Quando entrou no quarto, o seu refúgio, atirou-se para cima da cama, satisfeito. Ainda desta vez, escapara! Apesar de haver perdido a noite anterior, não tinha sono; apenas lhe doíam os pés, com certeza cheios de bolhas rebentadas sob as meias coladas à carne, como de costume. Há três meses naquela tarefa - ir buscar o material de propaganda, distribuí-lo -, ainda não calejara os pés, como os outros camaradas, que aguentavam muitos quilómetros. É verdade. Há três meses que mergulhara na vida clandestina! Noventa dias de luta, fugido aos esbirros fascistas, partilhando dum lar estranho, embora amigo, ali no quarto estreito que era todo o seu mundo de repouso, de estudo e de sonho, às vezes. Gostava bem daquele quarto de tecto baixo e paredes manchadas pela humidade, com a cama de ferro a um lado, sem colcha; uma mesa tosca, no outro, além da mala; e uma janela que dava para as traseiras dos prédios, mas da qual se via, ao fundo, uma nesga do rio.
De tarde, quando o sol emprestava reflexos de espelho aos vidros sujos ou partidos das traseiras, à hora em que os inquilinos regressavam do trabalho, pejando as ruas da cidade, Abel encostava-se ao peitoril da sua janela e ficava-se a partilhar da vida alegre ou triste dos vizinhos. Os homens, em mangas de camisa, entretinham-se a consertar velhas capoeiras, ou regavam com desvelo uma nespereira raquítica que nunca daria frutos, enquanto as mulheres punham a mesa nas estreitas varandas, se havia bom tempo, e os cachopos saltitavam como pássaros famintos.
"Contos Vermelhos e Outros Escritos", "Refúgio Perdido", Soeiro Pereira Gomes
(Soeiro Pereira Gomes nasceu no dia 14 de Abril de 1909. Morreu em 1949.)
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