terça-feira, 30 de novembro de 2021

Matosinhos afoga-se em saralhotos de cão

Matosinhos à tarde. Sol que era um consolo. O casal descia a rua, a minha, em direcção ao mar, puxado pela trela do pequeno cocker. Eis senão quando, porventura desarranjado pelo strogonoff de vitela e leite-creme que lhe serviram ao almoço, o aflito canídeo arriou as calças e cagou ali mesmo em pleno passeio, com evidente alívio pessoal e grande satisfação dos babados papás. Acabada a obra, a madama, higiene e civismo acima de tudo, foi à carteira e retirou um lenço de papel de um branco imaculado, abriu-o, ao lenço casto, e voltou a dobrá-lo, liturgicamente, agora apenas em dois, baixou-se, quase que me pareceu que se benzia, e... limpou o cu ao cão. Depois amarrotou o papel e lançou-o para junto do saralhoto. No meio do passeio. Do meu. E lá seguiram os três para o mar e para o sol, dois deles puxados pela trela.
A autarquia agradece. Faz colecção. No brasão de Lisboa figuram corvos, no de Matosinhos deveriam desenhar saralhotos. A cidade de Matosinhos, para além das muitas outras coisas muito boas, é isto: não há passeios que cheguem para tanta merda de cão. E não é só Matosinhos, embora Matosinhos abuse. E a culpa não é do cão.

Volto ao enternecedor quadro urbano que pincelei o melhor que pude e soube no longínquo Outubro de 2011, então sob o acutilante título "Matosinhos, sol e saralhotos". E volto, uma década depois e por esta mesma altura do ano, porque a situação piorou drasticamente, está que não se pode. É merda por todos os lados, se me dão licença, e há quem se convença que são ornamentações de Natal. Não são! São mesmo saralhotos de cão, cada vez mais e cada vez maiores, saralhotos nojentos que tomaram conta dos passeios e das ruas, já não se pode pôr pé fora de casa. A coisa alcançou proporções dramáticas. Dantescas. Apocalípticas. É caso de calamidade pública, já vem tarde o alerta vermelho de colapso iminente. É o fim do mundo, pelo menos em Matosinhos, e eu nunca pensei que o fim do mundo fosse este monte de merda.
Muitos temem que Matosinhos desapareça do mapa, num futuro mais ou menos próximo, derivado ao aquecimento global, ao degelo e à subida do nível das águas do mar. Néscios! O fim, o afogamento de Matosinhos é agora, está a ser, submersa a cidade num irreprimível turbilhão de saralhotos de cão. E - insisto - a culpa não é do cão.

P.S. - Hoje, 30 de Novembro, é Dia Internacional da Cidade Educadora. É também Dia das Cidades pela Vida, isto é, das cidades contra a pena de morte.

Conta-se que

Foto Hernâni Von Doellinger

Protecção de dados? Deixem-me rir...

O meu telefone sem fios Zon Slim perdeu o pio ao fim de apenas nove meses de trabalho. Peguei no telemóvel e liguei para a operadora do telefone sem fios. Menos de uma hora depois já tinha em casa um técnico. O homem da Zon detectou rapidamente a avaria (transformador pifado) e procedeu à substituição completa do material: transformador, base e telefone. Até aqui tudo bem.

Quando o técnico se preparava para guardar o meu telefone "antigo", perguntei-lhe, num misto de bons modos com queres-tu-ver-que-já-me-estão-a-foder:
- O senhor vai levar o telefone? Assim? Com os meus contactos? Não lhe passa pela cabeça que pode estar a violar a lei de protecção de dados?...
O homem corou. Parou. Pensou e disse:
- Olhe que nunca ninguém me pôs esse problema. Mas, agora que penso nisso, o senhor tem toda a razão. Deixe ver... Posso é fazer-lhe reset no aparelho antes de o levar, quer?
Eu quis. E ele fez.
É assim que as coisas são. E parece que ninguém quer saber.

No dia seguinte, o País acordou alvoroçado com o escândalo da "alegada" espionagem das secretas a um jornalista do Público denunciada pelo Expresso. Chamadas aos microfones, as costumeiras virgindades rasgaram as vestes de indignação, clamaram aos céus contra a gravidade da violação da lei, pediram inquéritos. Isso: seguindo a habitual cábula, sobretudo pediram inquéritos. Passos Coelho, primeiro-ministro, também pediu. E a Procuradoria-Geral da República prometeu investigar o caso.
Palavra de honra, não percebo as razões de semelhante escarcéu. Mas quê, esta gente toda acha mesmo que os serviços secretos fazem o seu trabalho dentro da lei e que só desta vez é que mijaram fora do penico? Então não faz parte dos serviços secretos andarem por dentro dos nossos telefones e computadores em geral? Mas para que é que servem os serviços de espionagem? Não é para espiar? Estavam à espera de quê? E os jornalistas não podem ser espiados? Só podem espiar? Afinal o que é que tanto incomoda estes indignados cavalheiros: o acto de espionagem em si ou o facto de se saber dele?
São ingénuos? Não. São hipócritas.

P.S. - Publicado originalmente no dia 28 de Agosto de 2011. Hoje, 30 de Novembro, é Dia da Segurança do Computador.

NYC Diesel, of course

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

No tempo em que

No tempo em que não havia telemóveis ligava-se da máquina fotográfica. O que é extraordinário! 

Estimados ouvintes

Foto Hernâni Von Doellinger

Dúvida razoável

O meu telemóvel, que é esperto, diz-me que está a chover. A minha janela, que é burra como uma porta, diz-me que não. Em quem devo acreditar?

Dados e arregaçados

O meu telemóvel é um espertíssimo Huawei. Não temo que os Chineses acedam aos meus dados. Mas incomoda-me que saibam dos meus arregaçados.

Parece impossível

Foto Hernâni Von Doellinger

Os portugueses, as notícias e o Facebook

Quando os portugueses procuram notícias na Internet, vão ao Facebook, dizia em 2015 um estudo da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), de acordo com a rádio Antena 1. Ora bem: eu já li e ouvi chamar muitas coisas àquilo que as portuguesas e os portugueses realmente procuram no Facebook, mas "notícias", confesso, foi a primeira vez. Portanto, não me fodam! Quero dizer: não me "noticiem"... 

