quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Os Foda e o Kagawa

Vivinho da Silva
Chamava-se Vivinho da Silva e era gozado por toda a gente. Quando morreu, então, foi uma risota...

Isto dos nomes, palavra de honra. Os nomes que me atiram, os nomes de que me esqueço, os nomes que me fazem rir. Eu ligo muito aos nomes, gosto de brincar com eles, escrevo compulsivamente sobre nomes, chamai-me o que quiserdes. Ora bem. Os Foda, por exemplo, pai e dois filhos, pelo menos, todos ligados ao futebol, dou-lhes valor ao apelido. Sandro Foda, 35 anos, joga no SV Wildon, da Áustria, e é irmão de Marco Foda, 33 anos, que jogou no Sturm Graz, também do campeonato austríaco, onde foi treinado pelo seu próprio pai, Franco Foda, 59 anos, actual seleccionador do Kosovo. Os Foda, Deus me perdoe, fazem-me lembrar, deixai cá ver, o internacional japonês Kagawa - Shinji Kagawa -, 36 anos, que alinha, quiçá em final de carreira, no Cerezo Osaka, do Japão. Por estes dias, em Portugal, consta que debutou um jovem Fode, 20 anos, no SC Braga, mas o presidente António Salvador mandou chamar-lhe Pascoal, e por isso não conta para o totobola.
Eu faria muito gosto que estes nomes valentes fossem nossos, de gente fafense, ou pelo menos de jogadores da AD Fafe, como já tivemos o Ricoca e o Zebras, o Machica, o Riga, o Piré, o Rates, o Estafete, o Mulato, o Caganito, aliás dois Caganitos, ou talvez mais, o Trolas, o Feira Velha, o Esparrinhento, o Pescoça, o Ferradeira ou o Mofo, para só elencar povo aqui nascido e criado, nomes formidáveis e telúricos, símbolos de um tempo extraordinário. Hoje em dia temos um Picas, um Vigário, um Nico... e é um pau. Foi o que se pôde arranjar.

Na bola como na vida, os nomes interessam-me. "Diz-me o teu nome, dir-te-ei quem és" - acredito neste ancestral provérbio chinês que acabo de inventar agora mesmo, e não no outro, bem intencionado e de autor incerto, "Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és", até porque, como lembrava Millôr Fernandes, Judas andava com Cristo e Cristo andava com Judas, ficando assim cabalmente explicado, embora por interposta pessoa, o meu inatacável ponto de vista.
Portanto, dou-me ao trabalho dos nomes. Quando eu era miúdo, em Fafe, marcava nos restos do JN do Bô da Bomba os nomes dos jogadores de futebol que me pareciam esquisitos. Ainda não tínhamos chegado à babel que agora é, mas o Marreca, o Camelo, o Cansado, o Repolho, o Chouriça, o Torto, o Maneta, o Sacristão, o Mouco e o Aguardente enchiam-me de alegria as segundas-feiras. Também gostava muito do Araponga, do Alhinho e do Manaca, que uma vez vi em Guimarães a marcar um magnífico autogolo que não tem nada que se lhe aponte. O Penteado, o Careca, o Metralha e o Cascavel já me apareceram fora de tempo, mas isto é tudo nomes só por exemplo.
Com os nomes sublinhados, eu fazia equipas que jogavam umas contra as outras, num campeonato de partir a moca, porque eu imaginava os jogadores exactamente conforme o nome, não sei se estais a ver o Marreca a driblar o Sacristão e o Repolho a entrar de pé em riste ao Camelo. Eu estou, quero dizer, estava, e, cá para comigo, à falta de outras brincadeiras e alegrias, ria-me como um perdido...

(Versão revista, actualizada e muito aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

terça-feira, 4 de novembro de 2025

O troglodita e os poliglotas

Ele diz que é troglodita, isto é, que fala várias línguas, e até pôs no currículo. Poliglotas, costuma explicar, eram os gajos dos dinossauros, com uma moca ao ombro e as mulheres arrastadas pelos cabelos.

A última folha

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Sete minutos e quatro centímetros

Um pé assim e outro assado
Ele tinha um pé de laranja lima. O outro era normal, perfeitinho graças a Deus: cinco dedos, tarso e metatarso, planta ou sola, peito ou dorso, calcanhar e tornozelo, num total de 26 ossos em razoável estado de conservação. E era bom nas bolas paradas.

