quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Josué Montello 2

Até ali os tambores da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria deixava cair o xale para os antebraços, recebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar.
Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear.
Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez cair do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das cabaças.
Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro.

"Os Tambores de São Luís", Josué Montello

(Josué Montello nasceu no dia 21 de Agosto de 1917. Morreu em 2006.)

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