segunda-feira, 31 de agosto de 2020

E haverá filarmónicas sem filarmónicos?...

Foto Hernâni Von Doellinger

Os apaixonantes
Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, na rua, por respeito. Trazem na carteira o calendário dos concertos. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor. O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser vistos numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha. Se por caso os vir, respeite-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. No dia em que desaparecer o último apaixonante, as filarmónicas também não ficam cá por muito mais tempo...

O boleto
O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número na procissão mas "ainda não ganhavam".
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito.
Posso ter inventado esta memória, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E que se segue? Não sei porquê (sei, sei!), a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

Vinho, como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para disfarçar o pique a vinagre...

P.S. - Textos publicados originalmente nos dias 2 de Setembro de 2011 e 18 de Março de 2020, respectivamente. A correlação de forças entre as duas bandas fafenses já não será, porventura, a que era, mas isso não importa para aqui. Passa-se é que hoje, 1 de Setembro, celebra-se o Dia Nacional das Bandas Filarmónicas. E portanto fon, fon, fon!
E não se esqueçam: fafense ou merenda devem ler-se e dizer-se sempre fafénse ou merénda. E sémpre também...

Sobre rodas

Foto Hernâni Von Doellinger

António Lobo Antunes 3

Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto

Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste,
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor, a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
Espiei da janela
Rosto de aguarela
Coxa em semifusa
Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada


António Lobo Antunes

(António Lobo Antunes nasceu no dia 1 de Setembro de 1942)

Também faço isto muito bem 476

Foto Hernâni Von Doellinger

Procuro animal de estimação que me adopte

Os esfomeados, os rotos e os nus, os desempregados de curta, média e longa duração, os tesos por nascimento e os falidos, os velhos mijados e demenciados, os desdentados, as úlceras varicosas, os bêbados e os violentos, os sós, os caloteiros certificados, as prostitutas evidentes, os mendigos profissionais ou simpatizantes, os sem-abrigo, os sem-reforma e os sem-nada, os pretos de todas as cores e os ciganos de uma forma geral já podem entrar nos restaurantes se forem levados por animais de estimação. É de lei. Ficou resolvido na Assembleia da República em Outubro de 2017, há que séculos! E eu ainda não vi nada...

domingo, 30 de agosto de 2020

Abaixo de Braga

Foto Hernâni Von Doellinger

Mandaram-no abaixo de Braga e ele foi. Quando chegou a Celeirós, telefonou a perguntar se já chegava.

P.S. - Tem nada a ver com o assunto, mas a primeira pedra do actual Santuário do Sameiro, que por acaso até é bem acima de Braga, foi lançada e benzida, não sei se por esta ordem, no dia 31 de Agosto de 1890. O Santuário do Sameiro agora faz-me rir, porque me lembra a cantiga "Óculos de sol" da Natércia Barreto, que eu julgava que era a Madalena Iglésias. Esta, cá está, é uma private joke, que só eu, o presidente da Confraria do Sameiro, o reitor do santuário e talvez mais meia dúzia de pessoas, se tanto, catrapiscamos...

Vida de cão 517

Foto Hernâni Von Doellinger

Diz-me Baudelaire, meu amor!...

- Oh! meu amor...
- Oh! minha querida...
- Diz-me Baudelaire, meu amor...
- Baudelaire, meu amor, minha querida....
- Oscula-me, meu amor...
- Osculando, minha querida...
- Amplexa-me, meu amor...
- Amplexando, minha querida...
- Afaga-me, meu amor...
- Afagando, minha querida...
- E agora coita-me, meu amor...
- Coitando, minha querida...
- Oh! meu amor, arrebenta-me toda...
- Arrebentando, oh! minha querida, mas era preciso desconversar?...

P.S. - Publicado originalmente no dia 15 de Maio de 2015. Charles-Pierre Baudelaire, poeta boémio, dandy, flâneur e teórico da arte francesa, morreu no dia 31 de Agosto de 1867.

Offshore, se fashavore 266

Foto Hernâni Von Doellinger

E. M. de Melo e Castro (1932-2020)

Mais difícil é falo

mais difícil é falo
que falá-lo


mais difícil é língua
do que lua


mais difícil é dado
do que dá-lo


mais difícil vestida
do que nua


mais fácil é o aço
do que achá-la


mais fácil é dizê-la
que contê-la


mais fácil é mordê-la
que comê-la


mais fácil é aberta
do que certa


nem difícil nem fácil


nem aço nem licor
nem dito nem contacto

nem memória de cor

só mordido só tido
só moldado só duro
só molhada de escuro
só louca de sentido


fácil de falá-lo
difícil de contê-lo
o melhor é calá-lo
o melhor é fodê-lo


"Sim... Sim!", E. M. de Melo e Castro

(E. M. de Melo e Castro nasceu no dia 19 de Abril de 1932. Morreu ontem.)

A minha abençoadora das 7h30, não sei dela!...

Foto Hernâni Von Doellinger

Gosto que me digam "Até amanhã, se Deus quiser". Gosto. Gosto que me digam "O Senhor te abençoe". Gosto. Gosto que me digam "Vai com Deus". Gosto. Acredito em bênçãos, mas execro as benzeduras. Como acredito na oração, mas dispenso as rezas. Acredito. Dispenso intermediários, agentes, representantes, vendedores e empresários - eu e Deus é assunto nosso, ligação directa. Dispenso também os novos profetas e as novas profetisas, o Facebook, o Instagram, o Twitter, as e os influencers, as  mensagens em cadeia e às vezes a opinião da Fernanda Câncio no DN. Dispenso.
Gosto de pedir a bênção, gosto que me abençoem. Eu pedia a bênção beijando a mão aos meus avós da Bomba e aos meus avós de Basto. Pedia a bênção ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam.
Fiquei traumatizado para toda a vida, como diria o outro que disse Foucault.
Gosto tanto de ser abençoado, que a minha mãe já sabe: as nossas despedidas só estão completas quando ela me diz "O Senhor te abençoe! Fica com Deus!", e eu digo "Obrigado!", sem saber onde meter as mãos e as lágrimas. Pelo sim e pelo não, tusso.

