quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Quero denunciar o meu pai

Foto Tarrenego!

Penso rápido
Pensei sobre o assunto. Eu penso muito, mas penso pouco. A minha é vida é feita de muitos assuntos, mas pequenos assuntos. Os meus assuntos sucedem-se uns atrás dos outros, breves, infindáveis. Por isso estou sempre a pensar, mas pouquinho de cada vez, com pensamentos curtos, instantâneos, diferentes, um para cada assunto. Isto é: penso muito, penso pouco, penso rápido.

Quero fazer uma denúncia: o meu pai era benfiquista e morreu quando eu tinha onze anos. Isso faz-se? Tem algum jeito? Não sei se a CMTV e a TVI vão pegar no caso, mas justificava-se. Porque desgraça tamanha é para dar na televisão. Há que tempos que eu sou mais velho do que o meu pai, e acho isso muito mal. E o meu pai ainda me faz falta, e tenho essa grande razão de queixa. E às vezes sinto-me órfão, como por exemplo hoje, e já não tenho idade para estas coisas. Na minha ideia, minhas senhoras e meus senhores, a Procuradoria-Geral da República, o SIS e a Polícia Judiciária também deviam andar da perna enquanto a têm. E o Chega tem obrigação de exigir e berrar e espernear e patear por uma comissão parlamentar de inquérito, dê por onde der, contra tudo e contra todos. Comissão Parlamentar de Inquérito à Morte do Pai Que Era Benfiquista e Morreu Quando o Filho Tinha Onze Anos. Gosto do nome, assim simples, parece-me bem.
O meu pai era portanto benfiquista e penso que só isso é mais do que suficiente para abrir um processo. Era benfiquista e, ao fim do dia de trabalho, levava-me a ver os treinos do Fafe no Campo da Granja, que também já não existe. O meu pai, apesar de breve, ensinou-me o futebol e outras coisas boas da vida, como, por exemplo, os pastéis. Uma vez levou-me às Festas Gualterianas a Guimarães, fomos a um tasco e eu pedi-lhe para comer feijão com tripas, que vi e nunca tinha provado, e gostei que eu sei lá. Se calhar por isso é que ainda hoje gosto tanto e faço tão bem. Outra vez trouxe-me de presente uma pistola Luger P08 de brincar, pesada e igualzinha às dos nazis dos filmes, e gostei que eu sei lá. Não sei o que me deu na cabeça, mas cresci e não gosto de armas. Continuo a gostar do meu pai.
Para além de benfiquista - repito, benfiquista -, o meu pai era também novo, malandro, bonito e bom, mas suponho que isso não interesse para os autos, e era excelente operário tecelão, músico, bombeiro e jogador de dominó. De bombeiro, levava-me ao cinema e ao circo à borliú, debaixo do braço, porque a pagantes seria impossível. E contava-se que no dominó, jogado na mesa do canto direito para quem entrava na sala das traseiras do café Peludo, o meu pai até escondia pedras na boca para enganar parceiros e ganhar mais uns tostões para casa. Eu ia chamá-lo, bem ensaiado pela minha mãe para que ele não ficasse malvisto perante os amigos. "A mãe manda dizer que a comida está pronta", era o que eu dizia, uma e só uma vez, baixinho, e ficava ao lado dele todo contente, à espera.
É preciso que se note: o meu pai, também conhecido como Lando Bomba ou Lando da Bomba, não era só dominó. Nas festas onde a Banda de Revelhe ia tocar, o meu pai, que tocava saxofone, tinha também sociedade com o homem da roleta de feira, artesanal e viciada. Nos intervalos dos concertos, fartava-se de ganhar canivetes, cintos, saca-rolhas, tesouras, baralhos de cartas e gaitas de beiços. O meu pai era o engodo. "Mais uma para o senhor músico. Está em dia de sorte, o raisparta o músico!", gritava o homem da roleta, feitos um com o outro, a chamar o povo. E o povo caía, ontem como hoje. No final, o meu pai devolvia tudo a troco de umas coroas ou de mais uma navalha para oferecer.
Calhava-me, de vez em quando, levar o almoço do meu pai à fábrica. Estando sol, o meu pai e outros operários da Fábrica do Ferro comiam num terreno muito jeitoso para o efeito, a caminho do rio. Do Comporte, e por favor não confundir com Comporta. Sentávamo-nos numas pedras à sombra de pinheiros geralmente mansos e eu adorava estar ali com o meu pai aquela meia hora. Era como se fosse um piquenique, mas eu ainda não conhecia a palavra.
