segunda-feira, 31 de julho de 2017

Os meus cromos 30: São Jorge

Foto Hernâni Von Doellinger

António Rebordão Navarro 3

Poema quase triste

Os homens passam sem darem por nada
carregados assim como eles vão
com suas sombras a ganharem gibas,
com os seus olhos a ficarem baços,
cheios de presbitia e astigmáticos.
Não lhes importa que nos frutos estejam
confissões de poetas e de heróis.
Os homens passam e não vêem nada,
olham apenas para as suas vidas,
para a filha doente ou para os filhos mortos.
Não se apercebem das árvores e das rochas,
sangue e nervos da terra.
Seguem tristes e com os seus olhares
voltados para dentro,
para os seus crimes ou para os seus sonhos.
Não param a escutar o coração da terra
que bate, tranquilo, sob o chão.
Tristemente aguardam os eléctricos
que os hão-de levar a suas casas
de paredes forradas pelos retratos
dos fantasmas antigos e até próximos.
É sem amor que trincam os frutos
coloridos no sangue de todos os mortos
e nem pensam que a terra se abrirá
a seus corpos alheios, certo dia.
Procuram suas chaves
e, de cabeça baixa, penetram em casa,
sentam-se à mesa e choram
com suas mulheres, livros, diários íntimos,
mas não falam sequer à Natureza
que lhes oferece, em vão,
todos os seus segredos e mistérios.
Deitam-se sonolentos,
fecham a luz e dão-se aos pesadelos
ou aos sonhos de quando eram meninos...
Embriagam-se ou matam-se
e entregam-se aos vícios ou às lágrimas...
Tristes os homens passam
sem verem que a terra lhes oferece
juntamente com frutos e canções.

"A Condição Reflexa", António Rebordão Navarro

(António Rebordão Navarro nasceu no dia 1 de Agosto de 1933. Morreu em 2015.)

Lugares-(in)comuns 266

Foto Hernâni Von Doellinger

António Osório

Os loucos

Há vários tipos de louco.

O hitleriano, que barafusta.
O solícito, que dirige o trânsito.
O maníaco fala-só.


O idiota que se baba,
explicado pelo psiquiatra gago.
O legatário de outros,
o que nos governa.


O depressivo que salva
o mundo. Aqueles que o destroem.


E há sempre um
(o mais intratável) que não desiste
e escreve versos.


Não gosto destes loucos.
(Torturados pela escuridão, pela morte?)
Gosto desta velha senhora
que ri, manso, pela rua, de felicidade.


"A Ignorância da Morte", António Osório

(António Osório nasceu no dia 1 de Agosto de 1933)

I want to ride my bicycle 9

Foto Hernâni Von Doellinger

António Maria Lisboa 5

Z

As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.

"Ossóptico e Outros Poemas" , António Maria Lisboa 

(António Maria Lisboa nasceu no dia 1 de Agosto de 1928. Morreu em 1953.)

Offshore, se fashavore 30

Foto Hernâni Von Doellinger

Homero Prates

Legenda do sonho

Venho do inferno suave e triste onde a beleza
Adormece a sorrir nos meus braços, enquanto,
Pelos velhos jardins de sombra e de turquesa
Do Azul, tomba em silêncio a noite do seu manto...

Vi morrer-lhe no olhar como um último canto
De cisne, lentamente, a luz da natureza,
Ao pousar-me na boca a divina tristeza
Do seu beijo que tem o sabor do meu pranto.

Enfarado do azul do meu reino sem nome,
Venho trazer-te, ó vida! a palma verde e a rosa
Que transforma em sorriso a dor que te consome.

Beijo-te a fronte e adeus! que me esperam, ao flanco
Da montanha sagrada e sobre a água radiosa,
Uma gôndola de ouro e um grande cisne branco...

Homero Prates

(Homero Prates nasceu no dia 1 de Agosto de 1890. Morreu em 1957.)

Caminho 361

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Bouza Trillo

O polisón
 
Pois, señor, foi o caso que San Pedro alcontrouse un día sin saber en que pasa-lo tempo, pois polas portas da mansión celeste non asomaba nin unha rata.
- Señor - díxolle ó Padre Eterno - si a Vosa Maxestad mo permite, quisera dar unha voltiña por alá abaixo, polo mundo, a ver que novedades hai.
- Vaite, Pedro, e coida de non entreterte moito por si vén algún bienaventurado. San Pedro colleu o seu caiado, que en feitura de moca tiña arrimado nun rincón da portería, cerrou a porta por si mentras el estaba fóra entraba algún que non tivese a concencia limpa, e ala que ala veuse pra eiquí abaixo.
Adonde irei e adonde non irei, chamou á porta dun señor mui fachendoso que vivía nunha vila prencipal.
- Tun, tun.
- ¿Quen é? - perguntou a filla máis nova do señor aquel.
- Un probe pelengrín que non ten onde pasa-la noite.
- Suba, irmán, que eiquí lle daremos cama e cena.
Entrou San Pedro e cenou con tódolos da casa, que por certo trataban que o pasase ben.
E comer comeu como un bendito que era; mais ó proba-lo viño perguntou de que taberna o gastaban.
- Señor pelengrín, élle da taberna de aí ó lado.
- ¡Como asome o morro ese taberneiro por alá - murmurou o santo, polo baixo - doulle coa porta nos fuciños por ladrón. Este nin é viño nin Xuncras que o leve!
[...]

