sexta-feira, 31 de julho de 2020
Foi um ar que nos deram
O oxigénio foi descoberto pelo químico inglês Joseph Priestley no dia 1 de Agosto de 1774, validando as pioneiras investigações do alemão Carl Wilhelm Scheele, o qual, não é para o gabar, já tinha descoberto o oxigénio. Sinceramente, não sei o que é que se respirava antes destes dois...
António Rebordão Navarro 6
Não saibas tu de cor os meus poemas
mas vê antes nas ruas e nos barcos
no fumo dos cafés, nos bancos de avenida
a poesia que eu quero
António Rebordão Navarro
(António Rebordão Navarro nasceu no dia 1 de Agosto de 1933. Morreu em 2015.)
mas vê antes nas ruas e nos barcos
no fumo dos cafés, nos bancos de avenida
a poesia que eu quero
António Rebordão Navarro
(António Rebordão Navarro nasceu no dia 1 de Agosto de 1933. Morreu em 2015.)
António Maria Lisboa 8
Varech
Eu estimo sobre tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos inúteis, a tua boca verde
Eu falo somente dos relógios caídos, dos autocarros
Eu falo somente dos pés vermelhos
Eu falo... eu falo... eu falo...
No vigésimo século as nuvens são árvores
e os pássaros mais pequenos grandes paquidermes
Sim, é verdade, os cabelos loiros
Então, meia-noite!
Senhora, se me dá licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente
A criança é porca, é inútil
Muito obrigado.
António Maria Lisboa
(António Maria Lisboa nasceu no dia 1 de Agosto de 1928. Morreu em 1953.)
Eu estimo sobre tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos inúteis, a tua boca verde
Eu falo somente dos relógios caídos, dos autocarros
Eu falo somente dos pés vermelhos
Eu falo... eu falo... eu falo...
No vigésimo século as nuvens são árvores
e os pássaros mais pequenos grandes paquidermes
Sim, é verdade, os cabelos loiros
Então, meia-noite!
Senhora, se me dá licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente
A criança é porca, é inútil
Muito obrigado.
António Maria Lisboa
(António Maria Lisboa nasceu no dia 1 de Agosto de 1928. Morreu em 1953.)
António Osório 3
Viagem
Pássaro a voar
Na manhã recém-nascida
Rumo à canção.
António Osório
(António Osório nasceu no dia 1 de Agosto de 1933)
Pássaro a voar
Na manhã recém-nascida
Rumo à canção.
António Osório
(António Osório nasceu no dia 1 de Agosto de 1933)
Luís Bouza Trillo 4
[...]
- ¡Pillo, mal home! ¿ti pensas que sempre has de levar esa vida de nogallán e de borracho? ¡pois coida que che rompo unha perna e dás co corpo no hespital!
O bo do Xan xuraba e rexuraba que nin pinga habían de volver a probar os seus lábeos, pro chegaba o luns siguiente, e volta a tomar a gran canela, e volta a recibir a colosal somanta.
Un día en que Xuliana, enferma dun caruncho que lle salira súpeto nun cadrís, tuvo que gardar cama polo bon ou mal consello dos médecos, botou a conta o zapateiro de que por aquela vez non había palerma, e chegou a empinar o codo de maneira tal, que por máis que fixo e fixo non pudo dar coa tenda aquela noite, e quedou estomballado nun calexón roncando a perna solta.
Deron as doce no relox da Catedral, e cata que uns escolantes que, si non son fillos, polo menos teñen algún parentesco co demo, acertaron a pasar por aquela paraxe, de volta, quizais, de facer algunha trasnada.
[...]
"Xan Canitrote (conto popular)", Luís Bouza Trillo
(Luís Bouza Trillo nasceu no dia 1 de Agosto de 1869. Morreu em 1941.)
- ¡Pillo, mal home! ¿ti pensas que sempre has de levar esa vida de nogallán e de borracho? ¡pois coida que che rompo unha perna e dás co corpo no hespital!
O bo do Xan xuraba e rexuraba que nin pinga habían de volver a probar os seus lábeos, pro chegaba o luns siguiente, e volta a tomar a gran canela, e volta a recibir a colosal somanta.
Un día en que Xuliana, enferma dun caruncho que lle salira súpeto nun cadrís, tuvo que gardar cama polo bon ou mal consello dos médecos, botou a conta o zapateiro de que por aquela vez non había palerma, e chegou a empinar o codo de maneira tal, que por máis que fixo e fixo non pudo dar coa tenda aquela noite, e quedou estomballado nun calexón roncando a perna solta.
Deron as doce no relox da Catedral, e cata que uns escolantes que, si non son fillos, polo menos teñen algún parentesco co demo, acertaron a pasar por aquela paraxe, de volta, quizais, de facer algunha trasnada.
[...]
"Xan Canitrote (conto popular)", Luís Bouza Trillo
(Luís Bouza Trillo nasceu no dia 1 de Agosto de 1869. Morreu em 1941.)
Mulher amiga...
Com esta caloraça, a mulher comprou-lhe um pijama de Verão por acaso bastante jeitoso. Chamou-o ao quarto e disse-lhe: - Estás a ver? Gostas? Fica aqui guardadinho para quando fores para o hospital...
quinta-feira, 30 de julho de 2020
A poesia o que tem de ser é orgasmo
A senhora sentada à minha frente faz croché - que raro. Eu leio um livro. O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.
P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Julho de 2018, então sob o título "Há palavras que nos beijam como se tivessem boca", segundo Alexandre O'Neill. Desta vez rapinei o título a Ary dos Santos, em "Poesia-orgasmo". O'Neill e Ary, curiosamente ambos publicitários e dois nos meus poetas mais preferidos. Mais preferidos, disse bem! Hoje, 31 de Julho, é Dia Mundial do Orgasmo. Tenham muitos!
P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Julho de 2018, então sob o título "Há palavras que nos beijam como se tivessem boca", segundo Alexandre O'Neill. Desta vez rapinei o título a Ary dos Santos, em "Poesia-orgasmo". O'Neill e Ary, curiosamente ambos publicitários e dois nos meus poetas mais preferidos. Mais preferidos, disse bem! Hoje, 31 de Julho, é Dia Mundial do Orgasmo. Tenham muitos!
Camilo Lara 4
lavo as minhas mãos
lavro as minhas mágoas
lavo as minhas larvas
lavro as minhas palavras
lavo as minhas tranças
lavro o meu silêncio
levo o meu adeus
Camilo Lara
(Camilo Lara nasceu no dia 31 de Julho de 1959. Morreu em 2016.)
Maus hálitos
Tinha muitos maus hálitos. O tabaco e o vinho, por exemplo. E também coçava os testículos...
quarta-feira, 29 de julho de 2020
Dou abraços em segunda mão
Caro Amigo,
Lembrei-me de te escrever hoje. Há que tempos, não é? Andei a mexer nas gavetas, faço-o uma vez por ano, sei lá eu porquê, e no meio da papelada encontrei meia dúzia de abraços antigos mas ainda em razoável estado de conservação. É o que me resta. Acho que é uma pena deitá-los fora. Vou mandar-te um. Espero que te sirva.
