A autarquia agradece. Faz colecção. No brasão de Lisboa figuram corvos, no de Matosinhos deveriam desenhar saralhotos. A cidade de Matosinhos, para além das muitas outras coisas muito boas, é isto: não há passeios que cheguem para tanta merda de cão. E não é só Matosinhos, embora Matosinhos abuse. E a culpa não é do cão.
terça-feira, 30 de novembro de 2021
Matosinhos afoga-se em saralhotos de cão
A autarquia agradece. Faz colecção. No brasão de Lisboa figuram corvos, no de Matosinhos deveriam desenhar saralhotos. A cidade de Matosinhos, para além das muitas outras coisas muito boas, é isto: não há passeios que cheguem para tanta merda de cão. E não é só Matosinhos, embora Matosinhos abuse. E a culpa não é do cão.
Protecção de dados? Deixem-me rir...
O meu telefone sem fios Zon Slim perdeu o pio ao fim de apenas nove meses de trabalho. Peguei no telemóvel e liguei para a operadora do telefone sem fios. Menos de uma hora depois já tinha em casa um técnico. O homem da Zon detectou rapidamente a avaria (transformador pifado) e procedeu à substituição completa do material: transformador, base e telefone. Até aqui tudo bem.
Quando o técnico se preparava para guardar o meu telefone "antigo", perguntei-lhe, num misto de bons modos com queres-tu-ver-que-já-me-estão-a-foder:- O senhor vai levar o telefone? Assim? Com os meus contactos? Não lhe passa pela cabeça que pode estar a violar a lei de protecção de dados?...
O homem corou. Parou. Pensou e disse:
- Olhe que nunca ninguém me pôs esse problema. Mas, agora que penso nisso, o senhor tem toda a razão. Deixe ver... Posso é fazer-lhe reset no aparelho antes de o levar, quer?
Eu quis. E ele fez.
É assim que as coisas são. E parece que ninguém quer saber.
No dia seguinte, o País acordou alvoroçado com o escândalo da "alegada" espionagem das secretas a um jornalista do Público denunciada pelo Expresso. Chamadas aos microfones, as costumeiras virgindades rasgaram as vestes de indignação, clamaram aos céus contra a gravidade da violação da lei, pediram inquéritos. Isso: seguindo a habitual cábula, sobretudo pediram inquéritos. Passos Coelho, primeiro-ministro, também pediu. E a Procuradoria-Geral da República prometeu investigar o caso.
Palavra de honra, não percebo as razões de semelhante escarcéu. Mas quê, esta gente toda acha mesmo que os serviços secretos fazem o seu trabalho dentro da lei e que só desta vez é que mijaram fora do penico? Então não faz parte dos serviços secretos andarem por dentro dos nossos telefones e computadores em geral? Mas para que é que servem os serviços de espionagem? Não é para espiar? Estavam à espera de quê? E os jornalistas não podem ser espiados? Só podem espiar? Afinal o que é que tanto incomoda estes indignados cavalheiros: o acto de espionagem em si ou o facto de se saber dele?
São ingénuos? Não. São hipócritas.
segunda-feira, 29 de novembro de 2021
No tempo em que
Dúvida razoável
Dados e arregaçados
Os portugueses, as notícias e o Facebook
A arte de instagrar
Foto Hernâni Von Doellinger |
Quem escreve sobre gastronómicas matérias no jornal da Sonae vê-se que tem inúmeros mestrados e consideráveis doutoramentos em Técnicas de Titulagem, mas também se percebe que é gente que só entra na cozinha para perguntar à mãezinha "o que é o comer". Não nego à partida que estas senhoras e estes senhores jornalistas sejam experts em lasanha pré-cozinhada do Lidl ou em rissóis e alegados bolinhos de bacalhau congelados do Pingo Doce, posto que fazem das tripas coração para que o patrão não saiba. Falta-lhes é o resto, a basezinha, como diria o nosso Eça, que, esse sim, sabia de mesa.
Vamos supor: um prato realmente "absolutamente fenomenal" como, não vamos mais longe, um arrozinho de grelos com fanequinhas fritas. Chega à mesa e tira-se-lhe fotografias em vez de se lhe garfar com toda a galhardia? Então vou explicar o que se passa entretanto: o malandro do arroz coalha, fica arroz de hospital, argamassa de atirar às paredes, e as fanecas, esse peixinho tão honesto, esfriam, perdem a graça, afeiam-se, desapetitam-nos. Uma tragédia...
E atenção que as fanequinhas frias ainda vá lá, mas no tasco e no Verão. E verão que tenho razão (esta veia poética que não me larga), quando um dia perderem a cabeça e experimentarem, o Verão e o tasco. Já o arroz segue directamente para o balde do lixo, tamanha dor de alma ainda por cima nestes tempos agrestes de cotão nos bolsos.
