quarta-feira, 31 de julho de 2019
Pergunta com rasteira
Gostava de fazer perguntas com rasteira. Era realmente um indivíduo traiçoeiro e particularmente violento.
António Maria Lisboa 7
Vírgula
Eu menino às onze horas e trinta minutos
a procurar o dia em que não te fale
feito de resistências e ameaças - Este mundo
compreende tanto no meio em que vive
tanto no que devemos pensar.
A experiência o contrário da raiz originária aliás
demasiado formal para que se possa acreditar
no mais rigoroso sentido da palavra.
Tanta metafísica eu e tu
que já não acreditamos como antes
diferentes daquilo que entendem os filósofos
- constitui uma realidade
que não consegue dominar (nem ele próprio)
as forças primitivas
quando já se tem pretendido ordens à vida humana
em conflito com outras surge agora
a necessidade dos Oásis Perdidos.
E vistas assim as coisas fragmentariamente é certo
e a custo na imensidão da desordem
a que terão de ser constantemente arrancadas
- são da máxima importância as Velhas Concepções pois
a cada momento corremos grandes riscos
desconcertantes e de sinistra estranheza.
Resulta isto dum olhar rápido sobre a cidade desconhecida.
E abstraindo dos versos que neste poema se referem ao mundo humano
vemos que ninguém até hoje se apossou do homem
como frágil véu que nos separa vedados e proibidos.
"Ossóptico e Outros Poemas", António Maria Lisboa
(António Maria Lisboa nasceu no dia 1 de Agosto de 1928. Morreu em 1953.)
Eu menino às onze horas e trinta minutos
a procurar o dia em que não te fale
feito de resistências e ameaças - Este mundo
compreende tanto no meio em que vive
tanto no que devemos pensar.
A experiência o contrário da raiz originária aliás
demasiado formal para que se possa acreditar
no mais rigoroso sentido da palavra.
Tanta metafísica eu e tu
que já não acreditamos como antes
diferentes daquilo que entendem os filósofos
- constitui uma realidade
que não consegue dominar (nem ele próprio)
as forças primitivas
quando já se tem pretendido ordens à vida humana
em conflito com outras surge agora
a necessidade dos Oásis Perdidos.
E vistas assim as coisas fragmentariamente é certo
e a custo na imensidão da desordem
a que terão de ser constantemente arrancadas
- são da máxima importância as Velhas Concepções pois
a cada momento corremos grandes riscos
desconcertantes e de sinistra estranheza.
Resulta isto dum olhar rápido sobre a cidade desconhecida.
E abstraindo dos versos que neste poema se referem ao mundo humano
vemos que ninguém até hoje se apossou do homem
como frágil véu que nos separa vedados e proibidos.
"Ossóptico e Outros Poemas", António Maria Lisboa
(António Maria Lisboa nasceu no dia 1 de Agosto de 1928. Morreu em 1953.)
António Rebordão Navarro 5
As mulheres da Cantareira
Naturalmente, antes de as manhãs
pegarem fogo a todas as palmeiras,
gastaram elas os perfumes nas rochas,
levaram os seus seios para as ondas,
lavaram os sexos no rio,
lavraram os limos com os lábios.
Anteriores às gaivotas,
desenharam o seu voo nas águas,
descrevendo na areia
o coleante deambular dos vermes,
vendidos no termo das semanas
aos amantes da pesca.
Virtualmente, antes de o Inverno
lhes mudar o semblante,
comer à sua mesa e violá-las,
elas eram só música,
trazendo, levando, conduzindo
todos os barcos pelo mar do seu corpo.
Mais antigas que os ventos e a paisagem,
muitas vezes fizeram de sereias,
de estrelas breves consumidas
em vinho ou em cerveja,
outras de frio aço e aguardente,
alguns momentos de tabaco loiro.
(São putas? São fidalgas? São senhoras?
Netas bastardas de Raul Brandão?)
Meigas, transparentes, adejantes,
antes de os elementos
cismarem em criá-las,
já elas eram feitas
como deusas cumpridas
em fumo, mito e névoa.
Como estátuas fenícias?
Como estátuas.
António Rebordão Navarro
(António Rebordão Navarro nasceu no dia 1 de Agosto de 1933. Morreu em 2015.)
António Osório 2
Não é uma coisa só
Não é uma coisa só,
São muitas coisas nuas.
Não é o desabar de uma casa.
É percorrer os seus escombros.
Não é aguardar por um filho.
É voltar a sê-lo.
Não é penetrar em ti.
É sair de mim.
Não é pedir-te que faças.
É fazer-te.
Não é dormir lado a lado.
É estar jacente de mãos dadas.
Não é ouvir vento e chuva.
É franquear-lhes a cama.
E relâmpago que pela terra se funde.
