sexta-feira, 30 de junho de 2017

Salgueiro Maia

O banho

No decurso da sua atribulada vida, o capitão Gaspar também foi a Lourenço Marques, ficando instalado na messe de oficiais, onde se realizou uma linda festa, para a qual era obrigatório o uniforme branco.
O nosso herói, pouco habituado a fardas apertadas e pouco arejadas, começou a ficar com calor a mais, ar a menos e alergia à festa.
Para complicar mais a situação, e talvez por ser dos poucos oficiais combatentes que estavam presentes, um oficial-general entabula conversa com o capitão Gaspar quando ele se preparava para ir embora. A conversa alonga-se para o sector disciplinar, mas o que o capitão Gaspar precisava era de ir refrescar-se, pelo que, muito cordialmente, pergunta ao seu interlocutor: "Meu general, há algum regulamento que proíba um oficial de tomar banho?"
O oficial-general acha a pergunta muito repentina, mas responde que não! Acto contínuo, o capitão Gaspar deita-se, tal como está, para dentro da piscina do Clube Militar, gritando: "Aí vai!"

"Capitães de Abril", Salgueiro Maia

(Salgueiro Maia nasceu no dia 1 de Julho de 1944. Morreu em 1992.)

Lugares-(in)comuns 264

Foto Hernâni Von Doellinger

Rogaciano Leite

Inversão de racismo

"Amor não é racista..." - Ela dizia,
Quando em beijos ardentes me abrasava.
Ao seu peito, nervosa, me apertava,
Ao meu peito, nervoso, eu lhe prendia.

Era noite na praia. Ninguém via
Aquele par que se beijando estava...
Nos braços do cristão - ela sonhava!
E eu sonhava - nos braços da judia!

No templo azul daquela noite calma
Eu lhe dei uma Pátria, na minh'alma,
E ela deu-me, em su'alma, a Canaã...

Desde então o racismo se inverteu:
- Vivo pensando que fiquei judeu,
E ela jurando que ficou cristã!

Rogaciano Leite

(Rogaciano Leite nasceu no dia 1 de Julho de 1920. Morreu em 1969.)

Matosinhos by day

Foto Hernâni Von Doellinger

Amália Rodrigues

Lágrima

Cheia de penas me deito
E com mais penas me levanto
Já me ficou no meu peito
O jeito de te querer tanto

Tenho por meu desespero
Dentro de mim o castigo
Eu digo que não te quero
E de noite sonho contigo

Se considero que um dia hei-de morrer
No desespero que tenho de te não ver
Estendo o meu xaile no chão
E deixo-me adormecer

Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias de chorar
Por uma lágrima tua
Que alegria me deixaria matar

Amália Rodrigues

(Amália Rodrigues nasceu no dia 1 de Julho de 1920. Morreu em 1999.)

Caminho 343

Foto Hernâni Von Doellinger

Fernando Guedes

O caule

Cinzentas procuras interceptam
o paralelismo recusado.
Sem preferência de ritmo
as fotografias dividiram entre si
os intervalos do tempo. Duas.
No caminho vãos destinos se buscam.
Só a molécula resiste, a flor aberta,
o caule perfumado, a raiz vigorosa
onde a raposa construiu o seu covil,
a folhagem criada para o abrigo do mocho,
a inteira floresta, espinheiros e buxo,
o labirinto,
o eco da canção antiga,
ingénua e tão distante.

E do eco, do bosque, do labirinto, da flor aberta
se nutre de novo o movimento.
Os símbolos perfilam outro símbolo.

"Caule, Flor e Fruto", Fernando Guedes

(Fernando Guedes nasceu no dia 1 de Julho de 1929. Morreu em 2016.)

Lugares-comuns 541

Foto Hernâni Von Doellinger

Júlia da Costa

A noite

Brilha o céu, mas em vão soluça e brada
A terra ansiosa, com pueril receio!
É densa a treva; nessa paz calada
Funda tristeza nos oprime o seio!

Tudo fenece, embaixo da orvalhada
Repousa o campo de perfumes cheio!
Negro é o mar, a floresta sossegada,
Dormem as aves da espessura em meio!

Embalde a noite traiçoeira e linda
Enche de encanto os bosques e os atalhos,
E, enquanto de fulgor o espaço alinda,

Seu manto enfeita de gentis orvalhos.
Mentem os ermos na amplidão infinda!
Mentem as flores a tremer nos galhos!

Júlia da Costa

(Júlia da Costa nasceu no dia 1 de Julho de 1844. Morreu em 1911.)

À espera do Tony...

Foto Hernâni Von Doellinger

Sexta-feira, nove da manhã, Parque da Cidade do Porto. Não sei há quantas horas ali está. Marca lugar para o concerto de Tony Carreira dado ao povo pelo Continente. O espectáculo do Tony é sábado, lá pelas 19h30. Faltam trinta e quatro horas e meia - e eu não sei que diga...

Em defeso do futebol 19

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando o Sporting deu 7-1 ao Benfica
Catorze de Dezembro de 1986. Há quase 31 anos, em Alvalade o velho, num épico jogo de futebol: Sporting 7 - Benfica 1. Ainda hoje há quem diga que, a haver um vencedor, teria de ser o Benfica...