Também é verdade: há pratos que são como a vingança, devem ser servidos frios, e por isso até se chamam pratos frios - como comprova a orelheirazinha lá de cima. E estes podem ser fotografados à moda das sessões de casamento, quero dizer: entre as oito da manhã e as seis da madrugada do dia seguinte. Quanto ao resto, por amor de Deus, fiquem quietos! Creio que posso dizer melhor: respeitosamente, comam fotografias à vontade se, tipo, lhes souber bem, mas, por favor, não me instagrem a comidinha a sério (à séria, se lido em Lisboa)...
Já agora: um tasco é um tasco. Uma tasca ou uma tasquinha são outra coisa...
P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Janeiro de 2017.
Etiqueta à mesa
E parabéns à prima
Lembram-se do tempo em que as pessoas não se indignavam? Pois é. Depois vieram as redes sociais...
P.S. - Hoje, 29 de Novembro, é Cyber Monday. Parabéns à prima!
domingo, 28 de novembro de 2021
Pessoas estranhas
Dá-me para pensar cada uma...
Alô, alô, marciano, aqui quem fala é da Terra!
Foto Hernâni Von Doellinger |
Uma vez eu vi um disco voador. Vi, fotografei e publiquei - porque estas coisas são como as partes baixas, não se dizem, mostram-se! Lembro-me como se fosse no dia 14 de Janeiro de 2013. Apresentei no Tarrenego!, em exclusivo mundial, o retrato indesmentível de um opni pairando sobre o mar do Porto, do lado direito do Castelo do Queijo, com o Parque da Cidade pelas costas. Ninguém quis saber.
Semana e meia depois, o Correio da Manhã, jornal de todos os espantos e outros antiportismos, viu um ovni na América. Um ovni que, devidamente esmiuçado, não passava de "um raio resultante de um efeito luminoso" - assim explicado por especialistas. E no entanto, graças ao Correio da Manhã, o ovni americano que nunca existiu foi um sobressalto nacional. O Correio da Manhã faz tudo de uma coisa de nada. E faz nada quanto a decoro, respeito e deontologia. Deixo de fora a compaixão, que realmente não é chamada aos jornais.
Já o meu opni passou incógnito. Não era Cascais, era no Porto, resvés com Matosinhos, e por isso ninguém ligou. Nem as agências internacionais nem o Correio da Manhã: não metia Pinto da Costa nem suicídios semelhantes, portanto não interessava para nada. E assim desperdiçamos o pouco que vamos tendo, até o que nos cai do céu, e é por estas e por outras que este país não vai para a frente.
É o que eu estou farto de dizer: dá Deus ovnis a quem não tem dentes.
P.S. - Publicado originalmente no dia 24 de Janeiro de 2013. A fotografia lá de cima é fidedigna e eloquente: repare-se que o mar até descai para a direita, o que acontece normalmente com bilhares mal calçados e no decurso de avistamentos comprovados.
Isto qualquer dia
Gosto destes filmes e destas séries da moda que contam o fim do mundo, os diversos modelos de fim do mundo, e a luta heróica dos sobreviventes. Invasões marcianas, asteróides desgovernados, pandemias assassinas, ataques de mortos-vivos, catástrofes de proporções bíblicas, apocalípticas, deuteronómicas, cenários dantescos, a estrada da morte, a cinza, a escuridão, a asfixia, o nada, o-drama-a-tragédia-o-horror. O planeta desaparece e, no seu regenerador desaparecimento, traz à tona os melhores dos melhores de todos nós, americanos por certo. O pai-herói, a mãe-coragem, o bebé-milagre, o Sepúlveda-Taberneiro, de quem ninguém sabia há mais de quarenta anos, desde que pôs os cornos à mulher no Sabugal e fugiu com a espanhola da casa de alterne. Para a América, Kansas City, Missouri. Dão bons títulos nos jornais.
Estes filmes fazem-me acreditar na redenção da humanidade. Os sobreviventes são a esperança num futuro melhor. Isto por um lado. Por outro: mas qual futuro e quais sobreviventes? Se o mundo acabou, como é que há sobreviventes?
P.S. - Publicado originalmente no dia 1 de Maio de 2014. Hoje, 28 de Novembro, é Dia do Planeta Vermelho.
sábado, 27 de novembro de 2021
Na aldeia do Senhor Costa
E o manguito do Bordalo?