António Osório
(António Osório nasceu no dia 1 de Agosto de 1933)
Não é uma coisa só,
São muitas coisas nuas.
Não é o desabar de uma casa.
É percorrer os seus escombros.
Não é aguardar por um filho.
É voltar a sê-lo.
Não é penetrar em ti.
É sair de mim.
Não é pedir-te que faças.
É fazer-te.
Não é dormir lado a lado.
É estar jacente de mãos dadas.
Não é ouvir vento e chuva.
É franquear-lhes a cama.
E relâmpago que pela terra se funde.
António Osório
(António Osório nasceu no dia 1 de Agosto de 1933)
Luís Bouza Trillo 3
Alá a mediados deste siglo había na cibdá de Ourense un zapateiro chamado Xan Canitrote, home de ben a carta cabal, pro que tiña o vicio condenado de tomar cada pelica que o demo iba con ela.
Pola semán adiante traballaba de xenio o bon do descípolo de San Crispín, e ¡abofellas que outro que botase mellor unhas tombas ou uns tacóns, non o había en media légoa ó redondo!
Todo iba ben, como dixen, durante a semán, pro ó chegar o luns, erguíase cedo, moito antes de que cantasen os galos, baixaba á tenda, puña o betún, a subela, as formas e máis chismes do oficio, todo con moito xeito, e logo ben quediño, para que non o sentise a muller abría a porta, e ala, ala, chegaba nun santiamén ó ponte maor, donde, pra facer boca, botaba un par de netos do tinto, en xuntanza con outros compinches.
Ó vir a noite xa tiñan recorrido media docena de bodegóns, e tombo de aquí, rempuxón de acolá, chegaba Canitrote á súa casa feito unha cuba; pro o conto era que Xuliana, moza forte coma un buxo, agardaba ó seu home detrás da porta, e cando coa forcada, cando co sacho, púñalle o lombo que aquelo era de ver.
[...]
"Xan Canitrote (conto popular)", Luís Bouza Trillo
(Luís Bouza Trillo nasceu no dia 1 de Agosto de 1869. Morreu em 1941.)
Pola semán adiante traballaba de xenio o bon do descípolo de San Crispín, e ¡abofellas que outro que botase mellor unhas tombas ou uns tacóns, non o había en media légoa ó redondo!
Todo iba ben, como dixen, durante a semán, pro ó chegar o luns, erguíase cedo, moito antes de que cantasen os galos, baixaba á tenda, puña o betún, a subela, as formas e máis chismes do oficio, todo con moito xeito, e logo ben quediño, para que non o sentise a muller abría a porta, e ala, ala, chegaba nun santiamén ó ponte maor, donde, pra facer boca, botaba un par de netos do tinto, en xuntanza con outros compinches.
Ó vir a noite xa tiñan recorrido media docena de bodegóns, e tombo de aquí, rempuxón de acolá, chegaba Canitrote á súa casa feito unha cuba; pro o conto era que Xuliana, moza forte coma un buxo, agardaba ó seu home detrás da porta, e cando coa forcada, cando co sacho, púñalle o lombo que aquelo era de ver.
[...]
"Xan Canitrote (conto popular)", Luís Bouza Trillo
(Luís Bouza Trillo nasceu no dia 1 de Agosto de 1869. Morreu em 1941.)
Lições de História 42: Tito
Faz hoje mil novecentos e quarenta e nove anos que Tito e as suas
legiões romanas derrubaram a segunda muralha de Jerusalém. Lá dentro, os
judeus fugiram à rasca para a primeira muralha, mas os romanos,
copiando o Porto de muitos séculos depois, construíram uma
circunvalação, cortando vazas aos sitiados e todas as árvores num raio
de quinze quilómetros, o que foi considerado um escândalo ambiental. A
circunvalação de Tito era também conhecida como muralha de cerco, mais
uma vez plagiando por antecipação a Invicta, mas sem bairro. Tito era o filho mais velho
de Vespasiano e foi imperador entre 79 e 81. A mãe de Tito chamava-se
Domitila, a Maior, para se diferenciar da filha Domitila, a Menor, irmã
de Tito.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à presidência da antiga Jugoslávia e ao futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga.
Tito, na área, era imperial. Fino. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava. Palavra de honra, acertava!
Claro, não havia YouTube. Conto assim tal qual porque eu vi. E de olhos bem abertos.
P.S. - O textinho acima foi escrito e publicado no passado dia 30 de Maio. Os chamados jornais desportivos portugueses estão hoje histericozinhos, à falta de melhores mamas, com um "concurso de habilidades" nos EUA abrilhantado, entre outros craques, pelo nosso Nani, do Orlando City, e pelo nosso João Félix, do Atlético de Madrid. Uma das habilidades era o "remate à barra"e foi um sucesso. Realmente a humanidade não se cansa de inventar a pólvora. E agora há YouTube.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à presidência da antiga Jugoslávia e ao futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga.