A arte de instagrar

Foto Hernâni Von Doellinger

O jornal Público ensinou-nos aqui atrasado o que se deve fazer quando "um prato absolutamente fenomenal (ou não tão fenomenal assim) chega à mesa." E então o que é que se faz? "Come-se? Não, primeiro fotografa-se." E coloca-se no Instagram. Depois, suponho, pede-se a continha, sai-se de casa ou do restaurante chique, "mete-se" o boné e vai-se deglutir duas ou três bifanas e uma avestruz à Conga.
Eu não sei o que é o Instagram (aliás cuidava que se chamava Instragam e só mudei de ideias ainda agora depois do computador me corrigir dezasseis vezes), e nem me aquece nem me arrefece que pensem que estou a mangar. Sei é de cozinha e de jornalismo também umas bagatelas.
Quem escreve sobre gastronómicas matérias no jornal da Sonae vê-se que tem inúmeros mestrados e consideráveis doutoramentos em Técnicas de Titulagem, mas também se percebe que é gente que só entra na cozinha para perguntar à mãezinha "o que é o comer". Não nego à partida que estas senhoras e estes senhores jornalistas sejam experts em lasanha pré-cozinhada do Lidl ou em rissóis e alegados bolinhos de bacalhau congelados do Pingo Doce, posto que fazem das tripas coração para que o patrão não saiba. Falta-lhes é o resto, a basezinha, como diria o nosso Eça, que, esse sim, sabia de mesa.
Vamos supor: um prato realmente "absolutamente fenomenal" como, não vamos mais longe, um arrozinho de grelos com fanequinhas fritas. Chega à mesa e tira-se-lhe fotografias em vez de se lhe garfar com toda a galhardia? Então vou explicar o que se passa entretanto: o malandro do arroz coalha, fica arroz de hospital, argamassa de atirar às paredes, e as fanecas, esse peixinho tão honesto, esfriam, perdem a graça, afeiam-se, desapetitam-nos. Uma tragédia...
E atenção que as fanequinhas frias ainda vá lá, mas no tasco e no Verão. E verão que tenho razão (esta veia poética que não me larga), quando um dia perderem a cabeça e experimentarem, o Verão e o tasco. Já o arroz segue directamente para o balde do lixo, tamanha dor de alma ainda por cima nestes tempos agrestes de cotão nos bolsos.
Também é verdade: há pratos que são como a vingança, devem ser servidos frios, e por isso até se chamam pratos frios - como comprova a orelheirazinha lá de cima. E estes podem ser fotografados à moda das sessões de casamento, quero dizer: entre as oito da manhã e as seis da madrugada do dia seguinte. Quanto ao resto, por amor de Deus, fiquem quietos! Creio que posso dizer melhor: respeitosamente, comam fotografias à vontade se, tipo, lhes souber bem, mas, por favor, não me instagrem a comidinha a sério (à séria, se lido em Lisboa)...

Já agora: um tasco é um tasco. Uma tasca ou uma tasquinha são outra coisa...

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Janeiro de 2017.

Etiqueta à mesa

Isto devia ser ensinado desde os bancos da escola: o telemóvel ou o tablet não fazem parte do talher e portanto não devem ir à mesa. O talher é composto pelo conjunto de garfo, colher e faca e comando de televisão. Mais nada. 

E parabéns à prima

Lembram-se do tempo em que as pessoas não se indignavam? Pois é. Depois vieram as redes sociais...

P.S. - Hoje, 29 de Novembro, é Cyber Monday. Parabéns à prima! 

Está lá?

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 28 de novembro de 2021

Pessoas estranhas

E há aquele aviso, aquele pendurado nas vedações dos estaleiros de obras. Um aviso cheio de segurança, com capacete e botas de biqueira de aço, nem percebo como é que os trabalhadores morrem como tordos. E diz assim: "Proibida a entrada a pessoas estranhas". Na verdade costuma dizer "Proíbida", com acento analfabeto no primeiro i, mas a pentelhice gramatical não é para aqui chamada. A questão é: pessoas estranhas!? Homens com três braços e apenas um testículo, será? Mulheres com duas cabeças e sentença nenhuma? Eduardo Cabrita? José Castelo-Branco? Extraterrestres manetas em trânsito para Las Vegas? Cavaco Silva? Um escuteiro adulto? João Paulo Rebelo, boneco de ventriloquia que faz de secretário de Estado da Juventude e do Desporto? Pedro Proença, o vaidoso e incompetente presidente da Liga de futebol? Portistas satisfeitos? José Sócrates? José "Joe" Berardo? Lá está: pessoas estranhas.
Dá-me para pensar cada uma...

Alô, alô, marciano, aqui quem fala é da Terra!

Foto Hernâni Von Doellinger

Uma vez eu vi um disco voador. Vi, fotografei e publiquei - porque estas coisas são como as partes baixas, não se dizem, mostram-se! Lembro-me como se fosse no dia 14 de Janeiro de 2013. Apresentei no Tarrenego!, em exclusivo mundial, o retrato indesmentível de um opni pairando sobre o mar do Porto, do lado direito do Castelo do Queijo, com o Parque da Cidade pelas costas. Ninguém quis saber.
Semana e meia depois, o Correio da Manhã, jornal de todos os espantos e outros antiportismos, viu um ovni na América. Um ovni que, devidamente esmiuçado, não passava de "um raio resultante de um efeito luminoso" - assim explicado por especialistas. E no entanto, graças ao Correio da Manhã, o ovni americano que nunca existiu foi um sobressalto nacional. O Correio da Manhã faz tudo de uma coisa de nada. E faz nada quanto a decoro, respeito e deontologia. Deixo de fora a compaixão, que realmente não é chamada aos jornais.
Já o meu opni passou incógnito. Não era Cascais, era no Porto, resvés com Matosinhos, e por isso ninguém ligou. Nem as agências internacionais nem o Correio da Manhã: não metia Pinto da Costa nem suicídios semelhantes, portanto não interessava para nada. E assim desperdiçamos o pouco que vamos tendo, até o que nos cai do céu, e é por estas e por outras que este país não vai para a frente.
É o que eu estou farto de dizer: dá Deus ovnis a quem não tem dentes.

P.S. - Publicado originalmente no dia 24 de Janeiro de 2013. A fotografia lá de cima é fidedigna e eloquente: repare-se que o mar até descai para a direita, o que acontece normalmente com bilhares mal calçados e no decurso de avistamentos comprovados.

Eles andem aí 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Isto qualquer dia

Gosto destes filmes e destas séries da moda que contam o fim do mundo, os diversos modelos de fim do mundo, e a luta heróica dos sobreviventes. Invasões marcianas, asteróides desgovernados, pandemias assassinas, ataques de mortos-vivos, catástrofes de proporções bíblicas, apocalípticas, deuteronómicas, cenários dantescos, a estrada da morte, a cinza, a escuridão, a asfixia, o nada, o-drama-a-tragédia-o-horror. O planeta desaparece e, no seu regenerador desaparecimento, traz à tona os melhores dos melhores de todos nós, americanos por certo. O pai-herói, a mãe-coragem, o bebé-milagre, o Sepúlveda-Taberneiro, de quem ninguém sabia há mais de quarenta anos, desde que pôs os cornos à mulher no Sabugal e fugiu com a espanhola da casa de alterne. Para a América, Kansas City, Missouri. Dão bons títulos nos jornais.

Estes filmes fazem-me acreditar na redenção da humanidade. Os sobreviventes são a esperança num futuro melhor. Isto por um lado. Por outro: mas qual futuro e quais sobreviventes? Se o mundo acabou, como é que há sobreviventes? 

P.S. - Publicado originalmente no dia 1 de Maio de 2014. Hoje, 28 de Novembro, é Dia do Planeta Vermelho.

Eles andem aí

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 27 de novembro de 2021

Na aldeia do Senhor Costa

Dezembro a bater à porta e o Borda D'Água manda resguardar as plantas do gelo. Arrotear terras e mato para as sementeiras da Primavera. No crescente, continuar as covas e a estrumagem. As sementeiras de trigo e centeio continuam se não houver geadas, bem como a de cebola, couves, beterraba, nabiça, pimentos, tomate e salsa. Em sítios abrigados pode-se ainda semear agrião, espinafre, alfaces, fava e ervilha. Plantar ainda macieiras e pereiras. Cortar madeiras, no minguante. Continuar a poda das vinhas e mergulhia das vides. Fim da apanha da azeitona e limpeza dos lagares. No jardim, prossegue a plantação de roseiras, gladíolos, cíclames e lírios, a proteger das geadas. Semear ervilhas-de-cheiro, goivos e jacintos. Quanto aos animais, abrigue o gado do frio e chuva, e acarinhe-o.
Quer-se dizer: em Dezembro descansa mas não durmas, como recomenda, por seu lado, O Seringador.
E pronto. É este tempo, senhores. O tempo. Ou, como dizia o outro na rádio a preto-e-branco: na aldeia do Senhor Costa, assim vai a agricultura...