Por exemplo, as Janeiras, os Reis, as novenas, o terço e a bênção do Santíssimo. Porque não? As marchas de Lisboa e as rusgas do Porto e o Pai das Orelheiras e o carnaval de Ovar e as "Velhas" da Terceira e as adufeiras de Monsanto e a Justiça de Fafe e os zés-pereiras e os cabeçudos e os gigantones. Ou a cantiga no duche, ou a lengalenga do avô, ou a arenga de bêbado, ou o apita-o-comboio, ou o atirei-o-pau-ao-gato, ou o areias-era-um-camelo. Ou o canto pimba, ou o canto neiro. Porque não?
Por exemplo, os ranchos folclóricos, os conjuntos típicos, a Maria Albertina e o António Mafra, os grupos excursionistas, os motoclubes e as motosserras. Ou as bandas de música. Porque não? Ou os bandos de malfeitores. Ou os submarinos e os bancos, os salgados e os doces, da alheira de Mirandela ao pastel de Belém. Porque não?
Por exemplo, o manguito do Bordalo. Ou o caralho das Caldas. Porque não?
Por exemplo, o assobio. Porque não?
P.S. - Faz hoje anos. O fado foi elevado a Património Cultural Imaterial da Humanidade no dia 27 de Novembro de 2011. O cante alentejano no dia 27 de Novembro de 2014.
Dumas e doutras
Temperaturas
Diz o Fahrenheit ao Celsius, quero dizer, diz o físico alemão Daniel
Gabriel Fahrenheit ao astrónomo sueco Anders Celsius: - Ferves em pouca água, pá!...
P.S. - Anders Celsius nasceu no dia 27 de Novembro de 1701.
sexta-feira, 26 de novembro de 2021
E o resto do Antunes?
Um transeunte mais dado aproximou-se, fez uma festinha ao canídeo e perguntou ao dono:
(O dono tinha a resposta na ponta da língua, quantas e quantas vezes isto já lhe tinha acontecido. "Ora portanto, o cão é de raça chihuahua e assim tão diminutos só talvez os da raça pequeno cão russo. Chama-se chihuahua porque, como o próprio nome indica, esta raça teve origem no estado mexicano de Chihuahua, cá está, embora haja quem diga que os viu já no Egipto do tempo dos faraós, ou em Cuba, no tempo de não sei quem. Os chihuahuas são considerados cães de luxo, de colo, e, de tão franzinos, sofrem dos ossos. Pesam entre quilo e meio e dois quilos e setecentos e medem, geralmente, entre quinze e vinte e três centímetros, o que faz lembrar outras malandrices, não sei se me estou a fazer entender. São cães amáveis, afectuosos e possessivos. São excelentes companheiros. Este chama-se Antunes.")
Mas íamos aqui: um transeunte mais dado aproximou-se, fez uma festinha ao canídeo e perguntou ao dono:
- E o resto?
- O resto? - assarapantou-se o dono, perante uma questão assim tão extraordinariamente fora da ordem do dia.- Que resto?...
- O resto do cão, que é dele?...
P.S. - Publicado originalmente no dia 6 de Junho de 2016. O túmulo do faraó Tutankhamon foi aberto no dia 26 de Novembro de 1922.
Vou comprar um cortador de plasma
Vou comprar um cortador de plasma. Isto é, encarreguei a minha mulher de comprar-me um cortador de plasma. O cortador de plasma é capa do último folheto publicitário do Lidl que me meteram cá em casa e está num preço realmente muito jeitoso - 139 euros derivado ao Black Friday e com stock limitado. A minha mulher perguntou-me "O que é um cortador de plasma?" e eu pedi-lhe "Sim, vê-me isso também..."
P.S. - Hoje, 26 de Novembro, para além de ser Black Friday, é também Dia de Não Comprar Nada. Entendam-se!
quinta-feira, 25 de novembro de 2021
Low cost e sem bicho
Parei. Perguntei:
- Esta fruta é mesmo low cost?
- Lowcostíssima, meu caro senhor. Se encontrar fruta mais low cost, devolvemos-lhe o dinheiro. É o lema da casa...
- Qual casa?
- A carrinha, o toldo...
- E a como é o quilo?
- Da carrinha ou do toldo?
- Da fruta low cost...
- Cinco euros a caixa.
- Com fruta?
- Com fruta.
- Com bicho?
- Sem bicho.
- Francamente, não acho lá muito low cost...
- Olhe que mais low cost do que isto não há...
- Por acaso, ali atrás, coisa de quinhentos metros, era mais low cost...
- Mas com bicho...
- Sem bicho.
- Dou isso de low cost, quer-se dizer, mas é preciso ver a qualidade do produto. Como diz o nosso povo: às vezes o low cost sai high cost...
- Que interessante conversa! Agora que já nos entendemos, diga-me lá sinceramente: cinco euros a caixa, com fruta, sem bicho, é mesmo o mais low cost que me pode fazer?
