terça-feira, 31 de dezembro de 2019
As coincidências nunca são por acaso
Esta extraordinária e suspeitíssima coincidência de 31 de Dezembro anteceder sistematicamente o primeiro dia do ano seguinte deveria levar-nos a pensar. Mas não, embebedamo-nos.
Um ano para a desgraça
- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Novo?
- Usado, de preferência. É para estragar...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Novo?
- Usado, de preferência. É para estragar...
António Gancho 2
Música
A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada fazia prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erige a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.
"O Ar da Manhã", António Gancho
(António Gancho nasceu em 1940. Morreu no dia 31 de Dezembro de 2006.)
A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada fazia prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erige a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.
"O Ar da Manhã", António Gancho
(António Gancho nasceu em 1940. Morreu no dia 31 de Dezembro de 2006.)
Hélder Proença 3
Quando as flores começam a nascer
Quando as flores começam a nascer
naquele rio vermelho
um sorriso verde caminhará pé ante pé
naquela margem pantanosa
e todas as bocas beberão uma nova água
de fé e esperança
naquele rio vermelho
um sorriso verde caminhará pé ante pé
naquela margem pantanosa
e todas as bocas beberão uma nova água
de fé e esperança
Ninguém naufragará. Jamais!...
ninguém calará seu último grito
no carmesim líquido que deveria ser nossa pomba.
Com dor sufocante
na água que deveria ser nossa criança
ninguém perecerá perante o monstro criminoso
que a turva e a violenta!
ninguém calará seu último grito
no carmesim líquido que deveria ser nossa pomba.
Com dor sufocante
na água que deveria ser nossa criança
ninguém perecerá perante o monstro criminoso
que a turva e a violenta!
Nem Titina dormirá sem fôlego
com a última recordação póstuma
longe da tumba vivente do Mestre.
Quando as flores começam a nascer
naquele rio vermelho
a hora será de ressurreição
e o dia será de glória!
com a última recordação póstuma
longe da tumba vivente do Mestre.
Quando as flores começam a nascer
naquele rio vermelho
a hora será de ressurreição
e o dia será de glória!
"Não Posso Adiar a Palavra", Hélder Proença
(Hélder Proença nasceu no dia 31 de Dezembro de 1956. Morreu em 2009.)
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Alexandre Vargas 3
Primeira oração a Cyborg
Senhor já vos chamei e novamente
as vossas luzes nas colunas e o povo
que não fala pelas ruas deambula,
com a boca entreaberta, os braços fixos
no trajecto-paraíso sem igual
descreve a longa via engenhosa que percorre o seu caudal.
Mas vós, Cyborg, tão alto estais exposto
aos ventos que a vosso encontro se encaminham
que a cidade agonizante toda une os seus esforços
e canta sibilante a melodia
dos vossos templos de quiosques enfeitados,
entre as cascatas o som puro dos seus passos.
Sim, tu Cyborg, és tudo o que desejo
e estou na treva observando o teu fulgor,
serás apenas a miragem ou o grito
que de noite atormenta o meu furor,
desta loucura agora todo eu me quero entranhar
até em parte alguma jamais de novo poder estar.
"Cyborg", Alexandre Vargas
(Alexandre Vargas nasceu no dia 31 de Dezembro de 1952. Morreu em 2018.)
Senhor já vos chamei e novamente
as vossas luzes nas colunas e o povo
que não fala pelas ruas deambula,
com a boca entreaberta, os braços fixos
no trajecto-paraíso sem igual
descreve a longa via engenhosa que percorre o seu caudal.
Mas vós, Cyborg, tão alto estais exposto
aos ventos que a vosso encontro se encaminham
que a cidade agonizante toda une os seus esforços
e canta sibilante a melodia
dos vossos templos de quiosques enfeitados,
entre as cascatas o som puro dos seus passos.
Sim, tu Cyborg, és tudo o que desejo
e estou na treva observando o teu fulgor,
serás apenas a miragem ou o grito
que de noite atormenta o meu furor,
desta loucura agora todo eu me quero entranhar
até em parte alguma jamais de novo poder estar.
"Cyborg", Alexandre Vargas
(Alexandre Vargas nasceu no dia 31 de Dezembro de 1952. Morreu em 2018.)
segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
Morreu o velho rinoceronte que era uma rinoceronta
O rinoceronte mais velho do mundo morreu anteontem, aos 57 anos, soube-se ontem. O rinoceronte chamava-se Fausta e era uma rinoceronta. Não sei o que as camaradas e os camarados do Bloco de Esquerda e ilhas adjacentes têm a dizer a respeito. Eu acho um escândalo, uma vergonha.
Um ano descontraído
- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Bem passado?
- Mas sem vincos...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Bem passado?
- Mas sem vincos...
Quando os Tonys eram de Matos
Foto Hernâni Von Doellinger |
Os lisboetas vão regressar amanhã às suas raízes mais profundas. Às berças. Aos campos do Minho, de Trás-os-Montes, das Beiras, do Alentejo ou dos Algarves de onde partiram há duas ou três gerações, de cajado ao ombro e saca com a merenda. Quer-se dizer: embora o ignorem, os lisboetas são tão parolos como os outros parolos todos. Lisboa já não diferencia. Faz cada vez mais parte do resto que é paisagem neste país que não existe.
Vai ser servido aos lisboetas, amanhã, um megapiquenique a que o analfabetismo chama "Mega Pic Nic". Um arraial dos antigos que promete recriar, em plena Avenida da Liberdade, o "espírito do campo", o "ambiente de uma grande quinta", com o objectivo - acrescentam os organizadores - de "chamar a atenção dos portugueses para a importância do apoio à produção nacional".
Os lisboetas, que são parolos mas não se lembram, vão poder (re)aprender, por exemplo, que o leite não nasce em pacotes, que as galinhas estão vivas antes de estarem mortas (a senhora dona Lili Caneças poderá explicar o fenómeno), que os ovos só podem ser produzidos com aquele feitio ou que o bife não é um animal, pelo menos um animal completo.
O anúncio televisivo do evento promete tudo isto e muito mais. Garante uma espécie de circo rural onde não vão faltar as vacas e os cavalos, os patos e os gansos, as ovelhas e os porcos, os frangos do Roberto e até
macacos de imitação. Exactamente. Está o trânsito todo escangalhado no Porto e em Matosinhos, este fim-de-semana, por causa das corridas de carrinhos do menino Rui Rio, e logo Lisboa resolve também semear o caos no seu centro mais central. (A parolice é mesmo assim, contagia, multiplica-se. Lisboa sofre de um acelerado processo de parolização.)
Nada, no entanto, que desmobilize os lisboetas, tenho a certeza. Lá estarão amanhã, milhares e milhares deles, entusiasmados até mais não com a novidade, fresquinha e ao vivo, das cores, dos sabores e dos aromas do campo. Mas sobretudo o que eles vão é ao cheiro do concerto do Tony Carreira. À borla. Tony Carreira apresentado aos lisboetas como "o melhor da música portuguesa"...
Ora bem. Honra lhe seja, Tony Carreira é um profissionalão, provavelmente o melhor do seu ofício, mas não é "o melhor da música portuguesa". Entendamo-nos: por mais multidões que congregue, por mais corações que despedace, Tony Carreira é apenas um cantor romântico com imeeeeeenso sucesso. Mas a música portuguesa é... outra coisa.
Apesar de tudo, que diferente era Lisboa no tempo em que os Tonys eram de Matos...
P.S. - Situemo-nos: este texto foi escrito originalmente no dia 17 de Junho de 2011. António Manuel Mateus Antunes, aliás Tony Carreira, nasceu no dia 30 de Dezembro de 1963 em Armadouro, freguesia de Cabril, concelho de Pampilhosa da Serra. Faz hoje 56 anos, se as contas estiverem certas.