Gosto de bênçãos, acredito nas bênçãos. Porque sim, e não por respeito ou porque me ensinaram ou obrigaram em pequenino. Sou interesseiro. Preciso de bênçãos como de pão para a boca, as bênçãos fazem-me tanta falta como o ar que respiro, como água no autoclismo. Sou abençoado por ter um amigo que há anos me abençoa sem juros e não acredita em bênçãos, e o que é que isso interessa? Pelo contrário, a Senhora Dona Maria Amélia, que ali vai no retrato, ligeira quanto pode, abençoa-me todos os dias cerca das sete e meia da manhã. Madrugo de propósito para encontrá-la na minha caminhada diária pela marginal Matosinhos-Porto.
A minha abençoadora das 7h30 vem de Gondomar e àquela hora já está prestes a apanhar o(s) autocarro(s) de regresso a casa. Não consigo imaginar a que horas é que ela sai da cama. Tem as pernas vergadas pela idade, talvez 84 anos, não sabe bem, e pela vida, dez filhos, nem todos mansos, muito trabalho e desgostos mais do que a conta. Vê-me, levanta o braço direito e diz-me, num largo e comovente sorriso, "Bom dia, vá com Deus!"
E eu fico pronto. Claro que a Senhora Dona Maria Amélia diz "Bom dia, vá com Deus!" a toda a gente. A maioria não liga, ignora-a ou sorri-se dela, pior para eles e mais sobra para mim.

Quando os meus, família ou amigos, saem cá de casa, digo-lhes sempre, à porta, "Vai com cuidado!", e repito quantas vezes forem precisas até obter uma resposta. Um "Sim!" ou um "Tá bem..." sossegam-me. Digo "Vai com cuidado!" porque vi muito A Balada de Hill Street e, por outro lado, sinto que não tenho estatuto para dizer "Vai com Deus!" Mas eles sabem que, nas entrelinhas do coração, o que lhes estou realmente a dizer é "O Senhor te abençoe, vai com Deus!" e, sobretudíssimo, "Até amanhã, se Deus quiser"...

P.S. - Texto publicado originalmente no dia 31 de Outubro de 2018, sob o título "Até amanhã, se Deus quiser". Entretanto. Eu e a minha abençoadora das 7h30, os nossos horários desirmanaram-se, coisas da vida, e já não nos encontramos há quase dois anos, para meu grande desgosto e prejuízo, porque as bênçãos, já disse, fazem-me falta. Sem ter perguntado, soube aqui há meses que a boa senhora nunca mais foi vista às horas do costume nos sítios do costume, entre Matosinhos e a Foz. Desapareceu. Primeiro fiquei preocupado, mas depois resolvi pensar que a Senhora Dona Maria Amélia terá aproveitado Agosto para meter uns dias de férias, porque isto de desejar o bem dos outros também cansa. É isso, a minha abençoadora está de férias. Setembro é já depois amanhã e ela voltará, mais forte do que nunca, à moda dos jogadores de futebol, para me abençoar como manda a sapatilha. Se Deus quiser.

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Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 29 de agosto de 2020

Foi comprar tabaco e não voltou

Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Todos os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia foi e não voltou. 

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Dezembro de 2018. Agora a sério, ou à séria, se lido em Lisboa: hoje, 30 de Agosto, é Dia Internacional dos Desaparecidos, também designado Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados.

Velhas velas belas

Foto Hernâni Von Doellinger

Simplesmente João

Se há um consenso nacional é este: de presidente da câmara para cima, os nossos políticos são todos doutores. Doutores ou engenheiros, mas doutor engloba tudo, porque dá muito mais jeito e tem outro sainete. E como gostam eles de ser doutores, mesmo que não sejam. E como gostam eles que lhes chamem doutores, e nunca se desmancham. E como gostam eles de se tratarem uns aos outros por "ó doutor", naquele mundo que é só deles e de onde não conseguem sair. E, ipso facto, o primeiro nome deles fica a ser Doutor, não há volta a dar.
Mas conheci um que destoava, e apenas um. Uma honrosa excepção, de que hoje me lembrei, nem sei bem porquê. Para que conste, chama-se João Soares, tem 62 anos, é ex-eurodeputado, ex-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ex-candidato à liderança do PS contra José Sócrates, deputado à Assembleia da República e presidente da Assembleia Parlamentar da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).
Às vezes, por dever de ofício, tive de lidar com a fauna política. E quando contactei João Soares com o, achava eu, indispensável "senhor doutor" na ponta da língua, levei logo para tabaco (se não me engano, o assunto até era mesmo esse, tabaco). "Não me chame doutor, eu não sou doutor", interrompeu-me ele, para princípio de conversa. Fiquei à rasca. - Ó diabo, já fiz merda. O gajo será engenheiro? Professor doutor? Professor doutor arquitecto? - pensei. E disse: - Mas se não lhe chamo doutor, então como é que eu o trato, senhor doutor?
A resposta que então recebi, e que me serviu de emenda daí para a frente, foi exactamente esta: - João. Trate-me por João. É o meu nome.

(Por outro lado havia aquele conhecido presidente de câmara aqui da região que se fazia e faz passar por engenheiro e não era nem é engenheiro. Mas assinava Engenheiro e impunha que lhe chamassem Engenheiro. Investiguei a coisa para o jornal 24horas e contactei a autarquia solicitando esclarecimentos. O assessor do Senhor Engenheiro foi incumbido de me pagar um almoço para que a notícia não saísse. E a notícia não saiu. Mas apenas porque o meu jornal me pôs no olho da rua, sem aviso nem vergonha. Não tive tempo...)

P.S. - Publicado originalmente (e sem o último parágrafo) no dia 1 de Fevereiro de 2012. Entretanto o João deixou de ser deputado do PS e presidente da Assembleia Parlamentar da OSCE, passou como uma bala por ministro da Cultura e faz hoje 71 anos. Parabéns, João!

Acorda. Vem até ao mar.

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Microcontos & outras miudezas 223

Intervenção siderúrgica
Submetido de urgência a uma intervenção siderúrgica, não sobreviveu. A língua portuguesa é deveras traiçoeira...

Não quer dizer nada
- Este ano o Silva não vem...
- Vem, vem! Vem todos os anos!...
- Mas o Silva morreu em Março.
- E o que é que isso tem a ver?

Na marmita
Depois de ter inventado uma marmita, Papin fez 54 jogos e marcou 30 golos pela selecção francesa.

Por outro lado. Denis Papin, o tal da panela de pressão, era uma homem muito à frente, avançado como o outro: ele premuniu que um dia no futuro, talvez apenas três ou quatro séculos adiante, quer-se dizer agora, todos nós em todo o mundo levaríamos na marmita. E realmente.

Um conseguimento
Até aos cinquenta anos vivi e experimentei - e devo confessar que não foi grande coisa. A partir dos cinquenta anos comecei então a vivenciar e a experienciar - e realmente não há comparação...

