sexta-feira, 19 de abril de 2024

A honra dos Silvas

A minha família leva muito a sério o seu apelido Von Doellinger. Eu não. A minha família tem muito orgulho no seu apelido Von Doellinger. Eu tanto se me dá. Para mim, ser Von Doellinger ou ser Silva é igual ao litro, e só tenho pena de não ir ao nome do meu lado de Basto, que é Pereira, mas esqueceram-se.
Quando assim falo, que é sempre, os meus parentes caem-me em cima, protestam a sua mais entranhada vaidade onomástica e ameaçam banir-me do clã, e eu contra isso nada. Ouço-os, isto é, faço de conta que os ouço, mas penso noutra coisa. Penso nos Silvas. Penso como seria bonito ver alguém sair a terreiro em defesa da honra dos Silvas. Exactamente: alguém de velha têmpera e honra antiga que, armado em Von Doellinger de corrida, ousasse chegar-se à frente para gritar alto e bom som, de estandarte em punho e peito inflado de altivez:
- Eu tenho muito orgulho em ser um Silva, há algum problema?!...
Os Silvas, é preciso que se note, não são uma merda qualquer, e não estou sequer a falar do ilustre casal de ex-inquilinos do Palácio de Belém, que faz aqui tanta falta como o queijo gruyère numa caldeirada de enguias. A primeira linhagem de Silvas é de príncipes e anterior à fundação da nacionalidade portuguesa. Os Silvas de pé-rapado conquistaram Portugal e os Brasis, é só ir ver as listas telefónicas. Os Silvas são uns grandes pinantes, é só ir ver os registos dos motéis, mas aqui são nomes falsos. Os Silvas, se um dia se chateiam, o País pára, porque os Silvas são o País. Chamar ó Silva! num autocarro articulado da Carris é um perigo: os 145 passageiros (48 sentados, 96 de pé e um numa cadeira de rodas) olham todos para trás e o motorista também. O Silva dos Plásticos, toda a gente sabe, era mais conhecido do que o Papa. Silva I seria, aliás, um bom nome para um Papa português, e há logo quem pense no poeta José Tolentino Mendonça.
Embora de nascença ninguém escolha ser Silva, nem ser nome nenhum, está visto que os Silvas só têm motivos de orgulho. E quem diz os Silvas, diz os Santos, os Ferreiras, os Antunes, os Rodrigues, os Costas, os Oliveiras, os Martins, os Sousas, os Gonçalves, os Almeidas, os Carvalhos, os Farias, os Magalhães, os Alves, os Teixeiras, os Lopes, os Ribeiros e até os Brochados. Sim, porque não os Brochados? Há algum problema?

P.S. - Publicado originalmente no dia 21 de Setembro de 2011. Hoje é Dia Mundial dos Simpsons. Para quando o Dia Mundial dos Silvas?

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Fafe já não tem piononos

"O Rapto", de Marco Bellocchio

No monte de São Jorge havia um pionono. E constava que havia outro no monte de Castelhão. Fui testemunha de ambos, embora o segundo possa jamais ter existido. O pionono, para mim, era uma espécie de meco que ajudava montes de pouca monta a porem-se em bicos de pés, a chegarem-se a uma certa altura, a uma altura certa, a um número redondo que desse jeito falar. Quero dizer: era uma espécie de sapato de salto alto para caga-tacos complexados, porém ao contrário, com o tacão virado para cima e usado na cabeça, bem na crucha da cabeça. Depois tomei conhecimento do Pio IX, mas nunca percebi a relação, e acho um insulto chamar-lhe marco geodésico. Ao papa. Ao sumo pontífice.
Assim com maiúscula, o Pionono era exactamente em São Jorge, é justo que se diga. Pionono era nome próprio, sítio, geografia. Era topónimo com alvará. "Vou ao Pionono". Ia-se ao Pionono. Ao Pionono ia-se aos pinheiros pelo Natal, ia-se esgaçar umas pernadas de carvalho para o trono da cascata do Santo António, ia-se aos fentos ou ao mato para o eido ou às giestas secas para espertar a lareira do chão da cozinha, ia-se brincar aos cobóis, ia-se cagar ao monte e ia-se dar umas trancadas, e o que eu gostava da palavra trancadas, mesmo sem ainda conseguir alcançar o que ela quereria dizer. Nem de propósito, São Jorge parece que também tinha mamoas, eu confesso que não sabia mas fiquei a saber no final do ano passado.
(As giestas, por falar nelas, davam umas vassouras de categoria e o Trancadas era um barbeiro mesmo ao lado do tasco do Neca do Hotel, proximidade que se revelava de uma comodidade extrema. Por falar nisso, lembro-me de descer um degrauzinho, mais cá para o centro da vila, ali entre a sombria loja da Rosindinha Catequista e a Cafelândia, mas esse era o Sr. António Grande, o segundo barbeiro do meu padrinho Américo. Eu ia lá com o meu padrinho mais o meu tio Zé da Bomba, aos sábados de manhã, que naquele tempo eram sempre de sol. Na espera lia-se "O Primeiro de Janeiro", mal eu sabia que ainda o haveria de fazer. O meu padrinho Américo e o meu tio Zé da Bomba eram irmãos do meu pai, o grande Lando Bomba, e depois foram meus pais, à falta do propriamente dito, por razão de força maior.)
Hoje os montes de São Jorge e de Castelhão são casas e é o progresso. Os montes foram capados, terraplenados, desarborizados, alcatroados, liquidados. Os montes morreram de morte matada e a culpa morreu solteira. Fafe já não tem piononos. Mas, dizem-me, tem ainda a "Garrafinha" e historiadores até dar com um pau. Um deles, quem dera que não chova, ainda há-de contar esta como deve ser.

