Uma noite, altas horas, saíamos da casa de má fama ali para os lados
da Estação e resolvemos passear descalços pelas ruas desertas e geladas
da cidade. Não sei de quem foi a peregrina ideia, mas, de tão tola, decerto foi
minha. Confesso que não me lembro do que pretendíamos exactamente
provar, mas gosto de pensar naquele momento insólito como um ritual de
fraternidade, a celebração de uma amizade antiga e inoxidável que nos
ligava desde miúdos, apesar da evidente diferença de "estatuto social"
entre as nossas duas famílias. Frequentara-lhe a casa - "de rico". Dava-me o lanche, apresentou-me ao pão com manteiga e ao café com leite. Ensinou-me os Queen. Emprestou-me "A Night at the
Opera". Eu e a minha mãe deliciávamo-nos a ouvir "Bohemian Rhapsody" uma
e outra vez, mais de vinte ou trinta vezes ao dia, no pequeno
gira-discos francês que nos sobrara do meu pai.
Ali
íamos, portanto. E, sim, era realmente liturgia, era festa.
Glorificávamos a camaradagem desinteresseira e fiel. Éramos irmãos. Ali íamos afinal
iguais, ambos de pés descalços, com as botas e as meias pela mão, trocando
memórias e partilhando o riso. Passávamos em frente à Câmara e parámos -
éramos, penso-o agora, uma procissão. Se naquele precioso instante soltassem
revoadas de pombas brancas por sobre as nossas cabeças, creio que não nos
espantaríamos...
Chamava-me "meu rico menino", e eu gostava. Eu gostava, meu rico menino!
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