Tito, na área, era imperial. Fino. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava. Palavra de honra, acertava!
Claro, não havia YouTube. Conto assim tal qual porque eu vi. E de olhos bem abertos.
P.S. - O textinho acima foi escrito e publicado no passado dia 30 de Maio. Os chamados jornais desportivos portugueses estão hoje histericozinhos, à falta de melhores mamas, com um "concurso de habilidades" nos EUA abrilhantado, entre outros craques, pelo nosso Nani, do Orlando City, e pelo nosso João Félix, do Atlético de Madrid. Uma das habilidades era o "remate à barra"e foi um sucesso. Realmente a humanidade não se cansa de inventar a pólvora. E agora há YouTube.
terça-feira, 30 de julho de 2019
Escorpiões, gafanhotos e outros encabanços
O brasileiro José Graziano da Silva acaba esta semana o seu mandato de oito anos (quatro mais quatro) como director-geral da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), agência especializada das Nações Unidas. Na hora da saída, e perante o aumento da fome no mundo, ele deixa a sugestão: "Comemos tanta porcaria, porque não escorpião?"
Olha que bem lembrado: exactamente escorpião, porque não? Estaria o problema resolvido. Eu por exemplo: quando fiz 21 anos comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me queixo, embora tenha sido uma canseira andar a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos quando fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Eram assim os Comandos, para onde não fui voluntário. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugo descontrolado e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, quarenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que às vezes "as coisas correm mal"...
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor palerma. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche talvez marchassem melhor. E depois um golinho de água, por favor...
Naquele tempo eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro (isto anda tudo ligado) Juca Chaves e que, indo directamente aos finalmentes, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando.
Olha que bem lembrado: exactamente escorpião, porque não? Estaria o problema resolvido. Eu por exemplo: quando fiz 21 anos comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me queixo, embora tenha sido uma canseira andar a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos quando fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Eram assim os Comandos, para onde não fui voluntário. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugo descontrolado e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, quarenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que às vezes "as coisas correm mal"...
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor palerma. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche talvez marchassem melhor. E depois um golinho de água, por favor...
Naquele tempo eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro (isto anda tudo ligado) Juca Chaves e que, indo directamente aos finalmentes, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando.
Camilo Lara 3
se subimos
ao cume
ao lado
dos abismos
temos o direito
de cair
Camilo Lara
(Camilo Lara nasceu no dia 31 de Julho de 1959. Morreu em 2016.)
ao cume
ao lado
dos abismos
temos o direito
de cair
Camilo Lara
(Camilo Lara nasceu no dia 31 de Julho de 1959. Morreu em 2016.)
A febre da Protecção Civil
segunda-feira, 29 de julho de 2019
Bem prega frei Tomás
Tomás era o faz-tudo do convento. Agricultor, apicultor, sacristão, chef de cozinha, porteiro, parteiro, telefonista, copista, contorcionista, iluminador, vendedor de imóveis, disc jockey,
picheleiro, Pai Natal, guarda-redes, mas sobretudo era um carpinteiro de mão cheia. Fosse o soalho
do refeitório ou empreitada mais modesta, de martelo em riste, pregador como ele não havia.
Mário Quintana 9
Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!
"A Rua dos Cataventos", Mário Quintana
(Mário Quintana nasceu no dia 30 de Julho de 1906. Morreu em 1994.)
Dou abraços em segunda mão
Caro Amigo,
Lembrei-me de te escrever hoje. Há que tempos, não é? Andei a mexer nas gavetas, faço-o uma vez por ano, sei lá eu porquê, e no meio da papelada encontrei meia dúzia de abraços antigos mas ainda em razoável estado de conservação. É o que me resta. Acho que é uma pena deitá-los fora. Vou mandar-te um. Espero que te sirva.
Paroles, paroles, paroles
Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são cada vez mais poderosas, as palavras dominam as nossas vidas. As palavras até tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À dissimulação?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", dizemos olá de boca, e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emojis. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.
Devolveram-me o amplexo
O meu amigo fazia anos e eu mandei-lhe uma SMS: "Parabéns. Abraço."
O meu amigo respondeu-me, também por SMS: "Devolvo o abraço. Obrigado."
E eu pensei: o abraço teria defeito?
Saudações amigas?
Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...
Amigo é a solidão derrotada
Dá-me para isto ultimamente. Pergunto aos meus amigos: - Andas feliz? És feliz? Pergunto-lhes acerca do coração, dos afectos, do casamento, do divórcio, da mulher, da namorada, da mulher e das namoradas (há quem acumule), dos filhos, dos netos, dos irmãos, dos pais, dos sogros, da saúde, da fé, da filosofia, da poesia, de Deus, dos sonhos, da vida. Falamos de bondade, de amor, de compaixão, de vinho. "És feliz? Andas feliz?", é o que pergunto, exactamente da mesma maneira que pergunto em casa, à mesa, se a comidinha está a saber bem.