"E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde" 
A frase era: "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Mas só funcionava se fosse metida no meio de uma marcha do John Philip Sousa, que para mim era um músico português de Castelo de Paiva que tinha ido para a América em pequenino. Eu sabia que no Pejão havia por aquela altura uma grande banda de música que até tinha um disco e que era quase tão boa como a nossa, a de Revelhe, e era por isso. Quanto à marcha propriamente dita, de preferência Stars And Stripes Forever. Isso, sim, era serviço profissional. Serviço completo.
Eu adorava os altifalantes. Chamavam por mim e eu ia. Eram sinal de futebol no Campo da Granja, eram Festa da Bomba, eram o Santo António na minha rua, eram a Senhora de Antime que vinha à vila numa tremenda e comovente procissão. E adorava aquela frase. O meu sonho era dizê-la quando fosse grande.
E disse. Vezes sem conta, anos mais tarde, já os altifalantes tinham sido promovidos a "instalações sonoras" e a bola rolava no Estádio de campo pelado. Sim, o microfone agora era meu, eu era o rapaz da "constituição das equipas" e daqueles reclames muito jeitosos que terminavam todos em "... nesta simpática lo-ca-li-da-deee". E nem imaginam o que eu sofria quando, no defeso, andava de catrel pelas aldeias de Fafe, mais o Pimenta, a anunciar os filmes do cinema ao ar livre e sem poder dizer a frase. Não encaixava de maneira nenhuma - que seca! E os filmes também...
"E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Era a frase da minha infância e andou sempre comigo. Até na profissão. Quando passei pela Informação da Rádio Comercial, no tempo da RDP, muitas vezes a disse, como teste, na gravação de uma notícia ou apenas por brincadeira, de microfone fechado, antes de ir para o ar com o noticiário.
Nunca chegou cá fora, e foi o que os senhores ouvintes perderam - como certamente estão agora a perceber. Em contrapartida, uma vez, no final de um bloco noticioso particularmente bem conseguido, saiu-nos - ao colega de cabina e a mim - um "Até os comemos!", de microfone distraidamente aberto e destinatários certos, que ainda hoje é o nosso orgulho.
Porque "Até os comemos!" também é uma bela frase e resulta muito bem em rádio. Mas, verdade seja dita, não tem comparação com a outra, a dos altifalantes, pois não?...

Não sei se se recordam, mas no Mundial de 2014, no Brasil, o jogo França-Honduras não teve hinos. Num Mundial em que os penáltis de encomenda até estavam a sair tão bem, esqueceram-se do principal: do gira-discos e dos velhos altifalantes. Só pode ser falta de informação, ou então qualquer coisinha contra Portugal, porque, se o Brasil queria um serviço como deve ser, profissional e a mandar ventarolas, que viesse ao lado de cá encomendá-lo. Os responsáveis pela empreitada deveriam saber, tinham de saber, que as "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica". Não tenho a menor dúvida, o Mundial do Brasil ficava muito bem servido com os altifalantes do Baptista. Com os altifalantes do Baptista, hinos... é de calcanhar.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

O galo desportivo

Foto Hernâni Von Doellinger

Joaquim Namorado

Edital

Foi afixado
nos locais do costume
que É PROIBIDO MENDIGAR.


Logo mão que se descobre
escreveu a tinta por baixo
MAS NÃO É PROIBIDO SER POBRE.


"A Poesia Necessária", Joaquim Namorado 

(Joaquim Namorado nasceu no dia 30 de Junho de 1914. Morreu em 1986.)

Estes romanos são loucos 4

Foto Hernâni Von Doellinger

Taumaturgo Sotero Vaz

Coração

Quando eu morrer, Virgem formosa e pura,
Se acaso for o corpo meu cremado,
Vai e, entre a cinza que restar, procura
O coração que eu tenho em mim guardado.

Vai, que hás de vê-lo, doce bem amado,
Cheio de vida entre a poeira escura,
Como um astro que em pleno céu nublado
Surge valente e com vigor fulgura.

Hás de encontrá-lo palpitante e forte
Entre esses restos do que soube em vida
Amar-te e certo o saberá na morte...

Que o coração, querida, de quem ama,
Não se consome, pois é lei sabida
Que a chama não consome a própria chama.

Taumaturgo Sotero Vaz

(Taumaturgo Sotero Vaz nasceu no dia 30 de Junho de 1869. Morreu em 1921.)

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Mobiliário urbano (propriamente dito) 34

Foto Hernâni Von Doellinger

Oldemar Justus

Apresentação

Há um encontro marcado,
na vida, no tempo, nos ondes...

Na fila do ônibus,
na esquina do acaso,
ao pé da escada do sonho.

Ou aqui, numa folha de papel,
onde escrevo, não o teu nome, que não sei,
mas a tua verdade, disfarçada
no redimido mentir do poeta.

Vem amigo,
por estas sendas
que são tuas, beber
da água da fonte,
que não é minha.

Eu apenas sirvo o cântaro.

Oldemar Justus

(Oldemar Justus nasceu no dia 29 de Junho de 1922. Morreu em 2006.)

Na forja... 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Leo Lynce

Falando ao coração

Não creias nela, coração, não creias nela.
Esquece a meiga voz, o doce encanto
Dessa mulher que esconde, assim tão bela,
A falsidade num doirado manto.

Não creias nessa gota que lhe estrela
A face, desconfia desse pranto.
Toma cuidado e foge da procela
A que te arrasta da sereia o canto.

Essa mulher te foi perjura e ingrata,
Esquece-a, coração, sê mais altivo
Ante a beleza que te avilta e mata;

Assim falei ao coração covarde;
Mas ele, o pobre, o mísero cativo,
Sentidamente respondeu-me: - É tarde.