Paroles, paroles, paroles
Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são cada vez mais poderosas, as palavras dominam as nossas vidas. As palavras até tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À dissimulação?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", dizemos olá de boca, e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emojis. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.
Devolveram-me o amplexo
O meu amigo fazia anos e eu mandei-lhe uma SMS: "Parabéns. Abraço."
O meu amigo respondeu-me, também por SMS: "Devolvo o abraço. Obrigado."
E eu pensei: o abraço teria defeito?
Saudações amigas?
Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...
Amigo é a solidão derrotada
Dá-me para isto ultimamente. Pergunto aos meus amigos: - Andas feliz? És feliz? Pergunto-lhes acerca do coração, dos afectos, do casamento, do divórcio, da mulher, da namorada, da mulher e das namoradas (há quem acumule), dos filhos, dos netos, dos irmãos, dos pais, dos sogros, da saúde, da fé, da filosofia, da poesia, de Deus, dos sonhos, da vida. Falamos de bondade, de amor, de compaixão, de vinho. "És feliz? Andas feliz?", é o que pergunto, exactamente da mesma maneira que pergunto em casa, à mesa, se a comidinha está a saber bem.
A vida para ter algum jeito também deve saber bem, não é? Os meus amigos são poucos e interessam-me muito e por isso é que são sem aspas e sem Facebook. Somos amigos cara a cara, de abraço de carne e osso. Deve ser da idade, ou então da falta de ar no armário, mas eu e os meus amigos andamos cada vez mais abraçadeiros uns com os outros. Os meus amigos sabem que eu cozinho e são meia dúzia deles. Às vezes frequentam-me a mesa ou o balcão da cozinha, por mor de umas fanecas com arroz de tomate ou de umas bifanas que me trazem quentinhas. E eu sou um felizardo por eles me frequentarem a vida.
P.S. - Textos publicados originalmente no tempo em que havia abraços. Hoje, 30 de Julho, é Dia Internacional da Amizade, por ordem da ONU.
Lembrei-me de te escrever hoje. Há que tempos, não é? Andei a mexer nas gavetas, faço-o uma vez por ano, sei lá eu porquê, e no meio da papelada encontrei meia dúzia de abraços antigos mas ainda em razoável estado de conservação. É o que me resta. Acho que é uma pena deitá-los fora. Vou mandar-te um. Espero que te sirva.
Paroles, paroles, paroles
Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são cada vez mais poderosas, as palavras dominam as nossas vidas. As palavras até tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À dissimulação?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", dizemos olá de boca, e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emojis. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.
Devolveram-me o amplexo
O meu amigo fazia anos e eu mandei-lhe uma SMS: "Parabéns. Abraço."
O meu amigo respondeu-me, também por SMS: "Devolvo o abraço. Obrigado."
E eu pensei: o abraço teria defeito?
Saudações amigas?
Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...
Amigo é a solidão derrotada
Dá-me para isto ultimamente. Pergunto aos meus amigos: - Andas feliz? És feliz? Pergunto-lhes acerca do coração, dos afectos, do casamento, do divórcio, da mulher, da namorada, da mulher e das namoradas (há quem acumule), dos filhos, dos netos, dos irmãos, dos pais, dos sogros, da saúde, da fé, da filosofia, da poesia, de Deus, dos sonhos, da vida. Falamos de bondade, de amor, de compaixão, de vinho. "És feliz? Andas feliz?", é o que pergunto, exactamente da mesma maneira que pergunto em casa, à mesa, se a comidinha está a saber bem.
A vida para ter algum jeito também deve saber bem, não é? Os meus amigos são poucos e interessam-me muito e por isso é que são sem aspas e sem Facebook. Somos amigos cara a cara, de abraço de carne e osso. Deve ser da idade, ou então da falta de ar no armário, mas eu e os meus amigos andamos cada vez mais abraçadeiros uns com os outros. Os meus amigos sabem que eu cozinho e são meia dúzia deles. Às vezes frequentam-me a mesa ou o balcão da cozinha, por mor de umas fanecas com arroz de tomate ou de umas bifanas que me trazem quentinhas. E eu sou um felizardo por eles me frequentarem a vida.
P.S. - Textos publicados originalmente no tempo em que havia abraços. Hoje, 30 de Julho, é Dia Internacional da Amizade, por ordem da ONU.
Mário Quintana 10
Deixa-me seguir para o mar
Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar-se
um fantasma...
Deixa-me ser o que sou,
o que sempre fui, um rio que vai fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
me recamarei de estrelas como um manto real,
me bordarei de nuvens e de asas,
às vezes virão em mim as crianças banhar-se...
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar,
as imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir,
passar, cantar...
Toda a tristeza dos rios
é não poderem parar!
"Baú de Espantos", Mário Quintana
(Mário Quintana nasceu no dia 30 de Julho de 1906. Morreu em 1994.)
Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar-se
um fantasma...
Deixa-me ser o que sou,
o que sempre fui, um rio que vai fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
me recamarei de estrelas como um manto real,
me bordarei de nuvens e de asas,
às vezes virão em mim as crianças banhar-se...
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar,
as imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir,
passar, cantar...
Toda a tristeza dos rios
é não poderem parar!
"Baú de Espantos", Mário Quintana
(Mário Quintana nasceu no dia 30 de Julho de 1906. Morreu em 1994.)
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Pastelaria e graças a Deus
Comeu um cardeal, dois jesuítas e três seminaristas. Bebeu quatro taças de Casal Garcia, persignou-se e deu graças a Deus.
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série A língua portuguesa é muito traiçoeira,
sexo
Manjeriquices
Como todos os anos, o meu manjerico de São João foi atacado pela lagarta, dezenas de lagartas sorrateiras e gordas. Como todos os anos, tratei do assunto deitando uma panela de água a ferver sobre o manjerico. Como todos os anos, as lagartas morreram todas. E o manjerico também, como todos os anos. Não percebo...
terça-feira, 28 de julho de 2020
Schumann, Schuman & Schurman
Robert Schumann foi durante bastantes anos um compositor alemão, famoso sobretudo pela peça "Carnaval. Scènes mignonnes sur quatre notes, Opus 9", para piano, que pode (e deve) ser ouvida um bocadinho aqui. Mais tarde, e depois de ter morrido, Robert deixou de ser alemão, largou a música e o "n" final do apelido, fez-se luxemburguês e ministro dos Negócios Estrangeiros de França. Robert Schuman é considerado um dos "pais da Europa", foi o primeiro presidente daquilo que hoje se chama Parlamento Europeu e, acreditem ou não, está na lista de espera do Vaticano para ser declarado santo.
P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Junho de 2015. E devo fazer notar que no dia 5 de Novembro de 1607 nasceu Anna Maria van Schurman, pintora, poetisa e académica holandesa que, verdade seja dita, não é desta história e acaba de ser aqui metida à pressão. Robert Schumann, o músico, morreu no dia 29 de Julho de 1856, aos 46 anos.