Luís Bouza Trillo

(Luís Bouza Trillo nasceu no dia 1 de Agosto de 1869. Morreu em 1941.)

domingo, 30 de julho de 2017

Vida de cão 229

Foto Hernâni Von Doellinger

Álvaro Lapa

O diagnóstico

Um jovem tinha um cérebro artificial chamado diagnóstico. Um dia fez-lhe três perguntas e o cérebro não respondeu. Como era jovem teve medo e logo a seguir fez-lhe mais duas perguntas. O cérebro respondeu mas estava errado.

Álvaro Lapa, em "Sião"

(Álvaro Lapa nasceu no dia 31 de Julho de 1939. Morreu em 2006.)

I want to ride my bicycle 8

Foto Hernâni Von Doellinger

Augusto Gil 2

Balada da neve

Batem leve, levemente
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate assim levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
- e cai no meu coração.


"Luar de Janeiro", Augusto Gil 

(Augusto Gil nasceu no dia 31 de Julho de 1873. Morreu em 1929.)

Os meus cromos 29: Gregory Porter

Foto Hernâni Von Doellinger

Camilo Lara

Troca de legenda

Onde se lê
estar dentro,
leia-se silêncio;
e onde se
lê adentro,
me concentro.

Camilo Lara

(Camilo Lara nasceu no dia 31 de Julho de 1959. Morreu em 2016.)

O dia do senhor (à direita, na foto...)

Foto Hernâni Von Doellinger

Bolinhos de bacalhau no Tarrenego! 3

Faltava-lhe a cedilha
Já compraram bolinhos de bacalhau, assim chamados, numa, por assim dizer, grande superfície? Já, eu sei. Depois de fritos os alegados bolinhos de bacalhau, deitaram-nos fora, não foi? Evidentemente...

Aqui atrasado fui a um supermercado e comprei uma alheira. Como acontece tantas vezes a muito boa gente, trouxe para casa um dois-em-um: a alheira e um grandessíssimo barrete. E reclamei. Reclamei para o fabricante, reclamei para a cadeia de supermercados, reclamei até para o provedor do cliente do grupo económico dono da cadeia de supermercados. Todos me responderam, com mais ou menos demora e as tretas do costume.
O primeiro a bater com a mão no peito até foi o fabricante. Para além de um simpático pedido de desculpas, oferecia-se para me enviar uma nova alheira: imaginei que me mandaria pelo menos meia dúzia, todas elas de qualidade cinco estrelas, mas não aceitei. Eu só queria mesmo reclamar.
A quem puder interessar, para futuras demandas, ou, quem sabe, até para fazer jurisprudência, aqui deixo, humildemente, o teor da minha bem sucedida reclamação:
Exm.ºs Senhores,
Comprei ontem na loja do [...], em [...], uma alegada "Alheira de Caça" produzida por V. Ex.ªs e pomposamente apresentada como "produto seleccionado da Terra Fria Transmontana".
A etiqueta prometia uma alheira com, nomeadamente, 40% de carne de caça (pato, perdiz e coelho), 30% de carne de porco e 20% de pão trigo.
Cozinhada e aberta, verifiquei logo, sem precisar de ir ao microscópio, que fora enganado. Carne... de grilo! Assim a olho - e comprovado na boca! - , a alheira era afinal composta por 90% de pão e 10% de gorduras diversas.
Dito de outra forma: a alheira de caça de V. Ex.ªs não trazia cedilha.

Melhores cumprimentos,

P.S. - Escrito e publicado originalmente no dia 27 de Julho de 2011.

A geração do hambúrguer
Um dos maiores problemas dos nossos supermercados é que põem a cortar bacalhau uma malta muito gira e muito porreira que nunca na vida comeu bacalhau e nem sabe de que árvore é que aquilo vem. Resultado: trazemos para casa postas com a largura de um selo dos correios...

P.S. - Escrito e publicado no dia 2 de Junho de 2014.

sábado, 29 de julho de 2017

A ponte é uma passagem 22

Foto Hernâni Von Doellinger

Mário Quintana 6


Mário Quintana


(Mário Quintana nasceu no dia 30 de Julho de 1906. Morreu em 1994.)

I want to ride my bicycle 7

Foto Hernâni Von Doellinger

Ângelo de Lima

[Pára-me de repente o pensamento

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento...

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento.

Pára e fica na doida correria...
Pára à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.


Ângelo de Lima

(Ângelo de Lima nasceu no dia 30 de Julho de 1872. Morreu em 1921.)

Baywatch à moda do Porto 4

Foto Hernâni Von Doellinger

António Correia de Oliveira

O perfume 

O que sou eu? - O perfume, 
Dizem os homens. - Serei. 
Mas o que sou nem eu sei... 
Sou uma sombra de lume!

Rasgo a aragem como um gume 
De espada: subi. Voei.
Onde passava, deixei
A essência que me resume.

