Nestes vinte dias não me saiu sequer uma linha. Já não encontro, no ato de escrever, a satisfação de outros tempos. Pouco há, também, que escrever. Continuar a acompanhar a vida dos outros. Isso seria interminável. A vida dos amigos apenas se me revelou quando incidiu na minha. Jamais entrei nos seus domínios íntimos, e, se mergulhei em Silviano, foi porque nele encontrei possíveis itinerários para as minhas incertezas. Só conhecemos, aliás, a vida alheia pelos seus pontos de incidência com a nossa: o mais é conjetura ou romance. Não tenciono escrever romance.
E os amigos se desviaram de mim. Redelvim, que sempre foi pouco afetivo, tomou o seu rumo. Anda pela fazenda e dele não tenho notícia. Glicério deixou a Seção e passou a trabalhar nos serviços de advocacia do Estado: foi o bastante para afrouxar nosso convívio. Jandira se afasta cada vez mais, quase me parece estranha. Dentro em pouco, talvez nada tenhamos de comum. Acabou o namoro com o tal doutorando, mas deve ter arranjado outros, pois não dá sinal de si. Vive no seu mundo de Pereirinhas e de Azevedos Leões. Apenas Silviano, ainda que pouco encontradiço, permanece a oferecer interesse. Ah! É verdade: Florêncio não me tem faltado. Mas continua Florêncio. Que dizer dele? É um homem sem história, e nisso está sua felicidade.
Como um ano, que passa, modifica o aspecto das coisas! Minha vida se reduz a Emílio, Carolino, Giovanni e Prudêncio. Isto é: encolhe-se na Rua Erê, como dentro de um caramujo.
Leio um pouco e caminho pela cidade, em companhia do Carolino. Às vezes não encontro lugar que me sirva, e ando, ando sempre, como Judeu Errante. Não procurarei os amigos: se não me aparecem é porque já não me querem.
Creio que já escrevi tudo o que havia em mim para escrever.
"O Amanuense Belmiro", Cyro dos Anjos
(Cyro dos Anjos nasceu no dia 5 de Outubro de 1906. Morreu em 1994.)
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