quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Era fresca e doce

O génio da água destilada
Tinha um comportamento aparentemente excêntrico em dias de invernada: saía à rua com o guarda-chuva aberto mas virado ao contrário. As pessoas riam-se. Não sabiam que ele era recarregador de baterias...

No Verão da minha terra, no Verão antigo, umas abençoadas senhoras andavam pela caloraça das feiras e romarias vendendo copos de água de mina adoçada com açúcar amarelo e um remoto gosto a limão. Não era limonada, atenção, era exactamente o que eu digo: água fresca com duas ou três colheres de açúcar e talvez uma casca ou somítica rodela de limão. E não havia gelo. Na vila de Fafe, às quartas-feiras, dia de mercado semanal, pelos 16 de Maio ou pela Senhora de Antime, a "mina" era a bica da poça do Santo, do meu Santo Velho, que ficava ali à beira e era só comodidade. Em cima da cabeça, as despachadas senhoras, equilibristas que remédio, levavam uma rodilha e por cima da rodilha, consoante o uso dos sítios, uma bilha de barro ou um cântaro de lata revestido a cortiça, para conservar a frescura natural. Anunciavam "Fresca e doce!", a água, e desatavam a fugir, de socos na mão e pés descalços, mal se precatavam da presença, ainda que distante e distraída, do perigosíssimo fiscal da Câmara. E o povo, coitadinho, morria ali à sede. Ou então metia-se no vinho, que era o mais certo.
Fafe funcionava assim. Eu, que nunca provei pirolito, por falta de dinheiro e de coragem para assaltar o Banco, que era apenas um e por isso se dizia com letra maiúscula e ficava entalado entre o Martins Relojoeiro e o Nelo da Electra, eu, que só sabia dos gelados nas mãos dos outros, bebi uma ou duas vezes um daqueles copinhos, evidentemente mais em conta e decerto prenda extraordinária já não sei de quem nem porquê. E quereis saber? Era realmente fresca e doce, a água, como dizia a publicidade popular, e, palavra de honra, soube-me pela vida!

Já quentes e boas eram as castanhas, assim chamadas derivado à própria cor. No último Inverno por acaso até só foram quentes, às vezes nem isso, de resto apresentaram-se geralmente uma boa merda - secas, bichosas, bolorentas até. Mas ao que interessa: o pregão era, e ainda é, "Quentes e boas!", ou, como também se dizia em Fafe, "Castanhas assadas a vapor, ó que boas, ó que boas!..."
Quereis saber mais? Quem as vendia, às castanhas, ali no Santo Velho à beira do tasco do Zé Manco, era a Maria Barraca, que morava com as Ferreira Leite, na casa de rés-do-chão e primeiro andar quase em frente, isto antes de juntar dinheiro para abrir uma lojinha de plásticos e outras utilidades caseiras, uma portinha apenas, um bocado mais abaixo na Rua Monsenhor Vieira de Castro, um pouco antes do Ponto Final, mas do outro lado, encostada ao casarão do ricaço e benemérito encartado Zé de Freitas que desapareceu não sei para onde e hoje em dia parece que é o supermercado do Aldi. O casarão. Quanto à Maria Barraca, casou-se. Tarde, era o que constava, mas decerto muito a tempo.

Naquele mesmo correr, no terreiro do Santo face à estrada para o Picotalho, aproveitando a passagem obrigatória do povo em barda que trabalhava na Fábrica do Ferro, montavam banca também a Mocha e a D. Filomena, sardinheiras de categoria, e a Marrequinha da Recta, que curtia e vendia tremoços. Os tremoços da Marrequinha gozavam de muita fama e tinham um segredo. Dizia-se que eram a especialidade que eram porque a boa senhora lhes mijava regularmente durante a demolha.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Mundial da Monitorização da Água.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Bagatela...

Allegro ma non troppo
Deu-lhe um bach, assim de repente. Ele a princípio até ficou satisfeito, mas na verdade preferia um rimsky-korsakov.

Bagatela. Coisa sem valor, ninharia, insignificância, frivolidade ou, por outra, tabuleiro do chamado "bilhar chinês". Na música, bagatela é uma peça curta, ligeira e despretensiosa, típica do Romantismo, normalmente para ser tocada ao piano. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas colossais miniaturas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise", que toda a gente conhece. Em Fafe, bagatela era também resposta na ponta da língua como opinião acerca disto ou daquilo, exprimindo um certo desconsolo ou desconforto, é certo, mas dentro dos limites da educação e da caridade cristã. - E este vinhinho, hã?, que tal? - perguntava-se. E se o vinho não era realmente grande espingarda e não se queria passar por parvo nem por falso ou mal-agradecido, então respondia-se diplomaticamente: - Bagatela... 
Bagatela, assim com reticências e um sorrisinho assaz encaralhado de faz-favor-de-desculpar, queria dizer sofrível, mais ou menos, menos mal, podia ser pior, não há-de ser nada. Isto é: bagatela, aqui, queria dizer exactamente o mesmo que... calar. Mas um bocadinho para pior.

(Publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O terraplanista

Desenho Nestinho

A Terra tem diversos movimentos. Os mais famosos movimentos da Terra são o movimento de rotação, que é a Terra a andar egocentricamente à volta de si mesma - tipo Jorge Jesus ou André Ventura, sem ofensa para o primeiro - , e o movimento de translação, que é a Terra, agora modesta e submissa, hipnotizada, a andar à volta do Sol, qual aborboletinha avoando em torno dos afilamentos das alâmpadas, como diria o outro, o das imitações. Ora bem. O que me espanta é que tanto safanão não desequilibre a Terra nem a faça entornar os oceanos ou despencar por aí abaixo os desgraçados habitantes do hemisfério sul, que praticam o pino durante o ano inteiro. Quer-se dizer: não desequilibra mas incomoda. E por estas e por outras é que a Terra anda ligeiramente chateada nos pólos.

Posto isto. O desenho, feito de encomenda, é obra do Nestinho, Ernesto Brochado, um verdadeiro apaixonado por Fafe, ou fafense amador, provavelmente a figura mais conhecida e respeitada do mototurismo nacional, dirigente do Moto Clube do Porto e da Federação de Motociclismo de Portugal, alma mater e organizador crónico do extraordinário Lés-a-Lés e de dezenas de outras iniciativas do género e de menor dimensão. O Nestinho, que é cicloturista e ex-ciclista, que é atletista e maratonista bissexto, que é eminente motociclista, evidentemente mototurista, raramente motorista e às vezes motosserrista, que é maquetista, cartunista, desenhista, ecologista e portista, que aprendeu comigo a gostar de Fafe, e gosta muito, que é provavelmente uma das cinco melhores pessoas do mundo, e, tenho de dizer, eu nunca soube das outras quatro.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Mundial para a Preservação da Camada do Ozono, um assunto que deveras preocupa também o nosso Nestinho.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O trabalhista Castro Mendes

25 de Abril sempre, nem que seja só às vezes.

Sei de um fafense antigo que, se fosse vivo, andaria ainda agora por aí todo contente a festejar de porta em porta a vitória dos Trabalhistas ingleses, embora as eleições já tenham sido há mais de meio ano. O famoso Castro Mendes de Travassós, o Velhinho, figura incontornável e carismática do antes e após 25 de Abril de 1974, desses intensos, gloriosos e dramáticos dias fafenses, era o nosso "trabalhista" de estimação e gritava "ganhámos!", "ganhámos!" sempre que o Labour vencia as eleições ou formava governo no Reino Unido, mesmo no tempo da outra senhora.
O nosso herói era "trabalhista" porque, sendo intrinsecamente salazarista, era trabalhador e pelos trabalhadores, isto é, pelo corporativismo fascista, o raciocínio pode parecer demasiado elaborado ou, por outro lado, simplista em excesso, mas não é, nem uma coisa nem outra. Vejamos: Trabalhistas portanto trabalhadores, viva Salazar!, e não era preciso ir mais longe.
A evangélica frase, na hora dos festejos, "Ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e... pagai!" é historicamente atribuída a este extraordinário Castro Mendes, que eu ainda contactei no Liceu de Braga, onde ele era funcionário, se não estou em erro, e aliás acamaradei no seminário com um dos seus filhos.
O Velhinho era um figurão. Irredutível nas suas convicções, fiel aos seus inegociáveis princípios, toda a vida foi da situação, fosse qual fosse a situação. Ganhasse quem ganhasse, ele ganhava sempre, estava sempre ao lado dos vencedores. Era, a esse propósito, um intrépido praticante de varandismo e inflamado mandador de Vivas! Já no tempo da democracia, cheguei a vê-lo actuar na varanda do PS, em Fafe, pouco tempo depois de ter brilhado a média altura nas janelas do PSD. Para além disso, sabia muito bem o que fazia e porquê, tinha um enorme sentido de humor e eu achava-lhe um piadão.

O varandista Castro Mendes era irmão do professor António Castro Mendes, considerado uma das maiores autoridades nacionais no ensino do Português, Latim, Grego ou Aramaico. Eram muito parecidos fisicamente, na marotice e até na tessitura vocal, abrangente, metálica, megafónica. Antigo padre e pregador afamado, o Dr. Castro Mendes foi meu mestre e amigo no Liceu de Guimarães. Falava, cheio de orgulho, do seu "melhor aluno de sempre", que não era eu, obviamente, eu era uma nódoa a Latim, mas um "rapazinho" também de Fafe chamado Luís Marques Mendes e a quem o experimentado professor, há quase 50 anos, augurava um grande futuro, apontando-o aos lugares mais altos da Nação. E estava certo.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Democracia.

domingo, 14 de setembro de 2025

Eles chamam-lhe cumbre

Guerra da Restauração
Quando a Guerra da Restauração entre Portugal e Espanha terminou e pediu a continha, em 1668, foi deveras porreiro. Os espanhóis começaram a vir comer bacalhau a Valença e os portugueses passaram a ir às bandejas de marisco a Vigo. Foi bom para o negócio e, entre mortos e feridos, salvaram-se consideráveis estabelecimentos.