E agora, só para que conste: pio-nono será a forma "correcta" de escrever, se nos referirmos ao meco. Mas pionono pode ser também nome de doce muito popular em Espanha, na América Latina e nas Filipinas. Por outro lado, Pio IX, que se chamava Giovanni Maria Mastai-Ferretti, teve o segundo maior pontificado da história da Igreja, logo a seguir a São Pedro. E foi o primeiro papa a ser fotografado. Foi também um sacana do piorio e o Vaticano fez dele santo. Pio IX, que tratava os judeus como "cães" e abaixo de cão, foi o responsável pelo rapto de Edgardo Mortara, um menino de seis anos baptizado em segredo e retirado à força da sua família judaica, história contada por Marco Bellocchio no filme "O Rapto", estreado no Festival de Cannes do ano passado e que chega hoje às salas de cinema.

Era um perseguidor de sonhos

Foi apanhado, detido, julgado e condenado por stalking, exibicionismo e ultraje público ao pudor. Ele dizia que apenas perseguia os seus sonhos.

P.S. - Hoje é Dia Nacional de Sensibilização para o Fenómeno do Stalking.

O Homem-Bata

Chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Academicamente falando, os pontos eram aquilo a que hoje, suponho, ainda se chama testes, e a enfermaria já então era o que é - enfermaria. Atenção: eu dava parte de doente não porque fosse mau aluno mas porque era muito bom preguiçoso. Para além dos percevejos e do tradicional concurso de punhetas logo pela manhãzinha e a meio da tarde, o melhor que a enfermaria tinha era a sineta a tocar para os outros, a comida "de dieta" e o enfermeiro propriamente dito que na verdade era barbeiro. O Sr. Pimenta, se bem me lembro. O Sr. Pimenta era enfermeiro porque tinha a bata branca de barbeiro, trazia os termómetros no bolso, via as febres (que eram forjadas na fricção com os cobertores - chamava-se àquilo "manipular a febre" ou apenas "manipular"), passava raspanetes e dava-nos uns comprimidos de faz de conta que, se não me engano, eram sobras do Laboratório Militar. Os comprimidos serviam para tudo e não faziam nada. O Sr. Pimenta dava também muito mal injecções. E eu contava anedotas.
Figura mítica, consagrada instituição da velha Tamanca e autoridade local, o Sr. Pimenta era uma homem gordo, de andar pesado e lento, periclitante. A cada passo parecia-me que ia cair redondo para um dos lados, consoante a perna curta que avançava. O Sr. Pimenta tinha idade para ser meu avô, achava eu, e uma barbearia montada como se fosse a sério, mesmo em frente à capela e ao lado da sala de aulas que era também a loja onde os padres nos vendiam os "objectos", mas cortava tão mal o cabelo como os tosquiadores fardados que mo raparam sem dó nem piedade, uns anos depois, quando dei entrada nos Comandos. O Sr. Pimenta era barbeiro porque tinha a bata branca de enfermeiro.
Quer-se dizer: o Sr. Pimenta era a bata.
E poderia ter sido, quem sabe, o Homem-Bata, se, derivado aos seus múltiplos poderes e polivalentes predicados, a Marvel lhe tivesse deitado a mão em devido tempo. Infelizmente a Marvel não recruta em Portugal, e é o que perde.
Apesar de ter tudo para ser um super-herói, o Sr. Pimenta era só Sr. Pimenta para mim, porque a minha mãe tinha-me ensinado a tratar os senhores por senhores. Para o resto da rapaziada, meninos bem ou matarruanos, o Sr. Pimenta era o Pimenta, ordens de cima, nada de confianças. Paradoxalmente. E os outros funcionários ou acoitados, os que nos serviam no refeitório, certamente lerdos mas filhos de Deus como a gente, eram "criados". Criados. Ordens de cima. Já nem falo de educação - a caridade cristã tem definitivamente muito que se lhe diga.