P.S. - José de Sousa Veloso, engenheiro agrónomo e mítico apresentador do TV Rural da RTP, morreu no dia 27 de Novembro de 2014.

Meu país de lavradores

Foto Hernâni Von Doellinger

E o manguito do Bordalo?

A moda é nova, mas, em Portugal, o fado, a dieta mediterrânica, o cante alentejano, os chocalhos e a olaria preta de Bisalhães já tinham sido elevados aos píncaros do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Seguiram-se a falcoaria, a louça de Estremoz e os Caretos de Podence, até ver. Fixemo-nos, porém, na falcoaria. A falcoaria, numa das suas definições mais acessíveis, é a arte de treinar e cuidar de falcões e outras aves de rapina para a caça. Os falcões e colaterais contrafacções caçam, matam e comem, em geral, outras aves e pequenos quadrúpedes que não têm lóbi na UNESCO. Está certo: a UNESCO é uma organização das Nações Unidas que visa contribuir para a paz e segurança no mundo mediante a educação, a ciência, a cultura e as comunicações. Com a falcoaria ficámos irremediavelmente lançados. Eu, por mim, penso agora nos sapateiros, nas mulheres-a-dias, nos falsos licenciados, nos periquitos, nos tocadores de punhetas, nos perdigueiros e, andava com esta ferrada há que tempos, nos furões.

E antes que me esqueça: por exemplo, o jogo do pau. Porque não? Ou o berlinde, a carica, o pião, o espeto, a macaca, o moche, o tene, a cabra-cega, o arranca-cebolas, o mamã-dá-licença, o esconde-esconde. Ou o jogo da malha. Ou o jogo da bisca. Ou o jogo Benfica-CUF de 22 de Março de 1959. Porque não?
Por exemplo, as Janeiras, os Reis, as novenas, o terço e a bênção do Santíssimo. Porque não? As marchas de Lisboa e as rusgas do Porto e o Pai das Orelheiras e o carnaval de Ovar e as "Velhas" da Terceira e as adufeiras de Monsanto e a Justiça de Fafe e os zés-pereiras e os cabeçudos e os gigantones. Ou a cantiga no duche, ou a lengalenga do avô, ou a arenga de bêbado, ou o apita-o-comboio, ou o atirei-o-pau-ao-gato, ou o areias-era-um-camelo. Ou o canto pimba, ou o canto neiro. Porque não?
Por exemplo, os ranchos folclóricos, os conjuntos típicos, a Maria Albertina e o António Mafra, os grupos excursionistas, os motoclubes e as motosserras. Ou as bandas de música. Porque não? Ou os bandos de malfeitores. Ou os submarinos e os bancos, os salgados e os doces, da alheira de Mirandela ao pastel de Belém. Porque não?
Por exemplo, o manguito do Bordalo. Ou o caralho das Caldas. Porque não?
Por exemplo, o assobio. Porque não?

É património até dar com um pau. É património sem mãos a medir. Com assinalável pertinácia, Portugal mete os dedos à boca e vomita património imaterial da humanidade por todos os lados. Um destes dias, sem darmos fé, estamos todos condecorados. Da cabeça aos pés.

P.S. - Faz hoje anos. O fado foi elevado a Património Cultural Imaterial da Humanidade no dia 27 de Novembro de 2011. O cante alentejano no dia 27 de Novembro de 2014.

O melhor que somos, bombos da festa

Foto Hernâni Von Doellinger

Dumas e doutras

Da fama pelo menos não se livrava. Sobre o grande escritor francês, constava que era Alexandre Dumas... e doutras.

P.S. - Alexandre Dumas, filho, francês e escritor como o pai, morreu no dia 27 de Novembro de 1895.

Temperaturas

Diz o Fahrenheit ao Celsius, quero dizer, diz o físico alemão Daniel Gabriel Fahrenheit ao astrónomo sueco Anders Celsius: - Ferves em pouca água, pá!...

P.S. - Anders Celsius nasceu no dia 27 de Novembro de 1701.

Caminho 908

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

E o resto do Antunes?

Era um cãozico, um miniminicão, adereço de porta-chaves, um daqueles fraldiqueiros alegres que correm, guincham e cabriolam no meio metro quadrado que lhes basta como mundo. Ia pela trela, desconfio que para não cair de cangalhas e desfazer-se, e o dono era só orgulho, sorria aos sorrisos dos que passavam e achavam graça ao estupor do bicho, que realmente.
Um transeunte mais dado aproximou-se, fez uma festinha ao canídeo e perguntou ao dono:

(O dono tinha a resposta na ponta da língua, quantas e quantas vezes isto já lhe tinha acontecido. "Ora portanto, o cão é de raça chihuahua e assim tão diminutos só talvez os da raça pequeno cão russo. Chama-se chihuahua porque, como o próprio nome indica, esta raça teve origem no estado mexicano de Chihuahua, cá está, embora haja quem diga que os viu já no Egipto do tempo dos faraós, ou em Cuba, no tempo de não sei quem. Os chihuahuas são considerados cães de luxo, de colo, e, de tão franzinos, sofrem dos ossos. Pesam entre quilo e meio e dois quilos e setecentos e medem, geralmente, entre quinze e vinte e três centímetros, o que faz lembrar outras malandrices, não sei se me estou a fazer entender. São cães amáveis, afectuosos e possessivos. São excelentes companheiros. Este chama-se Antunes.")

Mas íamos aqui: um transeunte mais dado aproximou-se, fez uma festinha ao canídeo e perguntou ao dono:
- E o resto?
- O resto? - assarapantou-se o dono, perante uma questão assim tão extraordinariamente fora da ordem do dia.- Que resto?...
- O resto do cão, que é dele?...

P.S. - Publicado originalmente no dia 6 de Junho de 2016. O túmulo do faraó Tutankhamon foi aberto no dia 26 de Novembro de 1922.

Os despojos do dia

Foto Hernâni Von Doellinger

Vou comprar um cortador de plasma

Vou comprar um cortador de plasma. Isto é, encarreguei a minha mulher de comprar-me um cortador de plasma. O cortador de plasma é capa do último folheto publicitário do Lidl que me meteram cá em casa e está num preço realmente muito jeitoso - 139 euros derivado ao Black Friday e com stock limitado. A minha mulher perguntou-me "O que é um cortador de plasma?" e eu pedi-lhe "Sim, vê-me isso também..." 

P.S. - Hoje, 26 de Novembro, para além de ser Black Friday, é também Dia de Não Comprar Nada. Entendam-se!