Liberdade, eu me cativo: 
Numa renda, um nada, eu vivo 
Vida de sonho e verdade!

Passam os dias, e em vão! 
- Eu sou a recordação; 
Sou mais, ainda: a saudade.

António Correia de Oliveira

(António Correia de Oliveira nasceu no dia 30 de Julho de 1879. Morreu em 1960.)

A ver navios 137

Foto Hernâni Von Doellinger

Galheta

- Bufardo ou banano?
- Carquilho, mas devagar...

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Eu é que sou o guardador das armas...

Foto Hernâni Von Doellinger

Bolinhos de bacalhau no Tarrenego! 2

Mais um quartilho para a mesa do canto
Durante muito tempo cuidei que se chamavam assim por causa das vacas que ficavam cá fora presas pela soga às argolas da parede, ruminando uma pouca de palha ou erva, enquanto os donos enchiam a mula lá dentro. "Casa de Pasto - Bons Vinhos e Petiscos", dizia a tabuleta, geralmente de madeira, numa letra desenhada às três pancadas e desbotada pelo uso do olhar. Já lá vão tantos anos, mas juro que até hoje ainda não encontrei coisa mais linda de se ler.
Nas décadas de sessenta, setenta e um cheirinho de oitenta do século passado, a vila de Fafe era o céu na terra para os devotos dos comes e bebes. Tascos, tabernas, casas de pasto, pensões e outros arraçados de restaurante, havia-os de vários feitios e para todos os gostos e bolsos, quase porta sim, porta não. O Escondidinho, o Alberto Coveiro, a Silvina Monteiro, na Rua Montenegro, o Sanica, o Marinho, o Guarda-Fios, o Vale D'Estêvão, o Manel Bigodes, da Granja, o Quinzinho e o Tanoeiro, ambos em Santo Ovídio, a Rapa e o Ferrador, os dois na Feira Velha, o Feira Velha, na Rua Visconde Moreira de Rei, o Jaime Biró, da Rua de Baixo, o Toninho da Ponte do Ranha, o Neca do Hotel, o Toninho Pires, o Zeca Batata, o Magalhães da Olímpia e o Matazana, só estes são mais do que as estações de uma via-sacra e havia quem entrasse para molhar a palavra em todos eles. Religiosamente.
Mais ou menos no meu raio de acção, centrado ali no Santo Velho, havia ainda o Peludo, o Zé Manco e o Paredes, mesmo ao pé da porta, o Chupiu, as pataniscas do Miranda, a Quiterinha, ou Texas, a Adega dos Vasinhos e as mãos de ouro da Juditinha, o vinho branco e bacalhau frito (há lá melhor mata-bicho!) no Lameiras da Rua de Baixo, o bolo com sardinhas da Brecha, a Dinâmica, o insubstituível Nacor, o Zé da Menina, que também fazia sandes da famosa vitela, a Esquiça, que ainda faz das tripas coração, a Adega Popular, ou Fernando da Sede, que está aí para as curvas, e o Manel do Campo, onde uma vez o meu querido tio Américo, que me iniciou nestas vidas, me levou a comer um arroz de ervilhas de quebrar com fanecas fritas que estava de se lhe cantar um Te Deum.
O Manel do Campo, propriamente dito, era um homem imenso, o homem mais gordo do mundo, aos meus olhos de miúdo. Mas ia de bicicleta e suspensórios de casa para o trabalho e do trabalho para casa, naquela pedalada lenta e pesada que parece que estás aqui estás a malhar, cantando a plenos pulmões, numa voz grave, o "Marina, Marina, Marina" do Rocco Granata. Quem se lembra, que levante o braço.

Os tascos e casas de pasto de Fafe eram lugares de culto. Instituições de serviço público, monumentos de interesse nacional, património da humanidade. Ali praticava-se a fraternidade. Ali, do doutor ao sapateiro, como então se dizia, com os queixos numa caneca que passa de mão em mão, os homens (e as mulheres, que também as havia) eram todos iguais. Eram irmãos. O coitado que levava a caneca ao fim, mandava vir a próxima...
Nenhum recém-chegado começava a beber sem antes erguer a caneca aos presentes:
- São servidos, meus senhores?
- Estamos no mesmo - respondiam, à volta.
Este cerimonial, creio, ainda se pratica.
O vinho, a qualidade do vinho, era a pedra-de-toque para o sucesso de uma casa. Um sucesso traidor, de ida e volta. Sabia-se que em certo sítio havia pipa nova, de pinga de estalo, e era a invasão. A pipa chegava às últimas e todos lhe viravam costas, mesmo antes de ela exalar o derradeiro suspiro. Os apreciadores procuravam novo poiso, onde a história de amor e traição se repetia.
Era inevitável. Claro que também se apanhavam umas cardinas. E de caixão à cova. Eu não vou dizer nomes, mas podem acreditar no seguinte: por causa das coisas, havia uns bebedores muito conhecidos e prevenidos que, consoante os casos, tinham burro, bicicleta e até motorizada de tal maneira amestrados que podiam ir para casa de olhos fechados. E iam. Os bichos, incluindo os de duas rodas, já sabiam o caminho...