P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Junho de 2015. E devo fazer notar que no dia 5 de Novembro de 1607 nasceu Anna Maria van Schurman, pintora, poetisa e académica holandesa que, verdade seja dita, não é desta história e acaba de ser aqui metida à pressão. Robert Schumann, o músico, morreu no dia 29 de Julho de 1856, aos 46 anos.
Microcontos & outras miudezas 218
Época de incêndios, como manda a lei
Estamos em plena "Época de incêndios", e atenção que não fui eu quem lhe pôs o nome e a agendou para esta altura - foi o Governo, foi Portugal! Portanto estamos na "Época de incêndios", legítima, de papel passado, dentro do prazo, e queriam o quê? Inundações?...
Briefing com ovo a cavalo
O Verão não havia maneira de aparecer, derivado às alterações climáticas, e era uma desgraça de bradar aos céus. De repente, inesperadamente a meio do mês de Julho, o Verão entrou em força, derivado às alterações climáticas, e é uma tragédia que Deus nos livre. Direcção-Geral da Saúde e Protecção Civil deverão sair a qualquer momento com um briefing extra. Para mim, mal passado, se faz favor.
Das cabras sapadoras e das vacas roçadeiras aos engolidores de fogo
Esgotados os meios no terreno, porque exactamente não são inteiros, a Autoridade chamou ao teatro de operações todos os engolidores de fogo disponíveis e dois ou três ilusionistas.
Pago à cabeça
Era pago à cabeça. Quinze mil euros cada. Serviço limpo, absoluta confidencialidade e discrição.
Mãezinha, acabei de falecer...
Quando ligou à família a dizer que morreu e que portanto precisava de cinco mil euros para o enterro, lá em casa ninguém se acreditou...
A segunda vinda de Jesus
Atenção: não brinquem com coisas sérias! Se Jesus vem mesmo outra vez, é porque estamos no fim do mundo. Vivos e mortos serão julgados para toda a eternidade, o reino de Deus estender-se-á estrondosamente à Terra, e não consta que haja mais futebol. Para quê, então, gastar tanto dinheiro?...
Estamos em plena "Época de incêndios", e atenção que não fui eu quem lhe pôs o nome e a agendou para esta altura - foi o Governo, foi Portugal! Portanto estamos na "Época de incêndios", legítima, de papel passado, dentro do prazo, e queriam o quê? Inundações?...
Briefing com ovo a cavalo
O Verão não havia maneira de aparecer, derivado às alterações climáticas, e era uma desgraça de bradar aos céus. De repente, inesperadamente a meio do mês de Julho, o Verão entrou em força, derivado às alterações climáticas, e é uma tragédia que Deus nos livre. Direcção-Geral da Saúde e Protecção Civil deverão sair a qualquer momento com um briefing extra. Para mim, mal passado, se faz favor.
Das cabras sapadoras e das vacas roçadeiras aos engolidores de fogo
Esgotados os meios no terreno, porque exactamente não são inteiros, a Autoridade chamou ao teatro de operações todos os engolidores de fogo disponíveis e dois ou três ilusionistas.
Pago à cabeça
Era pago à cabeça. Quinze mil euros cada. Serviço limpo, absoluta confidencialidade e discrição.
Mãezinha, acabei de falecer...
Quando ligou à família a dizer que morreu e que portanto precisava de cinco mil euros para o enterro, lá em casa ninguém se acreditou...
A segunda vinda de Jesus
Atenção: não brinquem com coisas sérias! Se Jesus vem mesmo outra vez, é porque estamos no fim do mundo. Vivos e mortos serão julgados para toda a eternidade, o reino de Deus estender-se-á estrondosamente à Terra, e não consta que haja mais futebol. Para quê, então, gastar tanto dinheiro?...
Pastelaria e ordem unida
Comeu três brigadeiros de
enfiada. Disse-lhes após, enquanto limpava a boca: - Informem o general
que eu para a semana não venho.
segunda-feira, 27 de julho de 2020
O chichi e a discriminação de género
Antigamente as mulheres urinavam de pé. Não vou explicar pormenores, a não ser que me peçam muito, mas urinavam de pé. De pé, como as falecidas árvores da Senhora Dona Palmira Bastos. De pé, como as vítimas da fome. De pé, como os homens em geral. De pé! Homens e mulheres eram iguais. Depois as mulheres resolveram amouchar para o acto e vão aos pares à casa de banho. Hoje em dia as mulheres queixam-se de discriminação de género.
Xesús Rodríguez López 5
Os solteirós
[...]
S'a eles non lles gustaran
as rapazas, craro está,
xa estaba todo espricado;
mais eu puiden reparar
que fuxen eles d'as nenas
cal d'o amo fuxe ó can,
com'a camisa d'o coiro
ou inda menos quizais.
Y-estonces xa que Iles gustan
¿porqué non se casarán?
Si teñen medo âs rapazas
que gastan un capital
en modas y-en perendengues
c-o pertesto d'alternar
con outras mais ricas qu'elas,
ou que solamente o fan
porque son guapas, e queren
á tod'o mundo gustar,
anqu' ô home non-lle guste
tan custosa vanidá,
vexo qu'abundan amiudo
moitas rapazas, que van
afeitas dende pequenas
á andar ó pé de suas mais,
qu'as deprenden á ser boas
privandoas da ociosidá
qu'as fan traballar n'a casa
pra saber dempois mandar,
o qu'a vida d'a familea
d'esta maneira as afan,
pra que s'elas mais adiante
se chegasen á casar
sirvan pra dar gusto ó home
e non pra dar gusto ós mais.
[...]
"Pasaxeiras", Xesús Rodríguez López
(Xesús Rodríguez López nasceu no dia 28 de Julho de 1859. Morreu em 1917.)
[...]
S'a eles non lles gustaran
as rapazas, craro está,
xa estaba todo espricado;
mais eu puiden reparar
que fuxen eles d'as nenas
cal d'o amo fuxe ó can,
com'a camisa d'o coiro
ou inda menos quizais.
Y-estonces xa que Iles gustan
¿porqué non se casarán?
Si teñen medo âs rapazas
que gastan un capital
en modas y-en perendengues
c-o pertesto d'alternar
con outras mais ricas qu'elas,
ou que solamente o fan
porque son guapas, e queren
á tod'o mundo gustar,
anqu' ô home non-lle guste
tan custosa vanidá,
vexo qu'abundan amiudo
moitas rapazas, que van
afeitas dende pequenas
á andar ó pé de suas mais,
qu'as deprenden á ser boas
privandoas da ociosidá
qu'as fan traballar n'a casa
pra saber dempois mandar,
o qu'a vida d'a familea
d'esta maneira as afan,
pra que s'elas mais adiante
se chegasen á casar
sirvan pra dar gusto ó home
e non pra dar gusto ós mais.
[...]