O meu pai dizia "Lá estara?". "Lá estara?" era cumprimento, saudação tirada de ouvido entre amigos e compinchas, da rua, do café, da fábrica, dos bombeiros, da bola e da banda. "Lá estara?" queria dizer mais ou menos "Olá, tudo bem?" ou "Viva, como é que vai isso?". O meu pai fazia também questão (que se dizia "questã") de reinventar os nomes das pessoas, e por isso o nosso bom Berto Dantas era o Berteira, o monossilábico Augusto da esquina era o Gustaveira, e assim sucessivamente. O Berto Dantas foi certamente o melhor jogador de futebol de todos os tempos nascido em Fafe, e era um ser humano maravilhoso, uma verdadeira jóia, um coração que se dava.
O meu pai gostava muito de fazer rir a minha mãe e, de malandrice, lia-lhe o jornal metendo as expressões "pelo cu acima" e "pelo cu abaixo" entre as palavras das notícias. Se fosse hoje, ficaria, por exemplo, assim: "A atriz pornográfica, pelo cu acima, Stormy Daniels, pelo cu abaixo, descreveu, pelo cu acima, o pénis, pelo cu abaixo, do presidente, pelo cu acima, dos Estados Unidos, pelo cu abaixo, Donald Trump, pelo cu acima, comparando-o, pelo cu abaixo, a um cogumelo, pelo cu acima." Eu e os meus irmãos, que arranjávamos sempre maneira de ouvirmos aquela comédia, escangalhávamo-nos a rir. A minha mãe repreendia o meu pai, tentava tirar-lhe o jornal das mãos, pareciam dos filmes do Charlot mas a cores, e nós ainda nos ríamos mais. Éramos pobres, mas tínhamos o riso. E o riso é muito bom, é uma riqueza alternativa. Éramos, então, remediadamente felizes.
Como habilitações literárias, o meu pai tinha o "Exame do 2.º Grau do Ensino Primário Elementar (4.º Grupo), isto é, tinha o "Exame da 4.ª Classe" ou apenas "o Exame", como se dizia. O meu pai gostava de ler, o que não era muito normal no seu círculo de confianças conhecidas. Talvez fosse um homem culto à sua própria custa, sub-reptício, não sei. Sei é que tinha livros, seis ou sete, escondidos em cima do guarda-vestidos, alguns deles ainda com páginas intonsas, como se usava naquela altura. "Por Quem os Sinos Dobram", de Ernest Hemingway, da velhinha Coleção Dois Mundos, Livros do Brasil, lembro-me dele. Li-o precocemente. Os outros, quando os descobri, ainda miúdo, fiquei com a ideia de que não seriam romances, aventuras, mas coisa mais séria, chatices. O meu pai tinha discos de música clássica da Deutsche Grammophon, sete ou oito, dos maiores compositores, com grandes orquestras, os melhores intérpretes, peças imortais, a "Abertura 1812", de Tchaikovski, a "Gazza Ladra", de Rossini, a "Tannhäuser", de Wagner, sinfonias de Beethoven e uma extraordinária pianada que eu apreciava especialmente, mas de que agora não consigo desencravar o nome, que vergonha. Os discos também estavam escondidos e eram ouvidos pela calada, muito raramente, quase clandestinamente, num robusto gira-discos pedido emprestado não sei a quem. Haveríamos de ter um, nosso, pequeno, mais tarde, por desgraçada herança. Não sei se o meu pai era "comunista", não tive tempo de saber.
O meu pai foi para França, Belfort, resvés com a Suíça, e escrevia-nos cartas numa letra muito perfeitinha em papel quadriculado que nós líamos à nossa mãe. Cartas bonitas, cheias de "espero que ao receberes esta", "que eu bem graças a Deus", cartas contidas, subentendidas, cartas tristes. Nós também íamos para França, estávamos já de malas feitas, o "reagrupamento familiar" já tinha sido aprovado, mas acabámos por não ir, porque entretanto o nosso pai morreu à última da hora, meia dúzia de dias antes da viagem programada, e a minha vida deu então esta volta que só vista. O meu pai morreu, acredito que de saudades, numa gelada véspera de Natal. Em França. Sozinho. Não chegou a cumprir os 37 anos de idade. No dia seguinte nasceu o Menino Jesus, disseram-me que de propósito para tomar conta na minha mãe, de mim e dos meus três irmãos, todos crianças. Que Deus me perdoe, mas o velhote, que nunca pôde ser, ter-nos-ia dado muito mais jeito...