- É preço de tabela, indexado à cotação do Brent, meu caro senhor. Amigos amigos, negócios à parte: se eu lhe levasse mais low cost, entraria em deficit, certamente em default, e estaria outra vez com a troika à perna, isto é, à leg...
- Nesse caso, arrivederci!
- Não venhas tarde...
P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Fevereiro de 2017. Hoje, 25 de Novembro, é Dia de Lembrança das Compras.
Os promocionistas
Bênçãos e benzeduras
O empresário Berardo
Por outro lado, dou valor ao Berardo. Ele deve aqueles camiões, navios e aviões todos cheios de dinheiro - só assim é que me oriento -, ri-se olimpicamente e é um homem rico. Eu não devo um cêntimo a ninguém, ando zangado com a boa disposição e sou um homem pobre. Quem me dera ser empresário!
P.S. - E quem diz Berardo, diz Oliveira e Costa, Salgado, Rendeiro, Dias Loureiro, Duarte Lima, Relvas, Horta e Costa, Jardim Gonçalves, Vieira, Pinto de Costa, Sócrates, Vara e assim sucessivamente.
Génio empresarial
O empresário Faustino
Faustino foi ao banco pedir um empréstimo. Quantia avultada. Pretendia construir e montar de raiz uma fábrica de papel canelado, investimento para cima de milhões de euros e emprego garantido para cerca de 23 pessoas, talvez vinte e duas e meia ou vinte e três e meia, ainda não sabia bem. O senhor do banco riu-se: "Fábrica de cartão canelado? Vê-se logo que é golpe, vigarice das antigas". "Golpe, não, caríssimo senhor, e faça o favor de reparar que eu disse caríssimo sem saber sequer a taxa de juro. Em todo o caso, se eu fosse vigarista, e dos antigos, ter-lhe-ia indicado que precisava do dinheiro para abrir um banco", ripostou Faustino, sem se rir, e foi roubar carteiras para outro lado.
P.S. - Hoje, 25 de Novembro, é Dia Nacional do Empresário.
quarta-feira, 24 de novembro de 2021
Clemence, quando a simplicidade ia à baliza
David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o
inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp
Maier, nem outros que tais - antes, durante e depois. Era Ray Clemence,
que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do
Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele
próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi
jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava
também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado
Kentucky, que só me lembrava os Definitivos,
pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José
Mourinho que eu conheci. O David era inteligente, culto e visionário,
tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção
psicológica: com décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje
em dia é corriqueiro em todo o lado. Ele passava o futebol ao papel, e
do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O
treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes. E
era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de
treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que
ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida,
porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o
meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito
nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente
um frangueiro de créditos firmados. Era uma acrobata voador, um
contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até -
guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de
licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos,
voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca,
pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente
desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola,
ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o
Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era
exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo,
era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para
explicar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático,
sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de
olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao
lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao
lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves
ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu no ano passado, a 15 de Novembro. Tinha 72 anos. E
deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, e
ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci
como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das
vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia
escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...
Qualquer dia, quando eu estiver pronto, conto escrever a sério sobre David Alves, o português.
P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Agosto de 2020.
O futebol, essa ciência
Foi mais um momento de inteligência e reflexão futebolística. De cultura científica. No próximo programa vamos debruçar-nos sobre a intrigante problemática da transição rápida. Para tentarmos perceber, nomeadamente, a partir de que momento uma transição deixa de ser rápida e passa a ser assim-assim. E tentaremos responder à questão medular: os processos defensivo, ofensivo e de transição também são julgados em tribunal?
Ovos de galo
A ciência
A ciência (e o jornalismo) em todo o seu rigor
terça-feira, 23 de novembro de 2021
Trazei-me cá o martelo, caralho!
Todos à sacristia!
Eu ainda não tinha sido apresentado à palavra pragmatismo. Quando, bastante mais tarde, tomei conhecimento, percebi logo que pragmatismo era aquilo da comissão e da procissão.
No tempo em que os eucaliptos falavam
Aos anos que isto vai, ali para os lados de Amares, ainda as romarias não eram abrilhantadas com Fernando Rocha e rulotes de fast-food. E que saudades que eu tenho desse tempo visionário e vanguardeiro em que o acordo ortofónico não havia sido inventado mas já era galhardamente roufenhado por altifalantes elevados às mais eucaliptais cruchas, para que a coisa cá em baixo não passasse despercebida lá em cima a Deus Nosso Senhor, que é praticamente tão brasileiro como português.
Decerto que a procissão saiu e o andor da Senhora do Alívio também. Já não sei como é que correu a "comparação". Nem me lembro em que estado terá chegado ao "clipe" o grupo de "pegantes" retardatários. Mas devia ser líquido, o estado, né?