A vida para ter algum jeito também deve saber bem, não é? Os meus amigos são poucos e interessam-me muito e por isso é que são sem aspas e sem Facebook. Somos amigos cara a cara, de abraço de carne e osso. Deve ser da idade, ou então da falta de ar no armário, mas eu e os meus amigos andamos cada vez mais abraçadeiros uns com os outros. Os meus amigos sabem que eu cozinho e são meia dúzia deles. Às vezes frequentam-me a mesa ou o balcão da cozinha, por mor de umas fanecas com arroz de tomate ou de umas bifanas que me trazem quentinhas. E eu sou um felizardo por eles me frequentarem a vida.
P.S. - Hoje, 30 de Julho, é Dia Internacional da Amizade, por ordem da ONU.
Lembrei-me de te escrever hoje. Há que tempos, não é? Andei a mexer nas gavetas, faço-o uma vez por ano, sei lá eu porquê, e no meio da papelada encontrei meia dúzia de abraços antigos mas ainda em razoável estado de conservação. É o que me resta. Acho que é uma pena deitá-los fora. Vou mandar-te um. Espero que te sirva.
Paroles, paroles, paroles
Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são cada vez mais poderosas, as palavras dominam as nossas vidas. As palavras até tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À dissimulação?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", dizemos olá de boca, e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emojis. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.
Devolveram-me o amplexo
O meu amigo fazia anos e eu mandei-lhe uma SMS: "Parabéns. Abraço."
O meu amigo respondeu-me, também por SMS: "Devolvo o abraço. Obrigado."
E eu pensei: o abraço teria defeito?
Saudações amigas?
Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...
Amigo é a solidão derrotada
Dá-me para isto ultimamente. Pergunto aos meus amigos: - Andas feliz? És feliz? Pergunto-lhes acerca do coração, dos afectos, do casamento, do divórcio, da mulher, da namorada, da mulher e das namoradas (há quem acumule), dos filhos, dos netos, dos irmãos, dos pais, dos sogros, da saúde, da fé, da filosofia, da poesia, de Deus, dos sonhos, da vida. Falamos de bondade, de amor, de compaixão, de vinho. "És feliz? Andas feliz?", é o que pergunto, exactamente da mesma maneira que pergunto em casa, à mesa, se a comidinha está a saber bem.
A vida para ter algum jeito também deve saber bem, não é? Os meus amigos são poucos e interessam-me muito e por isso é que são sem aspas e sem Facebook. Somos amigos cara a cara, de abraço de carne e osso. Deve ser da idade, ou então da falta de ar no armário, mas eu e os meus amigos andamos cada vez mais abraçadeiros uns com os outros. Os meus amigos sabem que eu cozinho e são meia dúzia deles. Às vezes frequentam-me a mesa ou o balcão da cozinha, por mor de umas fanecas com arroz de tomate ou de umas bifanas que me trazem quentinhas. E eu sou um felizardo por eles me frequentarem a vida.
P.S. - Hoje, 30 de Julho, é Dia Internacional da Amizade, por ordem da ONU.
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domingo, 28 de julho de 2019
Microcontos & outras miudezas 158
Omnipotente
Deus pode tudo. O bem e o mal?...
Omnisciente
Deus sabe tudo. Mas às vezes esquece-se.
Omnipresente
Deus está em toda a parte. Mas não é geral.
Visão divina
Deus vê tudo. Mas fecha os olhos.
Infinito mas com limites
Deus é infinitamente bom. Mas convém não abusar.
Iguais perante Deus
Somos todos iguais aos olhos de Deus. Cada qual no seu lugar.
Cuidado ao lavar
Deus é justo, porém imenso.
Esperando deitado, amém
Deus tarda, mas não falha. Há quem diga.
O encontro das duas senhoras
- Bom dia, Senhora da Misericórdia!...
- Olá, Maria das Dores, há um ano que não nos víamos...
- Saio pouco, enjoo na viagem...
- E eu também, são estes solavancos, estes salamaleques, estas ladainhas altifalantadas, estes tambores, este sol, este povo...
- O nosso povo, não é?
- No dia do anho parece que sim, de resto nunca sei dele...
- Mas a senhora está muito bem.
- E a senhora também.
- Porém os anos...
- A quem o diz...
- Por falar nisso, tinha qualquer coisa para lhe dizer...
- E eu também, mas não me lembro...
- Bem, vou-me lá...
- Realmente, são que horas, vá indo que eu vou do meu vagar...
- Então adeus, até para o ano...
- Se Deus quiser. Adeus.