Offshore, se fashavore 283

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Low cost e sem bicho

Na beira da estrada, nacional treze, topo de Portugal, o letreiro em cartão canelado castanho recortado às três pancadas e infantilmente colorido, porém sem erros: "Fruta low cost".
Parei. Perguntei:
- Esta fruta é mesmo low cost?
- Lowcostíssima, meu caro senhor. Se encontrar fruta mais low cost, devolvemos-lhe o dinheiro. É o lema da casa...
- Qual casa?
- A carrinha, o toldo...
- E a como é o quilo?
- Da carrinha ou do toldo?
- Da fruta low cost...
- Cinco euros a caixa.
- A caixa?
- A caixa.
- Com fruta?
- Com fruta.
- Com bicho?
- Sem bicho.
- Francamente, não acho lá muito low cost...
- Olhe que mais low cost do que isto não há...
- Por acaso, ali atrás, coisa de quinhentos metros, era mais low cost...
- Mas com bicho... 
- Sem bicho.
- Dou isso de low cost, quer-se dizer, mas é preciso ver a qualidade do produto. Como diz o nosso povo: às vezes o low cost sai high cost...
- Que interessante conversa! Agora que já nos entendemos, diga-me lá sinceramente: cinco euros a caixa, com fruta, sem bicho, é mesmo o mais low cost que me pode fazer?
- É preço de tabela, indexado à cotação do Brent, meu caro senhor. Amigos amigos, negócios à parte: se eu lhe levasse mais low cost, entraria em deficit, certamente em default, e estaria outra vez com a troika à perna, isto é, à leg...
- Nesse caso, arrivederci!
- Não venhas tarde...  

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Fevereiro de 2017. Hoje, 25 de Novembro, é Dia de Lembrança das Compras.

Os promocionistas

Só naquela semana o grande retalhista baixou o preço a mais de cem artigos, trezentos incisos e quinhentas alíneas. Os apensos é que continuam em falta.

Toda a nudez será desculpada

Foto Hernâni Von Doellinger

O orador

- Profissão?
- Orador.
- Faz discursos?
- Rezo pai-nossos.

Bênçãos e benzeduras

Gosto que me digam "o Senhor te abençoe", gosto que me digam "vai com Deus", gosto que me digam "até amanhã, se Deus quiser". Gosto de "dar graças a Deus". Pacifica-me. Salva-me. Acredito em bênçãos, mas execro as benzeduras. Como acredito na oração, mas dispenso as rezas. 

P.S. - Hoje é Dia de Acção de Graças. Sobretudo nos Estados Unidos.

A ponte é uma passagem 35

Foto Hernâni Von Doellinger

O empresário Berardo

Olhemos para Joe Berardo exactamente. Berardo fez-se milionário sob o alto patrocínio da Caixa Geral de Depósitos. Sei disto porque ele próprio me contou. A sua primeira poupança foi uma conta que a mãe lhe abriu na Caixa, em 1962, na Madeira, com dois mil escudos (dez euros), teria ele então 18 anos. Uma semente. Uma conta que se manteve aberta e que nunca parou de crescer. Um casamento frutuoso, posto que de conveniência. O saldo de Berardo na Caixa já ia aqui atrasado em mais de 280 milhões de euros, realmente uma fortuna, mas de dívida. Joe Berardo devia ao banco público mais de 280 milhões de euros, que se soubesse até àquele então, na sequência de empréstimos manhosos que lhe deram de mão beijada e que ele agora não consegue ou não lhe apetece pagar. À banca portuguesa em geral, o comendador Berardo deve quase mil milhões de euros. Uma batelada de massa de que eu nem faço ideia. E tudo começou com apenas dois contos. Parece ilusionismo, número de circo. É por isso que ele se ri tanto e faz pouco do País. Ele é o homem que conseguiu dar o golpe do baú à Caixa.
Por outro lado, dou valor ao Berardo. Ele deve aqueles camiões, navios e aviões todos cheios de dinheiro - só assim é que me oriento -, ri-se olimpicamente e é um homem rico. Eu não devo um cêntimo a ninguém, ando zangado com a boa disposição e sou um homem pobre. Quem me dera ser empresário!

P.S. - E quem diz Berardo, diz 
Oliveira e Costa, Salgado, Rendeiro, Dias Loureiro, Duarte Lima, Relvas, Horta e Costa, Jardim Gonçalves, Vieira, Pinto de Costa, Sócrates, Vara e assim sucessivamente.

Génio empresarial

Foi uma revolução completa na frota da empresa. Os veículos passaram a chamar-se viaturas.

O empresário Faustino

Faustino foi ao banco pedir um empréstimo. Quantia avultada. Pretendia construir e montar de raiz uma fábrica de papel canelado, investimento para cima de milhões de euros e emprego garantido para cerca de 23 pessoas, talvez vinte e duas e meia ou vinte e três e meia, ainda não sabia bem. O senhor do banco riu-se: "Fábrica de cartão canelado? Vê-se logo que é golpe, vigarice das antigas". "Golpe, não, caríssimo senhor, e faça o favor de reparar que eu disse caríssimo sem saber sequer a taxa de juro. Em todo o caso, se eu fosse vigarista, e dos antigos, ter-lhe-ia indicado que precisava do dinheiro para abrir um banco", ripostou Faustino, sem se rir, e foi roubar carteiras para outro lado.

P.S. - Hoje, 25 de Novembro, é Dia Nacional do Empresário.

Chamam-lhe performance urbana

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Clemence, quando a simplicidade ia à baliza

David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem outros que tais - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. O David era inteligente, culto e visionário, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era uma acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu no ano passado, a 15 de Novembro. Tinha 72 anos. E deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...

Qualquer dia, quando eu estiver pronto, conto escrever a sério sobre David Alves, o português.

P.S. - Publicado originalmente no dia 5 de Agosto de 2020.

Semeando pão e vida

Foto Hernâni Von Doellinger

O futebol, essa ciência

A primeira fase de construção de jogo, por exemplo. Dá que pensar, não dá? Desde logo: com quantas fases se constrói o jogo? Com quatro, como as fases que constroem a Lua? Com três, como na electricidade? Com onze, como a camisa? Ou não se sabe, como na canoa? Por outro lado: há um terço do terreno específico onde a primeira fase de construção de jogo deva preferencialmente ocorrer para ser assim chamada? Ou, dito de outra forma: uma fase de construção de jogo efectuada no segundo ou no último terço do terreno é tão fase de construção de jogo como tendo acontecido no primeiro terço, ou, assim avançados, já estaremos no campo da desconstrução de jogo? E a desconstrução de jogo, a propósito, tem também fases ou é mais certinha?

E o último terço do terreno, ele próprio? O último terço do terreno será apenas o terço que o defunto leva nas mãos para a cova, como levianamente preconizam alguns infiéis? Não creio. De acordo com renomados autores, o último terço do terreno é o primeiro terço do terreno. Mas a comunidade científica ainda não chegou a um consenso. Tendo em atenção que o último (ou primeiro) terço do terreno é aquele espaço que vai desde a linha de fundo ou de baliza até à linha imaginária que fica equidistante da linha de grande área e da linha de meio campo, eu sustento, e creio que o consigo provar sem deixar margens para dúvidas, que o terço do terreno dá para os dois lados, como certas e determinadas pessoas, consoante se ataca ou se defende. Advirto, no entanto, que esta é uma opinião meramente pessoal, que não vincula o Tarrenego!, ainda sem posição oficial sobre o assunto. É o meu modesto contributo para um debate que não deve ficar entre linhas.

Foi mais um momento de inteligência e reflexão futebolística. De cultura científica. No próximo programa vamos debruçar-nos sobre a intrigante problemática da transição rápida. Para tentarmos perceber, nomeadamente, a partir de que momento uma transição deixa de ser rápida e passa a ser assim-assim. E tentaremos responder à questão medular: os processos defensivo, ofensivo e de transição também são julgados em tribunal?