"Pasaxeiras", Xesús Rodríguez López
(Xesús Rodríguez López nasceu no dia 28 de Julho de 1859. Morreu em 1917.)
domingo, 26 de julho de 2020
O retrato de Salazar
Tive a sorte de conhecer a Senhora Dona Laura Summavielle mãe (1879-1971), uma mulher extraordinária que viveu uma vida muito à frente do seu tempo. Tal como eu a via do alto dos meus oito, nove anos, a matriarca da ínclita geração dos Summavielles era então uma velhinha toda guicha, franzina e pândega. No tempo da ditadura fascista, a notável senhora tinha uma curiosa brincadeira que apelava à interacção de Fafe inteiro que lhe passasse por baixo da comprida sacada da casa da família, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, mesmo em frente ao Cinema. Fosse quem fosse. Eu também não escapei à partida, mais do que uma vez, e com muito gosto.
Comigo era assim: mal me via aproximar, a marota da Senhora Dona Laura, de lá de cima, dizia num falsete altivo porém educado:
- Ó menino, apanhe-me aí, por favor, esse retrato do Dr. António de Oliveira Salazar, que me caiu sem querer..
E eu lá apanhava. E era o quê? A fotografia mesmo do ditador? Não. Era uma carta de jogar, saída de uns baralhos que havia naquela altura e que não sei se ainda existem, para além do que eu guardo cá em casa. Exactamente: afinal o retrato de Salazar era uma carta. Mas não cuidem que era uma carta qualquer, um duque, uma sena ou, mesmo, um valete. Nem era o rei. Nem o ás. O retrato de Salazar era... o burro.
P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Setembro de 2011. António de Oliveira Salazar morreu no dia 27 de Julho de 1970.
Comigo era assim: mal me via aproximar, a marota da Senhora Dona Laura, de lá de cima, dizia num falsete altivo porém educado:
- Ó menino, apanhe-me aí, por favor, esse retrato do Dr. António de Oliveira Salazar, que me caiu sem querer..
E eu lá apanhava. E era o quê? A fotografia mesmo do ditador? Não. Era uma carta de jogar, saída de uns baralhos que havia naquela altura e que não sei se ainda existem, para além do que eu guardo cá em casa. Exactamente: afinal o retrato de Salazar era uma carta. Mas não cuidem que era uma carta qualquer, um duque, uma sena ou, mesmo, um valete. Nem era o rei. Nem o ás. O retrato de Salazar era... o burro.
P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Setembro de 2011. António de Oliveira Salazar morreu no dia 27 de Julho de 1970.
Ataque à bomba
Disse que ia atacar à bomba, e foi. Anos e anos a fio. Dental. Hoje a bomba é a estação de metro da Trindade e ele era travesti.
Salvador Golpe 6
N-un abanico
Teño que escribir uns versos,
sexa de calquer maneira,
no abanico d' unha amiga
que teño na miña aldea.
Ela é unha nena garrida,
moi xeitosa, moi ben feita,
que ten estrelas por ollos
e arreboles na meixelas.
E fresca como unhas rosas
que a brisa d' Abril randea,
y é pura como esa brisa,
e pol-o sol é morena.
E ademais de todo, e boa,
y o decir boa na terra
ten un título mais grande
que se fora unha princesa.
"A Nosa Terra", Salvador Golpe
(Salvador Golpe nasceu no dia 27 de Julho de 1850. Morreu em 1909.)
Teño que escribir uns versos,
sexa de calquer maneira,
no abanico d' unha amiga
que teño na miña aldea.
Ela é unha nena garrida,
moi xeitosa, moi ben feita,
que ten estrelas por ollos
e arreboles na meixelas.
E fresca como unhas rosas
que a brisa d' Abril randea,
y é pura como esa brisa,
e pol-o sol é morena.
E ademais de todo, e boa,
y o decir boa na terra
ten un título mais grande
que se fora unha princesa.
"A Nosa Terra", Salvador Golpe
(Salvador Golpe nasceu no dia 27 de Julho de 1850. Morreu em 1909.)
A Bó era uma santa, mas disfarçava muito bem
A minha avó de Basto tinha uma sociedade infalível com São Bento da
Porta Aberta. Em questões de pele e outras coisas ruins, os dois juntos eram uma limpeza.
Aí pelos meus vintes, eu tinha uma plantação de cravos no braço direito, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha querida avó Emília ia pessoalmente, a pé, pequerricha e já velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. Os cravos desapareceram.
Anos depois, o meu filho era criança e apareceu-lhe um cravo numa pálpebra, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha doce avó Emília ia pessoalmente, a pé, ainda mais pequerricha e ainda mais velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. O cravo desapareceu.
Se eu puxasse pela cabeça, tenho a certeza de que me lembraria de um terceiro e definitivo milagre da minha avó, mas não quero arranjar problemas ao Vaticano.
O Vaticano tem muito mais que fazer do que ocupar-se com a comezinha história da Bó de Basto, que, cada vez mais velhinha e pequerricha, ia a pé entender-se pessoalmente com São Bentinho sempre que era preciso. O Vaticano tem coisas muito mais importantes a tratar: por exemplo, convencer-nos de que João Paulo II é santo. Vai levar anos, e eu não acredito.
P.S. - Publicado originalmente no dia 3 de Maio de 2014. Hoje, 26 de Julho, é Dia dos Avós.
Aí pelos meus vintes, eu tinha uma plantação de cravos no braço direito, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha querida avó Emília ia pessoalmente, a pé, pequerricha e já velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. Os cravos desapareceram.
Anos depois, o meu filho era criança e apareceu-lhe um cravo numa pálpebra, uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha doce avó Emília ia pessoalmente, a pé, ainda mais pequerricha e ainda mais velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. O cravo desapareceu.
Se eu puxasse pela cabeça, tenho a certeza de que me lembraria de um terceiro e definitivo milagre da minha avó, mas não quero arranjar problemas ao Vaticano.
O Vaticano tem muito mais que fazer do que ocupar-se com a comezinha história da Bó de Basto, que, cada vez mais velhinha e pequerricha, ia a pé entender-se pessoalmente com São Bentinho sempre que era preciso. O Vaticano tem coisas muito mais importantes a tratar: por exemplo, convencer-nos de que João Paulo II é santo. Vai levar anos, e eu não acredito.
P.S. - Publicado originalmente no dia 3 de Maio de 2014. Hoje, 26 de Julho, é Dia dos Avós.
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O último dos Bernardinos
Já sabem, eu não posso ver na rua bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. (Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas?) Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E portanto cá vai mais uma vez, versão refinada e aumentada:
O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.
P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Abril de 2014. Hoje, 26 de Julho, é Dia dos Avós.
O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.
P.S. - Publicado originalmente no dia 2 de Abril de 2014. Hoje, 26 de Julho, é Dia dos Avós.
A bó, o bô e o bu
Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Vezes dois, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos. Bô queria também dizer bom: binho bô; bô moço. Depois, se calhar por soar a parolo, bô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Quem caralho teve a ideia?...
P.S. - Publicado originalmente no dia 8 de Julho de 2013. Hoje, 26 de Julho, é Dia dos Avós.
P.S. - Publicado originalmente no dia 8 de Julho de 2013. Hoje, 26 de Julho, é Dia dos Avós.