Para falar com Deus
Tomou horas, foi para a fila, tirou senha, esperou vez, chamaram-lhe o número, acostou finalmente ao balcão das informações e perguntou: - Para falar com Deus, falo com quem?...
O culpado
Estava de bem com Deus e com os homens. Ele sabia do fundo do coração: todo o mal que lhe caíra em cima - tanto, tanto! - foi sempre por culpa própria, asneira do momento ou em paga de pecados velhos. Com apenas alguns milhares e milhares de lamentáveis excepções.
Deus pode tudo. O bem e o mal?...
Omnisciente
Deus sabe tudo. Mas às vezes esquece-se.
Omnipresente
Deus está em toda a parte. Mas não é geral.
Visão divina
Deus vê tudo. Mas fecha os olhos.
Infinito mas com limites
Deus é infinitamente bom. Mas convém não abusar.
Iguais perante Deus
Somos todos iguais aos olhos de Deus. Cada qual no seu lugar.
Cuidado ao lavar
Deus é justo, porém imenso.
Esperando deitado, amém
Deus tarda, mas não falha. Há quem diga.
O encontro das duas senhoras
- Bom dia, Senhora da Misericórdia!...
- Olá, Maria das Dores, há um ano que não nos víamos...
- Saio pouco, enjoo na viagem...
- E eu também, são estes solavancos, estes salamaleques, estas ladainhas altifalantadas, estes tambores, este sol, este povo...
- O nosso povo, não é?
- No dia do anho parece que sim, de resto nunca sei dele...
- Mas a senhora está muito bem.
- E a senhora também.
- Porém os anos...
- A quem o diz...
- Por falar nisso, tinha qualquer coisa para lhe dizer...
- E eu também, mas não me lembro...
- Bem, vou-me lá...
- Realmente, são que horas, vá indo que eu vou do meu vagar...
- Então adeus, até para o ano...
- Se Deus quiser. Adeus.
Para falar com Deus
Tomou horas, foi para a fila, tirou senha, esperou vez, chamaram-lhe o número, acostou finalmente ao balcão das informações e perguntou: - Para falar com Deus, falo com quem?...
O culpado
Estava de bem com Deus e com os homens. Ele sabia do fundo do coração: todo o mal que lhe caíra em cima - tanto, tanto! - foi sempre por culpa própria, asneira do momento ou em paga de pecados velhos. Com apenas alguns milhares e milhares de lamentáveis excepções.
Aquilino Iglesia Alvariño 5
Esta é a mar dos solpôres
[...]
Un día
as pesadas cabezas
afundíronse para sempre pra máis aló do sono.
E daquela a súa sombra
foi xa amarguexo e cinza,
e oco sin consolo, e triste esquenzo.
Daquela foi a mar
as outas olas sin acougo.
No seu colo de tola sin mamoria
anaina os soles do solpôr
e as lúas novas coma nécoras pequerrechas
ô son do eco cóncavo e lonxano
daqueles altos montes tan velliños
que foron unha vez.
"Cómaros Verdes", Aquilino Iglesia Alvariño
(Aquilino Iglesia Alvariño nasceu no dia 12 de Junho de 1909. Morreu no dia 29 de Julho de 1961.)
[...]
Un día
as pesadas cabezas
afundíronse para sempre pra máis aló do sono.
E daquela a súa sombra
foi xa amarguexo e cinza,
e oco sin consolo, e triste esquenzo.
Daquela foi a mar
as outas olas sin acougo.
No seu colo de tola sin mamoria
anaina os soles do solpôr
e as lúas novas coma nécoras pequerrechas
ô son do eco cóncavo e lonxano
daqueles altos montes tan velliños
que foron unha vez.
"Cómaros Verdes", Aquilino Iglesia Alvariño
(Aquilino Iglesia Alvariño nasceu no dia 12 de Junho de 1909. Morreu no dia 29 de Julho de 1961.)
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Tenkiu verigude
É este Verão um bocado tolo, incerto, mas ainda assim assoberbado numa terra dita de horizonte e mar e que acordou ontem e à ganância para o golpe do alojamento local. A inglesinha abeirou-se-me sorridente e de mapa na mão, pedindo-me que
lhe dissesse onde estava. Indiquei-lhe: estávamos na Avenida de Serpa
Pinto, Matosinhos, que era o sítio que ela queria. Alargando o sorriso,
bonito, a inglesinha simpática fez "Hã... hã... hã...", à procura da
palavra certa, e, no seu melhor português, saiu-se finalmente, toda
satisfeita, "Grazie!"...
Vá lá, podia ter sido pior. Se me tivesse atirado "Muchas gracias!" eu ficaria realmente incomodado...
Vá lá, podia ter sido pior. Se me tivesse atirado "Muchas gracias!" eu ficaria realmente incomodado...