Portanto, chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Um ano, o padre Vilar, o bom padre Vilar, não quis que eu ficasse sem nota a Religião e Moral. Visitou-me, fez-me duas ou três perguntas que valeriam o ponto, perguntas do mais elementar possível, só para que eu fizesse boa figura. Perguntou-me:
- Quem é Deus para ti?
- Deus é o meu pai - respondi.
- Todos somos filhos de Deus - atalhou o padre.
- Mas eu sou mais, porque sou órfão - defendi-me, com uma não ensaiada porém oportuna lágrima no canto do olho que me valeu para aí um dezoito.
Isto é: sou malabarista desde pequenino.

Na enfermaria havia sempre um bufo que ia contar ao impiedoso padre Coutinho as minhas anedotas, mas omitia a parte das punhetas, que era regra geral e ideia não sei de quem, minha é que não. E eu também não sabia a malícia das anedotas que contava. Fiquei a saber quando fui chamado à pedra por uma orelha - e assim me roubaram a inocência. O padre Coutinho gostava muito de música clássica e eu tenho a certeza absoluta de que a música clássica não gostava nada dele.

P.S. - Publicado originalmente no dia 20 de Outubro de 2014. O Super-Homem faz hoje 86 anos. Exactamente. O também chamado Homem de Aço, um dos principais super-heróis da cultura pop americana, apareceu pela primeira vez no dia 18 de Abril de 1938, na capa da Action Comics n.º 1.

Iluminação pública

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 16 de abril de 2024

Lourenço da Arrábida

O problema do Lourenço da Arrábida era o equívoco. Ou o gozo. O inocente equívoco ou o gozo premeditado, ele ainda não chegara à conclusão. O Lourenço tinha um tasco na Cantareira, paredes-meias com a ponte, e vai daí ficou-lhe o nome, que se propagou compreensivelmente ao estabelecimento - "Lourenço da Arrábida vinhos & petiscos", lá estava na tabuleta, como manda a sapatilha. Servia às quintas-feiras uma dobrada de razoável gabarito e preço em conta, segundo se constava. O certo é que as pessoas estavam sempre a perguntar-lhe pelo Omar Sharif, pelo Anthony Quinn, pelo Alec Guinness, ou se realmente ele viu Judas a cagar no deserto, como se dizia em Fafe no tempo do Cinema. Chamavam-no à televisão para comentar a situação no Médio Oriente, a mortandade em Gaza, os drones iranianos, mas admiravam-se por ele aparecer em pessoa e consequentemente ainda estar vivo, uma vez que para os devidos efeitos morrera num acidente de mota. Perguntavam-lhe também, se, por falar nisso, a Guinness deve ser bebida fresca ou à temperatura ambiente como alguns e determinados têm a mania. Enfim, já se sabe como são as pessoas.
O bom do Lourenço primeiro ia aos arames, afinava, escamava-se. Cego pelos nervos, num repente rapava da adaga e desatava a gritar "mouros!" e a matar a torto e a direito felizmente só da boca para fora. Quantas tragédias foram assim prometidas e adiadas, para enorme desconsolo da CMTV e assinalável prejuízo da indústria funerária da região. Mas com o tempo o nosso herói assentou, ganhou calo no cu, como se diz psicologicamente falando. Agora se o azucrinam com as tretas do costume, ele encolhe os ombros largos de desdém, pigarreia uma e outra vez, sacode duas valentes chibatadas no camelo de estimação e desaparece dali a galope, ondulando o manto branco por entre hordas descontroladas de turistas japoneses e outros infiéis que descem e sobem aos encontrões a completamente escangalhada Baixa portuense.

P.S. - O cineasta britânico David Lean, realizador de "Lawrence da Arábia" e "Doutor Jivago", morreu no dia 16 de Abril de 1991.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

O passeio do jovem ciclista em cuecas

Foto Hernâni Von Doellinger

Palavra de honra, em cuecas. Os famosos slipes ou trusses. Em cuecas, portanto. O jovem ciclista atravessou com a maior das descontracções a praça principal da vila de Caminha, em frente à Câmara e à igreja, perante o espanto e a reprovação compungida da distintíssima esplanada do Café Central que rebentava pelas costuras de senhorecas e senhorecos, sobretudo portuenses da Foz chique em gozo de segunda casa. Ou terceira. Ou. Primeiro para cima, depois para baixo, pedalando em preparos tão resumidos, o ciclista em cima da bicicleta, parece impossível num centro histórico! A indignação foi praticamente geral, até as arcas dos gelados coraram. E perceba-se o escândalo: era domingo e hora da missa para os indígenas, valha-me Deus...

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Ciclista.