P.S. - "Crucha": legítima corruptela fafense do regionalismo minhoto "corucho", que, entre outros significados, quer dizer "a parte mais alta das árvores". Hoje, 23 de Novembro, é Dia da Floresta Autóctone.
Rien ne va plus
No tempo em que Fafe era o Largo com árvores e a covid-19 ainda não tinha sido inventada, a Senhora de Antime e "os" 16 de Maio eram festas de rebimba o malho. Havia de tudo: cestinhas, aviões, carrinhos de choque, carrossel, farturas, fome, apalpões às moças, estaladas de resposta, barracas de matraquilhos com jukebox, poço da morte, mulher-serpente, água fresca com longínquo sabor a limão e açúcar amarelo, parrecas e rebuçados, procissões, promessas, anho assado no forno, corridas de jericos e pilas. Pilas principalmente.
O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava. Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, aos flippers, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. A tudo. Mas o pilas estava à frente. E na Senhora de Antime era fatal. E nos 16 de Maio também. E não tenho a certeza se no Corpo de Deus amém.
O Serafim Lamelas é que era o verdadeiro homem do pilas - a História nunca o poderá negar. O Serafim Lamelas era o nosso Stanley Ho e também um bocadinho o nosso Vito Corleone. Tinha a sua famiglia. Montava casino em todas as festas, grandes feiras e romarias da região, bastavam-lhe uma esquina, uma quelha, um desvão de escada, onde calhasse e parecesse invisível. O Senhor Serafim reconhecia-me e respeitava-me, sendo eu apenas miúdo, mas sabendo ele de quem.
O pilas é, para quem eventualmente o ignore, um jogo de mesa e de rua, de sorte e azar. Sorte para o banqueiro, azar para o apostador. Regra geral. É também um jogo evidentemente proibido, e por isso é que se jogava tanto. Os músicos das bandas filarmónicas eram naquele antigamente os melhores clientes do pilas, mas eu estaria capaz de jurar que muitas das vezes eles andariam por ali feitos com a casa, só para chamar patos.
O casino do Serafim consistia num resumido cavalete manufacturado com ripas de madeira ultraleve sobre o qual era estendido, a modos de tampo, um cartão, um papelão, um papel qualquer, uma toalha de mesa, sempre que possível um rectângulo em cabedal, tudo material facilmente dobrável, enrolável e sobretudo escondível.
O tampo estava dividido em quadradinhos pintados e numerados de 1 a 6 com tinta vermelha e de uma forma que parecia intencionalmente tosca ou então andaria ali a mão de Picasso. Apostava-se num número apenas, "singelo", ou dividia-se a aposta por dois números ou até por quatro, se bem me lembro, bastando para isso colocar o dinheiro da aposta em cima das setinhas que indicavam as múltiplas.
Havia depois o copo de plástico, dos de lavar os dentes, e o dado, provavelmente amestrado, que saíam como que por magia de um dos bolsos interiores do larguíssimo casaco do Serafim. O copo era agitado por mãos experimentadas, rápidas e enganadoras, virado ao contrário, suspense, saía o dado cansado, gasto, desilusão, este já está, não há nada para ninguém, só para mim, nova corrida, nova viagem. O Serafim era ainda o nosso Luís de Matos.
O imenso casaco do Serafim Lamelas servia também para guardar o dinheiro da banca, num enchumaço que engrossava cada vez mais. E ninguém me tira da ideia: lá dentro estavam escondidas navalhas, pistolas e até metralhadoras, daquelas de carregadores redondos.
Aquando da Senhora de Antime ou pelos 16 de Maio, que eram dois dias, e daí decerto tão singular plural, o Serafim chegou a instalar-se encostadinho às escadas da Arcada, do lado mais esquerdo de quem desce, curiosamente o local onde ele e a mulher tinham lugar de feira, às quartas. Os jogadores apareciam ali num repente, como moscas não se sabe vindas donde. Amagotavam-se à volta da mesa, numa arriscada luta de cotovelos encasacados, nervosos, cheios de vício e de pressa, um olho nos números e o outro nas costas, não se desse o caso. O Serafim, que tinha mais olhos do que o Bruno de Carvalho, soberano no lugar de honra, reclamando espaço para a função, exibia molhos de notas dobradas no meio dos dedos lestos e, para desviar atenções, exercitava a lábia, muita lábia, debitando ladainhas encantatórias. Os seus lugares-tenentes à coca, um em cada dobrar de rua, tomando conta da polícia, que estava careca de saber daquilo tudo. Um polícia chegava a correr, dizia, num susto, "Vinte escudos no 3, rápido, rápido!", saía o 3, mas é claro que saía o 3, e o polícia desaparecia dali com os bolsos cheios e como se nunca lá tivesse estado.