Kits marados, golas inflamáveis e outras tolérias
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso:
dominados. É uma questão de orgulho macho. E então arrebitam e continuam
a
arder lampeiramente uma semana depois de terem sido decretados dominados
aos microfones da CMTV, e a CMTV fica toda contente, porque a CMTV é do
ramo do sarrabulho e do fumeiro - disso vive, em lume brando. Os
oficiais da Protecção Civil, doutores da mula ruça porém pessoas muito
honradas e de boina, que antes deste rico emprego nunca tinham posto os
pés num incêndio, tiraram um
curso relâmpago de Teatro de Operações, Forças no Terreno, Frentes
Activas, Meios Aéreos & Pontos de
Ignição e gostam de dar na televisão: o mais que dizem é que os
incêndios de manhã, se não estão já dominados, vão entregar-se às
autoridades a meio da tarde. Os oficiais da Protecção Civil e os
políticos que os pariram inventaram um novo dicionário,
especializaram-se em semântica, graduaram-se em eufemística e falam
muito do que sabem nada...
(Minúsculo esclarecimento, provavelmente desnecessário para o cidadão comum: Teatro de Operações, vulgo TO.)
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.
Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel. Ou por outra: o SIRESP vinha de motorizada. Ou por outra: o SIRESP era a motorizada.
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.
Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.
P.S. - O Governo comprou o SIRESP por sete milhões de euros. PCP e CDS, e o PSD a reboque, chamaram ao Parlamento os ministros da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e da Economia, Pedro Siza Vieira, para que os alegados governantes lhes expliquem a matreira engenharia do negócio. A grande preocupação deles - do PCP e do CDS e, que remédio, do PSD - é que, hoje em dia, sete milhões não chegam sequer para contratar um defesa esquerdo que não tropece no pé direito. Então, como é que foi possível a jigajoga do SIRESP por dez réis de mel coado?...
P.S. 2 - E agora o escândalo dos kits e das golas inflamáveis que afinal não são mas são outra coisa. As negociatas, as famílias, a pouca-vergonha e honra nenhuma. O Governo diz que a culpa é da Protecção Civil e a Protecção Civil diz que a culpa é do Governo. E eu pensava que a Protecção Civil era do Governo. O escusado Jaime Marta Soares, redundante presidente da Liga dos Bombeiros, diz que a culpa é da Protecção Civil, e eu pensava que os bombeiros eram Protecção Civil. Rui Rio, desgraçado líder do PSD, quer que o Ministério Público investigue. Assunção Cristas, líder catita do CDS, foi ao cabeleireiro. E eu exijo que os bombeiros pessoas sejam ignífugos desde pequeninos.
(Minúsculo esclarecimento, provavelmente desnecessário para o cidadão comum: Teatro de Operações, vulgo TO.)
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.
Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel. Ou por outra: o SIRESP vinha de motorizada. Ou por outra: o SIRESP era a motorizada.
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.
Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.
P.S. - O Governo comprou o SIRESP por sete milhões de euros. PCP e CDS, e o PSD a reboque, chamaram ao Parlamento os ministros da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e da Economia, Pedro Siza Vieira, para que os alegados governantes lhes expliquem a matreira engenharia do negócio. A grande preocupação deles - do PCP e do CDS e, que remédio, do PSD - é que, hoje em dia, sete milhões não chegam sequer para contratar um defesa esquerdo que não tropece no pé direito. Então, como é que foi possível a jigajoga do SIRESP por dez réis de mel coado?...
P.S. 2 - E agora o escândalo dos kits e das golas inflamáveis que afinal não são mas são outra coisa. As negociatas, as famílias, a pouca-vergonha e honra nenhuma. O Governo diz que a culpa é da Protecção Civil e a Protecção Civil diz que a culpa é do Governo. E eu pensava que a Protecção Civil era do Governo. O escusado Jaime Marta Soares, redundante presidente da Liga dos Bombeiros, diz que a culpa é da Protecção Civil, e eu pensava que os bombeiros eram Protecção Civil. Rui Rio, desgraçado líder do PSD, quer que o Ministério Público investigue. Assunção Cristas, líder catita do CDS, foi ao cabeleireiro. E eu exijo que os bombeiros pessoas sejam ignífugos desde pequeninos.
sábado, 27 de julho de 2019
Simplesmente Simplício (ou, vá lá, Agá Ramos)
Sou Bomba, Dezassete e Perna-de-Pau, por parte do meu pai, e sou Neques, por parte da minha mãe, com muito gosto. Já me chamaram Américo, Pobre, Padreca, Sacerdote, Profeta, Bítala, Cabeludo, Guedelhudo, Hippie, Careca, 05613478, Amélia, Drogado, Comunista, Socialista, Anarquista, Violoncelista (é a brincar - nunca ninguém teve a coragem de me chamar Violoncelista na cara!), Caixa-de-Óculos, Ó Tio Ó Tio, Gramático, Chefe, Doutor, Professor, Andrade, Pau de Virar Tripas, Gordo, Ex-Gordo, Hernano, Hermano, Herlânder, Hermo, Irrenane, Renane, Ranano, Renamo, Ernesto, Aquele Senhor, Doente da Cama 2, Próximo!, Nanes, Se'Nane, Belingue, Berlingue, Bilingue, Berlindes, Boelingue, Bolingue, Dillinger, Dilingue, Volkswagen. Eu sinceramente prefiro que me chamem Simplício. Ou então, vá lá, Agá Ramos.