Isto é a minha memória, a memória dos meus. E a minha homenagem sumária e porque sim. Os tascos da minha terra têm uma história e histórias que deviam ser contadas ao detalhe por quem as saiba procurar e contar, com o rigor e a graça que os ilustres nomes dos tasqueiros de antanho justificam e merecem. No meio de tanta treta que se edita, patrocina, apresenta e promove em Fafe, ora cá está um livrinho que até eu era capaz de ler. Enquanto espero, sentado, venha mais um quartilho para a mesa do canto...

P.S. - Escrito e publicado originalmente no dia 30 de Setembro de 2011.

Memória (António Rebordão Navarro)
Ontem tive a sorte de almoçar com o escritor António Rebordão Navarro. Eu e mais três amigos. Falámos sobretudo de banalidades risíveis, como convém à mesa, mas era fatal chegarmos aos livros. Perguntei:
- O senhor doutor (Rebordão Navarro é formado em Direito e chegou a exercer como advogado e delegado do Ministério Público, antes de se entregar de corpo e alma à escrita) ainda mora lá para a Foz?
Mora. Mas já não na Praça de Liège e era aí que eu queria chegar. Com esta minha notável capacidade para fazer figura de urso, eu estava mortinho por demonstrar mais uma vez quão sólido é o cuspo com que argamasso os meus pindéricos alicerces culturais. E disse, todo vaidoso:
- Sabe, eu tenho o livro, tenho "A Praça de Liège". Se soubesse que me ia encontrar com o senhor doutor, até o tinha trazido para me fazer o favor de uns sarrabiscos. Tenho o livro, está lá em casa...
- Ai tem o livro? Mas eu escrevi mais livros, escrevi para aí uns catorze... - cortou-me a vaza Rebordão Navarro, sem disfarçar o sorriso malandro como o arrozinho de feijão e legumes que acompanhava os bolinhos de bacalhau.
A minha primeira reacção foi largar o habitual "Eu sei!" com que tento sair das enrascadas em que me meto, e recitar ali mesmo, de cor e salteado, da trás para a frente e da frente para trás, por ordem alfabética e depois por ordem cronológica, os outros treze títulos do autor que tinha à minha frente de faca em punho, mas a verdade é que... eu só conhecia "A Praça de Liège". Optei, portanto, por tornar pública a minha segunda reacção, que também me saiu uma boa merda e que foi "Pois faço ideia, mas lamentavelmente não tenho acompanhado a carreira do senhor doutor"...

"A Praça de Liège" foi um sucesso tremendo aquando da sua publicação, em 1988. Era o livro da moda (pois se até eu o comprei!) e ganhou o Prémio Literário Círculo de Leitores. Hoje, no Círculo de Leitores não sabem quem é António Rebordão Navarro. Alguém do Círculo contactou a irmã do escritor, a senhora falou do irmão e do prémio e obteve como resposta um lamentável
- Quem? Rebordão quê? Não conheço...
Pois é: a memória! As empresas enxotam quem sabe da poda, despedem os funcionários pelas mãos dos quais passaram os factos e as pessoas, preferem juniores renováveis, fiam-se no Google mas não vão lá. E depois ninguém sabe nada de nada.
Ouvi dizer que está a acontecer o mesmo nas redacções dos jornais e até me contaram algumas anedotas. São de rir tanto que às tantas até são verdade...

No que me toca, e como penitência pela minha ignorância quanto à globalidade da obra literária de António Rebordão Navarro, que afinal é qualquer coisinha mais do que catorze títulos, aqui deixo o registo essencial, com sinceros votos de que faça também bom proveito à rapaziada do Círculo de Leitores: poesia - "Longínquas Romãs e Alguns Animais Humildes", 2005; "A Condição Reflexa", 1989; "27 Poemas", 1988; "Aqui e Agora", 1961; teatro - "Sonho, Paixão, Mistério do Infante D. Henrique", 1995; "O Ser Sepulto", 1972; crónica - "Estados Gerais", 1991; ensaio - "Juro Que Sou Suspeito", 2007; conto "Dante Exilado em Ravena", 1989; romance - "As Ruas Presas às Rodas", 2011; "A Cama do Gato", 2010; "Romance com o Teu Nome", 2004; "Todos os Tons da Penumbra", 2000; "Amêndoas, Doces, Venenos", 1998; "A Parábola do Passeio Alegre", 1995; "As Portas do Cerco", 1992; "Mesopotâmia", 1984; "A Praça de Liège", 1988; "O Parque dos Lagartos", 198; "O Discurso da Desordem", 1972; "Um Infinito Silêncio", 1970; "Romagem a Creta", 1964.

P.S. - Escrito e publicado originalmente no dia 3 de Agosto de 2011. António Rebordão Navarro morreu no dia 22 de Abril de 2015. 

Se bem me lembro 28

Foto Hernâni Von Doellinger

Beatriz Brandão

Que tens, meu coração? Porque ansioso
Te sinto palpitar continuamente?
Ora te abrasas em desejo ardente,
Outra hora gelas triste e duvidoso?

Uma vez te abalanças valeroso
A suportar da ausência o mal veemente;
Mas logo esmorecido, descontente,
Abandonas o passo perigoso?