Tito, imperador da bola
Faz hoje mil novecentos e quarenta e nove anos que Tito e as suas legiões romanas derrubaram a segunda muralha de Jerusalém. Lá dentro, os judeus fugiram à rasca para a primeira muralha, mas os romanos, copiando o Porto de muitos séculos depois, construíram uma circunvalação, cortando vazas aos sitiados e todas as árvores num raio de quinze quilómetros, o que foi considerado um escândalo ambiental. A circunvalação de Tito era também conhecida como muralha de cerco, mais uma vez plagiando por antecipação a Invicta, mas sem bairro. Tito era o filho mais velho de Vespasiano e foi imperador entre 79 e 81. A mãe de Tito chamava-se Domitila, a Maior, para se diferenciar da filha Domitila, a Menor, irmã de Tito.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à presidência da antiga Jugoslávia e ao futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga.
Tito, na área, era imperial. Fino. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava. Palavra de honra, acertava!
Claro, não havia YouTube. Conto assim tal qual porque eu vi. E de olhos bem abertos.
P.S. - Publicado originalmente no passado dia 30 de Maio. Tito Flávio César Vespasiano Augusto, o imperador, nasceu em Roma no dia 30 de Dezembro de 39. Já agora: em Fafe, nos anos cinquenta, sessenta e pelo menos setenta do século passado havia uma magnífica equipa de futebol popular chamada Os Embaixadores da Bola. Os rapazes representavam, se não me engano, a clientela do Café Peludo e também não tenho bem a certeza do "Os"...
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à presidência da antiga Jugoslávia e ao futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga.
Tito, na área, era imperial. Fino. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava. Palavra de honra, acertava!
Claro, não havia YouTube. Conto assim tal qual porque eu vi. E de olhos bem abertos.
P.S. - Publicado originalmente no passado dia 30 de Maio. Tito Flávio César Vespasiano Augusto, o imperador, nasceu em Roma no dia 30 de Dezembro de 39. Já agora: em Fafe, nos anos cinquenta, sessenta e pelo menos setenta do século passado havia uma magnífica equipa de futebol popular chamada Os Embaixadores da Bola. Os rapazes representavam, se não me engano, a clientela do Café Peludo e também não tenho bem a certeza do "Os"...
Quando me mandaram oferecer vinho ao Saddam
Foto Hernâni Von Doellinger |
Isto foi para aí em 2002, portanto um ano antes da invasão do Iraque, e aconteceu quando chegou a Portugal a inesperada porém impactante notícia de que Saddam Hussein se perdia de amores pelo nosso Mateus Rosé. O meu jornal mandou-me logo escrever uma artigalhada sobre o momentoso assunto e comprar uma caixa do mais famoso vinho português para oferecer, "com um cartãozinho simpático", ao ditador de Bagdade. Perante a minha perplexidade telefónica a propósito da segunda parte do serviço, Lisboa explicou-me o jornalístico intuito da genial ideia, sufocando-me à nascença todos os mas: "Se o gajo nos responder depois a agradecer, é o máximo, dá uma capa fantástica. Mas se não disser nada... também dá uma coisa gira. Então vá..."
E eu fui. Comprei o vinho e escrevi o texto. Um texto pequeno que andava à volta disto: o Saddam gosta de Mateus Rosé. Era capaz de ter também alguma graça, já não me lembro, mas quando digo andar à volta é mesmo andar à volta, fazer chouriço, meter palha, usar e abusar da técnica de composição musical da variação (e fuga), porque a "notícia" não tinha mais nada para dizer, era oca por dentro. E foi manchete no dia seguinte.
(Permitam-me abrir aqui um parêntese pedagógico, para proteger os caros leitores da tentação de conclusões precipitadas e injustas acerca do meu jornal. Deixem-me esclarecer o seguinte: num certo sentido, o 24horas foi o precursor do jornalismo que hoje se faz em Portugal - um jornalismo de títulos, colorido e imaginativo, a que, para ser perfeito, só falta o pequeno pormenor da informação, isto é, as noticiazinhas. Hoje os jornais portugueses são todos iguais ao 24horas. Uma diferença apenas os separa: o 24horas era, nos seus bons tempos, o melhor pior jornal do País, era um mau jornal muito bem feito. E ficava barato ao dono. Depois veio a rapaziada e tomou conta.)
Meti a caixa de vinho num armário da redacção. Eu já tinha aprendido que as geniais ideias vindas de Lisboa padeciam de tesão breve e alzheimer. Regra geral, no dia seguinte os nossos criativos e bem-intencionados chefes já não se lembravam das figuras tristes que nos tinham mandado fazer no dia anterior. E mandavam-nos fazer outras. Assim foi.
Em Dezembro de 2003 apanharam Saddam e eu pensei: "Agora é que era de lhe mandar o Rosé, para lhe animar o Natal na prisão". E deixei-me estar. O ex-presidente iraquiano foi executado três anos depois, como se viu no YouTube, e as garrafas lá continuaram no armário, até ao dia em que Lisboa veio ao Porto anunciar que o Porto ia fechar para salvar o jornal. Isto é, para salvar Lisboa. Começava o ano de 2009 e desfizeram-se de nós. Eu trouxe para casa duas garrafas do Mateus Rosé de Saddam Hussein, as do retrato.
O 24horas acabou por não se safar, mas "Lisboa" sim e é o que eu lhes estimo. Os alegados responsáveis estão agora a enganar noutro lugar. As duas garrafas de Mateus Rosé ainda cá estão, a fazerem de pai e mãe de uma outra, de aguardente do Salazar, parece que engarrafada pelo próprio, como me garantiu, no acto da oferta em Santa Comba Dão, o sobrinho-neto do nosso estimado ditador. Estão bem umas para as outras, as garrafas. E os outros também.
P.S. - Texto publicado originalmente no dia 9 de Março de 2012. O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal. Quanto ao sanguinário e desgraçado Saddam, foi executado no dia 30 de Dezembro de 2006, faz hoje exactamente treze anos.
domingo, 29 de dezembro de 2019
Os famosos do dia
No dia 29 de Dezembro de 1891 o empresário americano Thomas Edison patenteou o rádio. No dia 29 de Dezembro de 1987 o tractorista português Anacleto Felgueiras fracturou o cúbito.
Alves Redol 7
O meu amor disse à mãe
que me havia de deixar.
Agora deixo-o eu;
tome lá, vá-se gabar!
que me havia de deixar.
Agora deixo-o eu;
tome lá, vá-se gabar!
Alves Redol
(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em 1969.)
Augusto Fera 7
Se vamos a acompanhar
Quem morreu à terra fria,
Porque havemos de deixar
Um vivo sem companhia?
"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera
(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)
Quem morreu à terra fria,
Porque havemos de deixar
Um vivo sem companhia?
"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera
(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)
sábado, 28 de dezembro de 2019
E tudo começou com o cinematógrafo (ou não?)
Foto Hernâni Von Doellinger |
O cinema foi sempre a coisa mais importante da minha vida até deixar de ser. Creio que a última vez em que entrei numa sala de cinema convencional levava pela mão o meu filho, ou vice-versa, para vermos "O Rei Leão", portanto no Verão de 1994 e lamentavelmente era a versão portuguesa.
Comecei cedo, ainda de calças curtas e a dar uso nas legendas às primeiras letras que trazia aprendidas da escola. Era o tempo do cinema ao ar livre na parada das traseiras dos velhos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes. Debaixo da escadaria do quartel foi montada uma espaçosa e saudabilíssima cabina de projecção toda ela feita em lusalite, e o terreiro enchia-se de cadeiras. O operador era o Porinhos, se não me engano, eu via os filmes da janela do quarto do meu padrinho e tio Américo derivado à falta de idade, depois o cinema acabou sem mais nem menos, a parada lá ficou, como o próprio nome indica, e o barraco, de tão jeitoso, aproveitou-se para arrecadação das tralhas do meu avô.
Ainda em Fafe, mais tarde, tornei-me ferrinho do Teatro-Cinema, andei pelas aldeias com o Pimenta, de catrel e altifalantes, a anunciar os "magníficos" filmes que, pelo Verão, passavam no campo de futebol e eram tão fraquinhos, frequentei bissextamente o salão inacabado do Martinho da Granja, se a memória não me atraiçoa, e fui uma ou duas vezes ao Estúdio Fénix. Entretanto, levado pela vida, tinha-me virado para Braga - São Geraldo e Teatro-Circo -, e para Guimarães - São Mamede e Jordão. Vi cinema, de forma avulsa e por exemplo, em Vila Real, Figueira da Foz, Amadora, Lisboa, Dublin ou Bordéus, onde estivesse e pudesse.