Eu não vi. Àquela hora tenho habitualmente mais que fazer, como por exemplo dormir, coisas de velho. Mas ouvi dizer, logo pela manhã, enquanto fazia a minha caminhada pelo Passeio Atlântico, ali em baixo, à beira do mar. Não se falava de outra coisa. Que passavam sete minutos e faltavam quatro centímetros, diziam, e eu fiquei deslumbrado com a descrição da "jogada", tão precisa, tão matemática, tão literária, tão fácil de imaginar, tão bela, tão diferente do tempo em que era uma bola a pinchar e onze contra onze, coisa de moços, de gente simples! Ó, a beleza do futebol moderno! Mas qual dominou com o peito e rematou sem deixar cair. Mas qual "ripa na rapaqueca", mas qual "vai buscá-la, Tibi", mas qual drible, ginga, revienga, trivela, cueca, frango, calcanhar, chapéu, fífia, rasteira, ressaca ou sarrafada, finta um, finta dois, finta três e dispara por cima do guarda-redes, sem hipótese, ao ângulo, na gaveta, "lá onde a coruja dorme!", mas qual "passa a bola!", como dizia o nosso Aníbal, mas qual golo de bandeira, estádio de pé, orgasmo do povo! Isso já não interessa. Não. Passavam sete minutos e faltavam quatro centímetros, isso sim, era disso que falavam no "pós-match" de café, foi isso que aconteceu para a história, minutos e centímetros, tempo e espaço, VAR. Compensação de neutralizações e linha virtual de fora-de-jogo. Tecnologias. Tácticas e habilidades não são assunto, a fantasia é dispensável, omitida, discute-se o relógio e o tamanho da chuteira, quarenta e três biqueira larga. Sete minutos e quatro centímetros. O futebol hoje em dia é de contar pelos dedos.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

domingo, 2 de novembro de 2025

Uma frase enigmática

Agora é assim. Uma pessoa famosa por ser famosa, equilibrada ou tola, por sistema ou em episódio, isso para o caso não interessa, escreve uma palermice qualquer sem sentido nem gramática nas redes sociais, os jornais apressam-se a "noticiar" que essa pessoa famosa por ser famosa, isto é, por dar nos jornais, publicou "uma frase enigmática". E publicam a "frase enigmática". Não se sabe o que é, ninguém sabe nem precisa de saber o que é, mas os jornais "metem" cá para fora. E nisto estamos.

Era tão fácil a morte em Fafe

O testamento
O notário vacilou. Mas leu. O defunto deixava beijos e abraços. Distribuídos pelos inúmeros herdeiros em fracções de zero a 145, consoante o julgado merecimento de cada qual. Dinheiro não havia. Tinha ido todo em putas e vinho verde. Isto é, em beijos e abraços.

Um folheto que me foi metido na caixa do correio convidava-me a escolher "um Plano Funerário adequado". Adequado a quê e para quem?, se conto estar morto quando for o meu funeral e quero lá saber de mordomias póstumas - foi o que então pensei, e já lá vão alguns anos. O papel dizia que havia um "Plano Magno", praticamente como o gelado, um "Plano Essencial", que não faz bem nem mal, e um "Plano Popular", como o ex-CDS. Em qualquer dos casos, eram garantidos "serviço personalizado a partir de 995 euros" e uma vasta "experiência", o que também deixa muito mais descansado o defunto mais exigente. "Florista, Campas e Lápides, Documentação Oficial, Serviço Internacional, Música na Cerimónia, Medalha Impressão Digital, Cinzas ao Mar, Financiamento sem Juros, Contrato de Funeral em Vida", estava trudo previsto.
A caixa do correio mete-me medo. Não tanto pelas contas da luz, da água ou do condomínio, tampouco pelos avisos das Finanças ou do Tribunal, mas principalmente pelos que me perguntam pelo meu ouro e eu não os conheço de lado nenhum, pelos que me pedem o meu voto e não me conhecem de lado nenhum, pelos que querem comprar a minha casa que eu não quero vender, pelos que me querem vender uma casa que eu não quero comprar, pelos que querem que eu mude de Deus, e agora até pelos que me querem vender a minha morte como se soubessem alguma coisa da minha vida que eu não sei, ainda por cima aliciando-me com extras e regalias redundantes, luxos próprios para defuntos vaidosos, como se por acaso eu estivesse mortinho por fazer figura.
Vamos lá com calma. Eu sei que ninguém fica cá para a semente e que se alguém ficar sou eu (mas não é isto que aqui interessa). Sei que fatalmente já por cá andei mais tempo do que aquele que me resta para andar. Mas, com franqueza, a vida é tão boa e dá-me tantas consumições, que tenho mais que fazer do que pensar na morte, do que organizar a minha morte. Quando eu morrer (se morrer), logo se verá. Eu é que já não verei, e não me faz diferença nenhuma. Que se amanhem! Essa é a herança que deixo de bom grado a quem me sobreviver. Se alguém houver.