Meu terno coração, ela, resiste,
Não desmaies, não tremas; pode um dia
Inda o Fado mudar o tempo triste.

Suporta da saudade a tirania,
Que ainda verás feliz, como já viste,
Raiar a linda face da alegria.

Beatriz Brandão

(Beatriz Brandão nasceu no dia 29 de Julho de 1779. Morreu em 1868.)

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Sombra com vista para o laranjal 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Bolinhos de bacalhau no Tarrenego!

A problemática dos bolinhos de bacalhau
"Dois painéis de jornalistas do jornal Público e especialistas em gastronomia", um painel em Lisboa e outro painel no Porto, "reuniram-se" para provar bolinhos de bacalhau (pastéis de bacalhau, para quem lê na capital) comprados fresquinhos "em diferentes pastelarias nas duas cidades". Diz o matutino que foi uma desilusão: as amostras recolhidas reprovaram todas por indecente e má figura...
Mas de que é que estavam à espera os ilustres paineleiros? Bolinhos de bacalhau em Lisboa e no Porto? E de pastelarias e cafés, percebi bem? Panikes e croissants com chocolate, isso é que os dois comités de sábios deveriam ter provado...

P.S. - Escrito e publicado originalmente no dia 3 de Março de 2013.

Os bolinhos da Albertinha da Lameira
Os melhores bolinhos de bacalhau do mundo eram os da Albertininha da Lameira, em Fafe. Contava a lenda que eram moldados no sovaco da prendada cozinheira, o que lhes emprestaria aquele gosto tão peculiar. A vila antiga dava-se muito a estas lendas: dizia-se também, por exemplo, que os tremoços da Marrequinha da Recta eram a especialidade que eram porque a boa senhora lhes mijava.
A verdade é esta: ainda cheguei a ver a Albertininha, numa tarde de sábado, a fazer a massa dos famosos bolinhos, de alguidar entre as pernas, junto ao fogo da lareira, mas a história do sovaco enformador era uma treta - isso posso jurar, e tive pena.
Os bolinhos do Manel do Campo também eram de se lhes tirar o chapéu. E, de um modo geral, as pensões e os tascos de Fafe faziam gala de confeccionar e servir um produto, como agora se diz, fiel às origens e de altíssima qualidade. Esta tradição local mantém-se, em sítios como, veio-me agora a ideia à boca, o Fernando da Sede (Adega Popular). Os bolinhos de bacalhau com salada de feijão-fradinho e arroz do Fernando surpreendem e encantam os visitantes, e, para os da terra, são uma esplêndida entrada para a vitelinha que há-de vir. Mas isso, nos tempos que correm, é já refeição a pedir uma segunda hipoteca da casa.
É. Os bolinhos "de morrer por mais" são no Minho - bem o sabia mestre Aquilino. Em Fafe, é claro, mas também no Manuel Padeiro e no Gaio, em Ponte de Lima e em dias sim, ou no Conselheiro, em Paredes de Coura, sempre. Em sítios assim, que os há bons e tantos.
Parece-me tolice, portanto, criar uma task force de "especialistas" e simpatizantes, como fez o jornal Público, para provar bolinhos de bacalhau comprados em pastelarias e cafés de Lisboa e do Porto. Ainda por cima, os lisboetas chamam "pastéis de bacalhau" aos bolinhos de bacalhau. (É como os franceses chamarem "fromage" a uma coisa que toda a gente sabe que é queijo). Só podia dar merda e deu. Já se sabia. Já deviam saber. Qual era a ideia? E tomem nota os doutos paineleiros: o resultado seria o mesmo se mandassem vir arroz de grelos, pastelões de petinga, pataniscas ou caldo de nabos. Os cafés e as pastelarias do Porto e de Lisboa não são para esses preparos, estão a perceber? Vá lá, o caldo de nabos... talvez.

P.S. - Escrito e publicado originalmente no dia 5 Março 2013.

Os piores bolinhos de bacalhau do mundo
O piores bolinhos de bacalhau do mundo são num pequeno café, em Penafiel. Três mesas, dois jornais, um balcão sumário e a simpatia imensa do dono. Os bolinhos são tão maus, tão maus, que nunca falho quando por lá passo a horas de aperitivar. Meto o pé no degrau da entrada, ao baixo, e sai logo meia dúzia de pedras de gelo directamente da arca frigorífica para a fritadeira de óleo cansado, que é "Para o senhor, para serem fresquinhos". Agradeço a deferência e reservo-me. Cinco minutos, não mais. As pedras de gelo vêm para a mesa a ferver e a pingar, agora em forma aparentada com a dos verdadeiros bolinhos de bacalhau, queimam-me a boca e antes assim, que enganam o paladar. Não sabem ao bacalhau que não têm, mas também não sabem à batata que são só. Escangalham-se ao toque. São maravilhosamente intragáveis e eu como-os. Já disse: o patrão é gente boa e tem três mesas e dois jornais no estabelecimento. Sei dar valor às coisas verdadeiramente importantes. Para apagar o incêndio, bebo uma taça de um obscuro vinho branco de cápsula que sabe a remédio mas não faz bem.
A minha mulher e eu descobrimos o cafezinho por acaso e já lá levei três ou quatro amigos. Para provarem "os piores bolinhos de bacalhau do mundo", é o que lhes prometo, e os amigos depois concordam. Aqueles bolinhos nunca me deixaram ficar mal. Merecem um prémio.
Até porque nos abrem horizontes. A seguir, íamos à Pita Arisca, em Lousada, comer o melhor cabrito do mundo...