Xesús Rodríguez López 4
Os solteirós
Fai xa tempo que me choca
porqu' é cousa d'estrañar
o ver tanto solteiron
como pol-o mundo hay
con posiceon e con cartos
sin trazas de se casar,
por mais qu'eles ben conozan
que lleis vai pasando á edá
habendo tantas solteiras
que podían amparar.
[...]
"Pasaxeiras", Xesús Rodríguez López
(Xesús Rodríguez López nasceu no dia 28 de Julho de 1859. Morreu em 1917.)
Fai xa tempo que me choca
porqu' é cousa d'estrañar
o ver tanto solteiron
como pol-o mundo hay
con posiceon e con cartos
sin trazas de se casar,
por mais qu'eles ben conozan
que lleis vai pasando á edá
habendo tantas solteiras
que podían amparar.
[...]
"Pasaxeiras", Xesús Rodríguez López
(Xesús Rodríguez López nasceu no dia 28 de Julho de 1859. Morreu em 1917.)
Lições de História 47: os Dalton
Os irmãos Dalton eram oito, quatro de cada vez. Começaram por ser Bob, Grat, Bill e Emmet, mas morreram, faz de conta, e foram substituídos pelos primos mais à mão, os impagáveis Joe, William, Jack e Averell. Estes quatro eram bastante filhos da mãe, da Mãe Dalton, vestiam às risquinhas, deslocavam-se em escadinha, sempre do mais pequeno para o maior ou vice-versa, e Lucky Luke fazia-lhes a vida negra.
Houve também o bando dos Dalton a sério (à séria, se lido em Lisboa). Eram especialistas em bancos e comboios, actuaram com assinalável sucesso no Velho Oeste americano entre 1890 e 1892 e chamavam-se Tim Evans, Bob Dalton, Grat Dalton e Dick Broadwell. Foram abatidos pela polícia durante o assalto a uma dependência bancária em Coffeyville, Kansas, e tiveram todos um lindo enterro.
Há ainda a registar Timothy Dalton, aquele actor galês e fraquinho que fez por engano dois 007, o Dalton Ico e o Dalton Trevisan, famoso escritor brasileiro entendido em vampiros e ganhador dos prémios Camões e Machado de Assis, entre outros. O mais destacado membro da família terá sido, no entanto, o cientista inglês John Dalton (1766-1844), químico, meteorologista e físico, um dos primeiros a defender que a matéria é feita de pequenos nadas, os átomos, e inventor da "lei das proporções múltiplas", melhor chamada Lei de Dalton para não se confundir com a Lei de Ohm. O grande John faleceu faz hoje exactamente 175 anos. RIP.
Houve também o bando dos Dalton a sério (à séria, se lido em Lisboa). Eram especialistas em bancos e comboios, actuaram com assinalável sucesso no Velho Oeste americano entre 1890 e 1892 e chamavam-se Tim Evans, Bob Dalton, Grat Dalton e Dick Broadwell. Foram abatidos pela polícia durante o assalto a uma dependência bancária em Coffeyville, Kansas, e tiveram todos um lindo enterro.
Há ainda a registar Timothy Dalton, aquele actor galês e fraquinho que fez por engano dois 007, o Dalton Ico e o Dalton Trevisan, famoso escritor brasileiro entendido em vampiros e ganhador dos prémios Camões e Machado de Assis, entre outros. O mais destacado membro da família terá sido, no entanto, o cientista inglês John Dalton (1766-1844), químico, meteorologista e físico, um dos primeiros a defender que a matéria é feita de pequenos nadas, os átomos, e inventor da "lei das proporções múltiplas", melhor chamada Lei de Dalton para não se confundir com a Lei de Ohm. O grande John faleceu faz hoje exactamente 175 anos. RIP.
sexta-feira, 26 de julho de 2019
Microcontos & outras miudezas 157
A lebre de serviço
Os principais favoritos organizaram uma patuscada e comeram a lebre. Depois fizeram tempos de merda.
Dama com armário
Pediu ao amante um armário. E o amante comprou-lho. Quando o móvel lhe entrou em casa é que ela deu fé do engano. Ela queria um arminho...