Se a polícia fosse a sério, o Lamelas e seus acólitos desmontavam a banca num relâmpago e evaporavam-se com todo o dinheiro que estivesse em cima da mesa. Quando o dia estava a correr mal, faziam este número as vezes que lhes desse jeito. Fingiam que fugiam e mudavam de poiso. E os clientes ficavam num desconsolo burgesso, sem os cinquenta paus da quase aposta, sem o prémio que agora é que era e, não vamos mais longe, porventura também sem a carteira. Era um golpe bem ensaiado. E cinquenta escudos davam realmente para muito vinho naquela altura. Uma tragédia!
Outras vezes, por malandragem, era comum ouvir-se gritar de cima da Arcada, anonimamente, "Olha a polícia!", só para se meterem com o Serafim, e o Serafim, molageiro, aproveitava a deixa ou não, consoante sentisse o enchumaço do supercasaco.
Embora possa parecer o contrário, o pilas era um jogo muito completo. Para além do Lamelas e dos seus soldados, do cavalete e dos números, do copo e do dado, da polícia e do engano, revestia-se amiúde de pancadaria, navalhadas e tiros. Mortes, não posso jurar.
Eu joguei uma vez ao pilas. Em adulto praticamente. Apostei cinco coroas, mas partidas ao meio para dois números. Saíram-me cinco coroas. Do bolso.
segunda-feira, 22 de novembro de 2021
Monólogo do barbeiro
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Portanto, de navalha em punho, eles começam a falar na crise dos mísseis de Cuba de 1962 e só terminam, uma hora depois, já a socar-nos o tralhame com a escova, quando chegam ao caso do dono do café ao lado que tem a mania de deixar a janela do carro aberta, "Qualquer dia ainda se fode, com sua licença, senhoreee...", e, depois de termos saído e já irmos longe, ainda vão à porta gritar: - O senhoreee... também deixa a janela do carro aberta? Deixa? Ai é motorizada? Pois, nesse caso...
O meu barbeiro não. Comigo, nem se atreve a pegar no espelho mostra-carecas para me perguntar, no final do serviço, se está tudo bem. Já sabe que não vale a pena. Vamos direitos ao assunto, quero dizer à máquina registadora, espreito os numerozinhos verdes a ver se ainda é o mesmo preço, é, pago, recebo o troco, levanto a mão direita em saudação índia e saio sem dizer "Ugh!", que ele não estranha.
Mas, para termos chegado a este superior estádio de entendimento silencioso, precisei de me começar a impor logo no princípio, há mais de trinta anos. O meu barbeiro já sabe: som da televisão para baixo mal chego, porque a Praça da Alegria é-me insuportável. Mais: lavagem da cabeça, não. Nunca. Eu e o meu barbeiro até pode dizer-se que somos amigos, mas nada de convívio, de festinhas. Nestas coisas, a minha costela homofóbica dá de si. É uma costela flutuante, mas está lá. Por exemplo, incomoda-me também que o estabelecimento se chame "salão" em vez de "barbearia", e, ainda por cima, "salão de cabeleireiros". O meu barbeiro sabe do meu incómodo, mas neste particular mandou-me dar uma volta. São os tempos que vivemos e merecemos. Até a Barbearia Tralhão, isso sim sítio para homens de barba rija, agora também já é Cabeleireiros Pereira Tralhão. O que é que se há-de fazer?
Não sei o que deu hoje ao meu barbeiro. Resolveu falar. E eu, que até já me tinha convencido de que éramos mudos, mandei-o calar com os olhos, quase o fulminei. Mas ele fez-se de ceguinho e continuou com o relambório. Os barbeiros de um modo geral são assim, falam sempre mesmo que a gente não lhes responda. E o meu barbeiro ontem estava igual aos outros barbeiros, abriu o livro. Porque conversa de barbeiro tem técnica.
O meu barbeiro começou pela política, quer-se dizer: pelas viagens dos políticos à pala da Galp. O que até me veio a calhar para continuar calado, porque não percebo nada de política e, além disso, não gosto de dizer palavrões em público. Perante o meu militante silêncio, o meu barbeiro passou para o futebol, quer-se dizer Bruno de Carvalho, buscas no Benfica, jogos comprados, a Selecção que joga uma miséria, o Francisco J. Marques que é melhor do que o Pedro Guerra, e eu nada. O meu barbeiro tentou-me, então, com o Trump. Valha-me Deus, antes de almoço não, lá se me ia o apetite. E as notícias? Quer-se dizer: o Manuel Luís Goucha que afastou a Teresa Guilherme? E a Cristina Ferreira? E a Fátima Lopes? E o Malato? E a Sónia Araújo mailo Jorge Gabriel. Também não. Mantive-me de boca fechada, até para não ter de lhe explicar o que está por detrás destas chamadas figuras públicas e destas alegadas notícias.