O segredo está na pasta
Nem no molho, nem na massa. O segredo está na pasta. Uma pasta de segurança, diplomática, confidencial, fechada a sete chaves.

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Foto Hernâni Von Doellinger

Os Sãos Joões

O azar do nosso São João, o Baptista, é não ter sido o outro, o Evangelista. O nosso São João era um bocado esquisito mas muito homem: profeta ambulante, vestia-se de peles de camelo, usava um cinto de couro, comia gafanhotos e mel e convivia muito bem com cabritinhos e cabritinhas. Clamava no deserto. Um deserto que inopinadamente tinha um rio chamado Jordão como o cinema de Guimarães, e foi ali mesmo, no rio que não no cinema, que João, o nosso, inventou o baptismo e baptizou o primo Jesus. O nosso São João era a Ana Gomes daquele tempo. Punha a boca no trombone sem pauta nem contenção e isso haveria de custar-lhe a cabeça, ainda nem chegara aos trinta anos. Os amigos do Baptista tinham uma certa vergonha dele e muito gosto na própria cabeça, e por isso deram-lhe o nome de código de O Precursor, para que não se soubesse de quem falavam quando falavam. Hoje em dia, o analfabetismo instalado chama-lhe O Percursor.
O São João que não é nosso, o Evangelista, era mais manso e teve uma vida flauteada. Morreu velho e de morte natural. Filho de Zebedeu, irmão de Tiago Maior e eventualmente sócio de André e Pedro no negócio das pescas, seria o mais novo dos doze apóstolos do Nazareno, segundo consta. De pescador quiçá analfabeto, fez-se teólogo e escritor. De evangelho e epístolas, apocalíptico então. Discípulo dilecto, João, o que não é nosso, era aquele a quem Jesus amava, o que se lhe aninhou no peito durante a Última Ceia, está nos retratos. O assunto continua a prestar-se, ainda hoje, às mais diversas e variadas.

No meu tempo de Fafe, quanto a santos populares, o São João era um hospital muito grande no Porto, felizmente com a camioneta da João Carlos Soares a passar-lhe à porta. Tínhamos, isso sim, o Santo António da minha rua, o São Pedro da Recta e creio que ainda frequentei o São Pedro da Granja. Quanto ao resto, deixe estar, que está bem.
O mais que se sabia do São João eram uns versinhos muito antigos que certamente pertencem ao cancioneiro fafense e era de norma cantar à mesa na noite de passagem de ano, quando já estavam todos mais para lá do que para cá. Assim fazíamos na nossa família. Insisto, para quem não é de Fafe: fafense deve ler-se e dizer-se fafénsse. E os versinhos contavam assim:

O São João, ó dlindlindlim,
tem um carneiro, ó dlandlandlam,
com dois guizos no pescoço.
E quando toca, ó dlindlindlim,
o guizo fino, ó dlandlandlam,
também toca o guizo grosso.

P.S. - A Igreja Católica e outras tendências cristãs celebram hoje, 29 de Agosto, o Dia do Martírio de São João Baptista, ou a Decapitação de João Baptista, ou a Decapitação de São João Baptista, ou a Decapitação do Anunciador, ou a Decapitação do Precursor. Quer-se dizer: festeja-se a também chamada degolação do nosso São João. Valha-nos Deus!...

Avoando, avoando...

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

É só fazer as contas

Tinha mais olhos que barriga. Era portanto uma pessoa normal.

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Foto Hernâni Von Doellinger

Era uma vez um jornalista cultural

Homem de cultura, colaborador em jornais e televisões, nome com assinatura reconhecida nos melhores suplementos de artes e letras, inclusive blogues, Bonifácio de Montalvar foi ao cinema de reprise. Viu "Guerra e Paz", de King Vidor, com Audrey Hepburn, Henry Fonda, Mel Ferrer e o italiano Vittorio Gassman, mais uns tantos. Gostou do enredo, ou da estória, como preferia dizescrever. E declarou no foyer da despedida, alto e bom som, para que ficasse lavrado em acta: - Isto, sim, dava um bom livro. Como é que ninguém se lembrou?...

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Setembro de 2017. O escritor russo Leão Tolstói, autor de "Ana Karenina" e "Guerra e Paz", nasceu no dia 28 de Agosto de 1828.

O calçãozinho vermelho

Foto Hernâni Von Doellinger

A miúda era gira. Pelo menos vista por trás. Vestia um calçãozinho vermelho e levava dois cães pela mão, cada um por sua trela. Não sei de raças de cães, só distingo duas: a raça grande e a raça pequena. Estes dois eram dos grandes, dos que se metem comigo.
A miúda era gira, dizia eu, e preparava-se para entrar no Parque da Cidade do Porto. Via-se que andava a apalpar terreno, devia ser a sua primeira vez. E decerto foi por isso que fez o que eu nunca tinha visto ninguém fazer: parou a ler o painel com as "Normas de Circulação de Cães". Pelo tempo que demorou, deu para perceber que leu toda a informação, de uma ponta a outra. Depois pareceu-me que verificou se estava tudo ok - olhando por si abaixo, para as trelas e para os cães -, e só então é que avançou. Apeteceu-me aplaudir! Bater palmas à atitude cuidadosa, ao respeito pelos outros, à lição de cidadania, ao calçãozinho vermelho.
Eu próprio fiquei curioso e fui dar uma vista de olhos ao painel. Há um igual em cada entrada do Parque. O painel explica sumariamente o que são "cães potencialmente perigosos" e "cães perigosos", ajuda a identificar, com fotos e notas explicativas, as "raças potencialmente perigosas" e, no seu corpo central, alinha as quatro normas fundamentais a observar. Que são:

"1. É obrigatório para todos os cães o uso de coleira ou peitoral, no qual deve estar inscrito, de forma visível, o nome e morada ou telefone do seu detentor.
2. Os cães devem circular com trela e sempre acompanhados pelo seu detentor.
3. Os cães perigosos ou potencialmente perigosos devem circular no Parque da Cidade acompanhados pelo seu detentor, maior de 16 anos, e com uma trela curta até 1 metro, que deverá estar fixa à coleira ou peitoral e açaimo funcional.
4. Os detentores dos animais deverão, em qualquer deslocação, fazer-se acompanhar do boletim sanitário dos animais com os quais circulam." 

Infelizmente os cães não sabem ler, e isso faz diferença a muitos donos.