P.S. - Publicado originalmente no dia 13 de Abril de 2014. 

Ovos de galo

A ciência ainda não encontrou uma resposta. Porque é que os ovos de galo são maiores do que os ovos de galinha?

A ciência

Cientificamente provado: o álcool afecta de forma diferente o homem e a mulher. O mercurocromo não.

A ciência (e o jornalismo) em todo o seu rigor

Dizia o jornal: "Dormir mal pode ser um sinal de Alzheimer". Pois pode. Mas também pode não ser.

P.S. - Hoje, 24 de Novembro é Dia Mundial da Ciência e, em Portugal, Dia Nacional da Cultura Científica.

Um (e apenas um) lugar à sombra

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Trazei-me cá o martelo, caralho!

Pardelhas, Fafe. Festa de São Pedro. A Internet ainda estava no cu dos americanos, parece impossível mas não havia Facebook nem Twitter, o telemóvel chamava-se telefone, trabalhava a manivela e só se deslocava da mesinha de cabeceira para a cama, se o fio deixasse, e o e-mail chamava-se telegrama. A comunicação era boca a boca, como a respiração, as redes sociais iam num pé e vinham noutro. Mandavam-se recados, levavam-se "repostas" - assim se dizia, e eu gostava, na minha terra. Era ainda a  idade das trevas, posto que com automóveis e motorizadas. 
Mas havia altifalantes, e urgências são urgências. A meio do "Carrapito da Dona Aurora", que estava a correr tão bem, alguém corta o pio aos do Conjunto António Mafra, sopra asmaticamente no velho microfone Philips, "um, dois, um, dois, experiência", e, desassossegando a aldeia inteira, grita na maior das aflições:
- Atenção, muita atenção! Ó Silva, trazei-me cá o martelo, caralho...

Todos à sacristia!

Do alto do campanário, os altifalantes falaram como se fossem Deus. Estavam zangados e só lhes faltava a sarça ardente: "Atenção, muita atenção! No final da procissão há reunião da comissão deste ano para ver se se arranja comissão para o ano. Todos à sacristia! Se não se arranjar comissão, para o ano não há procissão". E mais nada.
Eu ainda não tinha sido apresentado à palavra pragmatismo. Quando, bastante mais tarde, tomei conhecimento, percebi logo que pragmatismo era aquilo da comissão e da procissão.

No tempo em que os eucaliptos falavam

- Atenção, muita atenção! Pede-se a comparação dos pegantes ao andor da Senhora do Alípio junto ao clipe onde estão os antifalantes.
Aos anos que isto vai, ali para os lados de Amares, ainda as romarias não eram abrilhantadas com Fernando Rocha e rulotes de fast-food. E que saudades que eu tenho desse tempo visionário e vanguardeiro em que o acordo ortofónico não havia sido inventado mas já era galhardamente roufenhado por altifalantes elevados às mais eucaliptais cruchas, para que a coisa cá em baixo não passasse despercebida lá em cima a Deus Nosso Senhor, que é praticamente tão brasileiro como português.
Decerto que a procissão saiu e o andor da Senhora do Alívio também. Já não sei como é que correu a "comparação". Nem me lembro em que estado terá chegado ao "clipe" o grupo de "pegantes" retardatários. Mas devia ser líquido, o estado, né?

P.S. - "Crucha": legítima corruptela fafense do regionalismo minhoto "corucho", que, entre outros significados, quer dizer "a parte mais alta das árvores". Hoje, 23 de Novembro, é Dia da Floresta Autóctone.

Natureza viva

Foto Hernâni Von Doellinger

Rien ne va plus


No tempo em que Fafe era o Largo com árvores e a covid-19 ainda não tinha sido inventada, a Senhora de Antime e "os" 16 de Maio eram festas de rebimba o malho. Havia de tudo: cestinhas, aviões, carrinhos de choque, carrossel, farturas, fome, apalpões às moças, estaladas de resposta, barracas de matraquilhos com 
jukebox, poço da morte, mulher-serpente, água fresca com longínquo sabor a limão e açúcar amarelo, parrecas e rebuçados, procissões, promessas, anho assado no forno, corridas de jericos e pilas. Pilas principalmente.
O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava. Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, aos flippers, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. A tudo. Mas o pilas estava à frente. E na Senhora de Antime era fatal. E nos 16 de Maio também. E não tenho a certeza se no Corpo de Deus amém.

O Serafim Lamelas é que era o verdadeiro homem do pilas - a História nunca o poderá negar. O Serafim Lamelas era o nosso Stanley Ho e também um bocadinho o nosso Vito Corleone. Tinha a sua famiglia. Montava casino em todas as festas, grandes feiras e romarias da região, bastavam-lhe uma esquina, uma quelha, um desvão de escada, onde calhasse e parecesse invisível. O Senhor Serafim reconhecia-me e respeitava-me, sendo eu apenas miúdo, mas sabendo ele de quem.
O pilas é, para quem eventualmente o ignore, um jogo de mesa e de rua, de sorte e azar. Sorte para o banqueiro, azar para o apostador. Regra geral. É também um jogo evidentemente proibido, e por isso é que se jogava tanto. Os músicos das bandas filarmónicas eram naquele antigamente os melhores clientes do pilas, mas eu estaria capaz de jurar que muitas das vezes eles andariam por ali feitos com a casa, só para chamar patos.
O casino do Serafim consistia num resumido cavalete manufacturado com ripas de madeira ultraleve sobre o qual era estendido, a modos de tampo, um cartão, um papelão, um papel qualquer, uma toalha de mesa, sempre que possível um rectângulo em cabedal, tudo material facilmente dobrável, enrolável e sobretudo escondível.
O tampo estava dividido em quadradinhos pintados e numerados de 1 a 6 com tinta vermelha e de uma forma que parecia intencionalmente tosca ou então andaria ali a mão de Picasso. Apostava-se num número apenas, "singelo", ou dividia-se a aposta por dois números ou até por quatro, se bem me lembro, bastando para isso colocar o dinheiro da aposta em cima das setinhas que indicavam as múltiplas.
Havia depois o copo de plástico, dos de lavar os dentes, e o dado, provavelmente amestrado, que saíam como que por magia de um dos bolsos interiores do larguíssimo casaco do Serafim. O copo era agitado por mãos experimentadas, rápidas e enganadoras, virado ao contrário, suspense, saía o dado cansado, gasto, desilusão, este já está, não há nada para ninguém, só para mim, nova corrida, nova viagem. O Serafim era ainda o nosso Luís de Matos.
O imenso casaco do Serafim Lamelas servia também para guardar o dinheiro da banca, num enchumaço que engrossava cada vez mais. E ninguém me tira da ideia: lá dentro estavam escondidas navalhas, pistolas e até metralhadoras, daquelas de carregadores redondos.

Aquando da Senhora de Antime ou pelos 16 de Maio, que eram dois dias, e daí decerto tão singular plural, o Serafim chegou a instalar-se encostadinho às escadas da Arcada, do lado mais esquerdo de quem desce, curiosamente o local onde ele e a mulher tinham lugar de feira, às quartas. Os jogadores apareciam ali num repente, como moscas não se sabe vindas donde. Amagotavam-se à volta da mesa, numa arriscada luta de cotovelos encasacados, nervosos, cheios de vício e de pressa, um olho nos números e o outro nas costas, não se desse o caso. O Serafim, que tinha mais olhos do que o Bruno de Carvalho, soberano no lugar de honra, reclamando espaço para a função, exibia molhos de notas dobradas no meio dos dedos lestos e, para desviar atenções, exercitava a lábia, muita lábia, debitando ladainhas encantatórias. Os seus lugares-tenentes à coca, um em cada dobrar de rua, tomando conta da polícia, que estava careca de saber daquilo tudo. Um polícia chegava a correr, dizia, num susto, "Vinte escudos no 3, rápido, rápido!", saía o 3, mas é claro que saía o 3, e o polícia desaparecia dali com os bolsos cheios e como se nunca lá tivesse estado.
Se a polícia fosse a sério, o Lamelas e seus acólitos desmontavam a banca num relâmpago e evaporavam-se com todo o dinheiro que estivesse em cima da mesa. Quando o dia estava a correr mal, faziam este número as vezes que lhes desse jeito. Fingiam que fugiam e mudavam de poiso. E os clientes ficavam num desconsolo burgesso, sem os cinquenta paus da quase aposta, sem o prémio que agora é que era e, não vamos mais longe, porventura também sem a carteira. Era um golpe bem ensaiado. E cinquenta escudos davam realmente para muito vinho naquela altura. Uma tragédia!
Outras vezes, por malandragem, era comum ouvir-se gritar de cima da Arcada, anonimamente, "Olha a polícia!", só para se meterem com o Serafim, e o Serafim, molageiro, aproveitava a deixa ou não, consoante sentisse o enchumaço do supercasaco.
Embora possa parecer o contrário, o pilas era um jogo muito completo. Para além do Lamelas e dos seus soldados, do cavalete e dos números, do copo e do dado, da polícia e do engano, revestia-se amiúde de pancadaria, navalhadas e tiros. Mortes, não posso jurar.
Eu joguei uma vez ao pilas. Em adulto praticamente. Apostei cinco coroas, mas partidas ao meio para dois números. Saíram-me cinco coroas. Do bolso.

P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Maio de 2020. A primeira jukebox entrou em funcionamento no "saloon" Palais Royale, de São Francisco, EUA, no dia 23 de Novembro de 1889. Entretanto: cinco coroas eram vinte cinco tostões ou dois escudos e meio, uma bela moedinha prateada com caravela. Os matraquilhos foram inventados pelo galego Alexandre Campos Ramires ou Alexandre de Fisterra, que também era editor e escritor. O nome mais bonito dos matraquilhos é pseberico. 

Ao passar a ribeirinha

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Monólogo do barbeiro

Eu e o meu barbeiro comunicamos por sinais. Ele sabe que comigo não há conversa: entro no estabelecimento, levanto a mão direita em saudação índia mas não digo "Ugh!", sento-me na zona de espera, espero, varejo O Jogo, olho com fastio para as folhas do Jornal de Notícias, vejo as figuras da revista Volta ao Mundo, coço a cabeça e eventualmente os testículos, espreito-me aos espelhos, espero, espero, levanto-me quando chega a minha vez, que me é indicada pelo meu barbeiro com um semigesto de cabeça, coisa cá entre os dois, aproveito os três passos de caminho para apontar se é só barba ou se é barba e cabelo, sento-me e está tudo dito. São muitos anos!
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Portanto, de navalha em punho, eles começam a falar na crise dos mísseis de Cuba de 1962 e só terminam, uma hora depois, já a socar-nos o tralhame com a escova, quando chegam ao caso do dono do café ao lado que tem a mania de deixar a janela do carro aberta, "Qualquer dia ainda se fode, com sua licença, senhoreee...", e, depois de termos saído e já irmos longe, ainda vão à porta gritar: - O senhoreee... também deixa a janela do carro aberta? Deixa? Ai é motorizada? Pois, nesse caso...
O meu barbeiro não. Comigo, nem se atreve a pegar no espelho mostra-carecas para me perguntar, no final do serviço, se está tudo bem. Já sabe que não vale a pena. Vamos direitos ao assunto, quero dizer à máquina registadora, espreito os numerozinhos verdes a ver se ainda é o mesmo preço, é, pago, recebo o troco, levanto a mão direita em saudação índia e saio sem dizer "Ugh!", que ele não estranha.
Mas, para termos chegado a este superior estádio de entendimento silencioso, precisei de me começar a impor logo no princípio, há mais de trinta anos. O meu barbeiro já sabe: som da televisão para baixo mal chego, porque a Praça da Alegria é-me insuportável. Mais: lavagem da cabeça, não. Nunca. Eu e o meu barbeiro até pode dizer-se que somos amigos, mas nada de convívio, de festinhas. Nestas coisas, a minha costela homofóbica dá de si. É uma costela flutuante, mas está lá. Por exemplo, incomoda-me também que o estabelecimento se chame "salão" em vez de "barbearia", e, ainda por cima, "salão de cabeleireiros". O meu barbeiro sabe do meu incómodo, mas neste particular mandou-me dar uma volta. São os tempos que vivemos e merecemos. Até a Barbearia Tralhão, isso sim sítio para homens de barba rija, agora também já é Cabeleireiros Pereira Tralhão. O que é que se há-de fazer?

Não sei o que deu hoje ao meu barbeiro. Resolveu falar. E eu, que até já me tinha convencido de que éramos mudos, mandei-o calar com os olhos, quase o fulminei. Mas ele fez-se de ceguinho e continuou com o relambório. Os barbeiros de um modo geral são assim, falam sempre mesmo que a gente não lhes responda. E o meu barbeiro ontem estava igual aos outros barbeiros, abriu o livro. Porque conversa de barbeiro tem técnica.
O meu barbeiro começou pela política, quer-se dizer: pelas viagens dos políticos à pala da Galp. O que até me veio a calhar para continuar calado, porque não percebo nada de política e, além disso, não gosto de dizer palavrões em público. Perante o meu militante silêncio, o meu barbeiro passou para o futebol, quer-se dizer Bruno de Carvalho, buscas no Benfica, jogos comprados, a Selecção que joga uma miséria, o Francisco J. Marques que é melhor do que o Pedro Guerra, e eu nada. O meu barbeiro tentou-me, então, com o Trump. Valha-me Deus, antes de almoço não, lá se me ia o apetite. E as notícias? Quer-se dizer: o Manuel Luís Goucha que afastou a Teresa Guilherme? E a Cristina Ferreira? E a Fátima Lopes? E o Malato? E a Sónia Araújo mailo Jorge Gabriel. Também não. Mantive-me de boca fechada, até para não ter de lhe explicar o que está por detrás destas chamadas figuras públicas e destas alegadas notícias.
O meu barbeiro pareceu desistir. Calou-se, magoado. E assim esteve, desistente, calado e ressentido, durante uma boa meia hora. Até que, indo ao fundo da sua alma, arrancou um imenso suspiro (e eu logo a pensar: vem-me este agora falar dos migrantes náufragos que ninguém quer...), arrancou um grande suspiro, dizia eu, suspendeu a tesoura trabalhadeira num gesto teatral e atirou-me, certeiro : - E este tempo?!...
Ah!, bom, o tempo. Falando do tempo, assim já nos entendemos: tivemos ali conversa até à hora de almoço e despedimo-nos de abraço...

P.S. - Publicado originalmente no dia 4 de Novembro de 2011. Mais sobre o meu barbeiro, por exemplo, aqui. A Barbearia Campos, no Largo do Chiado, em Lisboa, abriu ao público no dia 22 de Novembro de 1886.