(Versão revista e bastante aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

Este ano é assim

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Natal é como o homem quiser

Olhei para o céu, estava estrelado. Mandei para trás. Eu tinha pedido escalfado.

Piccadilly by night

Foto Hernâni Von Doellinger

A reinvenção das galochas

Quem vê caras
Quem vê caras também vê lux. E nova gente, vip, ana, maria, mariana e cristina, telenovelas, tv7dias, tv mais, tv guia e ¡hola, "por supuesto".

As mulheres do campo, as lavradeiras, sempre andaram de galochas. Era assim em Fafe, era assim o mundo. Antigamente, para os demais, uma mulher de galochas era de rir, era parola. Agora andar de galochas é moda, as mulheres vão de galochas para o escritório e para o café. Fico à espera do avental. Ainda hei-de ver as madamas a tomarem chá de mindinho esticado e com um molho de couves à cabeça.

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

No país dos cotonetes

Foto Hernâni Von Doellinger

Quem vê caras não vê orações

Branco mais branco
Deu o braço a torcer. E depois pô-lo a corar. Era uma pessoa muito limpa.

Um daqueles famosos restaurantes de peixe na brasa aqui ao lado, na Rua Heróis de França, Matosinhos à beira-mar, estais a ver, já vos chegou o cheiro? Ainda é cedo. Pouco passa das oito da manhã, uma velhinha varre cerimoniosamente a esplanada que por acaso é passeio ocupado com ordem municipal, os peões têm de andar pela estrada, toureando carros felizmente em sentido único. Asseada como se fosse domingo, como se fosse Natal, a velhinha, corpo franzino, cabelos brancos de neve, ajeitados à moda da televisão, da telenovela, uma carinha doce, redonda como um minúsculo sol resplandecendo bondade, olhos apontados ao chão, espertos, criteriosos, os olhos, a velhinha varre varre, vagarosa e competente. Varre varre vassourinha, se varreres bem dou-te um vintém, se varreres mal dou-te um real. Se os anjos varressem e fossem velhinhas, e competentes, eram ela certamente e varreriam assim mais ou menos. Lembro-me de velhinhas tais quais no meu tempo de criança, em Fafe, as saudades doem-me na zona do fígado, estou também a ficar velho. A rua naquele sítio àquela hora éramos a velhinha e eu. Eu, que venho de mercar sardinhas madrugadoras e vivas, eventualmente clandestinas, estremeço de comoção. Trauteio distraidamente a lengalenga mansa e antiga, brincada à rodinha no Santo Velho, de mãos estendidas, mãos dadas, meninas e meninos sem distinção, recordo-os a todos e a todas, componho-lhes as caras, dou-lhes os nomes, turva-se-me a vista de repente e, carago, são lágrimas...
Varre varre a velhinha doce e cerimoniosa, olhos espertos e belos. Olhos que não enganam. Bondosos. Cara de sol, de anjo. E, eu a passar-lhe pelas costas em pezinhos de lã, para não incomodar, para não estragar cena tão encantadora, diz a velhinha, completamente distraída de mim, como se fosse um mantra ou, vá lá, a recitação atabalhoada do terço, à tardinha, na nossa Igreja Matriz, antes da bênção do Santíssimo: - Filhos da puta! Era mas é fodê-los! Mandá-los a todos prò caralho! À puta que os pariu!...
É. Ninguém diga que está livre, amém!

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)