P.S. - Publicado originalmente no dia 29 de Março de 2012. No dia 28 de Agosto de 2008 o Governo português aprovou uma lei que responsabiliza criminalmente os donos de cães potencialmente perigosos em caso de ataque.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 193

Foto Hernâni Von Doellinger

A boceta de Pandora

Caixa do Evaristo
Quando abriram a caixa de Pandora, estava lá dentro o Evaristo. Foi um escândalo!

A Caixa: de Pandora a Paulo Macedo
Pandora era a primeira mulher, a mulher perfeita, criada por Hefesto e Atena, com a mãozinha de todos os outros deuses, cada qual conferindo-lhe um dom, sob régua e esquadro de Zeus. Pandora era "a que tudo dá", "a que possui tudo", "a que tudo tira". Pandora foi feita de encomenda para agradar aos homens. Depois tomou conta da Caixa, ou da Boceta, como dizem os cultos e alguns depravados, e hoje em dia é Paulo Macedo.

P.S. - O cineasta alemão Georg Willhelm Pabst, realizador de "Lulu" e de "A Boceta de Pandora", nasceu no dia 27 de Agosto de 1885. Há quem diga 25 de Agosto.

Music was my first love 76

Foto Hernâni Von Doellinger

De tanga

Quando eu era pequeno queria ser grande. E quando fosse grande queria ser palhaço, maquinista de comboio, famoso, padre, polícia à paisana, pianista, advogado, jornalista, actor, bombeiro, jogador de futebol, tarzan, presidente da república, gangster, papa, escritor, pastorinho de fátima na reforma, herói, caruso, ciclista, santo e piloto de avião de guerra como o major alvega. Já há muito que sou grande e, francamente, sou tarzan e é um pau.

P.S. - Publicado originalmente no dia 17 de Dezembro de 2011. A primeira aventura de Tarzan, romance de Edgar Rice Burroughs (1875-1950), foi lançada no dia 27 de Agosto de 1912. Título: "Tarzan dos Macacos".

A sombra cão

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Private Joke

Joke fez toda a sua vida de adulto no Exército americano, mas nunca passou de soldado raso. Private Joke, assim era conhecido entre camaradas.

Também faço isto muito bem 472

Foto Hernâni Von Doellinger

António Reis 4

Também eu trago a saudade

Também eu trago a saudade
nos sentidos

se dissesse que não
era mentira

Também eu perdi um cão
casas
rios

Mas hoje
tenho mulher
amigos
e uma saudade mais real
é que me inspira


"Novos Poemas Quotidianos", António Reis

(António Reis nasceu no dia 27 de Agosto de 1927. Morreu em 1991.)

Caminho 828

Foto Hernâni Von Doellinger

Florencio Delgado Gurriarán 6

Enterro

Doces beizos, cadaleito
para os meus bicos gardar;
a branca lousa dos dentes
para na cova os pechar;
meniñas, fachóns dourados
para o cortexo alumar;
guedella, bágoa de mel
para por eles chorar;
o rouxinol da túa voz
para o responso cantar.
Dese xeito:


cóma non hei de matar
os meus bicos, na túa boca,
se bon enterro han levar?


"Cantarenas", Florencio Delgado Gurriarán 

(Florencio Delgado Gurriarán nasceu no dia  27 de Agosto de 1903. Morreu em 1987.)

Aponte a ponte!

Foto Hernâni Von Doellinger

O meu cão

Eu tenho um cão. É um cão imaginário. O meu cão chama-se Parkinson, porque quando quero chamar por ele nunca me lembro do seu verdadeiro nome que é Alzheimer. A raça do meu cão tem dias, vantagem de ser imaginário: às segundas é perdigueiro, às terças é labrador, às quartas é são bernardo, às quintas é pastor alemão, às sextas é dálmata e aos fins-de-semana é sobretudo rafeiro. O meu cão nasceu no país certo.
O meu cão fica-me muito em conta. Não come mas cala, dispensa vacinas e vitaminas, nunca vai ao veterinário, não precisa de casota nem de agasalhos para o Inverno, e só me custa o preço da trela. O meu cão conhece o dono e não morde a mão que não o alimenta. Se todos fôssemos cães assim, vínhamos mesmo a calhar ao Governo da Nação.
O meu cão faz-se muito bem de morto e corre atrás de qualquer merda que lhe atire. Só lhe falta falar. O meu cão não ladra às pessoas, não fornica as pernas transeuntes, não abocanha, não caga no passeio, não mija nos pneus do carro do vizinho, não tem pulgas nem chatos, nem anda por aí a emprenhar cadelas mais ou menos oferecidas. É como se não existisse. O meu cão é um exemplo de cidadão.
Já mo quiseram comprar e eu não o vendi. Foi um vendedor de ilusões. Oferecia-me um país inteiro sem pretos em troca do meu cão. Nã! Antes quero o cão. E os pretos!

P.S. - Publicado originalmente no dia 28 de Setembro de 2011 e agora apenas cirurgicamente adaptado. Hoje, 26 de Agosto, é Dia Mundial do Cão ou Dia Internacional do Cão, cãosoante.

Venham daí esses ossos!...

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Microcontos & outras miudezas 222

O cardeal inspector
No dia 20 de Agosto de 1912, portanto há cento e oito anos praticamente redondos, rezam as efemérides oficiais que o Papa nomeou "inspectore" o cardeal patriarca de Lisboa. Pelas minhas contas, e cuidado que eu não sou de fiar, o papa era Pio X e o cardeal patriarca era D. António I, aliás António Mendes Bello assim com dois éles. Leio no sítio da Fundação Mário Soares que, com esta medida, o Vaticano quis demonstrar que o Governo português cumpria com as obrigações da Concordata, não obstante a sua política anticlerical. Isto até pode estar tudo muito bem, e eu não acredito que esteja, mas incomoda-me como furúnculo nadegueiro que o nosso cardeal patriarca tenha sido promovido a inspector. A sério (à séria, se lido em Lisboa), inspector?! O cão Max, vá que não vá... o cardeal é que não! Como católico inteiro, posto que não consumidor, este é um velho desgosto que trago há que anos ferrado aqui dentro, in pectore.

Oh, my dicky ticker!
Eu tinha um cardiologista e visitava-o de quatro em quatro meses. Falávamos de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto. E media a tensão, o que é extraordinário! Deixei. Deixei também o urologista e fiquei-me apenas com o dentista de meio em meio ano. É a crise, é a vida. Um destes dias morro e vão dizer que foi por por causa de eu ter deixado de falar de jornais, de jornalistas, de política, de restaurantes secretos e fora de mão e sobretudo do FC Porto com o meu ex-cardiologista.

Combustível, vamos definir...
As pessoas metem gasolina de manhã, a caminho do emprego, e depois andam todo o dia com o combustível no depósito do carro. Eu acho um perigo!