Era tão fácil a morte em Fafe. Morria-se e tínhamos logo à porta, como se estivessem à espera, de fita métrica na mão, patrões ou emissários, o Albano da Costa ou o Damião Monteiro, que dividiam o mercado talvez ela por ela, cada qual já sabia quem eram os seus, e, mais tarde, também o Baptista de Antime, que alugava altifalantes e fazia funerais "de categoria", como afiançava o Zé Maria Sapateiro, e nunca ninguém o desmentiu. Na hora da morte, a escolha da funerária, para os fafenses, era simples: baseava-se nas amizades, nas ligações familiares e, definitivamente, em favores devidos a este ou àquele cangalheiro, homens importantes, influentes, e com negócios e interesses vários e poderosos na vida da vila antiga.
Às vezes, para enterros nas aldeias à volta, algumas delas, por aquela altura, ainda sem estradas de lei ou sequer caminhos transitáveis, os agentes funerários requisitavam a carreta dos Bombeiros, puxada e manobrada à mão por um piquete fardado de gala, com luvas brancas e capacetes dourados reluzindo ao sol, coisa bonita de se ver. Nestas infaustas e solenes ocasiões, os bombeiros de serviço recebiam uma pequena gratificação, a bem dizer simbólica, decerto saída do pagamento da funerária à corporação, e, após as exéquias, no regresso do cemitério, eram amiúde agraciados pela família enlutada com uma generosa merenda, que constava, regra geral, de bacalhau frito, broa e umas boas malgas de verde tinto, evidentemente, nem que fosse apenas manhãzinha.
Publicidade a respeito de funerais, naquela maré, em Fafe, a única que havia era a do gato-pingado biscateiro e apressado que andava de loja em loja, de café em café, de tasco em tasco, a deixar o tradicional aviso em papel do falecimento e do enterro, para colocar nas montras, mas explicando sempre de viva voz, em todos os locais, quem era exactamente o morto, o seu enquadramento familiar, irmãos, pais ou filhos, se fossem mais conhecidos, uma ou outra nota biográfica, empregos, alcunhas, se as houvesse, hora e morada, porque naquele tempo os defuntos saíam de casa, tudo dito muito rapidamente, entrada por saída, uma e outra vez, numa espécie de lengalenga previamente ensaiada, porém aberta a perguntas, e eu gostava muito de ouvir aquilo, como se fosse um teatro, uma récita, eu dava realmente valor ao trabalho do homem. O gato-pingado, para mim, era um artista.

Devo confessar, já agora, que o prospecto que me enfiaram na caixa do correio acabou por aguçar a minha curiosidade. Esse é, afinal, o truque do marketing, mesmo do marketing de trazer por casa. Porta a porta. Admito que estou a pensar pedir um orçamento para a minha morte. Seduziu-me aquela coisa da "Medalha Impressão Digital", que não sei o que é mas deve ser muito bom para o morto. E também quero que me expliquem muito bem explicadinho o "Contrato de Funeral em Vida". Isso é legal? E é saudável? Funeral em vida? Dasse!...

(Publicado ontem no meu blogue Mistérios de Fafe)

Novos Mistérios de Fafe


É no blogue Mistérios de Fafe que eu publico, desde o início do ano, os meus textos sobre Fafe, sobre vidas, pessoas, usos, falares e acontecimentos do meu tempo de Fafe e após, isto é, sobre o modo como o recordo ou quero recordar. Histórias e memórias pessoais, juvenis e profissionais, velhas amizades, cromos e admirações, cenas gagas ou desgraçadas, pilhérias, peripécias, é o que por lá conto. Entretanto, mantenho activos os blogues Fafismos e Tarrenego!, este, mais generalista e "nacional".

(Mistérios de Fafe pode ser visto e lido em - https://misteriosdefafe.blogspot.com/)