sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Londres em Tamisa 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Caixa do Evaristo

Quando abriram a caixa de Pandora, saiu de lá de dentro o Evaristo. Pandora ia morrendo de vergonha...

P.S. - Hoje é Boxing Day.

De Pandora a Paulo Macedo

Pandora era a primeira mulher, a Eva lá deles, a mulher perfeita, criada por Hefesto e Atena, com a mãozinha de todos os outros deuses, cada qual conferindo-lhe um dom, sob régua e esquadro de Zeus. Pandora era "a que tudo dá", "a que possui tudo", "a que tudo tira". Pandora foi feita de encomenda para agradar aos homens. Depois tomou conta da Caixa, ou da Boceta, como dizem os cultos e alguns depravados, e hoje em dia é Paulo Macedo.

P.S. - Hoje é Boxing Day.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Quero denunciar o meu pai

Foto Tarrenego!

Penso rápido
Pensei sobre o assunto. Eu penso muito, mas penso pouco. A minha é vida é feita de muitos assuntos, mas pequenos assuntos. Os meus assuntos sucedem-se uns atrás dos outros, breves, infindáveis. Por isso estou sempre a pensar, mas pouquinho de cada vez, com pensamentos curtos, instantâneos, diferentes, um para cada assunto. Isto é: penso muito, penso pouco, penso rápido.