O meu barbeiro pareceu desistir. Calou-se, magoado. E assim esteve, desistente, calado e ressentido, durante uma boa meia hora. Até que, indo ao fundo da sua alma, arrancou um imenso suspiro (e eu logo a pensar: vem-me este agora falar dos migrantes náufragos que ninguém quer...), arrancou um grande suspiro, dizia eu, suspendeu a tesoura trabalhadeira num gesto teatral e atirou-me, certeiro : - E este tempo?!...
Ah!, bom, o tempo. Falando do tempo, assim já nos entendemos: tivemos ali conversa até à hora de almoço e despedimo-nos de abraço...
P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Novembro de 2011. Mais sobre o meu barbeiro, por exemplo, aqui. A Barbearia Campos, no Largo do Chiado, em Lisboa, abriu ao público no dia 22 de Novembro de 1886.
Cavalinho da chuva
Banho ao cão
Não se faz
Abaixo de Braga
Atraso de vida
domingo, 21 de novembro de 2021
O povo quer é sangue
Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com
a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do
hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e
finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros,
assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e
caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria
a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a
casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram,
portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor
servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima
ou por aqueles degraus abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom
do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela
gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres
afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no
avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi
"a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque,
naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma
ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no
meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas
do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes
esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos
ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o
home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? E muitos Uis! e muitos Ais! e
muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Estavam ali no relambório, a dar
água sem caneco e a benzer-se na direcção da Igreja Nova, mas sem perder
pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita,
vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte.
Era um fartote! Uma comoção!...
Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas
do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem a CMTV.
P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Fevereiro de 2016. Hoje, 21 de Novembro, é Dia Mundial da Televisão.
Olá, então como vais?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", dizemos olá de boca, e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emojis. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.
sábado, 20 de novembro de 2021
E as crianças de estimação?
Troca-se neto por cão!
Três
rapazes nos arrabaldes dos sessenta anos bem servidos, certamente
amigos de longa data, gente bem, meninos da Foz no seu tempo, fazem o
costumeiro passeio higiénico matinal na avenida à beira-mar. O da
esquerda empurra um carrinho de bebé com uma vaidade que só vista, e é
bonita de se ver. Os outros dois vão à rasca até às orelhas,
envergonhadíssimos com "a situação", evitam ser reconhecidos por quem
passa, como por exemplo eu, que não os conheço de lado nenhum, mais
desconforto era impossível. O da direita puxa o do meio pela manga e
diz-lhe, tapando a boca com a mão, como fazem agora os treinadores e
jogadores de futebol quando querem falar da mãe de alguém e sabem que há
câmara de televisão por perto: - Se inda ao menos fosse um cão, um
canito! Agora o caralho do neto...
Não é metáfora política. É a vida.
O meu couraçado potemkine
Vamos
supor que era a Grand Central Terminal de Nova Iorque e estávamos no
quentinho do cinema. Mas na verdade estávamos em Vila do Conde à chuva e
era um tanque público no quarteirão da Santa Casa da Misericórdia. Eu
passando. Um carrinho de bebé sem condutor sai lentamente do lavadouro,
primeiro em câmara lenta como nos filmes e depois, rapidamente embalado
pela força da realidade, adeus passeio, vou para a estrada da morte que
se faz tarde. Ia. Naquele momento exacto sinto o primeiro e único
impulso de heroísmo de toda a minha vida, voo para o carrinho a pensar
na CMTV, na TVI, no YouTube, em Marcelo Rebelo de Sousa, na medalha do
10 de Junho, na reforma vitalícia (pensa-se em muita merda numa fracção
de segundos), rezo a Nosso Senhor e a Nossa Senhora e a Santiago, meu
padrinho e protector, falta-me o ar de repente, é o coração que me
entope cobardemente a garganta, as pernas tremem-me como varas verdes
mas desta vez não falham, voo para o carrinho e agarro-o já no milagroso
resvés com um Toyota Yaris que passa nas horas e me enche de nomes, mas
é o menos. Graças a Deus. Respiro. A mãe grita, de mãos espetadas na
cabeça desgrenhada, Ai o carrinho!, e o pai berra Olha o carrinho!, e dá
mais uma puxa no paivante.