Instalei-me no Porto e não me escapou um: Águia D'Ouro, Batalha, Carlos Alberto, Charlot, Coliseu, Estúdio, Estúdio Foco, Estúdio 400, Júlio Dinis, Lumière, Nun'Álvares, Passos Manuel, Olímpia, Pedro Cem, Rivoli, Sá da Bandeira, Terço, Trindade, Vale Formoso e até o Vitória, na Circunvalação mas tecnicamente do lado de Rio Tinto, Gondomar.
E agora, que é deles? Onde estão os velhos cinemas do Porto? Fecharam todos? A cadeado? Foram todos ao shopping e perderam-se? Eu sei que também não vou ao cinema há 25 anos, mas a culpa não é minha: é do meu filho, que cresceu.
P.S. - No dia 28 de Dezembro de 1895 os irmãos Lumière apresentaram o cinematógrafo, que deu origem ao cinema actual - há quem acredite. Na verdade, porém, o cinematógrafo é considerado geralmente como um aperfeiçoamento feito pelos famosos manos franceses ao cinetoscópio do americano Thomas Edison, aliás inventado pelo seu engenheiro-chefe William Kennedy Laurie Dickson, em 1891, que isto na sétima arte anda meio mundo a enganar o outro como na vida real. Porém, outro porém: o cinematógrafo terá sido realmente inventado não pelos Lumière mas pelo também francês Léon Bouly. Bouly perdeu a patente, vá-se lá saber como e porquê, e os Lumière, toujour attentifs, deitaram-lhe as manápulas gulosas e registaram-na novamente e como deles. Muitos anos mais tarde, setenta do século passado, os Lumière, com aquela familiar queda para o negócio, abriram umas galerias muito jeitosas na portuense Rua de José Falcão, incluindo duas salas de cinema e tudo. Foi lá que o meu filho e eu vimos o "Rei Leão". Parece que a coisa vai agora abaixo. Está certo, estamos no Porto. Ali nascerão provavelmente as Galerias Asti Gancia.
O que Deus uniu...
Eram dois amigos antigos, amigos do peito, leais, assíduos, generosos, cúmplices, irredutíveis, amigos com agá grande. Ainda por cima tinham Deus em comum: um acreditava, o outro não.
Ramsés Ramos 3
Sete pecados do amor
o melhor amor é o que não faz alarde
(mar como arde)
ao melhor amor nunca se esquece
(mas quem merece?)
melhor amor sempre tem dinheiro
(onde, o banqueiro?)
o melhor amor é desinteressado
(todo mundo é culpado!)
melhor amor jamais atraiçoa
(desse se caçoa)
o melhor amor te amará eternamente
(quanto se mente!)
o melhor amor, enfim, de tudo abdica
(esse, com quem fica?)
(mar como arde)
ao melhor amor nunca se esquece
(mas quem merece?)
melhor amor sempre tem dinheiro
(onde, o banqueiro?)
o melhor amor é desinteressado
(todo mundo é culpado!)
melhor amor jamais atraiçoa
(desse se caçoa)
o melhor amor te amará eternamente
(quanto se mente!)
o melhor amor, enfim, de tudo abdica
(esse, com quem fica?)
Ramsés Ramos
(Ramsés Ramos nasceu no dia 28 de Dezembro de 1962. Morreu em 1998.)
Algo de revolucionário
Havia algo de revolucionário no que ele dizia. Ele dizia: - À sombra duma azinheira...
sexta-feira, 27 de dezembro de 2019
O fim do Natal é muito triste
O triste do Natal é o fim. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, e, quer-se dizer, o fim do Natal até teria alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é realmente um fim muito triste.
Os Sãos Joões
O azar do nosso São João, o Baptista, é não ter sido o outro, o Evangelista. O nosso São João era um bocado esquisito mas muito homem: profeta ambulante, vestia-se de peles de camelo, usava um cinto de couro, comia gafanhotos e mel e convivia muito bem com cabritinhos e cabritinhas. Clamava no deserto. Um deserto que inopinadamente tinha um rio chamado Jordão como o cinema de Guimarães, e foi ali mesmo, no rio que não no cinema, que João, o nosso, inventou o baptismo e baptizou o primo Jesus. O nosso São João era a Ana Gomes daquele tempo. Punha a boca no trombone sem pauta nem contenção e isso haveria de custar-lhe a cabeça, ainda nem chegara aos trinta anos. Os amigos do Baptista tinham uma certa vergonha dele e muito gosto na própria cabeça, e por isso deram-lhe o nome de código de O Precursor, para que não se soubesse de quem falavam quando falavam. Hoje em dia, o analfabetismo instalado chama-lhe O Percursor.
O São João que não é nosso, o Evangelista, era mais manso e teve uma vida flauteada. Morreu velho e de morte natural. Filho de Zebedeu, irmão de Tiago Maior e eventualmente sócio de André e Pedro no negócio das pescas, seria o mais novo dos doze apóstolos do Nazareno, segundo consta. De pescador quiçá analfabeto, fez-se teólogo e escritor. De evangelho e epístolas, apocalíptico então. Discípulo dilecto, João, o que não é nosso, era aquele a quem Jesus amava, o que se lhe aninhou no peito durante a Última Ceia, está nos retratos. O assunto continua a prestar-se, ainda hoje, às mais diversas e variadas.
P.S. - Hoje, 27 de Dezembro, a Igreja Católica celebra o dia de São João Evangelista, ou o Apóstolo, ou João de Patmos.
O São João que não é nosso, o Evangelista, era mais manso e teve uma vida flauteada. Morreu velho e de morte natural. Filho de Zebedeu, irmão de Tiago Maior e eventualmente sócio de André e Pedro no negócio das pescas, seria o mais novo dos doze apóstolos do Nazareno, segundo consta. De pescador quiçá analfabeto, fez-se teólogo e escritor. De evangelho e epístolas, apocalíptico então. Discípulo dilecto, João, o que não é nosso, era aquele a quem Jesus amava, o que se lhe aninhou no peito durante a Última Ceia, está nos retratos. O assunto continua a prestar-se, ainda hoje, às mais diversas e variadas.
P.S. - Hoje, 27 de Dezembro, a Igreja Católica celebra o dia de São João Evangelista, ou o Apóstolo, ou João de Patmos.
Microcontos & outras miudezas 188
Paliteiros do Miranda
Os paliteiros do Miranda eram muito jeitosos. Eram uns prismas triangulares direitos ou rectos feitos em cartão coberto por papel colorido com desenhos e dizeres e um furinho na ponta. O prisma é um ponto de vista mas também um poliedro. Os poliedros são sólidos geométricos limitados por faces que são polígonos planos. O prisma triangular é um poliedro chamado prisma triangular porque as suas bases são triângulos. Tem seis vértices, nove arestas, cinco faces e duas bases, as tais. E é considerado direito ou recto porque os seus lados são rectângulos, de outro modo correria o risco de ser oblíquo. A especialidade da casa eram, no entanto, as pataniscas. As famosas pataniscas do Miranda.
Nostradamus, vostradais, elestradão
Nostradamus, estão a ver? Se não estão a ver, pensem em Orson Welles e chegam lá. Ah!, também não estão a ver Orson Welles. Não interessa. Michel de Nostredame foi um apotecário e médico francês da Renascença que praticava muito bem a alquimia e rondava satisfatoriamente o ocultismo. Escreveu um famoso livro em versos intitulado "As Profecias", que, como o próprio nome indica, conteria previsões codificadas acerca do futuro, e tão codificadas seriam que só alguns muito poucos é que continuam a acreditar naquelas cousas sem sentido. Ou, a posteriori, com o sentido que se lhes quiser encaixar.
Nostradamus, nome latino e artístico, padecia de epilepsia psíquica, de gota e de insuficiência cardíaca. Se a isto tudo somarmos a habilidade para a leitura dos astros e das cartas de tarô, facilmente perceberemos que o artista viveu e morreu antes do tempo. O nosso Miguel seria o convidado ideal, diário, bidiário, para todos os programas das manhãs e das tardes das televisões generalistas portuguesas de hoje em dia.