P.S. - Escrito e publicado originalmente no dia 6 de Março de 2013. 

Se bem me lembro 27

Foto Hernâni Von Doellinger

Xesús Rodríguez López 2

Mingas d'a Cabanexa é unha morena de vinteun anos, que fai reloucar á calquera qu'a mire, co-a gracea que despide a sua surrisa e cos vivos lostregos que san d'os seus churrusqueiros e negros ollos, cando mira pr'os rapaces.
Foi vareas veces pedida pra boas casas, porque Mingas, ademais de guapa, levaba consigo algunhas faneguiñas, qu'en todol-os tempos foron recomendaciós qu'adornaron moito ás rapazas casadeiras.
Mais d'unha vez foi causa de qu'os mozos andivesen á paus n'as ruadas, e, de qu'a xusticia metese baza nestas faIcatrúas, porque era muller tan agradecida, que sempre lle gustou corresponder as miradas de cantos lle facian a rosca d'o galo, con tal de que ll'entrasen pol-o ollo dereito.
¡E como lle gustaba qu'os mozos se liasen por ela! Cand'habia algunha liorta entr'os mozos qu'a rondaban, trataba de saber hastr'os mais pequenos detalles d'ela y-a cada un que l'e contaban brincaball-o corazón d'alegría.
Solo cando algun salía firido, poñía a cara algo tristeira, pro logo se trocaba outra volta alegre, segun a refreusión ll'iba vertendo vanidá n'o seu corazón.

"A Cruz de Salgueiro", Xesús Rodríguez López

(Xesús Rodríguez López nasceu no dia 28 de Julho de 1859. Morreu em 1917.) 

quarta-feira, 26 de julho de 2017

A Caixa, no país dos cabeçudos e gigantones

Foto Hernâni Von Doellinger

António de Cértima

Maria de Magdala

Subo atordoado a escada de jacintos.
Só penso no amor. Levo em minha mão
Inquieto e sequioso o coração
E uma grinalda em flor de terebintos


Sei que me esperas nua e cariciosa
Entre coxins, aromas e begónias,
Onde brilhará
Como fremente e desmaiada
Tua carne mordida de sardónias


Tua carne doente rosa-chá…
[...]

"Jardim das Carícias", António de Cértima

(António de Cértima, baptizado António Augusto Gomes Cruzeiro, nasceu no dia 27 de Julho de 1894. Morreu em 1983.)

Caminho 360

Foto Hernâni Von Doellinger

Salvador Golpe 3

Trunfan ouros

Sen coidarte de Dios ni de Satán,
Se n-este mundo quês pasalo ben,
Achégate á quen pode y-á quen ten
E non lle fagas caso ó que dirán.


Cobiza rico ser, fillo de Adán;
Se te chaman Caín, responde: ¡Amen!
O que é bô n-este mundo n´é ninguén
E miran ao qu´é pobre com´á un can.


S´eres rico, anque seas moi ruín
Anque teñas moi pouco corazón
No mundo has de pasar por serafín.


Os xueces rindiranche o seu bastón,
E serás poderoso mandarín...
¡Qué cárceres e leis pr´os pobres son!


"A Nosa Terra", Salvador Golpe

(Salvador Golpe nasceu no dia 27 de Julho de 1850. Morreu em 1909.)

A horse is a horse, of course, of course 9

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 25 de julho de 2017

E perceberam que estavam nus...

Foto Hernâni Von Doellinger

Francisco Bugalho 3

Carícias sábias minhas mãos buscaram
Por teu corpo em botão, alvorescente;
E meus lábios sonâmbulos pisaram
Branduras de veludo alvo e dormente.

Triunfos nos meus olhos despontaram,
E gritos de clarim e de trombeta
Em meus ouvidos sôfregos soaram,
Como cantos de amor dalgum poeta.

Ritmos de doçuras e quebrantos,
Corpos vergados como dois acantos,
Gritaram alto que era doce a vida.

Apertei-te na ânsia de perder-te
E quando regressei voltei a ver-te:
Vi-te ainda mais longe e mais perdida.

Francisco Bugalho

(Francisco Bugalho nasceu no dia 26 de Julho de 1905. Morreu em 1949.)

Índios da praia inteira 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Cassiano Ricardo 2

Relâmpago

A onça pintada saltou tronco acima que nem um relâmpago de rabo comprido e cabeça amarela:
Zás!
Mas uma flecha ainda mais rápida que o relâmpago fez rolar ali mesmo
Aquele matinal gatão elétrico e bigodudo
Que ficou estendido no chão feito um fruto de cor que tivesse caído de uma árvore!

"Martim Cererê", Cassiano Ricardo

(Cassiano Ricardo nasceu no dia 26 de Julho de 1895. Morreu em 1974.)