"Poesia Quase Completa", Leo Lynce

(Cyllenêo Marques de Araujo Valle, que assinava Leo Lynce, nasceu no dia 29 de Junho de 1884. Morreu em 1954.)

Se bem me lembro 26

Foto Hernâni Von Doellinger

Pedro Saturnino

O Marreco

A linfa do quintal, que o seu perfil retrata,
é o ponto de namoro e banho do Marreco,
onde ostenta melhor a seda do jaleco
e a fita do pescoço, à guiza de gravata.


Ali, não raro, esquece a companheira o meco,
para fazer a corte à encantadora Pata, 
a quem com tal carinho e deferência trata 
que por todo o arredor o escândalo faz eco.

 
Ali, como um dom-joão, corrompe as mais ariscas e,
incapaz de temer despeitos e vinganças, vive, 
como um sultão, cercado de odaliscas.

 
E ali conduz as tais que, a passos curtos, tardos, 
afrontando o rancor de honestíssimas ganças, 
comboiam, sem pudor, mestiços e bastardos.

 
Pedro Saturnino

(Pedro Saturnino nasceu no dia 29 de Junho de 1883. Morreu em 1953.)

Festas da Senhora de Antime 2017 (programa)


De 7 a 10 de Julho, Festas do Concelho de Fafe, em honra de Nossa Senhora de Antime. Mais informação e programa, aqui.

Não há amor como o primeiro

Em defeso do futebol 18

O pontapé de ressaca
O pontapé de ressaca, de uma forma geral, sai frouxo e torto. Dê-se-lhe o devido desconto: é de ressaca...

Sou muito forte mentalmente e jogo muito bem sem bola
Sou muito forte mentalmente, tenho uma grande cultura táctica e razoável visão periférica. Jogo muito bem sem bola. Mas sobretudo sou muito forte mentalmente, que é o que faz a diferença em campo. Não me levaram à Taça das Confederações da Rússia nem ao Europeu Sub-21 da Polónia, e eu não percebo. Tenho um centro de gravidade que tomararam muitos. É certo que me falta alguma margem de progressão e realmente nunca fui aquilo a que se possa chamar "jogador de futebol", embora jogue muito bem com os dois pés, mas com ambos ao mesmo tempo. Em todo o caso, sou - creio que me repito - muito forte mentalmente e jogo muito bem sem bola: mesmo assim não fui convocado. O que é que o Fernando Santos e o Rui Jorge têm contra mim?... 

terça-feira, 27 de junho de 2017

Em defeso do futebol 17

Foto Hernâni Von Doellinger

O futebol, essa ciência
A "primeira fase de construção de jogo", por exemplo. Dá que pensar, não dá? Desde logo: com quantas fases se constrói o jogo? Com quatro, como as fases que constroem a Lua? Com três, como na electricidade? Por outro lado: há um "terço do terreno" específico onde a "primeira fase de construção de jogo" deva preferencialmente ocorrer para ser assim chamada? Ou, dito de outra forma: uma "fase de construção de jogo" efectuada no segundo ou no "último terço do terreno" é tão "fase de construção de jogo" como tendo acontecido no primeiro "terço", ou, assim avançados, já estaremos no campo da desconstrução de jogo? E a desconstrução de jogo, a propósito, tem também fases ou é mais atinadinha?

Foi mais um momento de inteligência e reflexão. No próximo programa vamos debruçar-nos sobre a intrigante problemática da "transição rápida". Para tentarmos perceber, nomeadamente: a partir de que momento uma "transição" deixa de ser "rápida" e passa a ser assim-assim?

O Caralho era o número 10 (ou Cada um tem as epifanias que merece)
Uma vez eu fui à bola e tive uma revelação que até hoje. Uma epifania, como agora se diz para evitar confusões com a velha química fotográfica. Eram outros tempos, sobras de vacas gordas que ainda me davam para subir até à prazenteira companhia e insubstituível comida do Sr. Vilaça, no Conselheiro, em Paredes de Coura. Mas o jogo: no campo à borda da estrada que desce para Ponte de Lima, era um Castanheira-Paçô, prélio que eu prognosticara sem história, coisa para zero-zero ou menos, mas estava esfericamente enganado. Foram três secos em dia de chuva, frio e nevoeiro. Nevoeiríssimo. Nem um palmo eu via à frente do nariz, literalmente, e peço que, por favor, não se escandalizem com tanta literalidade: com uma mão a segurar o chuço e a outra enfiada no bolso das calças, a gozar o quentinho da ferramenta, não tinha um terceiro palmo à mão, só mesmo se pedisse um palmo emprestado ao parceiro do lado, e eu não estava para aí virado. Portanto, não via um palmo à frente do nariz, que fique assente. O nevoeiro, nevoeiríssimo, era tanto que às vezes, junto à outra baliza, eu seja ceguinho se não era capaz de jurar que os atletas de ambas as equipas estavam a jogar em braille. Ao árbitro já não chegava essa coisa nova que é a sinalética, apitava de megafone, marcava faltas por sms, e fosse o que Deus quisesse. E eu sem saber se o bloco era baixo e se a pressão era alta, matérias que me interessam sobremaneira. E o último terço do terreno, onde estaria realmente o último terço do terreno?
Lá no alto da serra, o tecto de nevoeiro era tão denso, quase sólido, que aquilo já não era um campo de futebol, parecia mais um pavilhão gimnodesportivo, e eu ali dentro, compactado, com falta de ar, estou aqui estou a ligar para o 112. E cá está: como, ainda por cima, éramos apenas 19 pessoas e quatro gê-nê-erres a ouver o jogo, não se via mas ouvia-se tudo o que se passava dentro das quatro linhas. Foi assim que de repente, entra o primeiro golo, entra o segundo, as minhas enregeladas porém atentíssimas orelhas começaram a captar: "Vai, Caralho!", "Sobe, Caralho!", "Entra, Caralho!", "Sai, Caralho!", "Dá-lhe, Caralho!", "Força, Caralho!"... E eu cá para os meus botões, mais admirado era impossível: - Ai que caralho, queres tu ver que o Caralho joga no Castanheira? Mas quem caralho será?
Estava, é preciso que se diga, admirado mas também intrigado, consumição a dobrar. A minha sorte foi que, aproveitando um bocanho, lá acabou por entrar o terceiro dos da casa, marcado pelo 10, imediatamente abraçado pela sua equipa em peso, a aberta deu para ver. "Golo, Caralho!", "Boa, Caralho!", "É assim mesmo, Caralho!", "És o maior, Caralho!", gritavam-lhe os eufóricos colegas, pendurando-se-lhe no pescoço. Com o árbitro a dizer que eram que horas e a festa a terminar, como manda a tradição, com calduços e palmadinhas no rabo, embora toda a gente saiba que não há gays no futebol, eu percebi finalmente: o número 10 é que é o Caralho...

Caminho 342

Foto Hernâni Von Doellinger

Raul Seixas

17 de julho

O dia teima em amanhecer-me.
Os pombos da janela arrulham
Sem trazer-me o conforto
De uma mensagem audaz.
Desenho meus momentos
Sem ansiar por rimas.
Vozes veladas de veludo verde
Voa vento...
 À vontade e despido
Nu ante as arquibancadas
Marina não se mostra
Oswaldo noctivagando...
Presa fácil da minha cerebrotônica labilidade
À terrível lucidez do medíocre.
Negar que é pestilento, jamais.
O mais e o mesmo são valoráveis.
Porém do nada se extrai
Da média-ocridade
Idade da pedra.
Me incomoda
 

A dúvida que, mascarada em cão,
Ladra e morde enfermamente. Não.
Não quero interferências banais
Interferindo no meu espírito.


"O Baú do Raul Revirado", Raul Seixas

(Raul Seixas nasceu no dia 28 de Junho de 1945. Morreu em 1989.)

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Em defeso do futebol 16

Foto GASPAR DE JESUS

No tempo em que os animais falavam
Houve um tempo em que os presidentes dos maiores clubes de futebol falavam com os jornalistas e até convidavam os directores dos jornais para jantar. Todos eram tratados por igual e quem tivesse unhas que tocasse viola. Mas isso foi muito, muito antigamente, no tempo em que os animais falavam e não havia telemóveis. Depois, conta-se que os presidentes dos maiores clubes resolveram dividir os jornalistas em dois grandes grupos: os que levavam recados e os que levavam pancada - e deixaram de falar aos restantes. Mais tarde, os presidentes dos maiores clubes criaram as suas próprias televisões e passaram a ser "entrevistados" pelos seus próprios jornalistas. E agora, quando se dignam descer até ao ecrã das televisões generalistas, exigem tratamento de primeiro-ministro. São outros tempos... 

Gosto muito de todavias
Na rádio, ouvi aqui atrasado uma pequena entrevista telefónica feita ao presidente de um clube de futebol da primeira divisão. Claro que o entrevistado não era nenhum dos três cabeçudos - esses não têm telefone (por causa da polícia), só dão "grandes entrevistas" nas televisões mais ou menos nacionais, em directo e exclusivo, ou, quando lhes apetece, mandam recado pela rapaziada que mantêm nas redacções. E também não era nenhum daqueles que querem ser cabeçudos quando forem grandes. Era somente o presidente de um clube de futebol de passagem pela primeira divisão.
E querem saber? Gostei do que ouvi. Em apenas três ou quatro frases telegráficas, num discurso simples e honesto, o presidente utilizou pelo menos duas vezes a conjunção adversativa (ainda se chamará assim?...) todavia. Ora, eu gosto muito de todavias. O facto de haver um presidente de um clube de futebol da primeira divisão que respeita o trabalho dos jornalistas e tem educação bastante para atender o telemóvel e permitir a gravação de uma conversa, nos dias que correm e por si só, é para mim uma enorme novidade, um motivo de justificado aplauso. E ainda por cima as todavias falaram-me ao coração. Este presidente, digo já, passou a merecer a minha mais sincera admiração.
Apesar de nenhuma das suas todavias estar devidamente contextualizada. Ou, como se diz agora à la française, "mesmo que" nenhuma das suas todavias estivesse devidamente contextualizada. Atirou-as ao calhas e quem quiser que fuja. Quero lá saber: o homem é do futebol, não é gramático. Podia ter dito "picaretas" e, isso sim, seria perigoso. Gosto muito de todavias, mas as todavias não são tudo...

Mobiliário urbano (propriamente dito) 33

Foto Hernâni Von Doellinger

Guimarães Rosa 5

Com minha brandura, alegre é que eu matava. Mas, as barbaridades que esse delegado fez e aconteceu, o senhor nem tem calo em coração para poder me escutar. Conseguiu de muito homem e mulher chorar sangue, por este simples universozinho aqui. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!

"Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa

(Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de Junho de 1908. Morreu em 1967.)

domingo, 25 de junho de 2017

Pipi das Calças Compridas

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Edmundo

Risum teneatis
 
Teus olhos claros me disseram,
Como se fossem tua voz:
Ama-me... Os olhos também falam;
E quando os nossos lábios calam
O gesto e o olhar falam por nós.
Quando os teus dedos se encontraram
Nos dedos meus cheios de ardor,
Tua alma cálida fremia;
A tua mão nervosa e fria
Disse-me todo o teu amor.
Sorrias tu como uma estátua;
Lívida e cheia de emoção
Tu não falaste... a boca mente,
Tu foste minha inteiramente,
Foi meu teu virgem coração.
Passou no entanto aquele dia
Em que com febre e embriaguez
As nossas almas amorosas
Se uniram, trêmulas, ansiosas,
Pela primeira e última vez!
A boca mente... tu falaste...
Sem pressentir a minha dor...
Tu me negaste o amor ardente
Que em ti vibrava... a boca mente...
E tu mentiste, meu amor!

"Poesias", Luís Edmundo

(Luís Edmundo nasceu no dia 26 de Junho de 1878. Morreu em 1961.)

Na forja...

Foto Hernâni Von Doellinger

Luiz Manzolillo

Via Láctea na Tijuca

Se dizem-me insensato por ouvir
Estrelas, qual Bilac, talvez razão
Proveja. Mas é inútil arguir
A racionalidade ao coração.

Devo do amor insano refugir?
A estrela amiga abandonar de mão?
Não posso. Então convido-os a assistir,
Da Via Láctea, a mágica atração!

Direis agora: que paixão se inculca
Na mente do poeta, ante as estrelas,
A pratear as matas da Tijuca?

Eu vos responderei que reincido
E, apenas por olhá-las, posso tê-las,
E ouvi-las, como o amor não tem me ouvido.

"Sonetos de Outono", Luiz Manzolillo

(Luiz Manzolillo nasceu no dia 26 de Junho de 1930. Morreu em 2007.)

Caminho 341

Foto Hernâni Von Doellinger

Francisco Otaviano 4

Desejo de doente

Querida, quando eu morrer,
Com tua boquinha breve
Não me venhas tu dizer:
- A terra te seja leve!

Nesse dia vem calçada
De botinas de cetim:
Quero a terra bem pisada
Tendo teu pé sobre mim!

Em paga de meus amores,
Quando tombar o caixão,
Deita-lhe um ramo de flores
Colhidas por tua mão.

E se mais posso pedir-te
Nesta eterna despedida,
Deixa dos olhos cair-te
Uma lágrima sentida.


"Traduções e Poesias", Francisco Otaviano 

(Francisco Otaviano nasceu no dia 26 de Junho de 1825. Morreu em 1889.)

sábado, 24 de junho de 2017

Em defeso do futebol 15

Foto Hernâni Von Doellinger

Nelo Barros
Tive a sorte de conhecer Nelo Barros. Manuel Coelho de Barros (1917-2007) foi um grande treinador de futebol e um mestre de treinadores de futebol que nunca fez primeiras páginas de jornais porque sempre se recusou a deixar o emprego no escritório da que era então a maior fábrica de Fafe e uma das maiores do País. Equipas da 1.ª divisão chamavam por ele, ano após ano, pediam-lhe disponibilidade total, trabalho a tempo inteiro, mas ele nunca quis ir por aí. O Nelinho era assim.
Pessoa excelentíssima, homem elegante, distinto, culto, carismático, Nelo Barros era reconhecidamente um catedrático da táctica, sabia muito de bola e dava gosto ouvi-lo falar de futebol. Ele entusiasmava-se e entusiasmava. O futebol de Nelo Barros tinha pessoas e histórias dentro. O futebol contado por Nelo Barros era simples, percebia-se à primeira, batia certo, era lindo!
Uma noite, no velho salão dos Bombeiros (Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes), o treinador encantou uma plateia à pinha que o foi ouvir falar de desporto e de futebol, de jogadores e de jogos, de treinadores e de tácticas, como nunca se tinha ouvido falar por aquelas bandas. O Nelinho falou como de costume, sem tabus, sem grandes teorias, sem peneiras. Até eu, que era um rapazola, entendi tudo. E fiquei a gostar ainda mais de futebol.
Perguntaram-lhe o que é que era preciso para se ser um bom treinador. Nelo Barros, provavelmente um dos melhores treinadores portugueses de todos os tempos, respondeu assim simplesmente, que esta cá me ficou: "Não há bons treinadores. Os bons jogadores é que fazem os bons treinadores". E depois desenvolveu, desmontou a aparente contradição, mas nem era preciso.
Eu gostava tanto de ouvir Nelo Barros, que ia assistir a todos os treinos, que eram sempre ao fim da tarde, por causa do tal emprego do treinador na fábrica. Uma vez, o jogo em preparação era contra o Riopele. E digo contra de propósito, porque aquele era um tempo de rivalidades à moda antiga, dentro e fora do campo, acabando quase sempre tudo à trolha.
Mas, voltando ao treino, o Nelinho reuniu os jogadores à sua volta e deu a táctica. E eu por perto, de radar ligado. Fiquei deslumbrado: eram indicações precisas para cada um dos jogadores, para o funcionamento da defesa, para o desempenho do meio-campo, para o trabalho dos avançados, para as movimentações da equipa como um todo, até o Berto Magalhães (um suplente muito fraquinho, mas generoso e com um pulmão se faz favor) ia jogar como médio vadio para secar os criativos riopelenses. Tudo encaixava, tudo fazia sentido. E tudo dito com uma convicção, que no domingo só podia dar certo.
Mas não deu. Do outro lado estava uma equipa poderosíssima (se a memória não me atraiçoa, no Riopele jogariam, por essa altura, o Piruta, o Vital, o Barros, o Albano, o João, o Luís Pereira), treinada por outro que a sabia toda: Ferreirinha. Saímos de Pousada de Saramago vergados a uma pesada derrota, já não sei por quantos, mas eu não perdi a fé no nosso Nelo Barros. Pelo contrário. Na humilhação da goleada, aprendi a beleza original do futebol, tal como o mestre o ensinava: onze contra onze e uma bola que é redonda. O resto é treta.

Hoje, uma nova raça de colunistas, comentadores, ex-treinadores-comentadores e ex-comentadores-treinadores, todos paineleiros enfim, quer fazer-nos acreditar que o futebol é praticamente uma ciência oculta, só percebida por uns poucos predestinados que, modéstia à parte, são eles próprios. E inventam palavras e expressões para complicar o que é simples. E já não há bola nem futebol. Eles, que sabem inglês, "inventaram" o jogo. O jogo. Pois, pela parte que me cabe, parabéns à prima. Sou um simples já com razoável uso. E tenho é saudades de ouvir o Nelinho a falar de bola. De bola simplesmente.

Caminho 340

Foto Hernâni Von Doellinger

Ruy Barata 4

Ode

Os dedos contam as ondas,
os minutos talvez,
jamais o anelo.

Podes marcar a face disfarçada,
a barba,
os bens,
todos os sonhos,
mas escravos do real só te aceitamos
na tua farda de pêlos,
sangue
e ossos.

Quando recriarás a trança libertária,
o horizonte do mito,
o Deus negado,
a tela do perene e do intocável?

Quando libertarás a página e o relógio,
o ser distante que revel condenas
às arestas da ruga e aos frutos sazonados?

Quando
(deste olhar em diagonal ao espelho e à morte)
farás ruir ao peso de teu gládio
e ao sulco de teu grito
as taças do não ser,
o veneno da aurora,
as portas do visível,
e do invisível?

Ó jamais seremos sós perante a Fonte,
jamais seremos nós e a ti mostramos
o sorriso de "clown" que se reparte
em contorções de esperma,
tédio,
e ódio.

Jamais conservaremos o perfume e a liturgia,
e a hora que se esvai não justifica
este desabrochar em cálice e corola.

Não ser
(embora seja no retrato),
não ter
(para ao flagelo condenar-se),
não sentir o chamar do céu porque beleza
e memória de ausências povoada.

Estamos sós,
bem sei,
e como é noite
arrancas o teu mundo no arbitrário,
e a poesia morde o que não é.

Quem te susteve o braço suicida:
a ode ou o catecismo?
Quem te ligou à sorte deste povo:
o sonho ou a promissória?
Quem te fez espalmar a mão como inocente
e a cabeça baixar como culpado?

Ó tempo,
ó dimensão do exílio e da orfandade,
e se não digo eterno,
quase eterno,
deixai toda esperança
"voi che entratte".

"A Linha Imaginária", Ruy Barata


(Ruy Barata nasceu no dia 25 de Junho de 1920. Morreu em 1990.)

São João

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Pedro Oom 4

Idade sem razão

Os animais
cuja vivência
são as visitas
que todos temos feito
às girafas
ou o crocodilo
bastam para romper
a fascinação
idade
cartesiana
tanto
do direito
como do avesso

"Actuação Escrita", Pedro Oom

(Pedro Oom nasceu no dia 24 de Junho de 1926. Morreu em 1974.)

Estes romanos são loucos 3

Foto Hernâni Von Doellinger

Joaquim Manuel de Macedo 5

D. Carolina, pelo contrário, havia rejeitado dez braços. Queria passear só. Um braço era uma prisão e a engraçada Moreninha gosta, sobretudo, da liberdade. Ela quer correr, saltar e entender com as outras; agora adiante de todos, e daqui a pouco ser a última no passeio: viva, com seus olhos sempre brilhantes, ágil, com seu pezinho sempre pronto para a carreira; inocente para não se envergonhar de suas travessuras e criada com mimo demais para prestar atenção aos conselhos de seu irmão, ela está em toda a parte, vê, observa tudo e de tudo tira partido para rir-se: em contínua hostilidade com todas aquelas que passeavam com moços, de cada vista d'olhos, de cada suspiro, de cada palavra, de cada ação que percebia tirava motivo para seus epigramas; e, inimigo invencível, porque não tinha travo por onde fosse atacado, era por isso temido e acariciado. Deixemo-la, pois, correr e saltar, aparecer e desaparecer ao mesmo tempo; nem à nossa pena é dado o poder acompanhá-la, que ela é tão rápida como o pensamento.

"A Moreninha", Joaquim Manuel de Macedo 

(Joaquim Manuel de Macedo nasceu no dia 24 de Junho de 1820. Morreu em 1882.)

A ver navios 130

Foto Hernâni Von Doellinger

Lino Guedes

Novo rumo

Negro preto cor da noite,
nunca te esqueças do açoite
Que cruciou tua raça.
Em nome dela somente
Faze com que nossa gente
um dia gente se faça!

Negro preto, negro preto,
sê tu um homem direito
como um cordel posto a prumo!
É só do teu proceder
Que, por certo, há de nascer
a estrela do novo rumo!

Lino Guedes

(Lino Guedes nasceu no dia 24 de Junho de 1897. Morreu em 1951.)

Caminho 339

Foto Hernâni Von Doellinger

José Luis Sucasas

A confesión do criado Ensión

Ía camiño da taberna e xa dende lonxe dexerguei o vulto dun home arrimado á parede, preto da porta de entrada. Cando cheguei á súa altura comprobei que non o coñecía de nada e roñei un "bo día" de cortesía. "Home, don Suqui! Xa pensei que non ía aparecer hoxe por aquí!" O home escachou coa risa, semellaba que deleitado polo meu abraio e desconcerto. Estaba sentado nunha caixa de gasosas baleira. Era coma se agardara por min e había un aire de fazaña cumprida no donaire co que me saudou. Quitando o sombreiro, abanouno comicamente en requintado aceno e deseguido volveuno poñer, facéndome un saúdo militar. Co lombo arrimado á parede e a carranchapernas sobre a caixa, semellaba ir a cabalo dunha besta. Pregunteille se nos coñeciamos. Díxome que non, pero que aínda estabamos a tempo. "Invítote a un café e falamos do bispo Dolfo", engadiu.
[...]

José Luis Sucasas, em Praza Pública

(José Luis Sucasas nasceu no dia 24 de Junho de 1959. Morreu em 2017.)

Lugares-comuns 540

Foto Hernâni Von Doellinger

Vicentina de Carvalho

Sorvi sequiosa a taça do prazer,
só lhe sentindo o bem que me sabia,
sem a preocupação de conhecer
o mal que ela, esgotada, me traria.

Desprezando o futuro, quis viver
o presente, que alegre me sorria,
sem nunca imaginar e sem prever
quanto custa um momento de alegria.

Logo, porém, o travo da amargura
mudou-me o riso em lágrima dorida,
pois a felicidade não perdura.

Só então percebi, arrependida,
quanto, por um instante de ventura,
hei de ficar pagando toda a vida.

Vicentina de Carvalho

(Vicentina de Carvalho nasceu no dia 24 de Junho de 1890. Morreu em 1954.)

Quando o Zecão de Fafe bateu no boxeur do Porto

Foto Hernâni Von Doellinger

Guardo gratíssimas recordações de São Clemente de Silvares. No Ademar, tasco praticamente gourmet e tão caro quanto excelente, com a ramadinha à porta e lá dentro o vinho a refrescar no poço, eu costumava encontrar o Zé Cão, que tinha trabalhado com o meu pai na Fábrica do Ferro e era o homem mais alto do mundo. Pelo menos era o homem mais alto de Fafe e arredores, e não há mundo melhor do que aquele. O Zé Cão, sentado, os joelhos batiam-lhe nos queixos. Era altíssimo, pele e osso, vagaroso, comovido, desengonçado, gentil, decilitrado, só, pobre, criança em corpo descomunal, com uns sapatões de palhaço e sempre agarrado à caneca de verde tinto, que naquelas mãozonas mingava até parecer uma xícara de casinha de brincar. Mãos hirsutas, nodosas e honestas. O Zé Cão era um homem com zê grande...
O Valença, uma das glórias do futebol local, gostava de se meter com o Zé Cão. Na verdade, o Valença gostava de se meter com toda a gente, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas vindas ao Porto, ao Royal e ao Derby, para aliviar o tesão a preço combinado, e daquela ocasião em que ele teve de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério - a piada a espremer era mesmo fazer o Zé Cão dizer "boxevista" -, na parte de cima da Ponte de Luís I, exactamente por causa do putedo. E o Zé Cão ganhou. O Zé Cão fazia os gestos como foi, a mando do Valença, disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, era um campeão sem sair do seu canto, a lutar por merecer mais um quartilho que uma alma caridosa lhe pagasse...
O Zé Cão de São Clemente, o nosso gigante bom... E acabo de pensar que nem é nada Zé Cão: para os devidos e legais efeitos, passa doravante a ser Zecão, de Zeca grande, tão grande como o seu imenso coração.

P.S. - Recupero aqui a segunda parte do texto "Roubaram o sino da igreja", que escrevi e publiquei no dia 8 de Abril de 2012. Fiz meia dúzia de alterações.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Caminho 338

Foto Hernâni Von Doellinger

Xaquín Lorenzo

A voz enredos ten na Galiza dous valores: úsase xeralmente pra indicar algo de pouca importancia e sen transcendencia; cando se fala de froita, por exempro, os nosos labregos acostuman a decer: "ises son enredos de rapaces".
En sentido máis restrinxido, un enredo é un xoguete, é decer, un artiluxio co que os nenos satisfán a sua necesidade de ocupar o tempo imitando no posible ás persoas maiores. O mesmo significado ten asimesmo a palabra brinquedo (de brincar = saltar, xogar). A anterior fórmase de enredar, do mesmo valor que brincar. Chámanse tamén os xoguetes ixolas, de onde ixoleiro = mañoso.
O xoguete non ten fronteiras xeográficas nen cronolóxicas; en tódolos pobos e en tódalas épocas móstrasenos a existencia dista industria infantil.
A única diferencia que se pode establecer antre uns enredos e outros como fundamental é a que existe antre o campo e a cidade.

 [...]

"Enredos", Xaquín Lorenzo

(Xaquín Lorenzo nasceu no dia 23 de Junho de 1907. Morreu em 1989.)

A ver navios 129

Foto Hernâni Von Doellinger

Nilo Aparecida Pinto

Das dores que o tempo aguça,
a mais triste eu desconfio
ser a da mãe que soluça
junto de um berço vazio...

Nilo Aparecida Pinto

(Nilo Aparecida Pinto nasceu no dia 23 de Junho de 1915. Morreu em 1974.)

Fafe apresenta 2.ª Feira de Teatro de Bonecos


Segunda edição da Feira de Teatro de Bonecos e Formas Animadas, em Fafe, dias 28, 29 e 30 de Junho (quarta, quinta e sexta da próxima semana). Bonecos, marionetas, fantoches e formas animadas - memórias refrescadas dos velhos robertos das nossas feiras e praças. Mais de trinta espectáculos nas mãos de mais de vinte companhias de teatro de diversos países. Outra informação, aqui.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Estes romanos são loucos 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 43

Os meus três primeiros casamentos
Os meus três primeiros casamentos correram todos muito bem. Foram, por ordem de entrada, o casamento do meu padrinho e tio Mérico com a minha tia Laura, o casamento do meu tio Zé da Bomba com a minha tia Lena e o casamento da minha irmã Nanda com o meu cunhado Álvaro. Depois dos meus três primeiros casamentos, fui evidentemente a outros, incluindo ao meu, que também não desfazendo. E é a vida...

O caralho é o metro-padrão português
Contente como o caralho, rico como o caralho, bom como o caralho, gordo como o caralho, tolo como o caralho, distraído como o caralho, fodido como o caralho. O caralho é o termo de comparação que o português tem sempre à mão... ou na ponta da língua - consoante. É o nosso metro-padrão. E devia estar guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

P.S. - Se não acharem bem, para mim é igual ao litro...

O penetra
Apareceram todos: o Sr. Moura, o Sr. Bragança, o Sr. Almeida, o Sr. Maia, o Sr. Castelo Branco, o Sr. Guimarães, o Sr. Paredes, o Sr. Abrantes, o Sr. Monchique, o Sr. Évora, o Sr. Braga, o Sr. Lamego, o Sr. Leiria, o Sr. Almada, o Sr. Viana e o Sr. Baião. Eram um grupo bastante homogéneo e deveras representativo. Inesperadamente apareceu também o Sr. Antunes. É preciso ter lata...

A toda a parte chegam os vampiros
Metido sorrateiramente na caixa de correio da porta de casa, um prospectozinho 21x10 em couchê fatela escrito dum lado só. Pergunta, em letras garrafais, vermelhas, "Precisa de dinheiro?" e, ainda enorme mas a preto, "Tem imóvel?"... E passa a explicar, em caracteres mais recatados: "Mesmo com penhoras, dívidas fiscais ou problemas bancários, temos a solução! Contacte-nos. Resolvemos em 48 horas. Análise gratuita". Seguem-se dois números de telemóvel, e mais nada. Ainda há gente boa, graças a Deus...

P.S. - Para ouvir, Zeca Afonso.

Um quarto para as dez
Faltava um quarto para as dez. Mais exactamente, uma camarata...

Palavrosismo
- Espero e desejo?
- Sim. E faço votos e é o que lhe estimo...

De longa data
Vinte e quatro de Novembro de mil novecentos e cinquenta e quatro.

Com papas e bolos
- O senhor é um bocado mentiroso, não é?
- Minto com quantos dentes tenho...
- E são assim tantos?...

Deplorável
- Lastimável ou lamentável?
- Plangente...

Caminho 337

Foto Hernâni Von Doellinger

Antonio Fernández Pérez 2

A partir deste momento non necesito tomar apuntes das leccións ás que veño asistindo na Escola Politécnica de Maipú. A miña amiga Tota Padín ofreceume o gravador electrónico que ela xa non necesita. Así que o meu caderno de follas raiadas, que eu pensava encher con apuntes de literatura arxentina, podo utilizalo desde hoxe para ir anotando nel as contraposta impresións que a presencia dun enigmático viaxante de comercio nos causou e nos continúa causando a partir da hora en que apareceu na nosa casa feito un coitadiño.

"Crónicas de Onte e de Hoxe", Antonio Fernández Pérez 

(Antonio Fernández Pérez nasceu no dia 22 de Junho de 1909. Morreu em 1999.)

Quando o calor aperta

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 20 de junho de 2017

Anísio Mello

Rosinha indo pro céu

Em vida Rosinha passava pela rua
boinha boinha
olhava sempre o amanhã que deveria ser melhor.
Os olhares malandros do rapazil
imaginavam coisa
sonhavam Rosinha nuinha nuinha
gestos lentos,
corpo moreno de amendoim
olhos de amêndoa doce,
lábios com gosto de beijo.
E Rosinha nuinha nuinha
passeava de leve no olhar da matula
que não se cansava de ver Rosinha
- a que morrera ontem -
indo pro céu
tão pura, 
tão linda
nuinha nuinha nuinha...

Anísio Mello

(Anísio Mello nasceu no dia 21 de Junho de 1927. Morreu em 2010.)