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sábado, 25 de julho de 2020
O sempre às vezes é um bocado nunca
O amor é infinito enquanto dura, dizia o poetinha Vinicius de Moraes. Outro artista do mesmo quilate, Salvador Martinha, deverá actuar em Fafe no dia 9 de Novembro próximo. A Câmara de Fafe, no seu sítio oficial, apresenta Salvador Martinha como "um dos maiores humoristas portugueses de sempre". E tem piada. A rapaziada do sítio oficial da Câmara de Fafe mede o sempre pela própria idade e acha que tem a ver com o gosto pessoal, não sabe que o sempre é mais antigo e de todos, que não começou com a televisão, com a SIC ou com a TVI. E ainda que tivesse começado...
Já agora, uma pitadinha das minhas Lições de História: o sempre começou, consoante as crenças de cada qual, com Adão e Eva da Bíblia ou com os macacos do 2001: Odisseia no Espaço. Persiste evidentemente um sempre anterior, perene, mas esse não se sabe, era Deus sozinho e não há registos. Para os portugueses o sempre começou pelo menos com Afonso Henriques, esse gabiru que vestia saias e batia na mãe. Um cómico! E depois sucederam-lhe Gil Vicente, Bocage, Rafael Bordalo Pinheiro, Vasco Santana, Parodiantes de Lisboa, José Vilhena, Raul Solnado, evidentemente Herman José e Ricardo Araújo Pereira, mais mil e quinhentos estandapers extraordinários e famosíssimos que eu desconheço, e sobretudo António Augusto Ferreira (pai do jornalista Carlos Rui Abreu), que todos os dias trazia anedotas frescas de Guimarães e, quiséssemos ou não, contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois ia para a Póvoa.
Para terem uma ideia de como o sempre é tão relativo, tomem conta desta: o Tónio Augusto jogava nos juniores da AD Fafe, no Campo da Granja, e uma vez rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de bêbados matinais. Era de rir. O Tónio Augusto tinha muito mais piada do que o Salvador Martinha, com todo o respeito. O que faz dele, do nosso Tónio Augusto, um dos maiores maiores humoristas portugueses de sempre...
P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Setembro de 2018. No dia 26 de Julho de 1928 nasceu Stanley Kubrick, realizador de 2001: Odisseia no Espaço, Laranja Mecânica, The Shining, Nascido para Matar, Dr. Estranhoamor e até do meu Spartacus, entre outras obras talvez um pouco menos primas.
Já agora, uma pitadinha das minhas Lições de História: o sempre começou, consoante as crenças de cada qual, com Adão e Eva da Bíblia ou com os macacos do 2001: Odisseia no Espaço. Persiste evidentemente um sempre anterior, perene, mas esse não se sabe, era Deus sozinho e não há registos. Para os portugueses o sempre começou pelo menos com Afonso Henriques, esse gabiru que vestia saias e batia na mãe. Um cómico! E depois sucederam-lhe Gil Vicente, Bocage, Rafael Bordalo Pinheiro, Vasco Santana, Parodiantes de Lisboa, José Vilhena, Raul Solnado, evidentemente Herman José e Ricardo Araújo Pereira, mais mil e quinhentos estandapers extraordinários e famosíssimos que eu desconheço, e sobretudo António Augusto Ferreira (pai do jornalista Carlos Rui Abreu), que todos os dias trazia anedotas frescas de Guimarães e, quiséssemos ou não, contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois ia para a Póvoa.
Para terem uma ideia de como o sempre é tão relativo, tomem conta desta: o Tónio Augusto jogava nos juniores da AD Fafe, no Campo da Granja, e uma vez rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de bêbados matinais. Era de rir. O Tónio Augusto tinha muito mais piada do que o Salvador Martinha, com todo o respeito. O que faz dele, do nosso Tónio Augusto, um dos maiores maiores humoristas portugueses de sempre...
P.S. - Publicado originalmente no dia 12 de Setembro de 2018. No dia 26 de Julho de 1928 nasceu Stanley Kubrick, realizador de 2001: Odisseia no Espaço, Laranja Mecânica, The Shining, Nascido para Matar, Dr. Estranhoamor e até do meu Spartacus, entre outras obras talvez um pouco menos primas.
Cassiano Ricardo 6
A rua
Bem sei que, muitas vezes,
o único remédio
é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
a dívida, o divertimento,
o pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
de contínuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.
A esperança
nunca é a forma burguesa, sentada e tranquila da espera.
Nunca é a figura de mulher
do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
"Um Dia Depois do Outro", Cassiano Ricardo
(Cassiano Ricardo nasceu no dia 26 de Julho de 1895. Morreu em 1974.)
Bem sei que, muitas vezes,
o único remédio
é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
a dívida, o divertimento,
o pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
de contínuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.
A esperança
nunca é a forma burguesa, sentada e tranquila da espera.
Nunca é a figura de mulher
do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
"Um Dia Depois do Outro", Cassiano Ricardo
(Cassiano Ricardo nasceu no dia 26 de Julho de 1895. Morreu em 1974.)
sexta-feira, 24 de julho de 2020
Joie de vivre
Sabem aqueles indivíduos que têm a certeza de que, mais hora menos hora, lhes vai acontecer uma desgraça qualquer, um furo ou um cancro, por exemplo, e que por isso andam sempre com o credo na boca e o colete reflector vestido? Ele não era desses. Viveu descansado e feliz até aos 123 anos, e só se queixou uma vez, mesmo antes do último suspiro: - Agora que me sentia tão bem...
Ternura, de Vinicius de Moraes
Ternura
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
Vinicius de Moraes
(Hoje, 25 de Julho, o Brasil celebra o Dia Nacional do Escritor, chamado também Dia do Escritor Brasileiro)
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
Vinicius de Moraes
(Hoje, 25 de Julho, o Brasil celebra o Dia Nacional do Escritor, chamado também Dia do Escritor Brasileiro)
Día da Patria Galega 2020
A Galiza no peito
Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário,
a areia quente do Brasil,
a rosa de Portugal.
Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário,
a máscara mágica de Angola,
o Índico azul de Moçambique.
Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário,
o branco arroz de Macau,
as espécies perfumadas de Goa.
Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário,
as belas ilhas aligato,
a cálida selva de Timor.
Levo a Galiza no peito,
o Atlântico africano,
as estrelas de Cabo Verde,
a lua da Guiné-Bissau.
Levo a Galiza no peito,
o carvalho milenário
de longas raízes,
perdidas no infinito
do mar e da terra. Manuel Meixide Fernandes
(Hoje, 25 de Julho, é Día Nacional de Galicia, também conhecido popularmente como Día Nacional da Galiza ou Día da Patria Galega)
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quinta-feira, 23 de julho de 2020
Ó prima, ó rica prima!
Foto Tarrenego! |
Eu tinha umas primas de que não sabia. Foram-me apresentadas há coisa de dois ou três anos pelo meu amigo Paulo Silva, que as conhecia de ginjeira, e desde então não lhes largo as redondezas. Falei nelas no outro dia, disse ao Paulo que havíamos de ir às minhas primas e logo mentes perversas pensaram que eu estava a agendar uma noitada na casa da tia, melhor dizendo: em casa de tia. Mas nada disso. As primas de Leça do Balio são as Erdinger, as excelentíssimas cervejas alemãs que, como o seu próprio nome indica, são praticamente da minha família. E preciso urgentemente de fazer uma festa de despedida.
As Erdinger são infelizmente uma raridade nas prateleiras dos hipermercados. Descubro muito às vezes meia dúzia delas, e vêm logo todas comigo para casa. Mas há um certo sítio, uma esplanada num certo parque junto ao ex-rio mais poluído da Europa, onde costumo marcar encontro com elas e elas não costumam falhar. Parece traição à Pátria, mas é exactamente em Leça do Balio, o berço desse verdadeiro monumento nacional e património material da humanidade que é a Super Bock.
Para beber a Erdinger em casa como manda o figurino, até tive de comprar um copo, caro, enorme, bojudo e cheio de curvas, e é destas redondezas que eu falo. Estou a pensar vendê-lo, ao copo. As minhas primas que me perdoem, mas começam a estar muito acima das minhas posses. E não é que volte para os braços da Super Bock, não. Vou mesmo para a água, e da torneira, pelo menos enquanto não a vierem cá cortar. Portanto, adeus ó primas, ó ricas primas!
P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Dezembro de 2011. Já há anos, seis ou sete, que não vou a casa das primas, ricas primas, e as raparigas, há quem me conte para fazer raiva, continuam boas como o trigo. Estou farto de dizer à minha mulher: a família devia dar-se mais! Hoje, 24 de Julho, é Dia dos Primos, e lembrei-me delas...
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Super Bock
Solano Trindade 4
Eu gosto de ler gostando
Eu gosto de ler gostando,
gozando a poesia,
como se ela fosse
uma boa camarada,
dessas que beijam a gente
gostando de ser beijada.
Eu gosto de ler gostando
gozando assim o poema,
como se ele fosse
boca de mulher pura
simples boa libertada
boca de mulher que pensa...
dessas que a gente gosta
gostando de ser gostada.
Solano Trindade
(Solano Trindade nasceu no dia 24 de Julho de 1908. Morreu em 1974.)
Eu gosto de ler gostando,
gozando a poesia,
como se ela fosse
uma boa camarada,
dessas que beijam a gente
gostando de ser beijada.
Eu gosto de ler gostando
gozando assim o poema,
como se ele fosse
boca de mulher pura
simples boa libertada
boca de mulher que pensa...
dessas que a gente gosta
gostando de ser gostada.
Solano Trindade
(Solano Trindade nasceu no dia 24 de Julho de 1908. Morreu em 1974.)
Guilherme de Almeida 6
Cinema
Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.
Só teus olhos: nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.
E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são,
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.
Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.
E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
- são bandidos e heróis;
são lágrimas e risos;
são mulheres, com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...
É a vida, a grande vida
que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...
"Encantamento", Guilherme de Almeida
(Guilherme de Almeida nasceu no dia 24 de Julho de 1890. Morreu em 1969.)
Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.
Só teus olhos: nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.
E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são,
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.
Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.
E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
- são bandidos e heróis;
são lágrimas e risos;
são mulheres, com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...
É a vida, a grande vida
que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...
"Encantamento", Guilherme de Almeida
(Guilherme de Almeida nasceu no dia 24 de Julho de 1890. Morreu em 1969.)
Víctor Campio Pereira 2
Lección de Historia
Zai, o fillo de Cronos e de Xea,
nacido a contraparto
de amor, contra natura,
Zai, o xénito espurio,
o desherdado,
criado a biberón con leite en po
de aldraxes e inxustizas,
Zai, o irmán estragado,
o triste,
o ilota,
o paria,
medrou a golpe humano, alzado en odio,
medrou, medrou, medrou...Multiplicouse
por mares e por ceos e fronteiras,
chegou ás frías terras do Solpor
e prantou con asaño unha flor negra
na alta Babel do mundo.
Agora Xea e Cronos
locen no corazón, aterrecidos,
un caravel de sangue
medrado a golpe humano de ardua historia.
(Víctor Campio Pereira nasceu no dia 15 de Julho de 1928. Morreu no dia 24 de Julho de 2018.)
Zai, o fillo de Cronos e de Xea,
nacido a contraparto
de amor, contra natura,
Zai, o xénito espurio,
o desherdado,
criado a biberón con leite en po
de aldraxes e inxustizas,
Zai, o irmán estragado,
o triste,
o ilota,
o paria,
medrou a golpe humano, alzado en odio,
medrou, medrou, medrou...Multiplicouse
por mares e por ceos e fronteiras,
chegou ás frías terras do Solpor
e prantou con asaño unha flor negra
na alta Babel do mundo.
Agora Xea e Cronos
locen no corazón, aterrecidos,
un caravel de sangue
medrado a golpe humano de ardua historia.
Víctor Campio Pereira
(Víctor Campio Pereira nasceu no dia 15 de Julho de 1928. Morreu no dia 24 de Julho de 2018.)
Eladio Rodríguez González 4
Malpocado!
(Eladio Rodríguez González nasceu no dia 24 de Julho de 1864. Morreu em 1949.)
[...]
¡Probe vello sin arrimo!
¡Probe pidincheiro errante!
Engoumado pol-os anos i-engurrado pol-as penas
é talmente a propia imaxe
da miseria que se axunta
cos delores e coa fame.
Cando alguén lle dá unha esmola de pantrigo e de compango
queda sempre o malpocado satisfeito de verdade.
Anda un día i-outro día,
paseniño e sin cansarse,
coa falchoca postaô lombo, camiñando pra ningures,
sempre ô achou, sin rumbo fixo, sempre cara á todas partes.
Pol-o vrau sofre o calmizo d'ese solque mesmo abafa
e que troca en fogo o aire;
sol de vrau, lume de incendio
que nos campos parés que arde.
Pol-o inverno, caia neve, brúe o vento ou o corisco,
chova ou xíe, él non fai caso dos rigores do friaxe.
[...]
"Oraciós Campesiñas", Eladio Rodríguez González
(Eladio Rodríguez González nasceu no dia 24 de Julho de 1864. Morreu em 1949.)
quarta-feira, 22 de julho de 2020
A visita da Veneranda Figura
Foto Tarrenego! |
As visitas da Veneranda Figura ao Portugal corno manso eram, não raro, momentos de alto fervor nacionalista e profunda reflexão cultural. Sua Excelência o Senhor Presidente da República - ou O Padeiro, na versão abreviada - tinha o condão da palavra certa. Humanista dos sete costados, enciclopedista dado a calendário, geografia e contas de somar, Américo Tomás abria a boca para espirrar e saíam-lhe pérolas, orações de sapiência. Num país de troca-tintas e fala-barato de nascimento, o rigor e o donaire na afirmação são a superlativa herança que o marido de Dona Gertrudes fez o obséquio de nos deixar.
Por exemplos:
1. "Hoje visitei todos os pavilhões, se não contar com os que não visitei."
2. "É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque, estando numa cova, está a mais de 700 metros de altitude."
3. "Comemora-se hoje em todo o país uma promulgação do despacho número cem, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados."
4. "Neste almoço ouvi vários discursos, que o governador civil intitulou de simples brindes. Peço desculpa, mas foram autênticos discursos."