Elvis não morreu, eu é que praticamente
"Cristo morreu, Marx também, e eu já não me sinto nada bem", dizia mais ou menos assim a famosa frase humorístico-panfletária das décadas de sessenta e setenta do século passado. Cristo morreu mas ressuscitou, Marx só não ressuscitou porque era materialista ateu e imprevidente, mas anda por aí como o nosso Santana Lopes, e eu, nesta historieta, não interesso para nada. Porém. Cultivo aqui no Tarrenego! uma comprovada teoria que se chama "Elvis não morreu e o 24horas também não". Assim. Elvis Presley morreu no dia 16 de Agosto de 1977. Ou, melhor dizendo, foi exactamente nesse dia que ele não morreu. Anda por aí, como Cristo, como Marx e como Santana Lopes. O jornal 24horas morreu oficialmente no dia 30 de Junho de 2010. Ou, melhor dizendo, foi exactamente nesse dia que ele não morreu. Também anda por aí: chama-se agora Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Sábado, Observador, Diário de Notícias, Sol, Record, A Bola, O Jogo e assim sucessivamente...

Também faço isto muito bem 471

Foto Hernâni Von Doellinger

Joaquim Cardozo 4

Visão do último trem subindo ao céu

[...]
As locomotivas na rotunda
Olhavam para a noite do pátio da noite, imóveis, silenciosas
- Molossos deitados, dóceis, esperando: os olhos apagados os faróis.

Qual seria, seria, qual dentre elas
A que conduziria aquele trem, aquele que era o trem
E o último seria?
Qual delas ouviria a voz do Senhor?

Quando houve um trilo no ar: uma luz brilhou
No ar noturno - carvão do dia -
E uma dentre todas sentiu, de repente,
O alento do calor;
Alento que se estendeu do fogo,
E que lhe veio em sangue ardente,
Em respiração rumorosa de brancos vapores.

Uma dentre elas
Que era preta, violentamente, luzidia;
Que era preta, vagarosamente preta;

Preta e lentamente e luzidia;
Avançando, transpôs o virador;
E foi!
Foi um touro selvagem a princípio
Depois se fez um boi pesado e manso
Correndo as linhas de trilhos: as fitas, os fios, os trilhos de linha.
À sua aproximação as agulhas se abriram -
Porteiras de um curral - furos do espaço, aberturas
Para distâncias possíveis... aberturas, costuras
De rápidas passagens em direções ocultas.
Pouco e pouco, mais pouco, pouco a pouco
Ao trem se atrela, ao trem ligando o engate, os freios
Ajustando... ao trem disposto ao longo
Da plataforma - platimorfa, platibanda, alegrete
Canteiro cultivado - florido de gente.
[...]


"Trivium", Joaquim Cardozo

(Joaquim Cardozo nasceu no dia 26 de Agosto de 1897. Morreu em 1978.)

A praia é nossa!

Foto Hernâni Von Doellinger

De Fafe, com muito gosto

Foto Hernâni Von Doellinger



(Atenção! De Fafe, com muito gosto foi também o título original do blogue que, desde Agosto de 2022, dedico exclusivamente à minha terra e que, agora chamado Fafismos, pode ser acompanhado aqui.)

Ao contrário (nunca se deve começar um texto com a expressão "ao contrário"), mas, como dizia, ao contrário de uns certos e determinados palermóides, fafenses ou nem por isso, que têm vergonha da Justiça de Fafe, eu não tenho. É verdade: tenho é muito orgulho. Gosto da lenda da Justiça de Fafe, acompanha-me desde que eu nasci, identifica-me pelo mundo fora, e até aprecio o monumento, embora o desejasse mais central. Já disse: a Justiça de Fafe é a metáfora folclórica de uma gente de paz que não gosta de levar desaforo para casa, ou que costumava não gostar. Nós, os fafenses (deve ler-se e dizer-se fafénses). O resto é treta, mais ou menos erudita. Geralmente menos. "Com Fafe ninguém fanfe" quer dizer, tão-só, com Fafe ninguém se meta. Porque, quem se meter, quem nos ofender de graça, recebe o troco, e que mal tem isso? E, no entanto, muito boa gente confunde, hoje em dia, este velho sentido de verticalidade com fazer justiça pelas próprias mãos. Não é nada disso. A Justiça de Fafe deve ligar-se, antes, à defesa da honra. A coça é semântica. É isto e mais nada. Nem luta de classes, nem administração de justiça privada, nem apologia da justiça popular, nem jogo do pau, nem fanfarronice, nem sacholadas, nem pistolas e navalhadas, nem Felizardos, nem bordoada por dá cá aquele copo. Tudo equívocos. As lendas (deve ler-se e dizer-se léndas) têm costas largas, de toda a conveniência (deve ler-se e dizer-se conveniéncia) para o caso em apreço, mas saber ler antes de escrever também nunca fez mal a ninguém, e sobretudo aos alegados historiadores. Não vamos mais longe. Podíamos ir à Porca de Murça, mas não vamos mais longe: deitemos os olhos a Guimarães, que após Arões é sempre ao baixo e sem portagens. A vaidade que os nossos vizinhos fidalgos têm na estátua de D. Afonso Henriques, esse gandulo que usava saias e batia na mãe! Ainda por cima, existiu mesmo, e a nossa Justiça de Fafe é só bazófia, invenção - mas é a coisa mais bonita a que nos podemos agarrar, para além da forca de Moreira do Rei, que também não consta... Os reis de Espanha vieram aqui atrasado a Portugal e o nosso presidente Marcelo (deve ler-se e dizer-se presidénte) levou-os a Guimarães e à estátua do tratante, do Afonsinho: a Letizia e o Felipe puseram-lhe flores. Em Fafe, a Câmara Municipal conhece o Monumento aos Mortos da Grande Guerra, o Monumento aos Combatentes da Guerra Colonial e o Monumento ao Bombeiro, conhece-os um dia por ano, e ignora durante o ano inteiro, todos os dias, o Monumento à Justiça de Fafe, que esconde quase em síncope, estúpida e militantemente, dos selectos visitantes, não vá dar na televisão. Se não fosse tão público e notório este asco, este ódio à Justiça de Fafe, suspeito que a Câmara já há muito lhe teria posto uma bomba pela calada da noite.
Não. O jogo do pau não é "uma das maiores tradições do concelho" de Fafe, ao contrário do que diz, por outro lado, a néscia propaganda autárquica. É tão tradição em Fafe como em Lisboa, em Trás-os-Montes, no Ribatejo, na Estremadura, no Algarve ou na Galiza. O jogo do pau é tão tradição em Fafe como a sueca, o futebol ou a malha, o esconde-esconde ou o dominó, que se jogam em todo o lado.
Não. O jogo do pau não foi inventado em Fafe, não deriva da Justiça de Fafe. A Justiça de Fafe é outra coisa, é lenda, lenda nossa, exclusiva, de honra, e, bem vistas as coisas, uma das poucas tradições genuínas do concelho de Fafe, que as há, como o nosso falar antigo, inimitável e pitoresco. Mas a autarquia fafense (deve ler-se e dizer-se fafénse), aflita de cosmopolitismo, embaraça-se com a nossa Justiça de Fafe, omite a nossa Justiça de Fafe, despreza-a, oblitera-a, e resolveu substituí-la por um pedregulho espetado no coração da cidade, Por Baixo da Arcada.
E no entanto a Justiça de Fafe lá está, que eu bem a vou visitar como quem vai a Fátima duas ou três vezes por ano. Lá está, escondidinha, um pouco acima, e, isto é que deve doer à Câmara, farta-se de jogar ao pau com os ursos...