Arte

Foto Hernâni Von Doellinger

Bolinha baixa

Mandaram-no baixar a bola e ele baixou. Mas o relvado estava uma lástima...

Cavalinho da chuva

Mandaram-no tirar o cavalinho da chuva e ele tirou. E no entanto estava um rico dia de sol.

Banho ao cão

Mandaram-no dar banho ao cão e ele deu. Aproveitou para limpar e lubrificar as estrias, o ferrolho e o gatilho. 

Não se faz

Mandaram-no ir num pé e vir no outro e ele foi e veio. Mas há coisas que não se dizem a um perneta... 

Pela sombra

 Mandaram-no ir pela sombra e ele foi. Era meia-noite e não lhe deu grande trabalho. 

Cu de Judas

Mandaram-no para o cu de Judas e ele foi. Era escuro... 

Dos arcebispos

Foto Hernâni Von Doellinger

Abaixo de Braga

Mandaram-no abaixo de Braga e ele foi. Quando chegou a Celeirós, telefonou a perguntar se estava bem.

Iniciação

Mandaram-no foder. E ele foi. E gostou bastante.

Atraso de vida

Mandaram-no dar uma curva e ele foi. Deu uma curva, duas rectas, seis esses, meia rotunda e três cruzamentos. Chegou obviamente atrasado.

P.S. - Hoje, 22 de Novembro, é Dia de Dar Uma Volta.

A vida parou ou foi o automóvel?

Foto Hernâni Von Doellinger

Antes que chova

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 21 de novembro de 2021

O povo quer é sangue

Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima ou por aqueles degraus abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque, naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Estavam ali no relambório, a dar água sem caneco e a benzer-se na direcção da Igreja Nova, mas sem perder pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote! Uma comoção!...
Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem a CMTV.

P.S. - Publicado originalmente no dia 10 de Fevereiro de 2016. Hoje, 21 de Novembro, é Dia Mundial da Televisão.

Olá, então como vais?

Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são cada vez mais poderosas, as palavras dominam as nossas vidas. As palavras até tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À dissimulação?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", dizemos olá de boca, e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emojis. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.  

P.S. - Hoje, 21 de Novembro, é Dia Mundial do Olá, ou provavelmente do Oi, após acordo ortográfico. E já agora, para todos ucês, um grande saravá!

Também faço isto muito bem 560

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 20 de novembro de 2021

E as crianças de estimação?

"Portugueses já gastam mais com cães do que com bebés", dizia uma vez a capa do semanário Expresso. Acontece no tempo e no país certos. Um tempo e um país em que os animais são de estimação, mas as pessoas não.

Troca-se neto por cão!

Três rapazes nos arrabaldes dos sessenta anos bem servidos, certamente amigos de longa data, gente bem, meninos da Foz no seu tempo, fazem o costumeiro passeio higiénico matinal na avenida à beira-mar. O da esquerda empurra um carrinho de bebé com uma vaidade que só vista, e é bonita de se ver. Os outros dois vão à rasca até às orelhas, envergonhadíssimos com "a situação", evitam ser reconhecidos por quem passa, como por exemplo eu, que não os conheço de lado nenhum, mais desconforto era impossível. O da direita puxa o do meio pela manga e diz-lhe, tapando a boca com a mão, como fazem agora os treinadores e jogadores de futebol quando querem falar da mãe de alguém e sabem que há câmara de televisão por perto: - Se inda ao menos fosse um cão, um canito! Agora o caralho do neto...
Não é metáfora política. É a vida.

O meu couraçado potemkine

Vamos supor que era a Grand Central Terminal de Nova Iorque e estávamos no quentinho do cinema. Mas na verdade estávamos em Vila do Conde à chuva e era um tanque público no quarteirão da Santa Casa da Misericórdia. Eu passando. Um carrinho de bebé sem condutor sai lentamente do lavadouro, primeiro em câmara lenta como nos filmes e depois, rapidamente embalado pela força da realidade, adeus passeio, vou para a estrada da morte que se faz tarde. Ia. Naquele momento exacto sinto o primeiro e único impulso de heroísmo de toda a minha vida, voo para o carrinho a pensar na CMTV, na TVI, no YouTube, em Marcelo Rebelo de Sousa, na medalha do 10 de Junho, na reforma vitalícia (pensa-se em muita merda numa fracção de segundos), rezo a Nosso Senhor e a Nossa Senhora e a Santiago, meu padrinho e protector, falta-me o ar de repente, é o coração que me entope cobardemente a garganta, as pernas tremem-me como varas verdes mas desta vez não falham, voo para o carrinho e agarro-o já no milagroso resvés com um Toyota Yaris que passa nas horas e me enche de nomes, mas é o menos. Graças a Deus. Respiro. A mãe grita, de mãos espetadas na cabeça desgrenhada, Ai o carrinho!, e o pai berra Olha o carrinho!, e dá mais uma puxa no paivante.
O carrinho?, interpelo eu e repito, mais fodido do que outra coisa, O carrinho? E a criança, caralho?, A criança?, as palavras saem-me aos soluços e eu preciso de uma cadeira para morrer ali sentado. Mas qual criança?, dizem-me os dois, com caras combinadas de quem me manda à merda com a senha número um e portanto sem direito a cadeira, Qual criança?, e riem-se afinadíssimos da minha agonia. Tinham praticamente razão: olhei para o carrinho que mantinha nas minhas mãos cerradas e aflitas, o bebé eram quatro passadeiras lavadas, enroladas e ainda pingantes - as quatro filhas da puta pelas quais eu só não faleci prematuramente porque sou um gajo cheio de sorte.

Nota final. A famosa cena do carrinho de bebé descendo a escadaria, com a criança dentro, no meio do tiroteio, em "Os Intocáveis", de 1987, já tinha sido vista em "O Couraçado Potemkine", de 1925, obra maior de Sergei Eisenstein.

P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Janeiro de 2014. Hoje, 1 de Junho, é Dia Internacional dos Direitos das Crianças.

Era uma casa muito engraçada

Foto Hernâni Von Doellinger

Em ponto.

Pegou em todas as suas economias e comprou um relógio de ponto. Agora já só lhe falta o emprego.

P.S. - William Bundy, joalheiro nova-iorquino, inventou o primeiro relógio de ponto, dizem, no dia 20 de Novembro de 1888.

Altas e galeadas

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O homem invisível

O homem invisível entrou no café do costume à hora do costume, sorriu-se da clientela do costume e sentou-se à mesa do costume. O empregado do costume apressou-se a levar-lhe o bagacinho do costume.

O homem-crocodilo

Despedido pela Lacoste, o homem-crocodilo fez-se à vida e foi com a mulher vender nas feiras. Mas bastante contrafeito.

O Homem-Prazol

Apreciava o homem-aranha, o homem-formiga, o homem elefante, o homem-rã, o homem de gelo, o homem de ferro, o homem-bala, o homem invisível, o homem-estátua, o homem-sanduíche, o homem-crocodilo, o homem-tocha, o homem-máquina e até o homem-bata, que quase existia. Apreciava, sim senhor. Mas. Derivado a pecados velhos e por indicação médica, era mais dado ao homem-prazol. 

O homem-sanduíche

O homem-sanduíche chegou a casa mais uma vez sem dinheiro. E finalmente deu-se de comer aos filhos.  