5. "Eu prolongo no tempo esse anseio de Vossa Excelência e permito-me dizer que o meu anseio é maior ainda. Ele consiste em que, mesmo para além da morte, nós possamos viver eternamente na terra portuguesa, porque se nós, para além da morte vivermos sempre sobre a terra portuguesa, isso significa que Portugal será eterno, como eterno é o sono da morte."
6. "Hoje tivemos um dia sumamente positivo: de manhã assistimos à santa missa e de tarde inaugurámos o monumento ao bombeiro."
7. "Pedi desculpa ao Senhor Engenheiro Machado Vaz por fazer essa rectificação. Mas não havia razão para o fazer porque, na realidade, o Senhor Engenheiro Machado Vaz referiu-se à altura do início do funcionamento dessa barragem e eu referi-me, afinal, à data da inauguração oficial. Ambas as datas estavam certas. E eu peço, agora, desculpa de ter pedido desculpa da outra vez ao Senhor Engenheiro Machado Vaz."
8. "A minha boa vontade não tem felizmente limites. Só uma coisa não poderei fazer: o impossível. E tenho verdadeiramente pena de ele não estar ao meu alcance."
9. "O Senhor Professor Oliveira Salazar, ao longo de mais de trinta anos, é uma vida inteiramente sacrificada em proveito do País, e, desconhecendo completamente todos os prazeres da vida, é um homem excepcional que não aparece, infelizmente, ao menos, uma vez em cada século, mas aparece raramente ao longo de todos os séculos."
10. "Esta é a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive."
Convivi pessoalmente a uma distância razoável com Américo Tomás. Uma vez. Quando a Veneranda Figura foi a Fafe, num esplêndido Rolls-Royce descapotável negro como era a vida e guardado por uma matilha de impressionantes motos da GNR. Foi inaugurar por atacado a "nova" Câmara Municipal, o Tribunal, que tinha sido cadeia, e a escola do Santo Velho - estaríamos, se não me engano, nos finais da década de mil novecentos e sessenta. E decerto O Mais Alto Magistrado da Nação por lá deixou algumas das suas proverbiais patacoadas, mas não tenho a certeza: eu teria onze anos porém já não lhe botava sentido. Preferia fazer pouco dele, O Padeiro, e a moçarada à minha volta, agitando impostas bandeirinhas nacionais presas por arames e muitos Viva o Senhor Presidente da República!, escangalhava-se a rir, conferindo enfim ao acto o significado (ou a in-dignidade) que realmente lhe assistia.
Tomás era o circo e mais nada. O Presidente da República nunca encontrou palavras de jeito para falar ao Portugal dos pequeninos. Ele não as sabia e ninguém lhas ensinou ou escreveu.
P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Julho de 2013. Depois da queda do regime e de quatro anos de exílio no Brasil, Américo Tomás, o último Presidente da República na ditadura do velho Estado Novo, regressou a Portugal no dia 23 de Julho de 1978.
Chagas Val 4
As formas em movimento
Primeiramente as coisas em que se tocam ásperas
as paisagens reais as árvores as pedras as peças
com dimensões exatas os ângulos e as linhas retas
depois as curvas as formas arredondadas um seio,
por exemplo, um corpo de mulher as róseas nádegas
um ovo construído alvo e limpo num círculo iluminado
real uma lâmpada e as sinuosas ondas das dunas
e finalmente os cursos movimentos das águas e dos
ventos esses pontos fugidios dos líquidos elementos
os mares e os rios os ares e os voos de pássaros
"Anatomia do Escasso Cotidiano", Chagas Val
(Chagas Val nasceu no dia 23 de Julho de 1943. Morreu em 2016.)
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A segunda vinda de Jesus
Atenção: não brinquem com coisas sérias! Se Jesus vem mesmo outra vez, é porque estamos no fim do mundo. Vivos e mortos serão julgados para toda a eternidade, o reino de Deus estender-se-á estrondosamente à Terra, e não consta que haja mais futebol. Para quê, então, gastar tanto dinheiro?...
terça-feira, 21 de julho de 2020
Uns foram à bola, Durão Barroso ia de férias
A propósito da cretinice dos secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp, no Euro 2016 de tão boa memória, lembrei-me do multinacional lobista Durão Barroso. José Manuel era primeiro-ministro de Portugal, em 2002, e foi no jacto privado de Pereira Coutinho passar férias na ilha privada brasileira do recatado multimilionário português. Três anos depois, o nosso Zé Manel já tinha sido nomeado presidente da Comissão Europeia e passou férias num barco privado de um milionário grego.
Conclusões que tirei desta oportuníssima lembrança: Durão Barroso gosta de férias; Durão Barroso gosta de férias à grande e à brasileira ou à grega, pelo menos; Durão Barroso não gosta de pagar as férias à grande e à brasileira e à grega, pelo menos; Durão Barroso não paga férias desde os tempos imemoriais em que ia para a chique praia de Moledo, em Caminha, como as pessoas normais porém chiques, e se calhar nem essas pagava, porque parece que eram passadas em casa de amigos; Durão Barroso gosta de milionários e de multimilionários; Durão Barroso gosta muito de privados - aviões, ilhas, barcos e talvez bancos; por causa de Durão Barroso e de outros que querem ser durões barrosos quando forem grandes, o PSD mexe com pinças na valente cagada que os secretários de Estado do Governo PS fizeram; os invejosos do CDS esperneiam e esperneiam, mas apenas porque ninguém os convida para lado nenhum e eles também gostam de andar de cu tremido; é inacreditável que os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp ainda sejam secretários de Estado.
(O prestígio internacional de Durão Barroso não era realmente coisa de se deitar fora. Lembram-se? José Ramos-Horta (ex-presidente de Timor-Leste e co-Nobel da Paz com Dom Ximenes Belo em 1996) lançou a candidatura do nosso Zé Manel ao mesmo prémio em 2008. E deu em águas de bacalhau! Quatro anos depois, o ilustríssimo galardão foi atribuído à União Europeia. Quer-se dizer: ao Barroso só faltou um bocadinho assim...)
Fino era o Paulo Portas: para que não se lhe possa apontar nada, ele é que oferecia viagens aos seus futuros patrões. Em quatro anos, o então vice-primeiro-ministro e ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros levou a Mota-Engil seis vezes à América Latina. Hoje Portas é consultor da Mota-Engil para a... América Latina. Durão Barroso está na Goldman Sachs. Diz que é charmain...
P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Agosto de 2016. Com quase um ano de atraso, em Julho de 2017, os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp acabaram por demitir-se. Rocha Andrade, que nos pôs as contas em dia, se calhar faz falta. Quanto a Pereira Coutinho, que já foi o quinto mais rico de Portugal, vendeu o jacto, o helicóptero e a ilha em Angra dos Reis (trindade ostentatória que Barroso conhecia de ginjeira e de borla), perdeu e desfez-se de negócios, faliu ou insolveu-se, sobrevive, sei lá, à pala da Segurança Social e um destes dias ainda o vou descobrir por aí sem-abrigo. José Manuel Durão Barroso, esse, foi eleito presidente da Comissão Europeia no dia 22 de Julho de 2004. Faz hoje anos. E parabéns à prima!...