Em 1986, a Pousada de Santa Marinha, na Costa, em Guimarães, recebeu a terceira edição de uma coisa chamada Cimeira Luso-Espanhola. Aníbal Cavaco Silva era o primeiro-ministro de Portugal, Felipe González era o presidente do Governo espanhol e eu era jornalista de O Primeiro de Janeiro. Estivemos lá os três, evidentemente.
Tarde e a más horas, o meu jornal lembrou-se de me mandar para o local do crime. Tarde e a más horas, quero dizer, no caso em apreço, já depois de a coisa ter começado. E eu fui todo contente, de braço de fora na Catrel com letras, pendurado no Adélio Santos, que era o homem do volante, das fotografias e de outras habilidades e excessos. Eu tinha muita vaidade na minha profissão.
Com alguns empenhos e uma sorte do caraças, consegui credenciar-me numa esquina do Toural, que, tenho ideia, era posto de turismo mas tinha sido superiormente requisitado para todos os efeitos. Cheguei lá acima engatilhadíssimo para colocar certas e determinadas questões tanto ao Silva como ao González, que os havia de entalar, porém, sem me deixarem sequer abrir a boca, mandaram-me para uma sacristia que era a "sala de imprensa" ibérica. Ficámos lá todos de quarentena a contar larachas uns aos outros, chistes de espanhóis e portugueses, "Valevale...", diziam eles, "Já me tinhas dito...", dizíamos nós. Os jornalistas somos uns gajos com piada. Somos piadéticos sem fronteiras, Aljubarrota, na nossa irmandade, é como se fosse uma anécdota.
A cimeira eram dois dias. Escrevi um primeiro texto, de lançamento da coisa, na véspera da coisa, ainda na redacção, e assinei, com grande lata e imensa ignorância, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". Creio que na altura era "enviado-especial" que se usava, com hífen, o que dada uma certa solenidade à função. Não fui corrigido por quem devia ter tarimba e mais juízo do que eu - portanto estava certo. É preciso que se note: estava a começar no ofício e era a minha primeira saída para o "estrangeiro". Para além disso, como decerto estais recordados, eu tinha muita vaidade na profissão. Vai daí, fiz as malas e parti da portuense Rua de Santa Catarina rumo ao fim do mundo, onde cheguei passado um bocado.
Naqueles bons velhos tempos, os jornais pagavam generosamente as pernoitas aos seus jornalistas, e eu resolvi dormir em Fafe. Jantei, fora de horas, no restaurante do Café Académico e dormi em casa da minha mãe. No segundo dia, almocei no Fernando da Sede. O Pimenta foi buscar-me e levar-me a Guimarães. O importante era que eu estava para fora, eu era enviado-especial, estais a perceber? O Adélio infelizmente não concordava comigo, e foi dormir a casa, ao Porto, que lhe dava muito mais jeito e era a coisa mais natural do mundo.
Da cimeira, enquanto lá estive, só soube os recados que os chegamissos do Cavaco nos traziam de vez em quando, que a coisa estava atrasada e que "Eles" estavam a discutir isto e aquilo, tudo a correr muito bem para o nosso lado, Portugal 5-Espanha 3. Não me custa admitir que os llegamessos do González contavam aos jornalistas espanhóis o mesmo resultado mas ao contrário, e acho justo. A "Eles" só os vi na conferência de imprensa final. E na verdade nem os vi, estava muita gente à minha frente, câmaras, holofotes e microfones tapando-me a visão, mesmo sendo "Eles" maiúsculos. E também não os ouvi, mas isso a camaradagem resolveu, dando-me as notas detalhadas do que fora dito. Que era nada ou quase nada. E eu voltei a assinar, com grande gabarito e por mais três ou quatro vezes, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". E voltou a sair assim no jornal.
Resumindo e concluindo: como combinado, a Cimeira Luso-Espanhola de Guimarães de 1986 foi um sucesso e a cobertura do enviado-especial de O Primeiro de Janeiro ainda mais. O Adélio Santos morreu há uma dúzia de anos e o jornalismo consta que também.

Enfim. A 35.ª cimeira ibérica foi no ano passado, em Faro, e a próxima, se Deus quiser, há-se realizar-se em Espanha, não sei quando. E isto passa por ser uma história interminável. Ao fim de tantos anos e encontros, cá e lá, alternadamente, portugueses e espanhóis não há maneira de chegarem a acordo sobre o essencial da coisa: nós continuamos a chamar-lhe cimeira, como é evidente, e eles insistem em chamar-lhe cumbre, vá-se lá saber porquê...

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

sábado, 13 de setembro de 2025

Sem açúcar

Disseram-lhe que era Dia Mundial da Sépsis. Ele achou bem e mandou vir. Pensava que era um bebida.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Sépsis.

A Divina Comédia

O meu irmão Orlando ofereceu-me pelo Natal, entre outros livros, "A Divina Comédia" de Dante. A tal, edição bilingue, com a requintada e premiada tradução de Vasco Graça Moura. No total, quase 900 páginas. E é o que eu digo: o meu irmão não me grama.

P.S. - Dante Alighieri, autor de "Vida Nova" e de "A Divina Comédia", morreu no dia 13 de Setembro de 1321, aos 56 anos.