga confiança de nome próprio. Crises sísmicas e vulcões, pestes, o ror de maleitas e apertos do dia-a-dia, a vida difícil e o isolamento congregaram os ilhéus numa devoção que depressa se espalhou por todas as cidades, vilas e aldeias. E recorre-se-Lhe por tudo, coisa assim pataqueira ou missão a meio do impossível: simplesmente implorando saudinha em pró-forma de clínica geral ou prescrevendo cirúrgico tratamento de especialista; requerendo que o filho atine com os livros ou suspirando que calhe indulgência aos professores; convocando bênção para casamento novo ou clamando por intervenção de emergência em avaria conjugal; pedindo feliz termo para a viagem, que culturas e gado medrem, que as vinhas farturem, que o negócio corra, que o dinheirinho não falte. Tudo, edecétrea atrás de edecétera, até aos limites de encomendas de alto lá com elas. O Divino por tudo olha, tudo remedeia - que não é Pessoa, e isto é o povo a fazer constar, de desmanchar contratos.
P.S. - Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. O texto acima foi aqui publicado no dia 8 de Julho de 2011. A repetição é uma sentida homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem vender a Quarta Pessoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
José Cândido de Carvalho
A bem dizer, sou Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente, do
que tenho honra e faço alarde. Herdei do meu avô Simeão terras de muitas
medidas, gado do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da
vista e até uns latins arranhei em tempos verdes de infância, com uns
padres-mestres a dez tostões por mês. Digo, modéstia de lado, que já
discuti e joguei no assoalho do Foro mais de um doutor formado. Mas
disso não faço glória, pois sou sujeito lavado de vaidade, mimoso no
trato, de palavra educada. Já morreu o antigamente em que Ponciano
mandava saber nos ermos se havia um caso de lobisomem a sanar ou pronta
justiça a ministrar. Só de uma regalia não abri mão nesses anos todos de
pasto e vento: a de falar alto, sem freio nos dentes, sem medir
consideração, seja em compartimento do governo, seja em sala de
desembargador. Trato as partes no macio, em jeito de moça. Se não recebo
cortesia de igual porte, abro o peito:
- Seu filho de égua, que pensa que é?
"O Coronel e o Lobisomem", José Cândido de Carvalho
(José Cândido de Carvalho nasceu no dia 5 de Agosto de 1914. Morreu em 1989.)
- Seu filho de égua, que pensa que é?
"O Coronel e o Lobisomem", José Cândido de Carvalho
(José Cândido de Carvalho nasceu no dia 5 de Agosto de 1914. Morreu em 1989.)
domingo, 3 de agosto de 2014
Silly season 6
O futuro é como os melões. Depois de aberto vê-se logo que mais valia ter comprado 150 gramas de azeitonas.
sexta-feira, 1 de agosto de 2014
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