Conclusões que tirei desta oportuníssima lembrança: Durão Barroso gosta de férias; Durão Barroso gosta de férias à grande e à brasileira ou à grega, pelo menos; Durão Barroso não gosta de pagar as férias à grande e à brasileira e à grega, pelo menos; Durão Barroso não paga férias desde os tempos imemoriais em que ia para a chique praia de Moledo, em Caminha, como as pessoas normais porém chiques, e se calhar nem essas pagava, porque parece que eram passadas em casa de amigos; Durão Barroso gosta de milionários e de multimilionários; Durão Barroso gosta muito de privados - aviões, ilhas, barcos e talvez bancos; por causa de Durão Barroso e de outros que querem ser durões barrosos quando forem grandes, o PSD mexe com pinças na valente cagada que os secretários de Estado do Governo PS fizeram; os invejosos do CDS esperneiam e esperneiam, mas apenas porque ninguém os convida para lado nenhum e eles também gostam de andar de cu tremido; é inacreditável que os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp ainda sejam secretários de Estado.
(O prestígio internacional de Durão Barroso não era realmente coisa de se deitar fora. Lembram-se? José Ramos-Horta (ex-presidente de Timor-Leste e co-Nobel da Paz com Dom Ximenes Belo em 1996) lançou a candidatura do nosso Zé Manel ao mesmo prémio em 2008. E deu em águas de bacalhau! Quatro anos depois, o ilustríssimo galardão foi atribuído à União Europeia. Quer-se dizer: ao Barroso só faltou um bocadinho assim...)
Fino era o Paulo Portas: para que não se lhe possa apontar nada, ele é que oferecia viagens aos seus futuros patrões. Em quatro anos, o então vice-primeiro-ministro e ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros levou a Mota-Engil seis vezes à América Latina. Hoje Portas é consultor da Mota-Engil para a... América Latina. Durão Barroso está na Goldman Sachs. Diz que é charmain...
P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Agosto de 2016. Com quase um ano de atraso, em Julho de 2017, os secretários de Estado que foram à bola a França por conta da Galp acabaram por demitir-se. Rocha Andrade, que nos pôs as contas em dia, se calhar faz falta. Quanto a Pereira Coutinho, que já foi o quinto mais rico de Portugal, vendeu o jacto, o helicóptero e a ilha em Angra dos Reis (trindade ostentatória que Barroso conhecia de ginjeira e de borla), perdeu e desfez-se de negócios, faliu ou insolveu-se, sobrevive, sei lá, à pala da Segurança Social e um destes dias ainda o vou descobrir por aí sem-abrigo. José Manuel Durão Barroso, esse, foi eleito presidente da Comissão Europeia no dia 22 de Julho de 2004. Faz hoje anos. E parabéns à prima!...
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Lara de Lemos 4
Poema de múltipla escolha - faça seu poema
Em que tempo vivo
em que hora? de aço ( )
de água ( )
de mágoa ( )
de arma ( )
em que tempo vivo
em que hora? de faca ( )
de ferro ( )
de fúria ( )
de fuga ( )
em que tempo vivo
em que hora? de canto ( )
castigo ( )
cegueira ( )
cadeia ( )
em que tempo vivo
em que hora? de teia ( )
de muro ( )
de usura ( )
de guerra ( )
"Aura Amara", Lara de Lemos
(Lara de Lemos nasceu no dia 22 de Julho de 1923. Morreu em 2010.)
Em que tempo vivo
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"Aura Amara", Lara de Lemos
(Lara de Lemos nasceu no dia 22 de Julho de 1923. Morreu em 2010.)
Enrique Labarta Pose 4
[...]
Dás mamorias que removo
d'a infancia, viva en min resta
máis que todas, a d'a festa
d'a Patrona d'o meu povo.
¡Ay, n-é estraño que me lembre
n-a miña vida azorosa,
con amor santo d'a Nosa
Señoriña de Setembre!
Sin apartarse de min,
sua imaxe comigo vai,
¡que n-o colo d'unha nai
á querela deprendin!
[...]
"A Festa da Patrona de Tabeirón", Enrique Labarta Pose
(Enrique Labarta Pose nasceu no dia 22 de Julho de 1863. Morreu em 1925.)
Dás mamorias que removo
d'a infancia, viva en min resta
máis que todas, a d'a festa
d'a Patrona d'o meu povo.
¡Ay, n-é estraño que me lembre
n-a miña vida azorosa,
con amor santo d'a Nosa
Señoriña de Setembre!
Sin apartarse de min,
sua imaxe comigo vai,
¡que n-o colo d'unha nai
á querela deprendin!
[...]
"A Festa da Patrona de Tabeirón", Enrique Labarta Pose
(Enrique Labarta Pose nasceu no dia 22 de Julho de 1863. Morreu em 1925.)
Antonio Bieito Fandiño 4
[...]
Por min fai o que quixêres;a ama do crego ten:
que se o ganou mal, ou ben,
no-o deben decir mulleres.
Teu pai está por medrar;
a tí pouco che debin,
cando sin decirmo a min
te foches a concertar.
O termo hastra aqui encuberto
foi unha gran picardía;
e o decir que no-o sabías,
eso, Perucho, n'he certo.
Quíxênche moito, e engañéime,
servirame d'escarmento,
que para divertimento
bastou; arrepentireime.
a tí pouco che debin,
cando sin decirmo a min
te foches a concertar.
O termo hastra aqui encuberto
foi unha gran picardía;
e o decir que no-o sabías,
eso, Perucho, n'he certo.
Quíxênche moito, e engañéime,
servirame d'escarmento,
que para divertimento
bastou; arrepentireime.
[...]
"A Casamenteira", Antonio Bieito Fandiño
(Antonio Bieito Fandiño nasceu no dia 22 de Julho de 1779)
Quando eu era Hemingway (ou O Amigo Bastos)
Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: AB.) E creio que percebi bem.
- Mas oiça lá: à sua beira, foi o que disse? Que expressão tão bonita! À sua beira...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical...
Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e "simpatizantes", de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.
Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias!...
Não esqueço, Amigo Bastos.
P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2018. O aventureiro e escritor norte-americano Ernest Hemingway, autor de "Por Quem os Sinos Dobram" e "Adeus às Armas", Prémio Pulitzer de Ficção em 1953 e Prémio Nobel da Literatura em 1954, nasceu no dia 21 de Julho de 1899.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: AB.) E creio que percebi bem.
- Mas oiça lá: à sua beira, foi o que disse? Que expressão tão bonita! À sua beira...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical...
Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e "simpatizantes", de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.
Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias!...
Não esqueço, Amigo Bastos.
P.S. - Publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2018. O aventureiro e escritor norte-americano Ernest Hemingway, autor de "Por Quem os Sinos Dobram" e "Adeus às Armas", Prémio Pulitzer de Ficção em 1953 e Prémio Nobel da Literatura em 1954, nasceu no dia 21 de Julho de 1899.
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