Baywatch à moda do Porto 3

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Microcontos & outras miudezas 44

Em terra de cegos
Quando percebeu que não era inteligente, tentou ser o mais esperto possível. Ninguém reparou na diferença...

Deus perdoa. A idade não.
- Então hoje não vai o bifinho?...
- Peixinho, se faz favor...
- Faz questão?
- De princípio...
- Sexta-Feira Santa, pois... Quer-se dizer que o amigo é católico...
- Praticamente.
- Praticante?
- Ex-praticante. Sabe como é: a idade não perdoa. Mas continuo ligado à modalidade...

A morte dá que pensar, não dá?
Comprei um fato há coisa de 30 anos para ir ao casamento de um amigo e é o fato que tenho. Ao longo de mais de um quarto de século usei o fato mais quatro ou cinco vezes nos casamentos de mais quatro ou cinco amigos e sobrinhos, numa excursão a Lisboa para o Prémio Gazeta do Agostinho Santos e numa ida à televisão. É um fato praticamente novo, mas ando preocupado: quando eu morrer, o casaco de trespasse estará outra vez na moda?

Finalmente excêntrico
Saiu-me o Euromilhões. Vou alugar uma limusina e convidar os meus amigos para uma almoçarada aí pelo fim do mundo. Dezoito euros e quarenta e dois cêntimos darão para ir até onde?  

A conversão do penálti
Foi uma conversão muito difícil, um processo doloroso e demorado. Perceba-se: era um penálti ateu desde pequenino e burro velho não toma andadura. Mas, pronto, vai ser baptizado no próximo domingo, logo após a missa das sete...

Sobreviventes do fim do mundo (a falácia)
Gosto daqueles filmes da moda que contam o fim do mundo, os diversos modelos de fim do mundo, e a luta heróica dos sobreviventes. Catástrofes de proporções apocalípticas, cenários dantescos, a estrada da morte, o-drama-a-tragédia-o-horror. O planeta desaparece e, no seu regenerador desaparecimento, traz à tona os melhores dos melhores de todos nós, americanos por certo. O pai-herói, a mãe-coragem, o bebé-milagre, o Sepúlveda-Taberneiro, de quem ninguém sabia há mais de quarenta anos, desde que pôs os cornos à mulher no Sabugal e fugiu com a espanhola. Para a América. Dão bons títulos nos jornais.
Estes filmes fazem-me acreditar na redenção da humanidade. Os sobreviventes são a esperança num futuro melhor. Espera... - mas qual futuro e quais sobreviventes? Se o mundo acabou, como é que há sobreviventes?... 

Índios da praia inteira

Foto Hernâni Von Doellinger

A máquina do mundo, de Drummond

A máquina do mundo

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

 
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

 
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

 
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

 
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

 
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

 
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

 
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

 
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

 
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

 
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

 
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

 
teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

 
olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

 
essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

 
se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."

 
As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

 
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

 
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

 
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

 
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

 
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

 
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

 
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

 
a esperança mais mínima - esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

 
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

 
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

 
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

 
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

 
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

 
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

 
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


"Claro Enigma", Carlos Drummond de Andrade

(Hoje, 25 de Julho, o Brasil celebra o Dia Nacional do Escritor)

Os homens são pássaros que amam o voo

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando o SIRESP vinha de motorizada

O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. É uma questão de orgulho macho. E então arrebitam e continuam a arder lampeiramente uma semana depois de terem sido decretados dominados aos microfones da CMTV, e a CMTV fica toda contente. Os oficiais da Protecção Civil, que são umas pessoas muito honradas e de boina que antes deste rico emprego nunca tinham posto os pés num incêndio, tiraram um curso relâmpago de Teatro de Operações, Meios Aéreos & Pontos de Ignição e gostam de dar na televisão: o mais que dizem é que os incêndios de manhã, se não estão já dominados, vão entregar-se às autoridades a meio da tarde.
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar nada. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.

Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos! Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus! Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel...

O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do desemprego, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome. Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.

P.S. - Minúsculo esclarecimento, provavelmente desnecessário: Teatro de Operações, vulgo TO.

VOPE, em posição de descansar... à vontade

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 23 de julho de 2017

Solano Trindade

Cantares da América
 
Blues / swings / sambas / frevos / macumbas / jongôs


ritmos de angústia e de protestos
estão ferindo os meus ouvidos!...
São gemidos seculares da humanidade ferida
que se impregnaram nas emoções estéticas
da alma americana...
É a América que canta...


Esta rumba é um manifesto
contra os preconceitos raciais
Esta conga é um grito de revolta
contra as injustiças sociais
Este frevo é um exemplo de aproximação
e de igualdade...


Canta América
Não o canto de mentira e falsidade
que a ilusão ariana
cantou para o mundo
na conquista do ouro
nem o canto da supremacia dos derramadores de sangue
das utópicas novas ordens
de napoleônicas conquistas
mas o canto da liberdade dos povos
e do direito do trabalhador...

"Cantares ao Meu Povo", Solano Trindade

(Solano Trindade nasceu no dia 24 de Julho de 1908. Morreu em 1974.)