O carrinho?, interpelo eu e repito, mais
fodido do que outra coisa, O carrinho? E a criança, caralho?, A
criança?, as palavras saem-me aos soluços e eu preciso de uma cadeira
para morrer ali sentado. Mas qual criança?, dizem-me os dois, com caras
combinadas de quem me manda à merda com a senha número um e portanto sem
direito a cadeira, Qual criança?, e riem-se afinadíssimos da minha
agonia. Tinham
praticamente razão: olhei para o carrinho que mantinha nas minhas mãos
cerradas e aflitas, o bebé eram quatro passadeiras lavadas, enroladas e
ainda pingantes - as quatro filhas da puta pelas quais eu só não faleci
prematuramente porque sou um gajo cheio de sorte.
Nota final. A famosa cena do carrinho de bebé descendo a escadaria, com a criança dentro, no meio do tiroteio, em "Os Intocáveis", de 1987, já tinha sido vista em "O Couraçado Potemkine", de 1925, obra maior de Sergei Eisenstein.
P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Janeiro de 2014. Hoje, 1 de Junho, é Dia Internacional dos Direitos das Crianças.
Em ponto.
sexta-feira, 19 de novembro de 2021
O homem invisível
O homem-crocodilo
O Homem-Prazol
O homem-sanduíche
Para cus quadrados
O chichi e a discriminação de género
quinta-feira, 18 de novembro de 2021
O pinto-calçudo e o caga-na-saquinha
Portanto, pinto-calçudo e caga-na-saquinha, duas filosofias de vida essencialmente diversas: o pinto-calçudo é uma coisa, questão de aspecto, e o caga-na-saquinha é outra coisa, questão de carácter. Evidentemente há quem acumule. Isto é: quem seja, por um lado e por outro, pinto-calçudo e caga-na-saquinha.
Um Tales de Mileto
O despertar do filósofo
- A vida é uma imensa linha
recta cheia de curvas, e cada subida concomita-se numa irrefutável
descida, vice-versando - disse o filósofo, ao pequeno-almoço.
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.
O feitiço contra o feiticeiro
Doentes, graças a Deus!
Já agora. O meu rijo avô de Basto esteve doente uma única vez, se não me engano. E morreu. Com os pulmões vagarosamente estraçalhados pelos anos longínquos do trabalho nas minas.
Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Às vezes até penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Os Bombas, por definição, são entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas de galinha. Só estão bem quando estão doentes. Conhecem todas as doenças e os dois volumosos tomos da Farmacopeia Portuguesa por ordem alfabética, de cor e salteado, da frente para trás e de trás para a frente, índices e apêndices incluídos, automedicam-se e só precisavam da consulta e da assinatura do médico - "especialista!", sempre "especialista!", e "do Porto!" - para autenticar o internamento a troco de quilo e meio da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Senhor Abreu do Talho Novo, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Justificava-se a despesa dos unhas-de-fome: o internamento em hospital era a sorte grande, a realização de um sonho. Recorrente. Para que o povo soubesse que!
Os meus avós da Bomba, ninguém me tira da ideia, não morreram da doença. Faleceram da mania...
quarta-feira, 17 de novembro de 2021
O que é que eles dão?
- E que se coma, nada?...
O grande pensador
Gostava muito de pensar. Pensava a toura, pensava a burra, pensava a cabra, pensava as pitas e às vezes também pensava a porca. Era um grande pensador.
P.S - O escultor francês Auguste Rodin, autor de "O Pensador" e "Burgueses de Calais", morreu no dia 17 de Novembro de 1917.
terça-feira, 16 de novembro de 2021
Eu e as correntes de ar
No prédio onde eu moro, o meu apartamento é o único que não tem marquise ou paramarquise na varanda. Dá nas vistas, é verdade, destoa, incomoda os vizinhos, aliás condóminos, e todos os dias tenho a caixa de correio assediada por uns quantos panfletos em quadricromia e papel couché que me oferecem o sufoco a xis euros o metro quadrado. Muito agradecido, mas passo: a varanda é-me de toda a conveniência tal qual está. E não a tapo, pelo menos enquanto a falta de ar for apenas opcional.
Gosto de correntes de ar, que hei-de fazer? Gosto de terra e gosto de mar. E gosto de levar com a terra e com o mar nas ventas. Gosto dos cheiros. Gosto de pensar (ou de pensar que penso), gosto de refrescar ideias. A minha varanda é o meu retiro. E é o meu quintal, a minha esplanada, o meu posto de vigia. Gosto de semear, de regar os vasos, de espreitar o nanocrescimento dos coentros, da salsa e do tomilho, e até tenho um loureiro e um carvalho, já lá não fumo a minha cachimbada nem bebo o meu CRF "em balão previamente aquecido", por penúria e indicação médica. Gosto de ver passar navios. A isto estou condenado, a ver navios, mas eu gosto. E sou um gajo cheio de sorte: moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado.