Está então aí a deliciosa maré para confeccionar as tradicionais sopas
do Espírito Santo e a perfumada alcatra, que, à moda da Terceira,
constitui uma das principais jóias da preciosa cozinha açoriana.
A quinta-feira é dia de Pezinho. Em nome da Comissão, um rancho de
cantadores e tocadores de viola vai de porta em porta agradecendo e, em
muitos casos, recolhendo ainda ofertas retardatárias para a festa
grande. Na sexta-feira, pelo meio-dia, as portas da despensa do império
abrem-se à distribuição do pão e da carne, repartida em doses ricas,
para consumo de toda a freguesia mas cuidando particularmente para que
não faltem aos mais pobres. Todos os lares estarão precatados para
receberem fidalgamente familiares, parentes, compadres, vizinhos, amigos
e penetras.
De súpeto espetam-se no fim os dias contados dos dois, três ou mais
animais que a Irmandade, comprados ou por oferta prometida, há um ano
cativara e cevara para o efeito. Fatal como o destino, não há milagre
que lhes valha. São cozidas centenas de quilos de pão branco para a sopa
e em massa sovada. Requisita-se o melhor vinho da ilha. Venham então
essas sopas do Espírito Santo, que já se irrequieta o pessoal, com os
pés metidos debaixo da mesa.
Mestre Nemésio conta, de fazer água na boca, em "Mau Tempo no Canal":
O
bezerro esquartejava-se para esmolas de pão e carne estendidas em
bancas improvisadas na rua com tabuões e toalhas, e postas nos seus
pratos de barro coroados de ramos de hortelã. O pobre que dá ao pobre
cobre a sua alma e empresta a Deus. Fartura é naqueles dias! Cozido e
alcatra a amigos e compadres, nas panelas de arroba mexidas pela "mestra
da função"... as mesas postas, carniça, potes de rosas, e os copos
mostrando à transparência de vinho os confeitos de funcho e açúcar
jogados pela vereança aos peitos das raparigas. Vivo e coberto de fitas,
tonto das boninas e da pólvora do foguetório, o bezerro, à frente do
cornetim e da rabeca do Pezinho, cheirava a pêlo e a chícharo, à jarroca das grotas sem fundo, trazido do lado de
lá do nevoeiro que engorda os pastos e vela a alma da ilha. Ainda
quente do breu que lhe segura a rosa de papel entre os cornos,
ajoelhavam o bicho à força à porta do "imperador", como se o Espírito
Santo quisesse lembrar aos ilhéus que são do mesmo barro que a vaca
bafejou no filho da Virgem pobrinha.
Tal qual.
(Este é que é o Espírito Santo bom. O outro, o Espírito Santo
dos salafrários, vai continuar a comer-nos, e não pouco. Estes textos foram
publicados em Julho de 2011. A repetição é uma sentida
homenagem aos alegados governantes de Portugal que agora nos querem
vender a Quarta Pesssoa da Santíssima Trindade. Acham que somos todos
parvos, e se calhar somos. Amanhã há mais.)
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