A mais eficaz profecia de Nostradamus acabou por ser, lamentavelmente, a do seu próprio falecimento. Em 1566, dia 1 de Julho, inesperada véspera do definitivo dia 2 de Julho, estava o profeta cada vez mais à rasca derivado ao dramático agravamento da gota e da artrite, chamou o seu secretário e, entre trovões e relâmpagos e talvez sarças ardentes de febre, disse-lhe o que já lhe dissera mais do que uma vez: de amanhã não passo. E finalmente acertou.
P.S. - Renascença não quer dizer Rádio Renascença.
Convívio
Todos os domingos com chuva, sempre o mesmo dilema: shopping ou urgência do hospital? Optava invariavelmente pela urgência do hospital. "Há mais convívio", dizia.
Ela viu um sapo
Era uma vez ela viu um sapo e levou o sapo para casa. Beijou o sapo, beijou o sapo, beijou o sapo, mas o sapo continuou sapo. Deitou o sapo fora e comprou um grilo.
Os paliteiros do Miranda eram muito jeitosos. Eram uns prismas triangulares direitos ou rectos feitos em cartão coberto por papel colorido com desenhos e dizeres e um furinho na ponta. O prisma é um ponto de vista mas também um poliedro. Os poliedros são sólidos geométricos limitados por faces que são polígonos planos. O prisma triangular é um poliedro chamado prisma triangular porque as suas bases são triângulos. Tem seis vértices, nove arestas, cinco faces e duas bases, as tais. E é considerado direito ou recto porque os seus lados são rectângulos, de outro modo correria o risco de ser oblíquo. A especialidade da casa eram, no entanto, as pataniscas. As famosas pataniscas do Miranda.
Nostradamus, vostradais, elestradão
Nostradamus, estão a ver? Se não estão a ver, pensem em Orson Welles e chegam lá. Ah!, também não estão a ver Orson Welles. Não interessa. Michel de Nostredame foi um apotecário e médico francês da Renascença que praticava muito bem a alquimia e rondava satisfatoriamente o ocultismo. Escreveu um famoso livro em versos intitulado "As Profecias", que, como o próprio nome indica, conteria previsões codificadas acerca do futuro, e tão codificadas seriam que só alguns muito poucos é que continuam a acreditar naquelas cousas sem sentido. Ou, a posteriori, com o sentido que se lhes quiser encaixar.
Nostradamus, nome latino e artístico, padecia de epilepsia psíquica, de gota e de insuficiência cardíaca. Se a isto tudo somarmos a habilidade para a leitura dos astros e das cartas de tarô, facilmente perceberemos que o artista viveu e morreu antes do tempo. O nosso Miguel seria o convidado ideal, diário, bidiário, para todos os programas das manhãs e das tardes das televisões generalistas portuguesas de hoje em dia.
A mais eficaz profecia de Nostradamus acabou por ser, lamentavelmente, a do seu próprio falecimento. Em 1566, dia 1 de Julho, inesperada véspera do definitivo dia 2 de Julho, estava o profeta cada vez mais à rasca derivado ao dramático agravamento da gota e da artrite, chamou o seu secretário e, entre trovões e relâmpagos e talvez sarças ardentes de febre, disse-lhe o que já lhe dissera mais do que uma vez: de amanhã não passo. E finalmente acertou.
P.S. - Renascença não quer dizer Rádio Renascença.
Convívio
Todos os domingos com chuva, sempre o mesmo dilema: shopping ou urgência do hospital? Optava invariavelmente pela urgência do hospital. "Há mais convívio", dizia.
Ela viu um sapo
Era uma vez ela viu um sapo e levou o sapo para casa. Beijou o sapo, beijou o sapo, beijou o sapo, mas o sapo continuou sapo. Deitou o sapo fora e comprou um grilo.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2019
Poesias completas e praticamente reunidas (vol. XVII)
Pessoa colectiva
Fernando Pessoa,
Alberto Caeiro,
Álvaro de Campos,
Ricardo Reis,
Bernardo Soares.
É daí que vem.
Elogio da cobardia
Mais vale sê-lo
que estampilha.
Crime, disseram-lhe
Foi levado a tribunal
por matar o vício.
Ele não sabia
que era crime.
Flores ao solheiro
Um restinho de sol
e lá se sentavam elas
comparando
doenças e façanhas
de netos havidos
ou inventados.
Rosa, Violeta, Hortênsia,
Margarida, Dália, Açucena
- evidentemente no jardim,
ao entardecer da vida...
Esperando deitado, amém
Deus tarda
mas não falha.
Há quem diga.
Aguçando
A necessidade aguça
o engenho.
A afiadeira aguça
o lápis.
O homem profundo
Era um homem profundo.
Dizia amiúde:
- Penso agora, logo existo.
A cara com a careta
Tinha uma memória
de elefante.
E de tromba também
não estava nada mal.
Fernando Pessoa,
Alberto Caeiro,
Álvaro de Campos,
Ricardo Reis,
Bernardo Soares.
É daí que vem.
Elogio da cobardia
Mais vale sê-lo
que estampilha.
Crime, disseram-lhe
Foi levado a tribunal
por matar o vício.
Ele não sabia
que era crime.
Flores ao solheiro
Um restinho de sol
e lá se sentavam elas
comparando
doenças e façanhas
de netos havidos
ou inventados.
Rosa, Violeta, Hortênsia,
Margarida, Dália, Açucena
- evidentemente no jardim,
ao entardecer da vida...
Esperando deitado, amém
Deus tarda
mas não falha.
Há quem diga.
Aguçando
A necessidade aguça
o engenho.
A afiadeira aguça
o lápis.
O homem profundo
Era um homem profundo.
Dizia amiúde:
- Penso agora, logo existo.
A cara com a careta
Tinha uma memória
de elefante.
E de tromba também
não estava nada mal.
quarta-feira, 25 de dezembro de 2019
Ela viu um sapo
Era uma vez ela viu um sapo e levou o sapo para casa. Beijou o sapo, beijou o sapo,
beijou o sapo, mas o sapo continuou sapo. Deitou o sapo fora e comprou um grilo.
Irene Lisboa 6
Outro dia
"Um Dia e Outro Dia...Outono Havias de Vir", Irene Lisboa
(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)
Que quietação
depois destas manhãs
e destas tardes de vento!
Quedo-me a gozar
esta doçura...
esta vaga esplêndida
de luz...
Há pouco,
ainda deitada,
tinha, de um lado,
a palizez do céu,
e do outro
uma espécie de labaredas
sem cor...
umas vassouradas de sol.
Desentorpeço-me.
Arredo de mim a roupa.
Olho-me.
Que é um corpo?
Um dom que se oferece...
Que é um corpo?
Um mar morto...
Que é um corpo?
Um tronco,
uma planta de pé delgado,
que alarga
e lança de si dois ramos,
os braços...
As pernas são belas,
quando juntas.
Que beleza a das pernas!
De alto a baixo
um veio as desune,
as distingue,
as separa e arredonda
como a dois esbeltos, firmes corpos...
Que é um corpo?
Um dom...
Ai, não é!
Os corpos,
como as flores, as bravas,
murcham, muitas vezes,
ao Deus dará...
Como os seixos,
rolados e confundidos
entre algas e outros seixos,
passam despercebidos...
Um dom?
Não, um castigo!
Amor!
Quanto te encantas
com as graças recatadas
dos gestos,
das formas,
da vida do corpo...
Com tudo te prendes!
Amor!
Que é para ti o corpo?
Uma violenta sedução,
de que logo te enfastias...
Amor, tão cruel!
Passas e não deixas sinal...
Amor!
O pobre seixo,
a flor que não animaste,
vivem
com aquela beleza
e aquela tristeza
dos sempre esquecidos...
Vivem!
(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)
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Um Dia e Outro Dia...Outono Havias de Vir
terça-feira, 24 de dezembro de 2019
O Natal comove-me. E o caldo de couves também.