O papel

Conseguiu finalmente acabar com o papel na sua empresa. Nas casas de banho notou-se logo.

Para cus quadrados

Saía muito pouco de casa. Uma dia levaram-no ao restaurante da moda e ele ia morrendo de susto quando precisou de frequentar a casa de banho e descobriu a sanita rectangular. Pensou aflito, ensarilhado nas calças arriadas, antes de fugir pela janela, redonda por sinal: - Será que os cus mudaram de feitio e o meu não foi informado?...

O chichi e a discriminação de género

Antigamente as mulheres urinavam de pé. Não vou explicar pormenores, a não ser que me peçam muito, mas urinavam de pé. De pé, como as falecidas árvores da Senhora Dona Palmira Bastos. De pé, como as vítimas da fome. De pé, como os homens em geral. De pé! Homens e mulheres eram iguais. Depois as mulheres resolveram amouchar para o acto e vão aos pares à casa de banho. Hoje em dia as mulheres queixam-se de discriminação de género.

P.S. - Hoje, 19 de Novembro, é Dia Mundial da Casa de Banho.

O comboio descendente

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

O pinto-calçudo e o caga-na-saquinha

São dois conceitos completamente diferentes, embora não falte por aí quem os confunda, por distracção ou ignorância: pinto-calçudo e caga-na-saquinha. Vejamos: o pinto-calçudo é o rapazinho que começou a usar calças compridas e as calças colam-se-lhe às pernas, mas também pode ser o indivíduo mal-ajambrado que, por exemplo, veste calças estreitas e ridículas, nomeadamente zangadas com os sapatos - como por caso agora é moda nova; quanto ao caga-na-saquinha, é uma criatura medrosa, triste, insignificante, e ponto final.
Portanto, pinto-calçudo e caga-na-saquinha, duas filosofias de vida essencialmente diversas: o pinto-calçudo é uma coisa, questão de aspecto, e o caga-na-saquinha é outra coisa, questão de carácter. Evidentemente há quem acumule. Isto é: quem seja, por um lado e por outro, pinto-calçudo e caga-na-saquinha.

Um Tales de Mileto

A água é o princípio de todas as coisas; o vinho é o fim - dizia o filósofo antigo. Um tal... um tal... um Tales de Mileto. 

O despertar do filósofo

- A vida é uma imensa linha recta cheia de curvas, e cada subida concomita-se numa irrefutável descida, vice-versando - disse o filósofo, ao pequeno-almoço.
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.

P.S. - Hoje, 18 de Novembro, é Dia Mundial da Filosofia.

Numa mão o escudo e na outra... nada

Foto Hernâni Von Doellinger

O feitiço contra o feiticeiro

Quando o Feitiço se virou contra o Feiticeiro, o Feiticeiro resmungou: - Mal agradecido...

P.S. - Hoje, 18 de Novembro, é Dia do Ocultismo.

Doentes, graças a Deus!

Há uma longa e honrosa tradição familiar no nosso lado Von Doellinger: somos umas pessoas muito doentes, que foi a única herança que o meu avô da Bomba nos deixou, aos de nossa casa. De resto, nem um tostão, nem um penico partido e colado com adesivo, tampouco uma corrente de ar! A minha mãe costuma dizer que, em questão de doenças, "não damos vez uns aos outros". A minha mãe, é preciso que se note, é do lado Pereira, que lamentavelmente não me chegou ao nome, Pereira do meu avô de Basto, decilitrador pertinaz que porém nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria. Este meu querido avô, antigo mineiro e mestre pedreiro de primeira água, era, pelo seu lado, um mãos-largas. Tudo o que tinha, dava. E se o que tinha à mão era o varapau de lódão, então era de esgaça-pessegueiro. A mim, deu-me o meu primeiro relógio de pulso e, numa noite de Natal, ofereceu-me inesperadamente o seu próprio relógio de bolso, um magnífico e infalível Omega que me escangalhou em lágrimas e que há coisa de quinze anos passei ao meu filho, que bem o merece e não lhe dá corda. Eu? Fiquei-me com as memórias. Do choro também...
Já agora. O meu rijo avô de Basto esteve doente uma única vez, se não me engano. E morreu. Com os pulmões vagarosamente estraçalhados pelos anos longínquos do trabalho nas minas.

Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Às vezes até penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Os Bombas, por definição, são entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas de galinha. Só estão bem quando estão doentes. Conhecem todas as doenças e os dois volumosos tomos da Farmacopeia Portuguesa por ordem alfabética, de cor e salteado, da frente para trás e de trás para a frente, índices e apêndices incluídos, automedicam-se e só precisavam da consulta e da assinatura do médico - "especialista!", sempre "especialista!", e "do Porto!" - para autenticar o internamento a troco de quilo e meio da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Senhor Abreu do Talho Novo, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Justificava-se a despesa dos unhas-de-fome: o internamento em hospital era a sorte grande, a realização de um sonho. Recorrente. Para que o povo soubesse que!
Os meus avós da Bomba, ninguém me tira da ideia, não morreram da doença. Faleceram da mania...

P.S. - Hoje, 18 de Novembro, é Dia Europeu dos Antibióticos.

Que espeta os cornos no destino

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O que é que eles dão?

- Para a semana eles dão chuva.
- E que se coma, nada?... 

P.S. - Anthímio de Azevedo, o meteorologista que o país inteiro consagrou, morreu no dia 17 de Novembro de 2014. Tinha 88 anos.

Vento em geral

Foto Hernâni Von Doellinger

O grande pensador

Gostava muito de pensar. Pensava a toura, pensava a burra, pensava a cabra, pensava as pitas e às vezes também pensava a porca. Era um grande pensador. 

P.S - O escultor francês Auguste Rodin, autor de "O Pensador" e "Burgueses de Calais", morreu no dia 17 de Novembro de 1917.

Na minha rua passa o mar 114

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Eu e as correntes de ar

As pessoas vivem fechadas em caixotes. Em caixinhas dentro de caixotes. E cada caixinha tem um respiradouro chamado varanda. E as pessoas fazem marquises e esganam as varandas.
No prédio onde eu moro, o meu apartamento é o único que não tem marquise ou paramarquise na varanda. Dá nas vistas, é verdade, destoa, incomoda os vizinhos, aliás condóminos, e todos os dias tenho a caixa de correio assediada por uns quantos panfletos em quadricromia e papel couché que me oferecem o sufoco a xis euros o metro quadrado. Muito agradecido, mas passo: a varanda é-me de toda a conveniência tal qual está. E não a tapo, pelo menos enquanto a falta de ar for apenas opcional.
Gosto de correntes de ar, que hei-de fazer? Gosto de terra e gosto de mar. E gosto de levar com a terra e com o mar nas ventas. Gosto dos cheiros. Gosto de pensar (ou de pensar que penso), gosto de refrescar ideias. A minha varanda é o meu retiro. E é o meu quintal, a minha esplanada, o meu posto de vigia. Gosto de semear, de regar os vasos, de espreitar o nanocrescimento dos coentros, da salsa e do tomilho, e até tenho um loureiro e um carvalho, já lá não fumo a minha cachimbada nem bebo o meu CRF "em balão previamente aquecido", por penúria e indicação médica. Gosto de ver passar navios. A isto estou condenado, a ver navios, mas eu gosto. E sou um gajo cheio de sorte: moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado.

Offshore, se fashavore 282

Foto Hernâni Von Doellinger