Já agora. Militantemente deve ler-se e dizer-se militanteménte! O Monumento à Justiça de Fafe, da autoria de Eduardo Tavares, foi inaugurado no dia 23 de Agosto de 1981. Fez anteontem 39 anos, exactamente às 11 horas, dizem os registos. Estamos portanto em semana de comemorações. E certamente puseram-lhe flores...

Na minha rua passa o mar 88

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O segredo está na pasta

Nem no molho, nem na massa. O segredo está na pasta. Uma pasta de segurança, diplomática, confidencial, fechada a sete chaves.

Também faço isto muito bem 470

Foto Hernâni Von Doellinger

Maria Alberta Menéres 3

Inquieta chuva, inquieta me dispersa,
esquecida a tradição e o cansado som.
Dentro e fora de mim tudo é deserto
como se as ervas fossem arrancadas
ou se esgotasse a dor por que se chora.

Na grande solidão me basta, e a contemplo
para o sonho interior que me resolve!
Tão fácil é esperar, que já nem sinto
o que vem a dormir ou a morrer
na mesma angústia que o silêncio envolve.


"Cântico de Barro", Maria Alberta Menéres

(Maria Alberta Menéres nasceu no dia 25 de Agosto de 1930. Morreu em 2019.)

A família

Foto Hernâni Von Doellinger

Um país para o Guinness

Portugal tem o Maior Arroz de Lapas do Mundo, a Maior Aula de Judo do Mundo, a Maior Aula de Surf do Mundo, a Livraria Mais Antiga do Mundo, o Maior Sobreiro do Mundo, a Maior Sardinhada do Mundo, o Maior Assador de Castanhas do Mundo, a Maior Concentração de Motas Antigas do Mundo, o Maior Pão com Chouriço do Mundo, o Maior Número de Não-Mágicos a Fazer Um Truque de Magia Num Único Local, a Maior Largada de Bolas do Mundo, o Maior Castelo Insuflável do Mundo e um Megaprato de Bacalhau Dourado que é o maior do mundo, tudo devidamente homologado pelo Livro dos Recordes do Guinness.
Tem também, igualmente certificado, o Maior Andor do Mundo: costuma sair à rua na Aparecida, em Torno, Lousada, a meio de Agosto. O famoso andor mede de alto quase 23 metros, pesa tonelada e meia e é transportado por perto de cem homens. Há três anos, durante a procissão, o maior andor do mundo virou, caiu e feriu sete pessoas. Deus já se sentira incomodado com a Torre de Babel, e armou a confusão que se sabe, embora sem feridos a registar.
Eu se fosse aparecidense - aparecidense e festeiro - e também tivesse a vaidade de pôr o nome da terra no índice do Livro dos Recordes, seria porém mais modesto, terreno e prático do que os construtores em altura. E não ia muito longe. Ficava-me ali pelas redondezas da capela e chamaria os do Guinness para provarem o cabrito assado no forno da Pita Arisca. Evidentemente o melhor cabrito assado do mundo, estou farto de dizer, e não é preciso usar capacete.

(Na Aparecida, por alturas da romaria, compram-se nas tendas de feira sapatos muito jeitosos e vitalícios para se ir a casamentos de sobrinhos.)

P.S. - Publicado originalmente no dia 13 de Agosto de 2019. Por estes dias é em Teivas, Viseu, que se trabalha para o Guinness. Uma associação local está a confeccionar um vestido muito colorido e muito rodado, com oito metros de altura, para ser exibido em público a 21 de Setembro, feriado municipal. É o Portugal dos pequeninos mas em grande!

Mobiliário urbano (propriamente dito) 192

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 23 de agosto de 2020

Intervenção siderúrgica

Submetido de urgência a uma intervenção siderúrgica, não sobreviveu. A língua portuguesa é deveras traiçoeira...

Também faço isto muito bem 469

Foto Hernâni Von Doellinger

Paulo Leminski 6

não discuto
com o destino


o que pintar
eu assino


Paulo Leminski 

(Paulo Leminski nasceu no dia 24 de Agosto de 1944. Morreu em 1989.)

O melhor amigo do cão

Foto Hernâni Von Doellinger

Carlos Casares 5

[...] Iniciadas no momento as dilixencias destinadas a establecer a correcta identificación do cadáver, o funcionario que suscribe atopouse coa dificultade derivada do estado que en primeira instancia aquel presentaba, co rostro deformado non só polos destrozos ocasionados polo impacto e traxectoria dos proxectís, senón tamén por unha acción posterior, seguramente intencionada, que consistiu en pasar coas rodas do vehículo sobre a parte do corpo comprendida entre o tercio superior do peito e o maxilar da víctima; o cal lle confería unha aparencia mongoloide, cunha hipertrofia mecánica da parte da cabeza situada por riba da liña que une o lóbulo da orella dereita co extremo inferior do apéndice nasal, que aparecía desmesuradamente inchado e confundido co labio superior, como ámbolos dous formasen un único órgano, anatomicamente semellante ó fuciño dun boi...

"Os Mortos Daquel Verán", Carlos Casares

(Carlos Casares nasceu no dia 24 de Agosto de 1941. Morreu em 2002.)

Caminho 827

Foto Hernâni Von Doellinger

Astronautas, internautas e incautas

O cão é, desde tempos imemoriais, uma das mais consistentes artimanhas do homem para a queca. Está cientificamente provado, todos os dias vejo disso.
Quem tem tesão compra um cão, diz o povo e com razão. Porque o animal - aflito, ziguezagueante, ganinte, de orelhas, rabo e tudo arrebitado -, parecendo embora que sai à rua em busca desesperada por parceira ou parceiro de quatro patas onde possa aliviar o stresse, vem mas é tratar do cio do dono. Ou da dona. Por procuração.
Largado à frente, sem trela, "Vai, Corisco, vai, arranja-me uma gaja! Um gaja boa!", o cão é um batedor sexual para prazeres alheios. Evidentemente tem de se entender com o outro animal, mas isso é truque, pretexto para o dono chegar à dona, como todos sabemos, e depois eles, dona e dono, ou dono e dono, ou dona e dona, depois de conversarem resumida ou detalhadamente sobre raças e rações, que se entendam e se acamem. E muitas vezes entendem-se e acamam-se. Olhemos à nossa volta, sem falsos pudores: quantos namoros e casamentos, que nós tenhamos conhecimento ou desconfiemos, não foram intermediados por cães? Quantos engates e quantas pinocadas avulsas?!...
Passear o cão, é assim que se diz, mas querendo dizer outra coisa. Há até quem dê treino específico ao cão, para loiras ou morenas, gordas ou magras, inteligentes ou burras, e assim sucessivamente e vice-versa. É verdade, ele há cães especialistas. Cães de um certo tipo de caça.
O cão é, portanto, um alcoviteiro. Mas já foi mais, no tempo em que não havia Facebook. No tempo em que se mandava uma cadela ao espaço e a cadela chamava-se Laika. Hoje chamar-se-ia Like. É. As chamadas redes sociais na internet são agora, particularmente para casados, o principal móbil do engate, o menu do sexo à mão de semear, e esta nova realidade veio prejudicar sobremaneira os cães, cada vez mais substituídos, abandonados e abatidos, por aparentemente já não serem precisos.
Correndo o risco de fazer um título à Correio da Manhã, eu diria que o Facebook está a matar o cão. Aos poucos. E, todavia, acho que compreendo esta paulatina porém irreversível substituição do "animal doméstico" pela "aplicação social", porque a verdade é só uma: comprar ou adoptar um cão dá provavelmente mais trabalho e despesa do que criar um perfil no Facebook, sendo que o resultado final é o mesmo. Nestes tempos conturbados, o meu mais descarado elogio vai, pois, para as almas caridosas, afogueados adúlteros, que acumulam cão e Facebook, pelo sim e pelo não, e só temos de lhes agradecer, em nome dos animais.
Salvemos o cão! Porque ainda há algumas diferenças a considerar entre o cão e o Facebook - a não ser que Facebook seja o nome do cão. Para além de que o Facebook, o da internet, tem aquele perigo (há casos!) de a mulher andar a pôr os cornos ao marido e o marido andar a pôr os cornos à mulher - cada qual com o seu perfil secreto, mais ou menos falso e sobretudo "criativo" -, até ao dia em que se engatam como desconhecidos e depois se encontram para o que já sabemos. É então que marido e mulher reciprocamente infidelíssimos descobrem que realmente... foram feitos um para o outro.

P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Janeiro de 2016, sob o título "O cão, essa espécie de Facebook". Hoje, 23 de Agosto, é Dia do Internauta. Parabéns à prima!

Na minha rua passa o mar 87

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 22 de agosto de 2020

O meu conseguimento

Até aos cinquenta anos vivi e experimentei - e devo confessar que não foi grande coisa. A partir dos cinquenta anos comecei então a vivenciar e a experienciar - e realmente não há comparação...

O caminho é que me leva, leve, leve

Foto Hernâni Von Doellinger

Affonso Manta 4

O Cavalheiro sem Anéis

Quando me visto de pôr-do-sol,
Os anjos ficam loucos.
Sobem nos trapézios de vidros
E saem a girar...

Girar...

Sou o Cavalheiro sem Anéis.
Sou órfão dos colarinhos de antigamente.
Minha voz se perdeu nas listras do arco-íris.
Meu sorriso nas cordas de um violino.
Sou o Cavalheiro sem Anéis.
Eu sou a própria roupa do crepúsculo.

Nem o vento sabe onde vou dormir.


"A Cidade Mística e Outros Poemas", Affonso Manta

(Affonso Manta nasceu no dia 23 de Agosto de 1939. Morreu em 2003.)

Uma mulher chamada guitarra

Foto Hernâni Von Doellinger

Vasco Cabral 4

Onde está a poesia?

A poesia está nas asas da aurora
quando o sol desperta.


A poesia está na flor
quando a pétala se abre
às lágrimas do orvalho.


A poesia está no mar
quando a onda avança
e branda e suavemente
beija a areia da praia.


A poesia está no rosto da mãe
quando na dor do parto
a criança nasce.


A poesia está nos teus lábios
quando confiante
Sorris à vida.


A poesia está na prisão
quando o condenado à morte
dá uma vida à liberdade.


A poesia está na vitória
quando a luta avança e triunfa
e chega a Primavera.


A poesia está no meu povo
quando transforma o sangue derramado
em balas e flores
em balas para o inimigo
e em flores para as crianças.


A poesia está na vida
porque a vida é luta!


"A Luta É a Minha Primavera", Vasco Cabral

(Vasco Cabral nasceu no dia 23 de Agosto de 1926. Morreu em 2005.)

Mais vale arrumar a mala. Fim.

Foto Hernâni Von Doellinger

Nelson Rodrigues 9

A feia nudez

[...]
Dirão que tenho a fixação do biquíni. (A nossa vida moral depende de uma meia dúzia de nobilíssimas ideias fixas. O santo ou, nem tanto, o simples homem de bem há de ser um obsessivo. Tenho um amigo que só pensa em biquíni. Nos pesadelos, os umbigos o atropelam.)
Durante séculos e séculos, a História preservou o mistério e o suspense do umbigo. Era como se a mulher não o tivesse. Através das idades, só o marido de civil e religioso, ou o parteiro, conseguia vê-lo. Para os outros, o umbigo era irreal, utópico, absurdo. E, súbito, começam a aparecer, aqui e ali, as praias pré-históricas. Tal como no tempo em que os homens viviam em hordas bestiais. E começamos a época da nudez sem amor, do nu de graça e, repito, sem o pretexto do amor. A nudez exclusiva para o ser amado deixou de existir. Todas se despem, para o ser amado e para outros, inclusive o crioulinho do Grapette.
[...]


"A Cabra Vadia - Novas Confissões", Nelson Rodrigues 

(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu em 1980.)

Vida de cão 516

Foto Hernâni Von Doellinger

Na marmita

Depois de ter inventado uma marmita, Papin fez 54 jogos e marcou 30 golos pela selecção francesa.

Por outro lado. Denis Papin, o tal da panela de pressão, nasceu no dia 22 de Agosto de 1647. Félicitations! Era uma homem muito à frente: ele premuniu que um dia no futuro, talvez apenas três ou quatro séculos adiante, quer-se dizer agora, todos nós em todo o mundo levaríamos na marmita. E realmente.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Conjunto Outono-Inverno 2020

Desenho NESTINHO

Os primeiros pingos de chuva deste Inverno em pleno Verão assustaram-me inusitadamente. Isto é: para além dos pés, molharam-me a máscara, e a verdade é que eu não sei se as máscaras molhadas também funcionam ou se gripam, e depois ainda é preciso pô-las a secar e esperar que venha o sol e esperar que sequem. Ou não? Húmidas será melhor, como com os incêndios e com o fumo e com o sexo? E não haverá maneira de fazer máscaras à prova de água (ou waterproof, como se diz em português contemporâneo)? E no Carnaval como é que vão ser as máscaras? Máscaras com máscaras? Estão a ver a minha angústia, o meu medo de morrer de nariz ao léu, e a máscara a pingar?...
Então o que é que eu fiz? Peguei e desatei a correr de volta para casa e nunca mais saí para ir à padaria. Há mais de quinze dias que aqui não entra pão, comemos as sardinhas assadas e o bacalhau frito com bolachas Maria. Torradas.
Por outro lado, liguei ao meu amigo Ernesto Brochado a pedir-lhe ajuda. O Nestinho costuma acudir-me satisfatoriamente em semelhantes aflições. Expliquei-lhe o meu problema, a minha ânsia, trocámos algumas ideias, e saiu esplendorosa a solução que hoje damos a conhecer ao mundo, num rigoroso exclusivo Tarrenego! Entretanto, registámos a patente e já temos milhões de encomendas em carteira.

A máscara
Adaptou-se razoavelmente ao uso da máscara. Para comer é que era uma desgraça. Um chiqueiro...

O anormal do novo normal
Entro na padaria por quinze segundos. Sou atendido imediatamente, levo dinheiro certo, não preciso de falar e até faço apneia. Quinze segundos. Mas sou obrigado a usar máscara. Ao meu lado, atrás de mim, grupos organizados de senhoras desocupadas e alcoviteiras ocupam as mesas da padaria durante manhãs inteiras ou tardes inteiras ou manhãs e tardes inteiras, falam, gritam, riem, engasgam-se, tossem, pigarreiam, espirram e assoam-se, distribuindo generosos perdigotos pelas redondezas. Mas não usam máscara. Alguém me sabe explicar?...

O anormal do novo normal 2
Chega à porta do café e coloca a máscara. Entra. Senta-se na mesa do café e retira a máscara. E faz bem: é a norma. A máscara é apenas o bilhete de entrada no estabelecimento. Alguém me sabe explicar?...

Contrafeitas
Eram máscaras contrafeitas. Preferiam ser toalhetes. 

A importância do retrovisor na luta contra a pandemia
O espelho retrovisor central é um instrumento da máxima importância dentro de um veículo automóvel. Serve para pendurar coisas. Não coisas quaisquer, à sorte, mas coisas próprias de pendurar num retrovisor. Por exemplo, seria impensável pendurar num retrovisor uma gabardina molhada ou um guarda-chuva aberto, porque o retrovisor não é um cabide, é um retrovisor. E no retrovisor penduraram-se, ao longo da história, terços e senhoras de Fátima fosforecentes, relíquias sagradas da Terra Santa contrafeitas, árvores mágicas ambientadoras, castanholas, galhardetes dos Bombeiros de Montalegre, da Junta de Canas de Senhorim, da Câmara de Nelas, do Real Madrid e do Benfica, fitinhas vermelhas do Leixões, miniaturas de casais minhotos e folclóricos, óculos de sol e óculos de chuva, porta-chaves, porta-aviões, trevos de quatro folhas, estrelas de cinco pontas, cornos de besouro ou escaravelho e cornos em geral, patas de coelho, figas, ferraduras, CD, mesmo largos anos depois de ter passado a novidade, e agora penduram-se as máscaras. Exactamente: o sítio da máscara higiénica e sanitárica que nos protege da pandemia e da morte é o retrovisor, o que só lhe medra a relevância - ao retrovisor.
Ora bem: eu não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. E faço questão de elencar estas três fundamentais asserções, porque elas, as asserções, parecendo sinónimas e redundantes, não o são, não o são. Não o são. Na verdade, há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro; há quem tenha carta de condução, não saiba conduzir e não tenha carro; há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; e até há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro - o que é uma raríssima coincidência. O mais certo é eu não ter esgotado todas as variáveis possíveis, mas desconfio que já perceberam o meu ponto de vista: não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. Portanto não tenho retrovisor.

Chegados aqui - de transporte público, evidentemente -, a grande dúvida que se me coloca é a que se segue: onde é que eu penduro a máscara? Na cara com certeza que não, porque me corta o ar e ainda ontem estive para morrer três vezes quando fui à peixaria, uma, e à padaria, duas. Por outro lado, e agora é uma dúvida mais pequena, alguém me saberá informar se haverá alguma brecha legal que me permita, vá lá, dar a volta às normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS, como a pide), dispensando-me liminarmente do uso da máscara sufocante e substituindo-a, digamos, por um CD, com o nariz enfiado no buraco, o que já seria algum arejo? Haverá? Era o que eu gostava de saber...

P.S. - Mais sobre retrovisor, mas de outro ângulo, aqui.

Homem que é homem coça os coisos. Mas com máscara!
Esse gesto tão masculino de coçar o escroto enquanto se conversa com o amigo. Aliás, coçam os dois, cada qual coça o respectivo, porque são ambos muito homens. E esse outro gesto tão masculino de, acabada a conversa e a ecuménica coçadela, darem-se uma mãozada forte e bem abanada, machos até mais não, "um destes dias temos de ir jantar". Eu, se me dão licença, proporia um terceiro momento de afirmação varonil nestes (re)encontros entre velhos compinchas: findo o parlapiê, sossegados os tomates e despachado o cumprimento, que cada um cheire a mão do outro, e então, sim, "adeus e até à próxima". Mas com máscara... 

Residencial Tinoni

Foto Hernâni Von Doellinger