Gosto do Natal. Isto é, não gosto do Natal, mas a minha mulher e o meu
filho gostam muito, e portanto eu gosto do Natal: temos de ser uns para
os outros se queremos manter acesa a lareira da felicidade familiar, ou
o radiador a óleo ou o aquecimento central, cada um governa-se conforme pode. E cá em casa o
Natal começa cedo: este ano, por exemplo, começou na passada quinta-feira, e coube-me a mim a honra de abrir a época, introduzindo
de surpresa uma cassete (sim, uma cassete) de música jingle bells na
portinhola do rádio da cozinha. Play, pause, ff, rew, stop, em grande
estilo, uma e outra vez, e dezenas de vezes, e centenas de vezes, pelo
menos até passar o Dia de Reis, já no próximo ano, se por acaso a velha
fita não rebentar antes. Quanto aos enfeites e iluminações correlativas, já estão no activo desde meados de Novembro!
Gosto do Natal, dizia, mas o Natal incomoda-me, perplexa-me, e era precisamente por aqui que eu deveria ter começado, antes que me passe o espanto. Porque, não sei se sabiam, o Natal é um paradoxo, alegra e deprime, e é também um equívoco: marcado para o dia 25, toda a gente sabe que é na noite de 24. A única certeza religiosa e cientificamente homologada é que o Natal é em Dezembro, e no entanto a cantiga diz que "em Maio pode ser"...
O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Não acredito na Popota nem na Leopoldina, mas também nunca acreditei no Pai Natal, embora que o há há, ou ho ho, e não gosto de Coca-Cola. Velhos com barbas brancas, bastamos euzinho cá em baixo e o Imenso lá em cima. Quanto ao xarope, fico-me pelo da tosse, muito agradecido. O Menino Jesus sim, diz-me respeito, e ainda hoje acredito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, porque era o meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par de meias que o Menino Jesus me dava, isso eu sabia. Tão unha com carne deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera, em França, provavelmente para nos doer menos, e doeu ainda mais. Em França é onde nascem os meninos, e acho lamentável que o meu pai tenha sido dado à troca...
O Natal comove-me. As árvores com luzinhas bêbadas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, o almoço ou jantar com os amigos de uma vez por ano, o generoso pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar à porta do supermercado, os sorrisos de orelha a orelha, os votos de, os programas de televisão marca Uaitecristmas, as greves nos hospitais, nos tribunais e outras que tais, as estradas que desaparecem engolindo pessoas, o circo, muito circo, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, o bispo do Porto a dizer que o Estado não é pessoa fiável, mas a Igreja é e vai ao cu dos meninos de que deveria tomar conta, a comida, a comida, a comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
No Natal de aqui há cinco anos, não vai assim tanto tempo, lembro-me de que até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita, uma tirinha de toucinho salgado, um cibo de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória era o futuro.
Foi o nosso jantar. O caldo estava antigo, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais a alma. E, como num filme de reprise, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Quem me dera lá, sem a sonsice da idade, quem me dera lá! E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, uma vagarosa lágrima descompondo-me escandalosamente a cara. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
No ano seguinte foi canja e não chorei. É curioso: a canja não puxa ao sentimento.
Gosto do Natal, dizia, mas o Natal incomoda-me, perplexa-me, e era precisamente por aqui que eu deveria ter começado, antes que me passe o espanto. Porque, não sei se sabiam, o Natal é um paradoxo, alegra e deprime, e é também um equívoco: marcado para o dia 25, toda a gente sabe que é na noite de 24. A única certeza religiosa e cientificamente homologada é que o Natal é em Dezembro, e no entanto a cantiga diz que "em Maio pode ser"...
O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Não acredito na Popota nem na Leopoldina, mas também nunca acreditei no Pai Natal, embora que o há há, ou ho ho, e não gosto de Coca-Cola. Velhos com barbas brancas, bastamos euzinho cá em baixo e o Imenso lá em cima. Quanto ao xarope, fico-me pelo da tosse, muito agradecido. O Menino Jesus sim, diz-me respeito, e ainda hoje acredito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, porque era o meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par de meias que o Menino Jesus me dava, isso eu sabia. Tão unha com carne deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera, em França, provavelmente para nos doer menos, e doeu ainda mais. Em França é onde nascem os meninos, e acho lamentável que o meu pai tenha sido dado à troca...
O Natal comove-me. As árvores com luzinhas bêbadas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, o almoço ou jantar com os amigos de uma vez por ano, o generoso pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar à porta do supermercado, os sorrisos de orelha a orelha, os votos de, os programas de televisão marca Uaitecristmas, as greves nos hospitais, nos tribunais e outras que tais, as estradas que desaparecem engolindo pessoas, o circo, muito circo, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, o bispo do Porto a dizer que o Estado não é pessoa fiável, mas a Igreja é e vai ao cu dos meninos de que deveria tomar conta, a comida, a comida, a comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
No Natal de aqui há cinco anos, não vai assim tanto tempo, lembro-me de que até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita, uma tirinha de toucinho salgado, um cibo de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória era o futuro.
Foi o nosso jantar. O caldo estava antigo, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais a alma. E, como num filme de reprise, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Quem me dera lá, sem a sonsice da idade, quem me dera lá! E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, uma vagarosa lágrima descompondo-me escandalosamente a cara. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
No ano seguinte foi canja e não chorei. É curioso: a canja não puxa ao sentimento.
Tocam os sinos, tocam os sinos
Foto Hernâni Von Doellinger |
Jingle bells, jingle bells
jingle bells, jingle bells
obladi, oblada
babalhau, azeite e alho
tá-tará-tá-tá-tá-tá
adeste fideles
na-na-na, nana-nana
vinho na pipa, couves na horta
quem está salvo, salvo está
silent night, holy nigh
grândola vila morena
rapa-tira-deixa-põe
ó que pena, ó que pena
we wish you a merry christmas
morte que mataste lira
porompom pero, porompom
Uma da manhã, ei, bem bom
all i want for christmas is you
giroflé, giroflá, giroflé, flé, flá
o galo badalo, a galinha balbina
o pinto jacinto e o peru gluglu
last christmas i gave you my heart
djobi djobi djobi djoba
eles não sabem que o sonho
foi bonita a festa pá
fairytale of new york
daili-daili-daili-dou
o meu menino é d'oiro
mama mia let me go
i wish it could be christmas everyday
pa-rum-pa-pum-pum
entram galifões de crista
de um fado que eu inventei
driving home for christmas
malageña salerosa
atirei o pau ao gato
deja de ser caprichosa
stop the cavalry
nas palhas deitado
mamã dá licença
estou muito cansado
i'm dreaming of a white christmas
ó que lindo chapéu preto
lá em cima está o tiroliroliro
cuidado casimiro, cuidado casimiro
let it snow, let it snow
na ribeira do sol posto
ninguém poderá mudar o mundo
quem faz um filho fá-lo por gosto
vão aos saltos pela casa
ring-a-ling, ring-a-ling
um pouco mais de sol - eu era brasa
só há estas, são pra ming
Um grande igualmente e uma boa continuação
n
na
nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
na
na
na
nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
na
na
segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
Convívio
Todos os domingos com chuva, sempre o mesmo dilema: shopping ou urgência do hospital? Optava invariavelmente pela urgência do hospital. "Há mais convívio", dizia.
Há a ponte e há o debaixo da ponte
Foto Hernâni Von Doellinger |
Moravam debaixo da ponte. Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta dágua, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.
À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho. Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma grande posta de carne.
Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe frequentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e olfativa ciência.
Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para debaixo da ponte.
Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.
Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morreram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica. Há duas vagas debaixo da ponte.
Carlos Drummond de Andrade
Filinto Elísio 7
Epigrama
Queixou-se uma noviça ao pai honrado
Que da ordem um tafulão
Lhe tinha quase à força escarapelado
O virgíneo botão: "Gritaste ao menos
Contra o agressor, misérrima tolinha!"
(Exclama o ginja, já todo em furor).
"Não, meu pai, não convinha
(Lhe torna a triste) que era pior mal;
Sendo alta noite, tempo mui perigoso
De incomodar o meu provincial,
Que com a abadessa estava no seu gozo."
Filinto Elísio
(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)
Queixou-se uma noviça ao pai honrado
Que da ordem um tafulão
Lhe tinha quase à força escarapelado
O virgíneo botão: "Gritaste ao menos
Contra o agressor, misérrima tolinha!"
(Exclama o ginja, já todo em furor).
"Não, meu pai, não convinha
(Lhe torna a triste) que era pior mal;
Sendo alta noite, tempo mui perigoso
De incomodar o meu provincial,
Que com a abadessa estava no seu gozo."
Filinto Elísio
(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)
Manuel Lopes 2
Postal
deste lado da ilha
o cais e a cidade velha
datam de muito tempo,
ma a cidade é um poema
não cresceu. é sempre a mesma.
todos os dias igual:
o mesmo outeiro da cruz
desterro, fontes e fortes
igrejas, lendas, sobrados
estreitas ruas, mirantes
portões, sacadas de ferro
poetas, becos, telhados
serestas, maledicência
saveiros, pregões de rua
cantaria, mal-amados
rios (chão, templo e canteiros)
de peixe e palafitados)
ladeiras, moças bonitas
recato e amor nas janelas
casarões azulejados.
cidade em traje a rigor
vestida à colonial
meu mundo, meu porta-jóias
meu bem, meu cartão postal.
brisa de maré vazante
sem similar no país.
quietude pousada na água
caminhos feitos de história.
gente vem ver São Luís!
Manuel Lopes
(Manuel Lopes nasceu no dia 23 de Dezembro de 1907. Morreu em 2005.)
deste lado da ilha
o cais e a cidade velha
datam de muito tempo,
ma a cidade é um poema
não cresceu. é sempre a mesma.
todos os dias igual:
o mesmo outeiro da cruz
desterro, fontes e fortes
igrejas, lendas, sobrados
estreitas ruas, mirantes
portões, sacadas de ferro
poetas, becos, telhados
serestas, maledicência
saveiros, pregões de rua
cantaria, mal-amados
rios (chão, templo e canteiros)
de peixe e palafitados)
ladeiras, moças bonitas
recato e amor nas janelas
casarões azulejados.
cidade em traje a rigor
vestida à colonial
meu mundo, meu porta-jóias
meu bem, meu cartão postal.
brisa de maré vazante
sem similar no país.
quietude pousada na água
caminhos feitos de história.
gente vem ver São Luís!
Manuel Lopes
(Manuel Lopes nasceu no dia 23 de Dezembro de 1907. Morreu em 2005.)
domingo, 22 de dezembro de 2019
Microcontos & outras miudezas 187
Encontro de espíritos
Reuniram-se os espíritos no seu tradicional encontro de fim de ano. E lá estavam: o espírito de equipa, o espírito empreendedor, o espírito indomável, o espírito desportivo, o espírito de entreajuda, o espírito de sacrifício, o espírito positivo, o espírito de finura, o espírito geométrico, o espírito da lei, o espírito al negro, o espírito de 45 e o espírito santo de orelha, que presidia aos trabalhos e perguntou: - Está tudo? Podemos começar?...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...
Ben-u-ron, uma questão de fé
A minha sogra gosta muito do Ben-u-ron. Reclama "o meu Banuronzinho" por tudo e por nada, geralmente só para marcar posição de doente diplomada, inscrita na ordem e com as cotas em dia, questão de princípio, mas também para a insónia ou para a sonolência, para a garganta seca ou molhada, para o frio e para o calor, para as correntes de ar e para o mau-olhado, para a diarreia ou para a prisão de ventre, para os arrotos e para os espirros, para a flatulência ou para a surdez ou para a anosmia, para as unhas encravadas ou para os pêlos do nariz. A minha sogra só não quer Ben-u-ron para as dores de que se queixa como quem reza o terço em latim ou para a febre que nunca tem por mais que meta o termómetro. Para o resto - isto é, para aquilo que não diz respeito ao Ben-u-ron - a miraculosa pastilha é trigo limpo, farinha amparo. "Tenho muito fé no Banuron!", justifica a minha sogra. E eu, verdade seja dita, questões de fé não discuto...
P.S. - Este texto não teve o patrocínio da Bene Farmacêutica, Ld.ª. Infelizmente.
Quando Ben-Hur foi impedido de entrar no Presépio
Ben-Hur queria entrar no Presépio. Chamou o grupinho do costume - Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, Tarzan Taborda e evidentemente Nuno Salvação Barreto, não fosse a coisa dar para o torto. E lá foram. O Pescador do Laguinho, que sabia kung fu por correspondência e era segurança em part-time, impediu-lhes terminantemente o acesso: - Noite temática, meus senhores, hoje é só anjos, pastores e reis magos. Ordens de cima. Apareçam pela Páscoa...
Estou pronto para o Natal
Estou preparadíssimo para o Natal: "Quo Vadis", "As Sandálias do Pescador", "A Bíblia", "Barrabás", "Ben-Hur", "Os Dez Mandamentos", "A Túnica", "A Última Tentação de Cristo", "Jesus de Nazaré", "Jesus Cristo Superstar", "A Paixão de Cristo", "Spartacus", "Demétrio, o Gladiador", "Sansão e Dalila", "O Sinal da Cruz", "O Evangelho Segundo São Mateus" - venham, que eu estou à espera. "Sozinho em Casa" um, dois, três, quatro, cinco, "Grinch" um, dois, três, "O Amor Acontece", "O Amor Não Tira Férias", "Regresso ao Futuro" um dois, três quatro, cinco, "Tubarão" um, dois, três quatro, cinco e seis cabeças, "Parque Jurássico" um, dois, três, "Momento da Verdade", "O Último Tango em Paris", "Garganta Funda" ou "O Diabo na Carne de Miss Jones", estou por tudo.
E, se quiserem, mandem também "Sete Noivas para Sete Irmãos", "A Máscara do Ranger", "E Tudo o Vento Levou", "Um Violino no Telhado", "Música no Coração", "O Feiticeiro de Oz", "Citizen Kane", "O Prisioneiro de Alcatraz", "Cinema Paraíso", "As Pontes de Madison County", "A Ponte do Rio Kwai", "O Expresso de Von Ryan", "Mamma Mia!", "Os Canhões de Navarone", "Rambo" um, dois, três, quatro, cinco, "Doze Indomáveis Patifes", "O Bom, o Mau e o Vilão" ou "A Vida de Brian". Nosso Senhor é como o Sol, quando nasce é para todos.
Presunção e água-benta
Entrou na pequena capela e persignou-se com toda a presunção. É que não havia água-benta.
Reuniram-se os espíritos no seu tradicional encontro de fim de ano. E lá estavam: o espírito de equipa, o espírito empreendedor, o espírito indomável, o espírito desportivo, o espírito de entreajuda, o espírito de sacrifício, o espírito positivo, o espírito de finura, o espírito geométrico, o espírito da lei, o espírito al negro, o espírito de 45 e o espírito santo de orelha, que presidia aos trabalhos e perguntou: - Está tudo? Podemos começar?...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...
Ben-u-ron, uma questão de fé
A minha sogra gosta muito do Ben-u-ron. Reclama "o meu Banuronzinho" por tudo e por nada, geralmente só para marcar posição de doente diplomada, inscrita na ordem e com as cotas em dia, questão de princípio, mas também para a insónia ou para a sonolência, para a garganta seca ou molhada, para o frio e para o calor, para as correntes de ar e para o mau-olhado, para a diarreia ou para a prisão de ventre, para os arrotos e para os espirros, para a flatulência ou para a surdez ou para a anosmia, para as unhas encravadas ou para os pêlos do nariz. A minha sogra só não quer Ben-u-ron para as dores de que se queixa como quem reza o terço em latim ou para a febre que nunca tem por mais que meta o termómetro. Para o resto - isto é, para aquilo que não diz respeito ao Ben-u-ron - a miraculosa pastilha é trigo limpo, farinha amparo. "Tenho muito fé no Banuron!", justifica a minha sogra. E eu, verdade seja dita, questões de fé não discuto...
P.S. - Este texto não teve o patrocínio da Bene Farmacêutica, Ld.ª. Infelizmente.
Quando Ben-Hur foi impedido de entrar no Presépio
Ben-Hur queria entrar no Presépio. Chamou o grupinho do costume - Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, Tarzan Taborda e evidentemente Nuno Salvação Barreto, não fosse a coisa dar para o torto. E lá foram. O Pescador do Laguinho, que sabia kung fu por correspondência e era segurança em part-time, impediu-lhes terminantemente o acesso: - Noite temática, meus senhores, hoje é só anjos, pastores e reis magos. Ordens de cima. Apareçam pela Páscoa...
Estou pronto para o Natal
Estou preparadíssimo para o Natal: "Quo Vadis", "As Sandálias do Pescador", "A Bíblia", "Barrabás", "Ben-Hur", "Os Dez Mandamentos", "A Túnica", "A Última Tentação de Cristo", "Jesus de Nazaré", "Jesus Cristo Superstar", "A Paixão de Cristo", "Spartacus", "Demétrio, o Gladiador", "Sansão e Dalila", "O Sinal da Cruz", "O Evangelho Segundo São Mateus" - venham, que eu estou à espera. "Sozinho em Casa" um, dois, três, quatro, cinco, "Grinch" um, dois, três, "O Amor Acontece", "O Amor Não Tira Férias", "Regresso ao Futuro" um dois, três quatro, cinco, "Tubarão" um, dois, três quatro, cinco e seis cabeças, "Parque Jurássico" um, dois, três, "Momento da Verdade", "O Último Tango em Paris", "Garganta Funda" ou "O Diabo na Carne de Miss Jones", estou por tudo.
E, se quiserem, mandem também "Sete Noivas para Sete Irmãos", "A Máscara do Ranger", "E Tudo o Vento Levou", "Um Violino no Telhado", "Música no Coração", "O Feiticeiro de Oz", "Citizen Kane", "O Prisioneiro de Alcatraz", "Cinema Paraíso", "As Pontes de Madison County", "A Ponte do Rio Kwai", "O Expresso de Von Ryan", "Mamma Mia!", "Os Canhões de Navarone", "Rambo" um, dois, três, quatro, cinco, "Doze Indomáveis Patifes", "O Bom, o Mau e o Vilão" ou "A Vida de Brian". Nosso Senhor é como o Sol, quando nasce é para todos.
Presunção e água-benta
Entrou na pequena capela e persignou-se com toda a presunção. É que não havia água-benta.
Álvaro Cunqueiro 7
Amor de auga lixeira,
muiñeira
Amor de auga tardeira,
ribeira.
Amor de auga frolida,
cantiga.
Amor de auga perdida,
ña amiga.
"Cantiga Nova que se Chama Riveira", Álvaro Cunqueiro
muiñeira
Amor de auga tardeira,
ribeira.
Amor de auga frolida,
cantiga.
Amor de auga perdida,
ña amiga.
"Cantiga Nova que se Chama Riveira", Álvaro Cunqueiro
(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu em 1981.)
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sábado, 21 de dezembro de 2019
Nostradamus, vostradais, elestradão
Nostradamus, estão a ver? Se não estão a ver, pensem em Orson Welles e chegam lá. Ah!, também não estão a ver Orson Welles. Não interessa. Michel de Nostredame foi um apotecário e médico francês da Renascença que praticava muito bem a alquimia e rondava satisfatoriamente o ocultismo. Escreveu um famoso livro em versos intitulado "As Profecias", que, como o próprio nome indica, conteria previsões codificadas acerca do futuro, e tão codificadas seriam que só alguns muito poucos é que continuam a acreditar naquelas cousas sem sentido. Ou, a posteriori, com o sentido que se lhes quiser encaixar.
Nostradamus, nome latino e artístico, padecia de epilepsia psíquica, de gota e de insuficiência cardíaca. Se a isto tudo somarmos a habilidade para a leitura dos astros e das cartas de tarô, facilmente perceberemos que o artista viveu e morreu antes do tempo. O nosso Miguel seria o convidado ideal, diário, bidiário, para todos os programas das manhãs e das tardes das televisões generalistas portuguesas de hoje em dia.
A mais eficaz profecia de Nostradamus acabou por ser, lamentavelmente, a do seu próprio falecimento. Em 1566, dia 1 de Julho, inesperada véspera do definitivo dia 2 de Julho, estava o profeta cada vez mais à rasca derivado ao dramático agravamento da gota e da artrite, chamou o seu secretário e, entre trovões e relâmpagos e talvez sarças ardentes de febre, disse-lhe o que já lhe dissera mais do que uma vez: de amanhã não passo. E finalmente acertou.
P.S. - Renascença não quer dizer Rádio Renascença. Nostradamus nasceu no dia 21 de Dezembro de 1503.
Nostradamus, nome latino e artístico, padecia de epilepsia psíquica, de gota e de insuficiência cardíaca. Se a isto tudo somarmos a habilidade para a leitura dos astros e das cartas de tarô, facilmente perceberemos que o artista viveu e morreu antes do tempo. O nosso Miguel seria o convidado ideal, diário, bidiário, para todos os programas das manhãs e das tardes das televisões generalistas portuguesas de hoje em dia.
A mais eficaz profecia de Nostradamus acabou por ser, lamentavelmente, a do seu próprio falecimento. Em 1566, dia 1 de Julho, inesperada véspera do definitivo dia 2 de Julho, estava o profeta cada vez mais à rasca derivado ao dramático agravamento da gota e da artrite, chamou o seu secretário e, entre trovões e relâmpagos e talvez sarças ardentes de febre, disse-lhe o que já lhe dissera mais do que uma vez: de amanhã não passo. E finalmente acertou.
P.S. - Renascença não quer dizer Rádio Renascença. Nostradamus nasceu no dia 21 de Dezembro de 1503.
Prendinhas de Natal
Um conto de Natal
Um conto de Natal era geralmente uma seca. Já um conto de réis eram mil escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note.
Natal é como o homem quiser
Olhou para o céu, estava estrelado. Mandou para trás. Tinha pedido escalfado.
Fruta da época
Perguntaram-lhe sobre frutas da época, e ela respondeu ferrero rocher e mon chéri...
Já cheira a Natal
Já cheira a Natal - alguém disse. Ele, atrapalhado, explicou - Não fui eu.
Os ausentes de Natal
Sim, gostava muito dos presentes de Natal. Mas os ausentes diziam-lhe mais...
Histórias de família
As boas histórias de família ficam de molho todo o ano para a ceia de Natal. São para contar entre o rapa a pinhões e a abertura dos presentes. E dos ausentes.
Presentes de Natal 1
Ele: - Presente de Natal porreiro era um emprego, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de meias?
Presentes de Natal 2
Ele: - Presente de Natal porreiro era paz no mundo e comida para todas as crianças, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um pacote de Sugus? De framboesa...
Presentes de Natal 3
Ele: - Presente de Natal porreiro era um par de sapatos, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de cornos?
Like an angel
Canta como um anjo. Toca como um anjo. Dança como um anjo. Dizem.
E eu pergunto: quem é que já viu um anjo a cantar, a tocar ou a dançar?
Pronto, já me estragaram o Natal
"Noite da consoada e dia de Natal com frio, chuva e neve", avisa o título do jornal. Parece impossível, em Dezembro. Será do tempo?
Um conto de Natal era geralmente uma seca. Já um conto de réis eram mil escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note.
Natal é como o homem quiser
Olhou para o céu, estava estrelado. Mandou para trás. Tinha pedido escalfado.
Fruta da época
Perguntaram-lhe sobre frutas da época, e ela respondeu ferrero rocher e mon chéri...
Já cheira a Natal
Já cheira a Natal - alguém disse. Ele, atrapalhado, explicou - Não fui eu.
Os ausentes de Natal
Sim, gostava muito dos presentes de Natal. Mas os ausentes diziam-lhe mais...
Histórias de família
As boas histórias de família ficam de molho todo o ano para a ceia de Natal. São para contar entre o rapa a pinhões e a abertura dos presentes. E dos ausentes.