A ver navios 136

Foto Hernâni Von Doellinger

Antonio Candido

Para ler Graciliano Ramos, talvez convenha ao leitor aparelhar-se do espírito de jornada, dispondo-se a uma experiência que se desdobra em etapas e, principiada na narração de costumes, termina pela confissão das mais vívidas emoções pessoais. Com isto, percorre o sertão, a mata, a fazenda, a vila, a cidade, a casa, a prisão, vendo fazendeiros e vaqueiros, empregados e funcionários, políticos e vagabundos, pelos quais passa o romancista, progredindo no sentido de integrar o que observa ao seu modo peculiar de julgar e de sentir. De tal forma que, embora pouco afeito ao pitoresco e ao descritivo, e antes de mais nada preocupado em ser, por intermédio da sua obra, como artista e como homem, termina por nos conduzir discretamente a esferas bastante várias de humanidade, sem se afastar demasiado de certos temas e modos de escrever.

"Ficção e Confissão", Antonio Candido

(Antonio Candido nasceu no dia 24 de Julho de 1918. Morreu em 2017.)

Nas suas sete quintas...

Foto Hernâni Von Doellinger

Guilherme de Almeida 3

Velocidade

Não se lembram do Gigante das Botas de Sete Léguas?
Lá vai ele: vai varando, no seu voo de asas cegas,
as distâncias...
E dispara,
nunca pára,
nem repara
para os lados,
para frente,
para trás...

Vai como um pária...

E vai levando um novelo embaraçado de fitas:
fitas
azuis,
brancas,
verdes,
amarelas...
imprevistas...

Vai varando o vento: - e o vento, ventando cada vez mais,
desembaraça o novelo, penteando com dedos de ar
o feixe fino de riscas,
tiras,
fitas,
faixas,
listas...
E estira-as,
puxa-as,
estica-as,
espicha-as bem para trás:
E as cores retesas dançam, sobem, descem de-va-gar
paralelamente,
paralelamente
horizontais,
sobre a cabeça espantada do Pequeno Polegar...

"Encantamento", Guilherme de Almeida

(Guilherme de Almeida nasceu no dia 24 de Julho de 1890. Morreu em 1969.)

A ponte é uma passagem 21

Foto Hernâni Von Doellinger

Elisa Lispector 2




"Corpo a Corpo", Elisa Lispector

(Elisa Lispector nasceu no dia 24 de Julho de 1911. Morreu em 1989.)

Baywatch à moda do Porto 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Eladio Rodríguez González

A hora mística

Morre a tarde. O lusco e fusco
cobre de quietude os campos,
cal se quixese envolvelos
no seu manto.
É a hora solemne e mística

dos misterios sagros,
en que a lus vai esconderse
alá nos confís lonxanos
do hourizonte, donde as brétemas
a recollen n'un abrazo
de agarimo.
Tèn a terra o tristor prácido
das tranquilidades mornas
i-os anoiteceres calmos,
que pousan sobre o paisaxe
todo o misticismo santo
dos acougos,
no remanso
d'un relixioso silencio.
¡Hora de unción en que os agros
se recollen máis en sí
coa fonda abstracción do engado
d'un feitizo!...
Como un regalo
do ceo, como un queixume
de acento levián e brando,
sona o toque da oración,
grave e pausado,
que inunda a campía toda
n'un sosego soave e manso
que fala de eternidade...
É a voz do alto
que acariñante nos chama
coa dozura d'un són maino;
é a voz que anuncia a hora mística:
o santo milagro
de ver cómo as sombras
da noite, mudas de pasmo,
xunta o ceo coa terra
n'un amorosiño abrazo.


"Oraciós Campesiñas", Eladio Rodríguez González

(Eladio Rodríguez González nasceu no dia 24 de Julho de 1864. Morreu em 1949.)

Caminho 359

Foto Hernâni Von Doellinger

Quintino Cunha

Vista ignota

Há um ruído infernal dentro do leito
Do rio. A lontra rosna. A capivara
Espavorida esconde-se no estreito
De um paraná que a enchente ali formara.

O jacaré, levando tudo de eito,
Foge, estrugindo horrivelmente; e, para
Mais aumentar o grande ruído feito,
O rio inteiro se convulsiona...

E, enquanto em medo tudo se alvorota,
Nesta paisagem visualmente ignota
Mas facilmente do índio percebida,

Uma anta firme, calma que arrebata,
Corta o fundo das águas, distraída,
Como se fosse andando pela mata!...

"Pelo Solimões", Quintino Cunha

(Quintino Cunha nasceu no dia 24 de Julho de 1875. Morreu em 1943.)

Dorada, exactamente...

Foto Hernâni Von Doellinger

Alphonsus de Guimaraens 2

Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? Agosto, 
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar que importa? ou fosse o sol já posto, 
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.

Que saudades de amor na aurora do teu rosto!
Que horizonte de fé, no olhar tranquilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, abril, maio, janeiro, ou março.

Encontrei-te. Depois... depois tudo se some
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira.
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?

Ou sábado sem luz, domingo sem conforto, 
Segunda, terça ou quarta, ou quinta ou sexta-feira, 
Brilhasse o sol que importa? ou fosse o luar já morto?

Alphonsus de Guimaraens

(Alphonsus de Guimaraens nasceu no dia 24 de Julho de 1870. Morreu em 1921.)