O papel
Conseguiu finalmente acabar com o papel na sua empresa. Nas casas de banho notou-se logo.
O benfeitor
Era um recatado benfeitor: não queria que se soubesse que ele queria que se soubesse.
Lições de História: a Batalha de Castillon
A Batalha de Castillon foi levada a efeito em 1453, faz hoje exactamente 566 anos, e ficou na História como a derradeira e decisiva batalha da Guerra dos Cem Anos, que decorreu razoavelmente entre franceses e ingleses. A França ganhou, e félicitations à la cousine. A Guerra dos Cem Anos chama-se Guerra dos Cem Anos porque durou cento e dezasseis anos, mas chamar Guerra dos Cento e Dezasseis Anos à Guerra dos Cem Anos não dava jeito nenhum aos historiadores e contabilistas bancários, e assim começaram os arredondamentos.
Eu cuido que a Batalha de Castillon se efectivou em Fafe, numa antiga elevação entre a Ponte do Ranha, o Socorro, a Fábrica do Papelão, a casa da Dona Aurora e o Estádio. Ali se situava, com efeito, o famoso monte de Castelhão, como se diz em português, ou Castilhom, como se diz em fafês. O monte de Castelhão era um sítio aprazível para a realização de todo o tipo de batalhas, como por exemplo brincar aos cobóis, e tinha um belíssimo pionono, de que infelizmente não há muita certeza.
Gosto muito de o ver na televisão
- Gosto muito de o ver na televisão!
- E que tal aqui ao vivo, hã?...
- Gosto muito de o ver na televisão.
Os principais favoritos organizaram uma patuscada e comeram a lebre. Depois fizeram tempos de merda.
Dama com armário
Pediu ao amante um armário. E o amante comprou-lho. Quando o móvel lhe entrou em casa é que ela deu fé do engano. Ela queria um arminho...
O papel
Conseguiu finalmente acabar com o papel na sua empresa. Nas casas de banho notou-se logo.
O benfeitor
Era um recatado benfeitor: não queria que se soubesse que ele queria que se soubesse.
Lições de História: a Batalha de Castillon
A Batalha de Castillon foi levada a efeito em 1453, faz hoje exactamente 566 anos, e ficou na História como a derradeira e decisiva batalha da Guerra dos Cem Anos, que decorreu razoavelmente entre franceses e ingleses. A França ganhou, e félicitations à la cousine. A Guerra dos Cem Anos chama-se Guerra dos Cem Anos porque durou cento e dezasseis anos, mas chamar Guerra dos Cento e Dezasseis Anos à Guerra dos Cem Anos não dava jeito nenhum aos historiadores e contabilistas bancários, e assim começaram os arredondamentos.
Eu cuido que a Batalha de Castillon se efectivou em Fafe, numa antiga elevação entre a Ponte do Ranha, o Socorro, a Fábrica do Papelão, a casa da Dona Aurora e o Estádio. Ali se situava, com efeito, o famoso monte de Castelhão, como se diz em português, ou Castilhom, como se diz em fafês. O monte de Castelhão era um sítio aprazível para a realização de todo o tipo de batalhas, como por exemplo brincar aos cobóis, e tinha um belíssimo pionono, de que infelizmente não há muita certeza.
Gosto muito de o ver na televisão
- Gosto muito de o ver na televisão!
- E que tal aqui ao vivo, hã?...
- Gosto muito de o ver na televisão.
Salvador Golpe 5
Unha cita
Do crepúsculo â lus nacarada,
Mirando pr'a serra,
No curuto do monte mais alto
Lucía unha estrela.
¿Vel-a estrela da tarde? - lle dixen -
Se lonxe da terra
Os traballos y as loitas do mundo
Con vida me levan,
Mira a estrela que agora ch'amostro,
Que agora contempras,
Cal espello de amor, dos meus ollos
A lus verás n-ela.
E verás n-ese espello, duas almas
N-un solio de estrelas:
A tua alma co a miña, bicandose
Moi lonxe da terra.
"A Nosa Terra", Salvador Golpe
(Salvador Golpe nasceu no dia 27 de Julho de 1850. Morreu em 1909.)
Do crepúsculo â lus nacarada,
Mirando pr'a serra,
No curuto do monte mais alto
Lucía unha estrela.
¿Vel-a estrela da tarde? - lle dixen -
Se lonxe da terra
Os traballos y as loitas do mundo
Con vida me levan,
Mira a estrela que agora ch'amostro,
Que agora contempras,
Cal espello de amor, dos meus ollos
A lus verás n-ela.
E verás n-ese espello, duas almas
N-un solio de estrelas:
A tua alma co a miña, bicandose
Moi lonxe da terra.
"A Nosa Terra", Salvador Golpe
(Salvador Golpe nasceu no dia 27 de Julho de 1850. Morreu em 1909.)
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