Presentes de Natal 1
Ele: - Presente de Natal porreiro era um emprego, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de meias?
Presentes de Natal 2
Ele: - Presente de Natal porreiro era paz no mundo e comida para todas as crianças, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um pacote de Sugus? De framboesa...
Presentes de Natal 3
Ele: - Presente de Natal porreiro era um par de sapatos, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de cornos?
Like an angel
Canta como um anjo. Toca como um anjo. Dança como um anjo. Dizem.
E eu pergunto: quem é que já viu um anjo a cantar, a tocar ou a dançar?
Pronto, já me estragaram o Natal
"Noite da consoada e dia de Natal com frio, chuva e neve", avisa o título do jornal. Parece impossível, em Dezembro. Será do tempo?
Deolindo Tavares 4
Procissão
O Cristo de lábios roxos e face lívida
vai ser crucificado novamente
para gozo dos eróticos místicos;
o Cristo de cabelos longos e mofados
vai mais uma vez ser exposto
à degradação dos eróticos místicos.
Vinde ver as chagas sangrentas,
vinde ver o Cristo amarrado
passar sob as vistas das sensuais mulheres
entre vitrines e reclames de gás neon
para gozo dos eróticos místicos;
vinde, o espetáculo nunca deixou de ser inédito.
Vinde ouvir velhas megeras predizerem a destruição do mundo
que elas próprias destruíram,
vinde ver anjos e arcanjos, pintados e cansados
conduzirem o Cristo.
O Cristo lívido e de lábios roxos
segue no ombro de homens de sobrepeliz
para que todos vejam bem e saboreiem a tragédia.
Vinde ver como somente as prostitutas, os pederastas e os ébrios
estão mudos e não querem a destruição do mundo
porque nele esperam a redenção
carregando cruzes mais pesadas, talvez,
do que a deste pobre Cristo exangue e insone
através de todos os caminhos do mundo, até à morte.
Deolindo Tavares
(Deolindo Tavares nasceu no dia 21 de Dezembro de 1918. Morreu em 1942.)
O Cristo de lábios roxos e face lívida
vai ser crucificado novamente
para gozo dos eróticos místicos;
o Cristo de cabelos longos e mofados
vai mais uma vez ser exposto
à degradação dos eróticos místicos.
Vinde ver as chagas sangrentas,
vinde ver o Cristo amarrado
passar sob as vistas das sensuais mulheres
entre vitrines e reclames de gás neon
para gozo dos eróticos místicos;
vinde, o espetáculo nunca deixou de ser inédito.
Vinde ouvir velhas megeras predizerem a destruição do mundo
que elas próprias destruíram,
vinde ver anjos e arcanjos, pintados e cansados
conduzirem o Cristo.
O Cristo lívido e de lábios roxos
segue no ombro de homens de sobrepeliz
para que todos vejam bem e saboreiem a tragédia.
Vinde ver como somente as prostitutas, os pederastas e os ébrios
estão mudos e não querem a destruição do mundo
porque nele esperam a redenção
carregando cruzes mais pesadas, talvez,
do que a deste pobre Cristo exangue e insone
através de todos os caminhos do mundo, até à morte.
Deolindo Tavares
(Deolindo Tavares nasceu no dia 21 de Dezembro de 1918. Morreu em 1942.)
sexta-feira, 20 de dezembro de 2019
Os paliteiros do Miranda
Os paliteiros do Miranda eram muito jeitosos. Eram uns prismas triangulares direitos ou rectos feitos em cartão coberto por papel colorido com desenhos e dizeres e um furinho na ponta. O prisma é um ponto de vista mas também um poliedro. Os poliedros são sólidos geométricos limitados por faces que são polígonos planos. O prisma triangular é um poliedro chamado prisma triangular porque as suas bases são triângulos. Tem seis vértices, nove arestas, cinco faces e duas bases, as tais. E é considerado direito ou recto porque os seus lados são rectângulos, de outro modo correria o risco de ser oblíquo. A especialidade da casa eram, no entanto, as pataniscas. As famosas pataniscas do Miranda.
Vítor Matos e Sá 4
Nada mudou
podes vir
de novo e com
o mesmo nome.
Em qualquer lugar
a distância para a morte
é a mesma.
Desigual é apenas
a vida que perdemos...
"Companhia Violenta", Vítor Matos e Sá
(Vítor Matos e Sá nasceu no dia 20 de Dezembro de 1926. Morreu em 1975.)
Alcides Werk 4
Soneto aberto sobre a morte
Hoje é dia de festa nesta casa:
festa dos círios e das lamparinas.
Um corpo magro sobre a mesa, e a porta
de esteira aberta para os companheiros.
Beatas, terço, cafezinho, estórias,
o choro inútil da mulher sozinha,
a promessa do céu dos escolhidos
e uma herança de palha e de abandono.
Brasileiro, do norte, agricultor.
Semeou, semeou a vida inteira,
fez o campo florir por tantas vezes,
alimentou mil pássaros vadios,
foi sempre bom, mas nunca teve sorte,
e se vestiu de trapos para a morte.
Alcides Werk
(Alcides Werk nasceu no dia 20 de Dezembro de 1934. Morreu em 2003.)
Hoje é dia de festa nesta casa:
festa dos círios e das lamparinas.
Um corpo magro sobre a mesa, e a porta
de esteira aberta para os companheiros.
Beatas, terço, cafezinho, estórias,
o choro inútil da mulher sozinha,
a promessa do céu dos escolhidos
e uma herança de palha e de abandono.
Brasileiro, do norte, agricultor.
Semeou, semeou a vida inteira,
fez o campo florir por tantas vezes,
alimentou mil pássaros vadios,
foi sempre bom, mas nunca teve sorte,
e se vestiu de trapos para a morte.
Alcides Werk
(Alcides Werk nasceu no dia 20 de Dezembro de 1934. Morreu em 2003.)
Histórias de família
As boas histórias de família ficam
de molho todo o ano para a ceia de Natal. São para contar entre o rapa a
pinhões e a abertura dos presentes. E dos ausentes.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2019
Alexandre O'Neill 7
Adolescência 1
Comemos pão com cebola e azeitonas,
subimos ao mais alto do rochedo.
Miss De Ramirez disse: - Estar cansada.
Então fizemos a padiola com ramos de fortuna
e descemos ao povoado, onde chegámos à noitinha.
Miss De Ramirez disse, ao apear-se:
- Homens portugueses ser fortes!
Passei então uma rasteira ao Guedes
(passa-se sempre uma rasteira ao Guedes),
enquanto murmurava: - São mas é amigos.
Alancar assim com Miss De Ramirez,
monte abaixo! E você aí, sua inglesa duma figa,
com uma perna postiça e a querer subir ao monte!
Só mesmo você, sua maluca!
E depois com essa idade!
O azul dos olhos pousou em mim
E Miss De Ramirez, suavemente, disse:
- Estou muito 'gradecida.
Que lhe havia de fazer, ao raio da mulher?
Agradecer o agradecimento, dizer:
- De nada.
"O Princípio de Utopia, o Princípio de Realidade", Alexandre O'Neill
(Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924. Morreu em 1986.)
Comemos pão com cebola e azeitonas,
subimos ao mais alto do rochedo.
Miss De Ramirez disse: - Estar cansada.
Então fizemos a padiola com ramos de fortuna
e descemos ao povoado, onde chegámos à noitinha.
Miss De Ramirez disse, ao apear-se:
- Homens portugueses ser fortes!
Passei então uma rasteira ao Guedes
(passa-se sempre uma rasteira ao Guedes),
enquanto murmurava: - São mas é amigos.
Alancar assim com Miss De Ramirez,
monte abaixo! E você aí, sua inglesa duma figa,
com uma perna postiça e a querer subir ao monte!
Só mesmo você, sua maluca!
E depois com essa idade!
O azul dos olhos pousou em mim
E Miss De Ramirez, suavemente, disse:
- Estou muito 'gradecida.
Que lhe havia de fazer, ao raio da mulher?
Agradecer o agradecimento, dizer:
- De nada.
"O Princípio de Utopia, o Princípio de Realidade", Alexandre O'Neill
(Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924. Morreu em 1986.)
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