Quero fazer uma denúncia: o meu pai era benfiquista e morreu quando eu tinha onze anos. Isso faz-se? Tem algum jeito? Não sei se a CMTV e a TVI vão pegar no caso, mas justificava-se. Porque desgraça tamanha é para dar na televisão. Há que tempos que eu sou mais velho do que o meu pai, e acho isso muito mal. E o meu pai ainda me faz falta, e tenho essa grande razão de queixa. E às vezes sinto-me órfão, como por exemplo hoje, e já não tenho idade para estas coisas. Na minha ideia, minhas senhoras e meus senhores, a Procuradoria-Geral da República, o SIS e a Polícia Judiciária também deviam andar da perna enquanto a têm. E o Chega tem obrigação de exigir e berrar e espernear e patear por uma comissão parlamentar de inquérito, dê por onde der, contra tudo e contra todos. Comissão Parlamentar de Inquérito à Morte do Pai Que Era Benfiquista e Morreu Quando o Filho Tinha Onze Anos. Gosto do nome, assim simples, parece-me bem.
O meu pai era portanto benfiquista e penso que só isso é mais do que suficiente para abrir um processo. Era benfiquista e, ao fim do dia de trabalho, levava-me a ver os treinos do Fafe no Campo da Granja, que também já não existe. O meu pai, apesar de breve, ensinou-me o futebol e outras coisas boas da vida, como, por exemplo, os pastéis. Uma vez levou-me às Festas Gualterianas a Guimarães, fomos a um tasco e eu pedi-lhe para comer feijão com tripas, que vi e nunca tinha provado, e gostei que eu sei lá. Se calhar por isso é que ainda hoje gosto tanto e faço tão bem. Outra vez trouxe-me de presente uma pistola Luger P08 de brincar, pesada e igualzinha às dos nazis dos filmes, e gostei que eu sei lá. Não sei o que me deu na cabeça, mas cresci e não gosto de armas. Continuo a gostar do meu pai.
Para além de benfiquista - repito, benfiquista -, o meu pai era também novo, malandro, bonito e bom, mas suponho que isso não interesse para os autos, e era excelente operário tecelão, músico, bombeiro e jogador de dominó. De bombeiro, levava-me ao cinema e ao circo à borliú, debaixo do braço, porque a pagantes seria impossível. E contava-se que no dominó, jogado na mesa do canto direito para quem entrava na sala das traseiras do café Peludo, o meu pai até escondia pedras na boca para enganar parceiros e ganhar mais uns tostões para casa. Eu ia chamá-lo, bem ensaiado pela minha mãe para que ele não ficasse malvisto perante os amigos. "A mãe manda dizer que a comida está pronta", era o que eu dizia, uma e só uma vez, baixinho, e ficava ao lado dele todo contente, à espera.
É preciso que se note: o meu pai, também conhecido como Lando Bomba ou Lando da Bomba, não era só dominó. Nas festas onde a Banda de Revelhe ia tocar, o meu pai, que tocava saxofone, tinha também sociedade com o homem da roleta de feira, artesanal e viciada. Nos intervalos dos concertos, fartava-se de ganhar canivetes, cintos, saca-rolhas, tesouras, baralhos de cartas e gaitas de beiços. O meu pai era o engodo. "Mais uma para o senhor músico. Está em dia de sorte, o raisparta o músico!", gritava o homem da roleta, feitos um com o outro, a chamar o povo. E o povo caía, ontem como hoje. No final, o meu pai devolvia tudo a troco de umas coroas ou de mais uma navalha para oferecer.
Calhava-me, de vez em quando, levar o almoço do meu pai à fábrica. Estando sol, o meu pai e outros operários da Fábrica do Ferro comiam num terreno muito jeitoso para o efeito, a caminho do rio. Do Comporte, e por favor não confundir com Comporta. Sentávamo-nos numas pedras à sombra de pinheiros geralmente mansos e eu adorava estar ali com o meu pai aquela meia hora. Era como se fosse um piquenique, mas eu ainda não conhecia a palavra.
O meu pai dizia "Lá estara?". "Lá estara?" era cumprimento, saudação tirada de ouvido entre amigos e compinchas, da rua, do café, da fábrica, dos bombeiros, da bola e da banda. "Lá estara?" queria dizer mais ou menos "Olá, tudo bem?" ou "Viva, como é que vai isso?". O meu pai fazia também questão (que se dizia "questã") de reinventar os nomes das pessoas, e por isso o nosso bom Berto Dantas era o Berteira, o monossilábico Augusto da esquina era o Gustaveira, e assim sucessivamente. O Berto Dantas foi certamente o melhor jogador de futebol de todos os tempos nascido em Fafe, e era um ser humano maravilhoso, uma verdadeira jóia, um coração que se dava.
O meu pai gostava muito de fazer rir a minha mãe e, de malandrice, lia-lhe o jornal metendo as expressões "pelo cu acima" e "pelo cu abaixo" entre as palavras das notícias. Se fosse hoje, ficaria, por exemplo, assim: "A atriz pornográfica, pelo cu acima, Stormy Daniels, pelo cu abaixo, descreveu, pelo cu acima, o pénis, pelo cu abaixo, do presidente, pelo cu acima, dos Estados Unidos, pelo cu abaixo, Donald Trump, pelo cu acima, comparando-o, pelo cu abaixo, a um cogumelo, pelo cu acima." Eu e os meus irmãos, que arranjávamos sempre maneira de ouvirmos aquela comédia, escangalhávamo-nos a rir. A minha mãe repreendia o meu pai, tentava tirar-lhe o jornal das mãos, pareciam dos filmes do Charlot mas a cores, e nós ainda nos ríamos mais. Éramos pobres, mas tínhamos o riso. E o riso é muito bom, é uma riqueza alternativa. Éramos, então, remediadamente felizes.
Como habilitações literárias, o meu pai tinha o "Exame do 2.º Grau do Ensino Primário Elementar (4.º Grupo), isto é, tinha o "Exame da 4.ª Classe" ou apenas "o Exame", como se dizia. O meu pai gostava de ler, o que não era muito normal no seu círculo de confianças conhecidas. Talvez fosse um homem culto à sua própria custa, sub-reptício, não sei. Sei é que tinha livros, seis ou sete, escondidos em cima do guarda-vestidos, alguns deles ainda com páginas intonsas, como se usava naquela altura. "Por Quem os Sinos Dobram", de Ernest Hemingway, da velhinha Coleção Dois Mundos, Livros do Brasil, lembro-me dele. Li-o precocemente. Os outros, quando os descobri, ainda miúdo, fiquei com a ideia de que não seriam romances, aventuras, mas coisa mais séria, chatices. O meu pai tinha discos de música clássica da Deutsche Grammophon, sete ou oito, dos maiores compositores, com grandes orquestras, os melhores intérpretes, peças imortais, a "Abertura 1812", de Tchaikovski, a "Gazza Ladra", de Rossini, a "Tannhäuser", de Wagner, sinfonias de Beethoven e uma extraordinária pianada que eu apreciava especialmente, mas de que agora não consigo desencravar o nome, que vergonha. Os discos também estavam escondidos e eram ouvidos pela calada, muito raramente, quase clandestinamente, num robusto gira-discos pedido emprestado não sei a quem. Haveríamos de ter um, nosso, pequeno, mais tarde, por desgraçada herança. Não sei se o meu pai era "comunista", não tive tempo de saber.
O meu pai foi para França, Belfort, resvés com a Suíça, e escrevia-nos cartas numa letra muito perfeitinha em papel quadriculado que nós líamos à nossa mãe. Cartas bonitas, cheias de "espero que ao receberes esta", "que eu bem graças a Deus", cartas contidas, subentendidas, cartas tristes. Nós também íamos para França, estávamos já de malas feitas, o "reagrupamento familiar" já tinha sido aprovado, mas acabámos por não ir, porque entretanto o nosso pai morreu à última da hora, meia dúzia de dias antes da viagem programada, e a minha vida deu então esta volta que só vista. O meu pai morreu, acredito que de saudades, numa gelada véspera de Natal. Em França. Sozinho. Não chegou a cumprir os 37 anos de idade. No dia seguinte nasceu o Menino Jesus, disseram-me que de propósito para tomar conta na minha mãe, de mim e dos meus três irmãos, todos crianças. Que Deus me perdoe, mas o velhote, que nunca pôde ser, ter-nos-ia dado muito mais jeito...

(Versão revista e bastante aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

Este ano é assim

Foto Hernâni Von Doellinger